SUMÁRIO
I - A parte do lucro tributável em IRC oriunda de uma atividade empresarial realizada no estrangeiro através de um estabelecimento estável ou realidade económica similar não está sujeita ao pagamento da derrama municipal por falta de legitimidade de um qualquer município português para a tributar.
II - Um rendimento, integrando o lucro tributável e IRC, será imputável à atividade no estrangeiro de um residente em Portugal quando decorrer da atividade de um estabelecimento estável situado no estrangeiro. Existindo no estrangeiro um estabelecimento estável, uma qualquer instalação fixa através da qual seja exercida uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola, nenhuma dúvida existirá quanto à localização da fonte económica dos rendimentos assim obtidos.
III - No caso sub judice, dada a ausência de sucursal, estabelecimento estável ou qualquer estrutura empresarial localizada no estrangeiro a cuja atividade económica se possa imputar a fonte geradora dos rendimentos, estes tem de ser considerados como, legalmente, localizados no município da sede do sujeito passivo e, em consequência não estão excluídos de tributação em sede de derrama.
DECISÃO ARBITRAL
Os árbitros Professora Doutora Rita Correia da Cunha (Presidente), Professora Doutora Maria do Rosário Anjos (Relatora) e Dr. Fernando Marques Simões (Vogal), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formar Tribunal Arbitral Coletivo no processo em epígrafe, decidem o seguinte:
I. RELATÓRIO
A..., S.A., sociedade comercial anónima com sede na Rua ..., n.º..., ..., ...-... ..., Oeiras (doravante “Requerente”), titular do NIPC..., apresentou pedido para constituição de tribunal arbitral coletivo e pedido de pronúncia arbitral (doravante “PPA”), ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 3.º, n.º 1, 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a), e 10.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, todos do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (doravante “RJAT”), em que é demandada a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA(doravante “Requerida” ou “AT”), com vista à declaração de ilegalidade e anulação de atos tributários, tendo por objeto imediato a decisão de indeferimento da reclamação graciosa n.º ...2024..., e como objeto mediato, a autoliquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (doravante, “IRC”), constante da declaração periódica de rendimentos Modelo 22 de IRC (doravante, “declaração Modelo 22”) n.º..., de 3 de Junho de 2022, referente ao exercício de 2021, e a declaração Modelo 22 de IRC n.º..., de 19 de Maio de 2023, referente ao exercício de 2022, ascendendo o imposto pago indevidamente em 2021 e 2022 a € 128.657,69.
Estes atos foram objeto de reclamação graciosa apresentada em 10 de Maio de 2024, requerendo a anulação parcial dos atos de autoliquidação e o correspondente reembolso do imposto indevidamente pago. Aquela reclamação graciosa foi indeferida pela AT, que concluiu “… que a derrama municipal incide sobre o lucro tributável sujeito e não isento de IRC, recaindo, assim, também, sobre rendimentos provenientes de fonte estrangeira, componentes daquela grandeza.” (Cfr: ponto 39 da decisão de indeferimento).
Mais peticiona a Requerente a restituição do montante indevidamente pago de € 128.657,69, acrescido de juros indemnizatórios. Em suporte da sua pretensão alega, em síntese, que a tributação a título de derrama que incidiu sobre todos os lucros obtidos pela Requerente não devia ter considerado o valor dos lucros obtidos no estrangeiro por não ter qualquer conexão com a atividade desenvolvida na área geográfica da sua sede em Portugal. Invoca vasta jurisprudência em defesa da sua posição.
O pedido de constituição do Tribunal Arbitral Coletivo foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD em 20/09/2024, e automaticamente notificado à AT.
Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do Tribunal Arbitral Coletivo os aqui signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável. Devidamente notificadas dessa designação, as partes não manifestaram vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.
Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Tribunal Arbitral Coletivo foi constituído em 26/11/2024, e na mesma data foi proferido despacho arbitral nos termos do artigo 17º do RJAT, convidando a Requerida a apresentar resposta e juntar o respetivo processo administrativo (“PA”).
Em 20/12/2024, a AT apresentou resposta ao PPA, defendendo-se por impugnação, tendo junto o respetivo PA.
Em 10/01/2025 foi proferido despacho arbitral no qual, ao abrigo do princípio da autonomia do Tribunal Arbitral na condução do processo e da livre determinação das diligências de prova necessárias (cf. artigo 16.º, alíneas c) e e), do RJAT), e considerando a inexistência de prova testemunhal por produzir, o Tribunal dispensou a realização da reunião do artigo 18.º do RJAT. Determinou, ainda, a notificação da Requerente para em 10 dias prestar os esclarecimentos e juntar os documentos que entenda por conveniente e caso a Requerente apresente requerimento nos termos do número anterior, a AT deverá exercer o seu direito ao contraditório no prazo de 10 dias.
As partes pronunciaram-se, respetivamente, em 21/01/2025 e 31/01/2025.
Por despacho de 25/02/2025, foi a Requerente notificada para se pronunciar sobre o alegado pela AT a propósito do valor em discussão nos autos, com eventual impacto sobre o valor da causa.
Em 10/03/2025 a Requerente juntou aos autos a sua resposta quanto à questão do valor da causa, seguindo-se o prazo de 10 dias para eventual exercício do contraditório pela AT, nos termos fixados no despacho de 25/02/2025. Esta não se pronunciou.
Encontra-se junto aos autos o comprovativo de pagamento da taxa arbitral subsequente.
II. SANEAMENTO
O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído e é materialmente competente para conhecer do pedido (cf. artigo 2.º, n.º 1, alínea a), do RJAT).
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão devidamente representadas (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT e 1.º da Portaria n.º 112- A/2011, de 22 de março).
O processo não enferma de nulidades. As partes não suscitaram exceções suscetíveis de obstar ao conhecimento do mérito da causa.
A Requerida suscitou, na sua resposta ao PPA, a questão do valor em discussão nos autos, o que não põe em causa a competência do Tribunal Arbitral mas interfere com o valor da causa, impondo-se o seu conhecimento prévio. De ressaltar que, no processo tributário, não existindo despacho saneador, cabe ao Tribunal Arbitral fixar o valor do processo, quando seja discutível, na decisão arbitral.
Quanto ao valor da causa, dispõe o artigo 97.º-A do CPPT o seguinte:
“1 - Os valores atendíveis, para efeitos de custas ou outros previstos na lei, para as acções que decorram nos tribunais tributários, são os seguintes:
a) Quando seja impugnada a liquidação, o da importância cuja anulação se pretende;
b) Quando se impugne o acto de fixação da matéria colectável, o valor contestado;
c) Quando se impugne o acto de fixação dos valores patrimoniais, o valor contestado;
d) No recurso contencioso do indeferimento total ou parcial ou da revogação de isenções ou outros benefícios fiscais, o do valor da isenção ou benefício;
e) No contencioso associado à execução fiscal, o valor correspondente ao montante da dívida exequenda ou da parte restante, quando haja anulação parcial, exceto nos casos de compensação, penhora ou venda de bens ou direitos, em que corresponde ao valor dos mesmos, se inferior.
2 - Nos casos não previstos nos números anteriores, o valor é fixado pelo juiz, tendo em conta a complexidade do processo e a condição económica do impugnante, tendo como limite máximo o valor da alçada da 1.ª instância dos tribunais judiciais.
3 - Quando haja apensação de impugnações ou execuções, o valor é o correspondente à soma dos pedidos.”
Para efeitos de determinação do valor da causa, os casos de impugnação de atos de liquidação (impugnação direta ou indireta) cabem na alínea a) do n.º 1 deste dispositivo. Sendo assim, seguindo de perto a anotação do Senhor Conselheiro Jorge Lopes de Sousa a este normativo, conclui-se que, na alínea a), se enquadram todas as situações em que é impugnada liquidação, em que se incluem, não só as impugnações diretas, como as impugnações de atos de indeferimento de reclamações graciosas, como sucede no presente caso.[1] Acresce ainda que, seguindo a alínea a) do n.º1 deste dispositivo, como bem menciona o mesmo Autor, “tem de se concluir que quando é impugnado um ato de liquidação o valor do processo é apenas o da importância cuja anulação se pretende, que será o da própria liquidação, quando se pretende a anulação total ou o valor da parte impugnada, se se pretender a anulação apenas parcial.”[2]
No caso dos presentes autos, atendendo ao pedido formulado pela Requerente, é absolutamente claro que a Requerente peticiona a anulação do indeferimento da reclamação graciosa, a qual se debruçou sobre um pedido de anulação parcial das liquidações identificadas nos autos, alegando ter sido indevidamente tributada em sede de derrama municipal sobre rendimentos auferidos no estrangeiro. Nos termos do pedido formulado, a importância cuja anulação pretende cifra-se no montante de € 128.657,69.
Pelo exposto, é irrelevante o alegado pela AT Requerida quanto aos capitais utilizados para financiar os investimentos financeiros de que derivaram os rendimentos obtidos no estrangeiro. Face ao pedido formulado pela Requerente, o qual se limita à questão da incidência da derrama sobre os rendimentos auferidos no estrangeiro (segundo os cálculos apresentados pela Requerente, e que a Requerida não questionou), e considerando os termos exatos em que vem formulado e contabilizado o pedido, improcede o alegado pela AT Requerida quanto ao valor da causa.
III. QUESTÃO DECIDENDA
A questão a decidir é a de saber se os rendimentos obtidos no estrangeiro devem ser excluídos do lucro tributável relevante para efeitos de cálculo da derrama municipal devida por sociedades residentes em território nacional.
IV. MATÉRIA DE FACTO
FACTOS PROVADOS
A. A Requerente é um sujeito passivo de IRC que tem como objeto social o exercício da atividade seguradora e resseguradora no ramo de seguros “Não Vida”, podendo ainda exercer atividades conexas ou complementares das de seguro ou resseguro, sob supervisão da Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões (doravante, “ASF”) e mediante a autorização n.º....
B. No exercício da sua atividade, garantindo o cumprimento das suas obrigações tributárias, a Requerente apresentou a autoliquidação de IRC plasmada nas declarações Modelo 22 a seguir identificadas:
a) Declaração Modelo 22 n.º..., referente ao exercício de 2021, conforme documento junto ao processo administrativo e que deu origem à liquidação n.º 2022 ..., de 09-09-2022:

b) Declaração Modelo 22 n.º..., referente ao exercício e 2022, a qual, igualmente, consta do documento junto ao processo administrativo, e que deu origem à liquidação n.º 2023..., de 04-07-2023:

C. A Requerente declarou, no campo 364 do quadro 10 das declarações de rendimentos identificadas em b), os montantes de € 145.940,34 e € 53.949,20 (totalizando € 199.889,54) como suportados a título de derrama municipal, sendo os mesmos referentes a todos rendimentos obtidos nos períodos em causa, incluindo os montantes recebidos no estrangeiro, a título de (i) dividendos ou lucros derivados de participações sociais, (ii) juros ou rendimentos de crédito de qualquer natureza, e (iii) mais-valias derivadas da alienação de bens mobiliários, navios, aeronaves ou quaisquer outros bens (no valor de € 5.873.135,88 em 2021, e de € 3.338.323,26 em 2022).
D. Resulta do anexo H da Informação Empresarial Simplificada (“IES”) que o montante total de rendimentos obtidos no estrangeiro pela Requerente, no período de 2021, foi de € 5.873.135,88, conforme documento integrante do processo administrativo e que se sintetiza no quadro seguinte:

E. Conforme consta do anexo H da IES relativa ao exercício de 2022 o montante total de rendimentos obtidos no estrangeiro nesse ano foi de € 3.338.323,26, conforme documento integrante do processo administrativo e que se sintetiza no quadro seguinte:

-
Em 10/05/2024, a Requerente deduziu reclamação graciosa (autuada com o n.º ...2024...) contra os atos de autoliquidação acima identificados, conforme consta do processo administrativo de reclamação graciosa junto aos autos (cf. Documentos 10 e 12 juntos em anexo à reclamação graciosa, a fls. 2 e ss. do processo administrativo).
G. A Requerente foi notificada para, querendo, exercer o direito de audição, previsto no artigo 60.º da LGT, com data de 22/05/2024.
H. Não se tendo pronunciado no prazo concedido, a proposta de decisão de indeferimento da reclamação graciosa converteu-se em definitiva, por despacho de 19/06/2024, exarado na informação n.º 125-AIR1/2024.
I. Inconformada com esta decisão de indeferimento de reclamação graciosa, a Requerente apresentou o PPA que deu origem aos presentes autos em 20/09/2024.
FACTOS NÃO PROVADOS
Com relevo para a decisão, não existem factos alegados que devam considerar-se não provados.
FUNDAMENTAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
A matéria assente resulta da documentação junta aos autos. A Requerente não juntou documentos com o PPA, invocando, outrossim, a documentação junta e constante do processo administrativo. Assim, os factos provados mencionados supratêm fundamento estritamente documental, designadamente: declarações de IRC, IES e respetivos anexos, constantes de fls. 14 e ss., 88 e ss., e 121 e ss. do processo administrativo; documentos anexos à reclamação graciosa constante de fls. 14 e ss. do processo administrativo.
Relativamente à matéria de facto, o Tribunal Arbitral não tem de se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe sim o dever de selecionar os factos que importa para a decisão, e discriminar a matéria provada da não provada (cf. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT). Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cf. artigo 596.º do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
Tendo em consideração as posições assumidas pelas partes à luz do artigo 110.º, n.º 7, do CPPT, a prova documental constante do processo administrativo junto aos autos, consideram-se provados, com relevo para a decisão, os factos supra elencados, por serem os que se afiguram relevantes para a decisão da causa.
V. MATÉRIA DE DIREITO
V.1 – Da ilegalidade dos atos tributários impugnados
Tal como resulta da matéria de facto assente, a Requerente é uma pessoa coletiva cuja atividade se desenvolve em Portugal, com sede em Oeiras, onde concentra a sua atividade. Resultou provado também que a Requerente obteve, nos exercícios de 2021 e 2022, proveitos provenientes do estrangeiro em resultado de rendimentos de capital, juros e mais-valias mobiliárias. Note-se que a Requerente não alegou nem demonstrou dispor de estabelecimento estável situado fora de Portugal, donde proviessem os capitais investidos fora de Portugal.
Dito isto, a causa de pedir assenta exclusivamente na alegação da Requerente quanto à tributação indevida em sede de derrama municipal sobre rendimentos auferidos no estrangeiro. A questão que se coloca a este Tribunal é, precisamente, a de analisar a incidência deste imposto.
Vejamos, pois, se assiste razão à Requerente.
V.2 – Da natureza jurídica da derrama municipal e base de incidência objetiva
Alega a Requerente que a derrama, enquanto adicional ao IRC destinado ao(s) Município(s), não pode incidir sobre rendimentos auferidos no estrangeiro. Alega em reforço da sua opinião o entendimento dominante da jurisprudência dos nossos tribunais superiores e arbitrais. E, na verdade, esta questão tem sido tratada pela jurisprudência dos nossos tribunais superiores e arbitrais. Mas se devidamente analisada, a situação de facto subjacente vai diferindo de caso para caso, pelo que essa análise tem de ser apurada, tendo sempre por referência cada situação per si.
Quanto à natureza jurídica, a derrama é um tributo, adicional ao IRC, que constitui uma receita dos Municípios, pelo que, quando um sujeito passivo desenvolva a sua atividade em mais do que um Município, há que estabelecer uma proporção que determina o lucro tributável a imputar à circunscrição de cada município, e é tida como referência a massa salarial, um fator ligado à relação de trabalho estabelecida entre o sujeito passivo e as pessoas que exercem atividade sob as suas ordens e direção.
Ora, esta partilha entre Municípios constitui um indício claro da vontade do legislador em condicionar a incidência da derrama em função da atuação concreta, efetiva, em função da utilização da força de trabalho em cada Município, geradora de rendimentos no território municipal respetivo. É esta circunstância (o exercício da sua atividade efetiva em mais do que um Município) que justifica a repartição da derrama, proporcionalmente, entre os Municípios com legitimidade concorrente para a sua tributação.
Este regime jurídico tem fundamento na autonomia financeira dos Municípios, constitucionalmente reconhecida e legalmente concretizada. Assim, as autarquias locais, em estrito cumprimento da lei, estão habilitadas à criação de tributos destinados ao respetivo financiamento através da arrecadação de receita. Um desses tributos é, precisamente, a derrama municipal.
A este propósito adere-se em pleno à jurisprudência do Tribunal Constitucional, vertida no Acórdão n.º 197/2013, de 9 de abril de 2013, no qual se decidiu que:
“A derrama assume-se atualmente como um imposto municipal, expressão, portanto, da autonomia financeira de que gozam as autarquias locais e concretamente os municípios, nos termos dos artigos 238.º, n.º 4, e 254.º da CRP. Como é sobejamente reconhecido, a autonomia financeira das autarquias locais é uma faculdade concretizadora do princípio da autonomia local (cfr. artigo 6.º, n.º 1, da CRP), de acordo com a qual aquelas devem possuir “receitas suficientes para a realização das tarefas correspondentes à prossecução das suas atribuições e competências” (…)
Essas receitas podem ser, entre outras, receitas fiscais, concretizando-se os poderes tributários reconhecidos pelo legislador constituinte às autarquias locais quer num verdadeiro poder tributário – leia-se, no poder de criar ou conformar impostos – quer num direito à receita dos impostos (…). Neste sentido, a derrama surge como uma manifestação da primeira modalidade de poder tributário referida, porquanto o município, para além de se afirmar como o sujeito ativo da relação tributária - isto é, como o titular do crédito de imposto – tem um domínio praticamente absoluto sobre os seus elementos essenciais, circunstância que reforça a natureza municipal da derrama”.
Efetivamente, resulta do disposto no artigo 14.º, alínea c), da Lei das Finanças Locais, que o produto da cobrança de derrama municipal – tributo que assume a natureza de imposto, destinando-se ao financiamento da atividade local – constitui receita própria dos municípios (cfr. artigo 14.º, alínea c), da LFL). Com efeito, o produto da cobrança de derrama municipal – tributo que assume a natureza de imposto, destinando-se ao financiamento da atividade local – constitui receita própria dos municípios (cfr. artigo 14.º, alínea c), da LFL).
O regime da derrama municipal está consagrado no artigo 18.º da LFL, cujo n.º 1 estabelece o seguinte:
“Os municípios podem deliberar lançar uma derrama, de duração anual e que vigora até nova deliberação, até ao limite máximo de 1,5 /prct., sobre o lucro tributável sujeito e não isento de imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas (IRC), que corresponda à proporção do rendimento gerado na sua área geográfica por sujeitos passivos residentes em território português que exerçam, a título principal, uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola e não residentes com estabelecimento estável nesse território”. (sublinhado e negrito nossos)
Em suma, em termos de incidência objetiva, não resta dúvida que a derrama incide exclusivamente sobre a parte dos rendimentos gerados em cada Município, isto, naturalmente, quando haja concorrência entre Municípios pelo facto do sujeito passivo desenvolver atividade em mais do que um.
Não resta, pois, dúvida que a incidência objetiva da derrama municipal incide sobre o lucro tributável de IRC apurado no exercício, na proporção do rendimento gerado na área geográfica do(s) município(s).
V.3 – Da incidência de derrama sobre rendimentos provenientes do estrangeiro
Que conclusões podemos retirar deste regime jurídico no que se refere aos rendimentos auferidos no estrangeiro?
No que respeita à incidência subjetiva, estão sujeitos a derrama municipal os sujeitos passivos de IRC, residentes ou não residentes com estabelecimento estável em território nacional – e, por isso, com presença física e atividade económica em, pelo menos, um município português –, que aí exerçam, a título principal, uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola (ou imputáveis a estabelecimento estável aí situado).
O que dizer, então, a propósito dos rendimentos auferidos em país estrangeiro? Poderão esses rendimentos ser tributados em sede de derrama e se sim, com que critério?
A resposta a estas questões tem sido avançada em diversa jurisprudência, nomeadamente arbitral, reconhecendo que a natureza jurídica da derrama impõe a conclusão de que esta não pode incidir sobre rendimentos gerados no estrangeiro, obtidos por sucursais e estabelecimentos estáveis detidos no estrangeiro.
Resta saber se a situação de facto provada nos presentes autos cumpre este princípio, ou seja, se os rendimentos obtidos no estrangeiro pela Requerente resultam de atividade por si desenvolvida no estrangeiro, através de sucursais ou estabelecimento estável ou não.
Dito de outro modo, os rendimentos provenientes do estrangeiro são resultado de atividade económica desenvolvida no estrangeiro através de alguma sucursal ou estabelecimento estável ou são meros rendimentos de capital aplicado em produtos financeiros, títulos e outros produtos financeiros sem qualquer atividade económica subjacente no estrangeiro?
Ora, no caso dos autos não há dúvida, por tudo o que vem alegado pela Requerente no PPA e no requerimento de resposta à questão do valor suscitada pela Requerida AT, que os rendimentos em causa resultam de aplicações de capital efetuadas no estrangeiro, cuja fonte ou proveniência só pode ser a atividade económica desenvolvida em Portugal.
É que, como bem alega a Requerida, a Requerente não demonstrou ter outra fonte explicativa para as aplicações de capital efetuadas no exterior, das quais obtêm rendimentos anuais, como resultou provado nos autos.
V.4 – Análise de jurisprudência
Revisitando a jurisprudência do STA e arbitral, que vem sendo sufragada em diversos processos, conclui-se que o princípio determinante para a legitimidade na tributação em sede de derrama assenta no critério da localização da fonte geradora dos rendimentos e não na mera localização dos investimentos de capital.
Atente-se, a título de exemplo no que se afirma na Decisão Arbitral proferida no processo n.º 720/2021-T, de 27 de maio de 2022, no qual se decidiu que:[3]
“A Derrama Municipal é um imposto municipal que incide sobre os rendimentos tributáveis e não isentos de IRC, que corresponda à proporção do rendimento gerado na área geográfica do município por sujeitos passivos residentes e que aí exerçam atividade comercial, industrial ou agrícola e não residentes com estabelecimento estável nesse território.
Os rendimentos gerados fora do território nacional, designadamente os relativos a lucros gerados por sucursais residentes fora do território nacional, devem ser excluídos, para efeitos deste imposto, do lucro tributável e como tal, não podem contribuir para a base do cálculo da Derrama Municipal lançada pelo município”. (sublinhado nosso)
Não é o caso que ocorre nos presentes autos.
O mesmo se diga, aliás, da jurisprudência dos nossos tribunais superiores. A este propósito atente-se na decisão vertida no Acórdão do STA de 13-01-2021, proferido no processo n.º 3652/15.3BESNT:
“A Requerente pede ao Tribunal que afira da legalidade da sujeição a Derrama dos rendimentos de fonte no estrangeiro (juros e dividendos). Fez, de forma clara, a destrinça dos rendimentos provenientes de fonte estrangeira como consta da matéria de facto provada, de resto não contestada pela AT.
Assim, por não se tratar de rendimentos gerados na área geográfica do município lançador, devem ser retirados da base de incidência, acolhendo este Tribunal a fundamentação da decisão do STA acima mencionada, que também foi acolhida nas três decisões dos Tribunais formados no CAAD, uma vez que não se vislumbram razões, de facto e de direito, para se afastar do entendimento jurisprudencial consolidado na nossa ordem jurídica”.
Ainda a este propósito ressalta-se a decisão vertida no Acórdão arbitral proferido no processo n.º 1060/2024-T, de 28-02-2025, no qual de forma lapidar se afirma o seguinte:
“Desde sempre foi pacífica a ideia de que, coincidindo a incidência real da derrama municipal com a do IRC, os rendimentos obtidos fora do território português estariam sujeitos, também, a tributação pelo primeiro dos referidos impostos.
A dissonância surge, ao que cremos pela primeira vez ao nível do STA, no processo n.º 03652/15.3BESNT 0924/17, de 13 de janeiro de 2021. Pela sua importância, transcrevemos o respetivo sumário:
I - O reporte e ligação da incidência, específica, da derrama municipal, à “proporção”, à parte de um total, do rendimento gerado num determinado município, só pode significar que o cálculo, o apuramento da derrama, quando ocorrer e na medida do possível (permitida pela contabilidade), tem de implicar as operações aritméticas necessárias ao isolamento, relativamente a outros auferidos, do rendimento gerado no município beneficiário e, posterior, aplicação da percentagem (até ao máximo de 1,5%) pelos seus órgãos deliberada.
II - As derramas municipais têm, para legitimação, de se ligar à atividade que o sujeito passivo desenvolve na área geográfica/território do município recetor, objetivando a respetiva autoliquidação, em primeira linha, contribuir para colmatar as necessidades financeiras deste, na medida, proporcional, da pegada deixada, por aquele, nas suas infraestruturas, serviços, imobilizado corpóreo…
III - Em situações de, isoláveis, parcelas de rendimentos auferidos no estrangeiro, só esta forma de entender e operar, permite alcançar um resultado equitativo e materialmente justo.
IV - O lançamento de derrama devendo, por regra, imperativa, incidir sobre o lucro tributável sujeito e não isento de IRC, tem de, quando possível a destrinça, comprovada, por não se tratar de rendimentos gerados na área geográfica do município lançador, retirar, da competente base de incidência, aqueles que, num determinado exercício, forem obtidos fora do território nacional (e, consequentemente, dos municípios portugueses, os beneficiários, exclusivos, daquela).”
Como bem se refere, ainda, neste acórdão arbitral o que estava em causa no citado Acórdão do STA era saber se os rendimentos provenientes da atividade de sucursais e Estabelecimento Estável da Sociedade Requerente (individualmente considerada), constituídos em Angola, Moçambique e Argélia. Ou seja, estavam em causa rendimentos gerados por atividade económica gerada pelas sucursais da Requerente situadas no estrangeiro, pelo que o STA considerou, e bem, que não podia haver incidência sobre estes rendimentos uma vez que a sua obtenção ocorreu como resultado de atividade económica desenvolvida noutros territórios por sucursais e estabelecimentos estáveis aí situados.
Ora, citando ainda o mesmo acórdão arbitral:
“mesmo perfilhando a posição de princípio assumida em tal acórdão, há que saber se a conclusão por ele sufragada é transponível para uma situação factual diferente, que é a dos presentes autos – a de rendimentos oriundos do estrangeiro obtidos sem intermediação de um estabelecimento estável ou realidade económica equivalente sita noutro país.
E, adiantamos desde já, a conclusão pode ser diferente sem qualquer contradição com o decidido pelo STA, dada evidente falta de identidade factual.
Adiantamos desde lá: pensamos que parte da jurisprudência arbitral citada pela Requerente se limitou a louvar-se no sumário de tal acórdão do STA, sem cuidar da relevância da realidade factual sub judice em cada um desses casos.”
Na verdade, no caso dos autos, ficou provado que os rendimentos descritos nos anexos H da IES relativa a cada um dos exercícios em análise correspondem a rendimentos resultantes da aplicação de capital da Requerente em investimentos fora do território português, mas sem demonstração que que estes tenham tido outra fonte que não a própria atividade económica desenvolvida no Município português onde tem a sua sede.
Alega a Requerente que não se vislumbra qual a correlação efetiva entre a massa salarial empregue em Portugal e os rendimentos provenientes de aplicações de capital fora do território nacional. Ora, não se pode sufragar tal conclusão, porquanto, não tendo a Requerente sucursais ou estabelecimentos estáveis fora do país, forçoso é concluir que a fonte potenciadora dos capitais aplicados no estrangeiro só pode estar em Portugal, onde a Requerente exerce a sua atividade, o que é suficiente para a demonstração da conexão que legitima a tributação em sede de derrama.
Que outra fonte poderia justificar a existência destes capitais aplicados no estrangeiro e, naturalmente, geradores dos ditos rendimentos provenientes do estrangeiro?
Ora, o legislador, como vimos, parte do pressuposto de que o percentual da derrama municipal incida sobre o lucro tributável correspondente à proporção do rendimento gerado na área geográfica do município coletor. Ao dispor desta forma valoriza a localização da atividade geradora do rendimento, de modo a repartir de forma justa e proporcional a parte que respeitará a cada Município. Sempre na lógica de tributar em sede de derrama em função da localização da fonte geradora do rendimento.
Como bem se afirma no acórdão arbitral n.º 1060/2024 T, já supracitado:
“Importará clarificar o significado de rendimentos gerados. Está em causa – cremos que incontestavelmente - a localização da fonte económica do rendimento, o lugar onde efetivamente é levada a cabo a atividade dele geradora.
Não está em causa, portanto, a fonte financeira de tais rendimentos, o local onde são pagos, onde se situa a entidade devedora ou a pagadora.
O mesmo é dizer que, no nosso entendimento, não basta o facto de o a entidade devedora estar situada no estrangeiro, aí exercer a sua atividade, (de se tratar de rendimentos oriundos do estrangeiro) para os excluir da tributação em derrama municipal. Para tal tributação não ter lugar, tais rendimentos têm de provir de uma atividade empresarial realizada no estrangeiro pelo sujeito passivo, ser gerados fora de Portugal.
O mesmo é dizer que entendemos que apenas nos casos em que seja possível localizar no estrangeiro a atividade geradora do rendimento é que este ficará excluído de tributação em Derrama Municipal.
Um rendimento, integrando o lucro tributável e IRC, será imputável à atividade no estrangeiro de um residente em Portugal quando decorrer da atividade de um estabelecimento estável situado no estrangeiro.
Existindo no estrangeiro um estabelecimento estável, uma qualquer instalação fixa através da qual seja exercida uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola, nenhuma dúvida existirá quanto à localização da fonte económica dos rendimentos assim obtidos. E nenhuma dúvida existirá, também, quanto à não existência de um qualquer benefício (disponibilização de infraestruturas, prestação de serviços, etc.) resultante da atividade do município português que se arroga do direito à tributação.”
Esta jurisprudência aplica-se, integralmente, ao caso dos presentes autos, atenta a identidade factual em causa.
Uma última nota para ressaltar que o mesmo entendimento se evidencia no recente Acórdão do STA, de 02-04-2025, proferido no processo n.º 560/22.5BEALM, no qual se reforça, mais uma vez, “o princípio de que o rendimento se considera “gerado no município em que se situa a sede ou a direcção efectiva do sujeito passivo”, sem distinção em função do local onde os rendimentos são pagos ou colocados à disposição do sujeito passivo (…).” [4]
Assim, sem necessidade de mais considerandos, no caso presente, atendendo à factualidade assente, conclui-se que os rendimentos em discussão nos autos, embora pagos à Requerente por entidades situadas no estrangeiro, são resultado da atividade por si desenvolvida em Portugal, já que não demonstrou ter sucursal ou estabelecimento estável noutro país à qual possa imputar fonte geradora dos rendimentos em causa.
V.5 – Dos gastos suportados pela requerente para a obtenção dos rendimentos de fonte estrangeira
A corroborar o que vem exposto, é de ressaltar o que vem alegado pela Requerente na resposta junta aos autos sobre os custos suportados para obter os rendimentos. Sobre esta questão esclarece a Requerente que, nos exercícios em causa (2021 e 2022), auferiu montantes a título de dividendos, juros e mais-valias, todos provenientes de fonte estrangeira, i.e. sem qualquer ligação com a atividade comercial exercida a título principal pela Requerente em território português. Aliás assume que os custos suportados se traduzem, apenas, em comissões pagas às entidades gestoras dos seus investimentos de capital. Deste modo, não se pode considerar que tais rendimentos decorrem do exercício de qualquer atividade económica desenvolvida por sucursais ou estabelecimento estável detido no estrangeiro. Na verdade, além de os rendimentos supramencionados resultarem da aplicação de capital fora do território nacional, a própria gestão e administração da carteira de investimentos da Requerente não é efetuada pela própria, tratando-se antes de um serviço prestado por entidades gestoras de investimentos sedeadas no estrangeiro.
Logo, não estando provado que estes rendimentos resultam de qualquer atividade desenvolvida pela Requerente no estrangeiro, mas apenas correspondem aos ganhos obtidos pelos investimentos de capital cuja fonte se situa em Portugal, estão sujeitos a derrama nos termos sobreditos.
Em síntese, face a tudo o que vem exposto, conclui-se que, no caso concreto, não foi, sequer, alegada a existência de uma sucursal ou estabelecimento estável situado no estrangeiro, à qual deva ser imputada a obtenção dos rendimentos provenientes do estrangeiro em causa nos presentes autos.
Não foi alegado nem demonstrado que a fonte económica destes rendimentos esteja situada fora do território português. Estamos perante rendimentos decorrentes da aplicação de capital, como a Requerente reconhece, sem qualquer estrutura diretamente afeta à sua obtenção.
Termos em que, em aplicação do disposto no n.º 13 do artigo 18.º da Lei do Regime Financeiro das Autarquias Locais, “Nos casos não abrangidos pelo n.º 2 considera-se que o rendimento é gerado no município em que se situa a sede ou a direção efetiva do sujeito passivo ou, tratando-se de sujeitos passivos não residentes, no município em que se situa o estabelecimento estável onde, nos termos do artigo 125.º do Código do IRC, esteja centralizada a contabilidade.”
Por todo o exposto, o pedido arbitral tem de improceder.
VI. DECISÃO
Termos em que, por tudo o que vem exposto, conclui-se pela improcedência do pedido arbitral, ficando prejudicados os restantes pedidos formulados.
VALOR DO PROCESSO
Fixa-se ao processo o valor de € 128.657,69 nos termos do disposto no artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT, aplicável por remissão do artigo 3.º do RCPAT.
CUSTAS
Custas no montante de € 3.060,00, a cargo da Requerente, em conformidade com a Tabela I anexa ao RCPAT e com os artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT, 4.º, n.º 5, do RCPAT, e 527.º do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.
Notifique-se.
CAAD, 25 de Maio de 2025
O Tribunal Arbitral,
Professora Doutora Rita Correia da Cunha
(com declaração de voto em anexo)
Professora Doutora Maria do Rosário Anjos (Relatora)
Dr. Fernando Marques Simões (Vogal)
DECLARAÇÃO DE VOTO
A questão de direito que subjaz ao presente processo arbitral prende-se com a incidência da derrama municipal sobre rendimentos de fonte estrangeira.
Não obstante acompanhar o sentido da decisão dos co-árbitros (de improcedência do PPA), não acompanho a fundamentação que sustenta a mesma, designadamente (i) a análise da jurisprudência citada e a relevância da mesma in casu, e (ii) o não reconhecimento de uma divergência na jurisprudência arbitral, que me parece evidente.
Adiante-se que, quanto à questão decidenda, acompanho a jurisprudência do Douto Supremo Tribunal Administrativo (STA), da qual se retira o seguinte:
I - A totalidade do lucro tributável sujeito e não isento de IRC é sujeita a derrama municipal, e imputável ao município onde se situa a sede ou direção efetiva do sujeito passivo, com exceção dos rendimentos de fonte estrangeira imputáveis a sucursal ou estabelecimento estável do sujeito passivo no estrangeiro (cf. Acórdão do STA de 13-01-2021, processo n.º 03652/15.3BESNT 0924/17).
II. Os montantes pagos ou colocados à disposição do sujeito passivo fora do território nacional (sejam dividendos, juros, ou contrapartida da prestação de serviços fora do território nacional), que não sejam imputáveis a sucursal ou estabelecimento estável do sujeito passivo no estrangeiro, incluem-se no âmbito de incidência da derrama municipal (cf. Acórdão do STA de 02-04-2025, processo n.º 0560/22.5BEALM).
Neste contexto, interessa (1) relembrar a legislação relevante, designadamente o regime da derrama municipal no âmbito da Lei n.º 2/2007, de 15 de janeiro (“Lei das Finanças Locais” ou “LFL”) e da Lei n.º 73/2013, de 3 de setembro (“RFALEI”), em vigor desde 1 de janeiro de 2014, e (2) analisar a jurisprudência do STA e arbitral relativa à incidência da derrama municipal sobre rendimentos de fonte estrangeira.
Legislação aplicável
A Lei n.º 2/2007, de 15 de janeiro, revogou expressamente a Lei n.º 42/98, de 6 de agosto (cf. respetivo artigo 64.º, n.º 1). O seu artigo 14.º estatuía o seguinte:
“1 - Os municípios podem deliberar lançar anualmente uma derrama, até ao limite máximo de 1,5% sobre o lucro tributável sujeito e não isento de imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas (IRC), que corresponda à proporção do rendimento gerado na sua área geográfica por sujeitos passivos residentes em território português que exerçam, a título principal, uma actividade de natureza comercial, industrial ou agrícola e não residentes com estabelecimento estável nesse território.
2 - Para efeitos de aplicação do disposto no número anterior, sempre que os sujeitos passivos tenham estabelecimentos estáveis ou representações locais em mais de um município e matéria colectável superior a (euro) 50000, o lucro tributável imputável à circunscrição de cada município é determinado pela proporção entre a massa salarial correspondente aos estabelecimentos que o sujeito passivo nele possua e a correspondente à totalidade dos seus estabelecimentos situados em território nacional.
(...)
5 - Nos casos não abrangidos pelo n.º 2, considera-se que o rendimento é gerado no município em que se situa a sede ou a direcção efectiva do sujeito passivo ou, tratando-se de sujeitos passivos não residentes, no município em que se situa o estabelecimento estável onde, nos termos do artigo 117.º do Código do IRC, esteja centralizada a contabilidade”.
O artigo 18.º da Lei n.º 73/2013, de 3 de setembro (“RFALEI”), reproduziu estes preceitos:
“1 - Os municípios podem deliberar lançar uma derrama, de duração anual e que vigora até nova deliberação, até ao limite máximo de 1,5 /prct., sobre o lucro tributável sujeito e não isento de imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas (IRC), que corresponda à proporção do rendimento gerado na sua área geográfica por sujeitos passivos residentes em território português que exerçam, a título principal, uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola e não residentes com estabelecimento estável nesse território.
2 - Para efeitos de aplicação do disposto no número anterior, sempre que os sujeitos passivos tenham estabelecimentos estáveis ou representações locais em mais de um município e matéria coletável superior a (euro) 50 000 o lucro tributável imputável à circunscrição de cada município é determinado pela proporção entre os gastos com a massa salarial correspondente aos estabelecimentos que o sujeito passivo nele possua e a correspondente à totalidade dos seus estabelecimentos situados em território nacional.
(...)
13 - Nos casos não abrangidos pelo n.º 2, considera-se que o rendimento é gerado no município em que se situa a sede ou a direção efetiva do sujeito passivo ou, tratando-se de sujeitos passivos não residentes, no município em que se situa o estabelecimento estável onde, nos termos do artigo 125.º do Código do IRC, esteja centralizada a contabilidade”.
Jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo
No processo n.º 03652/15.3BESNT 0924/17, no âmbito do qual foi proferido o Acórdão do STA de 13-01-2021, estava em causa o ano de 2010 e a aplicação da Lei n.º 2/2007, de 15 de janeiro (“LFL”). Dos factos retira-se que estavam em causa rendimentos de fonte estrangeira gerados exclusivamente por sucursais e estabelecimento estável do sujeito passivo constituídos em Angola, Moçambique e Argélia. No sumário deste Acórdão, pode ler-se:
“I- O reporte e ligação da incidência, específica, da derrama municipal, à “proporção”, à parte de um total, do rendimento gerado num determinado município, só pode significar que o cálculo, o apuramento da derrama, quando ocorrer e na medida do possível (permitida pela contabilidade), tem de implicar as operações aritméticas necessárias ao isolamento, relativamente a outros auferidos, do rendimento gerado no município beneficiário e, posterior, aplicação da percentagem (até ao máximo de 1,5%) pelos seus órgãos deliberada.
II - As derramas municipais têm, para legitimação, de se ligar à atividade que o sujeito passivo desenvolve na área geográfica/território do município recetor, objetivando a respetiva autoliquidação, em primeira linha, contribuir para colmatar as necessidades financeiras deste, na medida, proporcional, da pegada deixada, por aquele, nas suas infraestruturas, serviços, imobilizado corpóreo…
III - Em situações de, isoláveis, parcelas de rendimentos auferidos no estrangeiro, só esta forma de entender e operar, permite alcançar um resultado equitativo e materialmente justo.
IV - O lançamento de derrama devendo, por regra, imperativa, incidir sobre o lucro tributável sujeito e não isento de IRC, tem de, quando possível a destrinça, comprovada, por não se tratarem de rendimentos gerados na área geográfica do município lançador, retirar, da competente base de incidência, aqueles que, num determinado exercício, forem obtidos fora do território nacional (e, consequentemente, dos municípios portugueses, os beneficiários, exclusivos, daquela)”. (sublinhado nosso)
No texto do mesmo Acórdão, pode ler-se ainda o seguinte:
“o legislador, parece-nos, não ter querido ser inconsequente, anódino, na previsão, desde sempre, imutável, de que o percentual da derrama municipal incida sobre o lucro tributável correspondente à proporção do rendimento gerado na área geográfica do município coletor. E, na mesma linha, está a preocupação, constante, de, nos casos de necessidade de repartição de derrama entre vários municípios, ser obrigatório tributar “o lucro tributável imputável à circunscrição de cada município” envolvido e/ou, ainda, quando não haja diversos estabelecimentos estáveis ou representações locais, ter de considerar-se “o rendimento (que) é gerado no município”, em que se situa a sede.” (sublinhado nosso)
A referência a estabelecimentos estáveis e representações fiscais é expressa também no seguinte parágrafo:
“Ademais e em situações, como a que nos ocupa, de, isoláveis, parcelas de rendimentos auferidos no estrangeiro, só esta forma de entender e operar, permite alcançar um resultado equitativo e materialmente justo; por um lado, assegura os desígnios tributários do município da sede do sujeito passivo, com a incidência sobre a parcela de lucro tributável gerado no seu território e por outro, liberta o obrigado tributário de pagar sobre rendimentos que, objetiva e comprovadamente, não foram auferidos pelo exercício de qualquer atividade (produtiva) dentro dos limites territoriais do concelho, onde se encontra sediado, com a inerente não utilização das respetivas infraestruturas... Igualmente, só desta forma se consegue algum tratamento igualitário entre as situações de tributação de rendimentos auferidos na área de mais do que um município nacional, através de estabelecimentos estáveis ou representações locais, em que a coleta não pertence, apenas, àquele em que se situa a sede (ou direção efetiva) e os casos de atividades exercidas, simultaneamente, em Portugal e no estrangeiro (Nas primeiras, tenha-se em conta que, no estabelecimento da proporção que determina o lucro tributável a imputar à circunscrição de cada município, se opera com a “massa salarial”, ou seja, com um fator ligado à relação de trabalho, estabelecida entre o sujeito passivo e as pessoas que exercem a sua atividade sob as suas ordens e direção, o que constitui mais um indício da vontade do legislador de ligar e condicionar o pagamento de derrama municipal à atuação concreta, efetiva, com utilização da força de trabalho, geradora de rendimentos, no território municipal respetivo.)”
No processo n.º 0560/22.5BEALM, no âmbito do qual foi proferido o Acórdão do STA de 02-04-2025, estavam em causa os anos de 2017-2020 e a aplicação da Lei n.º 73/2013, de 3 de setembro (“RFALEI”). Dos factos retira-se que estavam em causa rendimentos pagos ou colocados à disposição do sujeito passivo fora do território nacional (como contrapartida da prestação de serviços fora do território português), mas não imputáveis a sucursais ou estabelecimento estável do sujeito passivo no estrangeiro. No sumário deste Acórdão, pode ler-se o seguinte:
“I - Desde a redacção inicial, o art. 18º da Lei n.º 73/2013 de 03-09 (RFALEI) estabeleceu a regra, inalterada até hoje, de que “(…) Para efeitos de aplicação do disposto no n.º 1, quando uma mesma entidade tem sede num município e direção efetiva noutro, a entidade deve ser considerada como residente do município onde estiver localizada a direção efetiva.”.
II - Na determinação do lucro tributável, dos rendimentos de fonte estrangeira e, inexistindo norma legal que afaste tal situação no domínio apontado, ou seja, para efeito de derrama municipal, inexiste fundamento para os excluir, sendo que o artigo 18º nº 13 da Lei n.º 73/2013, de 03-09 é claro ao determinar que “[n]os casos não abrangidos pelo n.º 2, considera-se que o rendimento é gerado no município em que se situa a sede ou a direção efetiva do sujeito passivo […]”.
III - Na situação dos autos, em nenhum momento se fala em estabelecimentos estáveis ou representações que poderiam implicar uma outra leitura da realidade em apreço e a lei não aponta qualquer elemento no sentido de se poder dizer que o rendimento se considera gerado no local da sede ou direcção efectiva da entidade que paga ou coloca à disposição os rendimentos, de modo que, a conclusão firmada na sentença recorrida no sentido da existência de rendimentos obtidos pela Impugnante fora do território nacional é inapta a produzir o efeito de anulação dos actos de autoliquidação no domínio indicado, na medida em que a alusão a rendimentos obtidos no estrangeiro preenche apenas um conceito material e não o conceito contemplado na lei com referência ao rendimento gerado na sua área geográfica.
IV - Assim, a totalidade do lucro tributável é, para efeito de derrama municipal, imputável ao município onde se situa a sua sede ou direcção efectiva do sujeito passivo, não existindo qualquer razão para afastar os rendimentos de fonte estrangeira”.
Dos Acórdãos do STA de 13-01-2021, processo n.º 03652/15.3BESNT 0924/17, e de 02-04-2025, processo n.º 0560/22.5BEALM, retira-se que a totalidade do lucro tributável sujeito e não isento de IRC é sujeita a derrama municipal, e imputável ao município onde se situa a sede ou direção efetiva do sujeito passivo, com exceção dos rendimentos de fonte estrangeira imputáveis a sucursal ou estabelecimento estável do sujeito passivo no estrangeiro. Significa isto que os montantes pagos ou colocados à disposição do sujeito passivo fora do território nacional (sejam dividendos, juros, ou contrapartida da prestação de serviços fora do território nacional), que nãosejam imputáveis a sucursal ou estabelecimento estável do sujeito passivo no estrangeiro, incluem-se no âmbito de incidência da derrama municipal.
Jurisprudência arbitral
Subscrevendo o entendimento vertido nos Acórdãos do STA de 13-01-2021, processo n.º 03652/15.3BESNT 0924/17, e de 02-04-2025, processo n.º 0560/22.5BEALM, vejam-se as Decisões Arbitrais proferidas nos processos n.ºs 720/2021-T, em 27-05-2022 (os rendimentos de fonte estrangeira que sejam imputáveis a sucursal no estrangeiro não se encontram sujeitos a derrama municipal), e 32/2024, em 22-05-2024; 950/2025, em 29-01-2025; 631/2024-T, em 07-02-2025; 1060/2024-T, em 28-02-2025 (os rendimentos de fonte estrangeira que não sejam imputáveis a sucursal ou estabelecimento no estrangeiro encontram-se sujeitos a derrama municipal).
Em sentido diverso, vejam-se as Decisões Arbitrais proferidas nos processos n.ºs 554/2021-T, em 15-03-2022; 234/2022-T, em 28-11-2022; 211/2023-T, em 17-07-2023; 170/2023-T, em 21-11-2023; 948/2023-T, em 19-04-2024; 29/2024-T, em 03-07-2024; 28/2024-T, em 02-09-2024; 31/2024-T, em 09-09-2024; 315/2024-T, em 29-10-2024; 1111/2024-T, em 24-01-2025; 969/2024-T, em 16-01-2025; 1130/2024-T, em 24-02-2025; 947/2024-T, em 27-03-2025; 946/2024-T, em 15-04-2025, nas quais foi decidido, sem qualquer menção a estabelecimentos estáveis dos sujeitos passivos no estrangeiro, que a derrama municipal não incide sobre os rendimentos sujeitos e não isentos de IRC que tenham sido gerados fora do território nacional (por não terem sido gerados na área geográfica do município lançador).
Note-se também que, seguindo a jurisprudência arbitral relativa às derramas regional e estadual, entendo que o conceito de estabelecimento estável para efeitos de derrama municipal deverá corresponder ao conceito de estabelecimento estável plasmado no artigo 5.º do CIRC (cf. Decisões Arbitrais proferidas nos processos n.ºs 437/2022-T, em 06-03-2023; 805/2023-T, em 11-03-2024; e 11/2024-T, em 20-05-2024).
O caso sub judice
In casu, nos períodos de 2021 e 2022, a Requerente auferiu rendimentos de fonte estrangeira (designadamente, dividendos, juros e mais-valias) não imputáveis a sucursal ou estabelecimento estável no estrangeiro. Assim sendo, à luz do Acórdão do STA de 02-04-2025, processo n.º 0560/22.5BEALM, entendo que os rendimentos em causa encontram-se sujeitos a derrama municipal.
Rita Correia da Cunha
[1] Lopes de Sousa, J. (2011) Código de Procedimento e de Processo Tributário, anotado e comentado. Vol. II. 6.ª ed. Áreas editores, pág. 72.
[2] Vd. Ob Cit., pág. 72 e ss.
[3] No mesmo sentido, ainda, vd. Ac. arbitral proferido no processo nº 234/2022-T, de 28 de novembro de 2022; Ac. arbitral n.º 211/2023-T, de 17 de julho de 2023; 554/2021-T, de 15 de março de 2022; 170/2023-T, de 22 de novembro de 2023; 958/2023-T, de 23 de abril de 2024; e 29/2024-T, de 3 de julho de 2024, entre outros.