SUMÁRIO
1. O artigo 6º, nº 4, do CIRS estabelece uma presunção, no sentido de que as quantias lançadas a favor dos sócios, em quaisquer contas correntes de sócios de sociedades comerciais ou civis sob a forma comercial e que não resultem de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício do cargo social, correspondem a lucros ou a adiantamento por conta de lucros, devendo, por isso, ser sujeitas a tributação.
2.A AT tem o ónus da prova dos factos integradores da base da presunção: demostração da existência de fluxos financeiros e registo de lançamentos a favor em conta corrente de sócios.
3.Demonstrado pela AT a base da presunção, é ónus do sujeito passivo a comprovação de qualquer das causas de elisão designadamente, a demonstração material com respeito pelas formalidades legais do artigo 1143º do Código Civil da existência de contrato ou contratos de mútuo.
DECISÃO ARBITRAL
Os árbitros Conselheiro Carlos Alberto Fernandes Cadilha (Presidente), Professor Doutor Luís Menezes Leitão e Dr. António Cipriano da Silva (Adjuntos) designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formarem o Tribunal Arbitral no processo identificado em epígrafe, acordam no seguinte:
I. Relatório
1. Em 13 de dezembro de 2024 A..., LDA, pessoa coletiva com o NIPC: ..., com sede na Avenida ... n.º ..., ...-... Coimbra, sociedade dissolvida e liquidada, representada pela sócia liquidatária B..., veio ao abrigo do disposto na alínea a) do nº1 do artigo 10º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), requerer a constituição de Tribunal Arbitral e apresentou pedido de pronúncia arbitral (“PPA”) em que é demandada a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante “AT” ou “Requerida”), com vista à declaração de ilegalidade da liquidação de retenção na fonte de IRS2024... no valor de €185.920,00 e respetiva liquidação de juros compensatórios nº2024... no valor de €23.390,26, num valor global de €209.310,26, peticionando a anulação das referidas liquidações.
2. No dia 16 de dezembro de 2024 foi aceite o pedido de constituição de Tribunal Arbitral.
3. No dia 24 de fevereiro de 2025 foi constituído o Tribunal Arbitral.
4. Em 24 de fevereiro de 2025, foi a Requerida notificada nos termos e para os efeitos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 17.º do RJAT para, querendo, no prazo de 30 dias, apresentar resposta, solicitar a produção de prova adicional e para remeter ao Tribunal Arbitral cópia do processo administrativo.
5. Em 04 de abril de 2025 o Tribunal Arbitral notificou a Requerente para dizer se mantinha interesse na produção da prova testemunhal e indicar os pontos de facto sobre que esta deve incidir.
6. Em 24 de abril o Tribunal Arbitral indeferiu a produção de prova testemunhal.
7. Em 30 de Abril o Tribunal Arbitral dispensou a realização da reunião prevista no artigo 18º RJAT e a apresentação de alegações.
II. Posição das partes
II.1. Posição da Requerente
A Requerente fundamenta a sua posição nos seguintes termos:
a) {C}{C}A Requerente apresenta o PPA com vista à declaração de ilegalidade das liquidações IR2024... e 2024..., a primeira relativa à retenção na fonte de alegada distribuição de lucros à sócia B... e a segunda referente aos juros pela não realização da retenção.
b) {C}{C}A Requerente entende que a AT aplicou de forma errada a presunção prevista nº4 do artigo 6º do CIRS, que considerou as transferências efetuadas nos dias 17, 22 e 25 de junho de 2021 no montante de €664.000,00 para contas da sócia B... como adiantamento de lucros.
c) {C}{C}Alega a Requerente que estando iminente a cessação da atividade da sociedade Requerente, os meios financeiros ao seu dispor não iriam ser necessários, tendo sido transferidos para a sócia a título de empréstimo, a restituir no âmbito da liquidação da sociedade.
d) {C}{C}Refere a Requerente que as transferências foram todas lançadas na conta do Sistema de Normalização Contabilística com o código 26822902 a débito da sócia B..., pelo que a sociedade passou a ser titular de um crédito sobre a mesma.
e) {C}{C}Defende a Requerente que da leitura das redações do artigo 6º, nºs 4 e 5, do CIRS nas versões do Decreto-Lei nº 198/2001, de 3 de julho, e da Lei nº 82-E/2014, de 31 de dezembro, que a presunção, ao contrário do sustentado no Relatório de Inspeção Tributária (“RIT”), só poderia existir se o lançamento tivesse sido feito a crédito e não a débito da sóci B..., uma vez a lei exige que os lançamentos sejam feitos a favor, ou seja, a crédito e não qualquer lançamento quer seja feito a débito quer a crédito, como anteriormente sucedia. A expressão “a seu favor” que alterou o preceito teve claramente essa intenção, ou seja, afastar a presunção quando o lançamento não fosse feito a favor, como sucederia se, com o lançamento, nascesse um crédito da sócia sobre a sociedade.
f) {C}{C}Na verdade, do que se tratou foi de um empréstimo feito pela sociedade à referida sócia, e que a mesma se comprometeu a restituir até 31 de dezembro de 2021.
g) {C}{C}Porém, os sócios decidiram dissolver e liquidar a sociedade em 27 de dezembro de 2021, ou seja, antes de terminar o prazo acordado para a restituição da quantia mutuada. Daí que na repartição do saldo de liquidação a quantia em causa tivesse sido compensada com o valor que a sócia B... teria direito a receber, assim se extinguindo a obrigação de restituir.
h) {C}{C}No balancete de encerramento das contas a sócia B... constava como devedora da quantia de 1.282,016,25 Euros, onde se incluíram os lançamentos a débito cuja fonte foram as transferências efetuadas.
i) {C}{C}A sócia B... declarou e pagou, conforme era sua obrigação, o IRS devido por força do saldo de liquidação que lhe coube.
j) {C}{C}Defende a Requerente que o que está em causa são registos a débito da conta da sócia da empresa, quando a lei vigente na data dos factos (e, aliás, desde há muitos anos antes) apenas reconhecia registos a crédito ou a favor de contas dos sócios.
k) {C}{C}Alegando a Requerente que não lhe foi concedida a possibilidade de ilidir a presunção do nº4 do artigo 6º do CIRS.
l) {C}{C}Defendendo a Requerente que as liquidações são ilegais porque aplicaram uma presunção que não estava em vigor, como pela circunstância de, por não ter sido considerado/relevado o pagamento feito de IRS, se estar a verificar uma duplicação: a alegada exigência de retenção na fonte (indevida, como se viu) e o pagamento decorrente da entrega pelos requerentes da declaração modelo 3 do IRS respeitante ao mesmo período de tributação.
m) {C}{C}Entende a Requerente que a AT efetuou uma errónea qualificação dos factos tributários, nomeadamente:
a. A liquidação contestada foi feita com fundamento no disposto no n.º 4 do artigo 6.º do Código do IRS, com referência a lançamentos efetuados a débito da conta da sócia B..., relativamente a transferências da sociedade para a mesma ocorridas em junho de 2021.
b. Tais débitos vieram a ser regularizados através da partilha decorrente da dissolução da sociedade, cujo registo foi definitivamente lavrado em 27 de dezembro do mesmo ano.
c. De modo nenhum se pode sustentar que os lançamentos efetuados a débito da referida sócia respeitaram a adiantamentos por conta de lucros, quando não eram expectáveis quaisquer lucros, face à iminência da dissolução da sociedade.
d. A qualificação desses lançamentos como adiantamentos por conta de lucros iria desvirtuar a qualificação dos rendimentos tributáveis, transformando mais-valias em rendimentos de capitais.
e. De qualquer modo, o n.º 4 do artigo 6.º do Código do IRS não consentia a qualificação que deu origem à liquidação contestada, já que o preceito apenas abrange lançamentos a crédito ou a favor dos sócios, quando no caso se tratou de lançamentos a débito.
f. A confirmação do erro na interpretação do preceito é feita no próprio Relatório da Ação Inspetiva, quando se invoca uma redação da disposição legal que já tinha sido revogada cerca de 10 anos antes, precisamente para limitar a sua aplicação a lançamentos a crédito ou a favor dos sócios.
g. Ademais, ainda que fosse possível o recurso à presunção prevista no n.º 4 do artigo 6.º do Código do IRS – e manifestamente não era –, sempre se trataria de presunção ilidível, em face do disposto no n.º 5 do mesmo artigo, sendo certo que nunca foi concedida ao sujeito passivo a possibilidade de ilidir a presunção.
n) {C}{C}Concluído a Requerente que a liquidação em crise é assim, manifestamente ilegal, por violar o n.º 4 do artigo 6.º do Código do IRS e consubstanciar uma duplicação do imposto devido (IRS) que já se encontrava pago pelos sócios e em particular pela sócia B... que foi a autora e beneficiária dos levantamentos.
II.2. Posição da Requerida
Por seu turno a Requerida fundamenta a sua posição nos seguintes termos:
a) {C}{C}Alega a Requerida que em momento algum fica provado que as transferências realizadas não tenham sido efetuadas a título de adiantamento por conta de lucros.
b) {C}{C}Nos termos do nº4 do artigo 6º do CIRS as quantias escrituradas a débito (a favor) de quaisquer contas de sócios de sociedades comerciais ou civis sob forma comercial, presumem-se respeitarem a lucros ou adiantamento dos lucros, exceto se for comprovado "que resultem de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais”.
c) {C}{C}Alega a Requerida que a Requerente não carreia para os autos, qualquer documento que assevere os putativos contratos de mútuo. Quer por uma questão formal, i.e., atentos os montantes em causa tais mútuos teriam de ter sido redigidos a escrito e ter sido liquidado o respetivo imposto de selo, mas, e acima de tudo, por não ter sido demonstrada a existência de movimentos bancários, correspondentes aos alegados contratos de mútuos.
d) {C}{C}Não constam nos autos que estes movimentos resultem de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais dos referidos sócios, mas sim transferências de propriedade dos ativos, da esfera patrimonial do SP para a esfera patrimonial dos sócios, para estes utilizar em favorecimento próprio, que consubstanciam, presunções de um adiantamento por conta de lucros, por parte do SP em favor da sua sócia-gerente.
e) {C}{C}Assim, por força da alínea h) do n.º 2 do art.º 5.º, conjugado com o nº 4 do art.º 6º, todos do CIRS, presumem-se rendimentos de capitais – enquadrados na Categoria E, no valor total de 664.000€ e são tributados por retenção na fonte à taxa liberatória de 28%, conforme dispõe a al. a) do n.º 1 do art.º 71.º do CIRS, cabendo à entidade devedora dos rendimentos (no caso, a requerente A... LDA, pelo mecanismo de substituição tributária), efetuar a retenção devida.
f) {C}{C}Nos termos do art.º 74º, nº 1, conjugado com o art.º 75º, nº 1, ambos da LGT a AT, conforme lhe competia, cumpriu com o ónus de demonstração da existência de facto tributário no ano fiscal de 2021, provando a existência dos lançamentos na contabilidade da sociedade, concretamente na conta SNC 26822902 – B..., por contrapartida (a crédito) da conta 1201 – Montepio Geral e 1204 – Santander Totta Caixa, respetivamente.
g) {C}{C}Assim sendo, entende a Requerida que foram cumpridos os dois pressupostos exigidos para que a presunção legal funcione (art.º 6º, nº 4, do CIRS), nomeadamente, os lançamentos em conta corrente dos sócios e que não resultem mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais, sendo que os dados disponibilizados pela requerente (tanto no procedimento inspetivo bem como no presente pedido de pronúncia arbitral) são insuficientes, qualitativamente e quantitativamente, de forma a afastar essa presunção.
h) {C}{C}Alegando a Requerida, que não está em causa diferentes interpretações do nº 4 do art.º 6º do CIRS, de acordo com as redações do Decreto-Lei n.º 198/2001, de 3 julho, e da Lei n.º 82-E/2014, de 31 de dezembro - Reforma do IRS), uma vez que a redação aplicada à data dos factos (junho de 2021) é a última resultante da reforma do IRS e nesta caso foram efetuados lançamentos a favor da sócia e acompanhadas das respetivas transferências financeiras da conta da sociedade para a conta pessoal da sócia, o que tem enquadramento na respetiva norma de incidência (alínea h) do n.º 2 do art.º 5.º, conjugado com o nº 4 do art.º 6º, do CIRS), conforme explicitado no RIT.
i) {C}{C}Defendendo ainda não se verificar o vício de duplicação de coleta porque estamos na presença de factos tributários distintos, um relacionado com retenção na fonte por adiantamento de lucros – cat. E e o outro, supõe-se com os rendimentos obtidos pela sócia nas outras categorias de imposto.
j) {C}{C}Concluindo a Requerida que o PPA deve ser julgado como improcedente por não provado.
III. Saneamento
O PPA é tempestivo. O Tribunal é materialmente competente e encontra-se regulamente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.ºs 1 e 2, do RJAT.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão devidamente representadas (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma, e artigo 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
O processo não enferma de nulidades e não foram suscitadas exceções, pelo que não há qualquer obstáculo à apreciação do mérito da causa.
IV. Thema decidendum
A questão a decidir centra-se em determinar se as transferência com origem na sociedade Requerente no montante de €694.000,00 para contas da sócia B... se devem qualificar como adiantamento de lucros por aplicação da presunção legal do nº4 do artigo 6º do CIRS, ou como defende a Requerente deve-se considerar com um mútuo. Termos em que thema decidendum se consubstancia na análise da presunção do nº4 do artigo 6º do CIRS e das questões do ónus de prova.
V. Matéria de Facto
V.1. Factos Dados como Provados
Com base nos elementos constantes dos autos com interesse para a decisão deram-se por provados os seguintes factos:
a) {C}{C}A sociedade A..., Lda com o NIPC:... foi constituída em 21 de abril de 2005 sob a fórmula jurídica de sociedade por quotas com o objeto social de “Elaboração e desenvolvimento de estudos teóricos e práticos de programas de investimento e pareceres técnicos; compra, venda e permuta de bens imóveis e revenda dos adquiridos para esse fim; e construção civil” com o capital social de €5.200,00 (cfr. certidão permanente AP. 9...– doc nº1 PPA).
b) {C}{C}A sociedade A..., Lda. foi dissolvida em 27 de dezembro de 2021 tendo sido nomeada depositária a sócia B... com o NIF: ... (cfr. certidão permanente AP. 62/... – doc nº1 PPA).
c) {C}{C}Na data da dissolução da sociedade o capital social da sociedade A..., Lda. era detido por:
(cfr. certidão permanente - doc nº1 PPA).
d) {C}{C}A sociedade Requerida efetuou as seguintes transferências a favor da sócia B...:
e) Na contabilidade da Requerente o extrato da conta do SNC com o código 26922902 –B... relativo ao período 01.01.2021 – 31.12.2021 evidenciava os seguintes movimentos (cfr. pág. 26 do processo administrativo):
f) {C}{C}Na contabilidade da Requerente foram lançados a débito da conta código 26922902 –B... no período 01.01.2021 – 31.12.2021, entre outros, três lançamentos, a saber (cfr. pag.26 do processo administrativo):
a. Data: 2021.06.30; descrição: Trfa Dra. B...; valor: €300.000,00
b. Data: 2021.06.30; descrição: Outros Docs. Bancários; valor: €230.000,00
c. Data: 2021.06.30; descrição: Outros Docs. Bancários; valor: €134.000,00
g) Na contabilidade da Requerente a conta SNC com o código 1201- Montepio Geral apresenta um lançamento a crédito de €300.000,00 com a descrição “TrfaB...” com referência ao diário 6.010 com data 2021-06-30 (cfr.pag.29 do processo administrativo):
h) Na contabilidade da Requerente a conta SNC com o código 12004 – Santander Totta apresenta dois lançamentos a crédito, um no valor de €230.000,00 e outro valor de €134.000,00 ambos com a descrição “outros docs. Bancários SANTAND” com referência ao diário 6.011 ambos com data de 2021-06-30 (cfr.pag.31 do processo administrativo):
i) Na contabilidade da Requerente as transferências identificadas no ponto f) foram registadas contabilisticamente da seguinte forma (cfr. doc nº7 do PPA):
j) No Balancete antes do encerramento da liquidação da Requerente, na conta do SNC com o código 26 - Acionistas/sócios constava (cfr. págs. 19-20 do processo administrativo):
k) {C}{C}A sócia B... submeteu declaração modelo 3 de IRS em 2022-06-30 referente ao ano fiscal de 2021 em que no anexo G constava (cfr. doc. nº 9 do PPA):
l) {C}{C}
m) {C}{C}A Requerente foi objeto de um procedimento inspetivo interno, credenciado pela ordem de serviço nº OI2024..., de âmbito parcial (IRC e Retenções de IRS), ao exercício de 2021.
n) {C}{C}Na sequência de ação inspetiva a Requerida foi notificada de projeto de Relatório, que continha uma proposta de correção de retenções na fonte de €185.920,00 decorrente da distribuição de resultados, nos termos dos artigos 5º, 6º e alínea e) nº 1 do 7º todos do CIRS (cfr. pág.35 do processo administrativo).
o) {C}{C}A Requerida exerceu o direito de audição prévia, na sequência da qual a AT manteve as correções, procedendo à notificação do Relatório de Inspeção Tributária definitivo, da qual se extrai a seguinte fundamentação com relevância para a matéria em discussão nos presentes autos (cfr. pag. 129-130 do processo administrativo):
p) {C}{C}Na sequência do Relatório de Inspeção Tributária Definitivo foi a Requerente notificada para efetuar o pagamento da quantia de €209.310,26 relativa às liquidações de IRS2024... (retenção na fonte) e 2024... (juros compensatórios).
q) {C}{C}A Requerente em 30 de outubro de 2024 efetuou o pagamento das liquidações mencionadas na alínea p).
r) {C}{C}Em 13 de dezembro de 2024, a Requerente apresentou PPA que culminou nos presentes autos.
V.2. Factos que não se consideram provados
Não se deu por provado o alegado nos artigos 8, 26º e 35º do PPA de que as três transferências da sociedade Requerente para contas da sócia B... realizadas nos dias 17, 22 e 25 de junho de 2021 advenham de contrato(s) mútuo(s).
V.3. Fundamentação da matéria de facto que se considera provada
Cabe ao Tribunal Arbitral selecionar os factos relevantes para a decisão, em função da sua relevância jurídica, considerando as várias soluções plausíveis das questões de Direito, levando em consideração a causa (ou causas) de pedir que fundamenta o pedido formulado pela Requerente, bem como discriminar a matéria provada e não provada (cf. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigos 596.º, n.º 1, e 607.º, n.ºs 1, 3 e 4, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT), abrangendo os seus poderes de cognição, factos instrumentais e factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes alegaram (cf. artigos 13.º do CPPT, 99.º da LGT, 90.º do CPTA, 5.º, n.º 2, e 411.º do CPC).
Segundo o princípio da livre apreciação dos factos, o Tribunal Arbitral baseia a sua decisão, em relação aos factos alegados pelas partes, na sua íntima e prudente convicção formada a partir do exame e avaliação dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com as regras da experiência de vida e conhecimento das pessoas (cf. artigo 16.º, alínea e), do RJAT, e artigo 607.º, n.º 5, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
Somente relativamente a factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, a factos que só possam ser provados por documentos, a factos que estejam plenamente provados por documentos, acordo ou confissão, ou quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (por exemplo, quanto aos documentos autênticos, por força do artigo 371.º do Código Civil), é que não domina, na apreciação das provas produzidas, o referido princípio da livre apreciação (cf. artigo 607.º, n.º 5, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
Os factos elencados supra foram dados como provados com base nas posições assumidas pelas partes nos presentes autos, nos documentos juntos ao PPA e ao processo administrativo. Além disso, não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada, nem os factos incompatíveis ou contrários aos dados como provados.
V.4. Fundamentação da matéria de facto que não se considera provada
A Requerente alegou nos artigos 8º, 26º e 35º do PPA que as três transferências para contas da sócia B... realizadas nos dias 17, 22 e 25 de junho de 2021 resultavam de um empréstimo feito pela sociedade à referida sócia, em que esta se teria comprometido a restituir o capital mutuado até 31 de dezembro de 2021. Alegando que a restituição não ocorreu por os sócios terem decidido dissolver e liquidar a sociedade em 27 de dezembro de 2021, ou seja antes de terminar o prazo acordado para a restituição da quantia mutuada (artigos 26º e 27º do PPA).
Não obstante, esta alegação da Requerida, não encontramos nos autos, elementos documentais ou outros que permitam comprovar a existência deste mútuo. Competia à Requerente a prova da existência do mútuo que permitiria a ilidir a presunção prevista no nº4 do artigo 6º do CIRS.
Refira-se ainda que, atendendo ao valor em causa (€ 664.000,00), nos termos do artigo 1143º do Código Civil, a validade de um eventual mútuo exigiria a celebração por escritura pública ou documento particular autenticado. Mas mesmo que nos abstraíssemos da forma legal exigida, não encontramos nos autos quaisquer elementos probatórios que comprovem a celebração do mútuo e o mencionado prazo de reembolso de 27 de dezembro (mencionado no artigo 26º do PPA).
Refere a Requerente que “Na verdade, o que se passou foi que a gerente B... foi aos bancos e fez as transferências sem dizer nada à contabilidade, nem aos restantes sócios, seus filhos, ou sem existir uma deliberação” (artigo 33º do PPA), o que não deixa de ser inusitado tendo em atenção a grandeza do valor.
Alega a Requerente que as transferências “seriam quando muito, adiantamentos por conta da partilha subsequente à liquidação da sociedade” (artigo 10º do PPA), o que é contraditório com a afirmação que a mesma se comprometeu a restituir o valor até 31 de dezembro de 2021 (artigo 26º PPA).
Não obstante a alegação da Requerida, não encontramos nos autos, elementos documentais ou qualquer deliberação da sociedade Requerente que comprove cabalmente a concessão do mútuo. Nestes termos ficam dúvidas sobre a existência material do mútuo da Requerente à sócia B... .
Não existindo prova nos autos do mútuo, ou existindo “a dúvida sobre a realidade de um facto e sobre a repartição do ónus da prova resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita” (artigo 414º do Código de Processo Civil), temos de dar como não provado a celebração do mútuo.
Termos em que considerou como não provado que as transferências da sociedade Requerente para contas da sócia B... realizadas nos dias 17, 22 e 25 de junho de 2021 tenha resultado de um mútuo.
VI. Matéria de Direito
VI.1. Quadro normativo em vigor
O objeto dos presentes autos consiste em determinar a legalidade das liquidações de retenção na fonte de IRS e juros compensatórios por qualificação da AT como adiantamento de lucros por aplicação da presunção legal do nº 4 do artigo 6º do CIRS.
Neste âmbito importa identificar o quadro legal vigente à época do factos que devemos trazer à colação para a apreciação do litígio.
Artigo 5º do Código do IRS - Rendimentos da categoria E
1 - Consideram-se rendimentos de capitais os frutos e demais vantagens económicas, qualquer que seja a sua natureza ou denominação, sejam pecuniários ou em espécie, procedentes, direta ou indiretamente, de elementos patrimoniais, bens, direitos ou situações jurídicas, de natureza mobiliária, bem como da respetiva modificação, transmissão ou cessação, com exceção dos ganhos e outros rendimentos tributados noutras categorias.
2 - Os frutos e vantagens económicas referidos no número anterior compreendem, designadamente:
(…)
h) Os lucros e reservas colocados à disposição dos associados ou titulares e adiantamentos por conta de lucros, com exclusão daqueles a que se refere o artigo 20.º;
Artigo 6º do Código do IRS - Presunções relativas a rendimentos da categoria E
(…)
4 - Os lançamentos a seu favor, em quaisquer contas correntes dos sócios, escrituradas nas sociedades comerciais ou civis sob forma comercial, quando não resultem de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais, presumem-se feitos a título de lucros ou adiantamento dos lucros.
Artigo 71º do Código do IRS - Taxas liberatórias
Estão sujeitos a retenção na fonte a título definitivo, à taxa liberatória de 28%
a) {C}{C}Os rendimentos de capitais obtidos em território português, por residentes ou não residentes, pagos por ou através de entidades que aqui tenham sede, direção efetiva ou estabelecimento estável a que deva imputar-se o pagamento e que disponham ou devam dispor de contabilidade organizada;
Artigo 98º do Código do IRS - Retenção na fonte - Regras gerais
1-Nos casos previstos nos artigos 99.º a 101.º e noutros estabelecidos na lei, a entidade devedora dos rendimentos sujeitos a retenção na fonte, as entidades registadoras ou depositárias, consoante o caso, são obrigadas, no ato do pagamento, do vencimento, ainda que presumido, da sua colocação à disposição, da sua liquidação ou do apuramento do respetivo quantitativo, consoante os casos, a deduzir-lhes as importâncias correspondentes à aplicação das taxas neles previstas por conta do imposto respeitante ao ano em que esses atos ocorrem.
Artigo 101º do Código do IRS - Retenção sobre rendimentos de outras categorias
(…)
2- Tratando-se de rendimentos referidos no artigo 71.º, a retenção na fonte nele prevista cabe:
a) Às entidades devedoras dos rendimentos referidos nos nºs 1 e 4 e na alínea c) do n.º 16 do artigo 71.º;(Redação da Lei n.º 71/2018, de 31 de dezembro)
VI.2. A presunção estabelecida pelo artigo 6 nº4 CIRS
O centro do litígio advém da interpretação e aplicação aos autos do nº 4 do artigo 6º do CIRS. O referido artigo consubstancia-se juridicamente como uma presunção fiscal. Recorrendo ao Direito Civil, nomeadamente ao artigo 349º do Código Civil compreendemos que as presunções “são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido”. A presunção consiste assim, no resultado de uma dedução lógica, que tem como ponto de partida um facto conhecido, para alcançar um facto dedutivo.
Como refere o acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte (TCAN), no processo n.º 00270/06.0BEMDL de 11-01-2007: “As presunções pressupõem a existência de um facto conhecido, cuja prova incumbe à parte que a presunção favorece e pode ser feita pelos meios probatórios gerais; assim, provado esse facto, intervém a Lei (no caso de presunções legais) ou o julgador (no caso de presunções judiciais) a concluir dele a existência de outro facto (presumido), servindo-se o julgador, para esse fim, de regras deduzidas da experiência da vida”.
Assim, quem beneficia da presunção escusa de provar o facto a que a ela conduz (artigo 350º do Código Civil) tendo apenas de provar o facto que serve de presunção para se considerar provado o facto presumido. Em regra, as presunções são ilidíveis, sendo que em termos fiscais o artigo 73º da LGT estabelece que as presunções consagradas em normas de incidência admitem sempre prova em contrário.
No que diz respeito à utilização de presunções no Direito Fiscal, o Tribunal Constitucional tem admitido a sua utilização por não estar constitucionalmente vedado tributar rendimentos presumidos (assim, e por exemplo, o acórdão nº 26/92, publicado no Diário da República, II Série, de 11 de Junho de 1992, e, no concreto domínio da determinação da base tributável, os acórdãos nºs. 620/99 e 621/99, este publicado no Diário II Série, de 23 de Fevereiro de 2000) desde que permitida a elisão.
Como refere o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 211/03 de 28.04.2003: “A fixação da matéria coletável constitui, por sua vez, um momento central de determinação do montante dos impostos, repercutindo-se no seu apuramento e, consequentemente, na vertente garantística dos cidadãos enquanto contribuintes. No desempenho desta tarefa, o legislador, em nome de razões de eficiência da Administração Fiscal e do combate à evasão e à fraude neste domínio, apela a presunções, como técnica de melhor surpreender a realidade fáctica decorrente das diversas situações da vida, avalizadas por critérios de normalidade, socorrendo-se, desse modo, “de factos conhecidos para afirmar outros que desconhece”, e assim ultrapassar as dificuldades probatórias que a determinação da matéria coletável inevitavelmente levanta “
Não obstante o Código de IRS se fundar nos princípios da capacidade contributiva e do rendimento real o legislador entendeu não ser possível abdicar de algumas presunções relativamente ao rendimento de capitais.
Como refere Paula Rosado Pereira (in “Manual de IRS”, 2ª edição, Coimbra, Almedina, 2019, pp. 137) “Entre as razões subjacentes ao recurso a tais presunções conta-se a dificuldade sentida pela AT, face à natureza especifica dos rendimentos desta categoria, em assegurar a eficiência da tributação. As presunções desempenham a função de facilitar a prova da AT relativamente à existência de certos rendimentos e à respetiva quantificação”.
Neste sentido, o artigo 6º do CIRS estabelece um conjunto de presunções relativas a rendimentos da categoria E, entre as quais a estabelecida no nº 4 do referido artigo, que presume como adiantamento por conta de lucros os lançamentos em quaisquer contas correntes de sócios escrituradas nas sociedades quando não resultem de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais.
No que diz respeito à presunção do nº 4 do artigo 6º do CIRS, Rui Duarte Morais (in “Sobre o IRS”, Coimbra, Almedina, 2006, pp. 89), refere: “Visando facilitar o ónus da prova da existência do facto tributário por parte da administração, a lei estabelece, no art.º 6.º, diversas presunções legais, quer quanto à existência do facto gerador de imposto (…), quer quanto à existência de rendimento (…), quer quanto ao montante do rendimento tributável (…). Estas presunções são ilidíveis – de acordo com a regra geral constante do art.º 73.º da LGT – nos termos do n.º 6 do art.º 6.º.” - atual n.º 5”.
Por sua vez José Guilherme Xavier de Basto (in “IRS: Incidência Real e Determinação dos Rendimentos Líquidos”, Coimbra Editora, 2007, pp. 339), no diz respeito à presunção específica do nº 4 do artigo 6º do CIRS afirma:
“Finalmente, no n.º 4, presume-se que as quantias escrituradas em quaisquer contas de sócios de sociedades comerciais ou civis em forma comercial, que não resultem de mútuos, de prestação de trabalho ou de exercício de cargo social, correspondem a lucros ou adiantamentos por conta de lucros. A presunção conduz a que aquelas quantias tenham o tratamento de lucros distribuídos, ou seja, se houver opção pelo englobamento, este faz-se por metade do valor (…), como sabemos. Com esta presunção, procede-se a uma qualificação supletiva de quantias, cuja causa não esteja expressa nas contas correntes em causa. A lei não se refere expressamente às quantias escrituradas nas contas de sócios a título de suprimentos. Entendemos, contudo, que, para este efeito, deverão considerar-se tais quantias como incluídas na hipótese da norma – e excluídas, portanto, da presunção. O que a lei, com aquela presunção, quis resolver foi a qualificação das quantias escrituradas cuja “causa” jurídica não foi expressamente declarada.”
A presunção do nº 4 do artigo 6º do CIRS em consonância com o disposto no artigo 73º da LGT é suscetível de ser ilidível. Em regra, a elisão de uma presunção deve ser feita nos termos do nº 1 do artigo 64º do CPPT que estabelece que “o interessado que pretender ilidir qualquer presunção prevista nas normas de incidência tributária deverá para o efeito, caso não queira utilizar as vias da reclamação graciosa ou impugnação judicial de ato tributário que nela se basear, solicitar a abertura de procedimento contraditório próprio”.
No caso em apreço o nº 5 do art.º 6.º do CIRS prescreve que as presunções do artigo 6º do CIRS (na qual se engloba a presunção em crise) podem ser ilididas com base em decisão judicial, ato administrativo, declaração do Banco de Portugal ou reconhecimento pela Autoridade Tributária e Aduaneira. Significa isto que no caso da presunção do nº 4 do art.º 6.º do CIRS o legislador estabeleceu uma norma específica para a elisão da presunção, não podendo assim, esta ser efetuada de uma outra forma.
No caso dos autos a Requerente não efetuou a elisão via ato administrativo, declaração do Banco de Portugal ou reconhecimento pela Autoridade Tributária e Aduaneira, sendo, contudo, admissível a elisão judicial, e analogamente via arbitral.
Vide nesse sentido decisão arbitral nº 395/2017-T em que se defende que “não haverá dúvidas que a resposta a tal questão deverá ser afirmativa, concluindo-se que nada impede que a decisão judicial a que alude o art.º 6.º n.º 5 do CIRS aplicável seja proferida em processo de impugnação judicial ou em processo arbitral tributário, e que, não se prevendo qualquer limitação quanto aos meios de prova de que o interessado possa lançar mão para o efeito, o processo de formação da decisão judicial de tais processos se possa apoiar em prova testemunhal e/ou documental”.
Termos em que terá o Tribunal Arbitral verificar primeiramente se a AT preencheu os pressupostos de aplicação da norma, e caso tal se tenha verificado, percecionar se a Requerente efetuou segundo a regra do ónus da prova, a elisão da presunção.
Conforme refere a decisão arbitral nº 760/2022-T:
“Contudo, este juízo apertado no que à ilisão da presunção respeita, não dispensa uma exigência prévia. A base da presunção deve imperativamente ser provada com os correspondentes factos dela integradores sob pena de a causa ser decidida em sentido desfavorável à parte onerada com esse ónus, ou seja à AT, e, perante tal falta, o resultado que com a presunção judicial se visava obter não pode dar-se por alcançado, ou seja e no caso, que o tal lançamento em conta corrente do sócio, corresponde a distribuição de lucros ou adiantamento por conta de lucros. O mesmo é dizer que para se dar como provado o facto desconhecido é imperioso que demonstre o facto conhecido. Só assim se autoriza a pretendida ilação. Ora, os factos integradores da presunção, no caso vertente, são estes: A existência de fluxos financeiros; O registo em conta corrente de sócios; e que o dito registo não resulte de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais.”
Seguindo o labor da supramencionada jurisprudência arbitral, a aplicação da presunção do nº 4 do artigo 6º do CIRS exige que a AT efetue a prova base da presunção, recaído sob esta o ónus da prova da demostração do facto conhecido para poder presumir como real o facto desconhecido.
A versão atual e vigente à data dos factos do nº 4 do artigo 6º do CIRS prescrevia:
“Os lançamentos a seu favor, em quaisquer contas correntes dos sócios, escrituradas nas sociedades comerciais ou civis sob forma comercial, quando não resultem de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais, presumem-se feitos a título de lucros ou adiantamento dos lucros.”
Da substância da norma identificamos como factos integradores da presunção:
Ø {C}{C}A existência de fluxos financeiros;
Ø {C}{C}O registo contabilístico em conta corrente de sócios e
Ø {C}{C}Que o registo não tenha origem em mútuos, prestação de trabalho ou exercício de cargos sociais.
No que diz respeito ao primeiro requisito é facto assente, aceite por ambas as partes que a sociedade Requerida efetuou três transferências para contas da sócia gerente B... nos dias 17, 22 e 25 de junho de 2021, no valor global de €664.000,00. Existiram assim fluxos financeiros entre a Requerente e a sócia gerente, expressos no relatório de inspeção tributária, tendo assim a AT efetuado a demostração do primeiro requisito (vide ponto V.2 do relatório de inspeção tributária, págs.124-128 do processo administrativo, e extratos bancários (doc. nºs 5 e 6 juntos ao PPA).
Quanto ao segundo requisito a AT demostrou como lhe competia (vide Relatório de inspeção tributária ponto V2, pág. 124 do processo administrativo) que na contabilidade da Requerente na conta do SNC com o código 26922902 – B..., relativo ao período 01.01.2021 – 31.12.2021 foram efetuados três lançamentos, no caso a débito, no valor global de €664.00,00 (como resulta dos factos dados como provados e) e i)). Estes lançamentos tiveram como contrapartida a crédito as contas contabilísticas de depósitos bancários 1201;1202;1203 e 1204.
A Requerente, não colocando em causa a existência dos lançamentos na conta corrente de sócios, vem alegar que a norma em análise apenas tem aplicação aos casos de lançamentos a crédito. A Requerente evidencia que da versão originária da norma via Decreto-Lei nº 198/2001 para versão atual da Lei nº 82-E/2014 de 31 de dezembro, foi acrescentado a expressão “a seu favor”. Na posição da Requerente o legislador pretendia com este acrescento à norma restringir a aplicação da presunção aos lançamentos contabilísticos efetuados a crédito, por apenas estes representarem um crédito do sócio sobre a sociedade que garantia o preenchimento da fórmula jurídica de lançamento a seu favor.
O Tribunal arbitral não pode acompanhar este entendimento da Requerente. Analisando o elemento literal da norma, na versão atual, não é efetuada qualquer diferenciação entre lançamentos a débito ou a crédito da conta de sócios.
Refira-se que o fim da norma é auxiliar a AT através do estabelecimento de uma presunção (via facilitação da prova) a restringir práticas societárias de elisão fiscal de distribuição informal ou dissimulada de resultados. Garante-se com a presunção a incidência fiscal sobre fluxos financeiros entre sociedade e sócios quando não justificadas em motivos válidos como mútuos, prestação de trabalho ou exercício de cargos sociais. Todavia, nada invalida que a presunção seja ilidida através da demostração que o “fluxo financeiro em conta corrente de sócios” se consubstancia em algo diferente de distribuição de resultados.
A norma fixa o seu sentido na expressão “os lançamentos a seu favor, em quaisquer contas correntes dos sócios”. Esta pode ser dividida em duas partes: “lançamentos a seu favor” e “em quaisquer contas correntes dos sócios”.
A primeira componente remete para registo contabilístico de que resulte benefício para o sócio. A segunda componente remete para registo em qualquer conta corrente que diga respeito a sócios. Sendo que uma conta corrente terá de se identificar com aquela em que se registam quotidianamente os débitos e créditos decorrentes dos movimentos financeiros daqueles que detenham a qualidade de sócios.
No caso dos autos verifica-se o registo contabilístico na conta 26922902 que evidencia um benefício para a sócia B..., subjacente às transferências que lhe foram realizadas – neste sentido consubstancia um “lançamento a favor”. Paralelamente, existem registos contabilísticos em conta corrente de sócio (conta 26922902) onde se encontram registados os movimentos financeiros entre a sociedade Requerente e a sócia – neste sentido – “ em quaisquer contas correntes dos sócios”.
Vide nesse sentido a decisão arbitral nº 760/2022-T que refere:
“Como foi já dito, temos de interpretar a norma do n.º 4 do art.º 6.º do CIRS nos termos gerais de direito. O CIRS não pode ser interpretado como se fosse aquilo que não é. E manifestamente o CIRS não é um tratado de contabilidade. O pensamento legislativo que ditou a formulação normativa parece ser este: os lançamentos a favor da sociedade, em quaisquer contas correntes dos sócios ficam debaixo da alçada da presunção. Este problema só aparentemente é contabilístico. É sobretudo um problema jurídico. Se o legislador, de forma abrangente, refere quaisquer contas correntes, não deixa de aludir a contas correntes. Temos de surpreender o significado do conceito de contas correntes, porque na verdade, resulta da lei que não estarão em causa todas as contas, mas apenas as contas correntes. Uma conta corrente de sócio será aquela em que se registam, correntemente, os débitos e créditos frequentes, habituais, com determinadas pessoas, sejam eles fornecedores, clientes, ou, no caso que nos importa, na sua qualidade de sócios. Ou seja, sempre teremos de analisar a situação substancial, a concreta transação, para percebermos se o registo contabilístico se mostra adequadamente feito, se reflete, com inteireza e verdade, a operação que se pretende registar”.
Vide nesse sentido também a decisão arbitral nº 761/2022-T que refere:
“Comprovados pela AT os lançamentos contabilísticos, é ónus do sujeito passivo a comprovação de qualquer das causas de elisão da mencionada presunção legal, designadamente, como é o caso, da demonstração, material e formal, da existência de contrato ou contratos de mútuo”.
Bem como Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul processo nº 08216/14 de 05.02.2015 que refere:
“O artº.6, nº.4, do C.I.R.S., consagra uma presunção relativa a rendimentos de capitais, de que as quantias escrituradas em quaisquer contas de sócios de sociedades comerciais ou civis sob forma comercial, quantias essas que não resultem de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais, presumem-se feitos a título de lucros ou adiantamento dos lucros.”
Ou decisão arbitral nº 368/2019-T que refere:
“A jurisprudência tem vindo a considerar que a ATA tem o ónus da prova dos lançamentos em contas correntes dos sócios, cabendo ao sujeito passivo o ónus da prova de que os mesmos correspondem a situação enquadrável em mútuos, em prestação de trabalho ou no exercício.”
No caso dos autos a AT efetuou a demostração da existência de fluxos financeiros entre a Requerente e sócia, bem como o registo de lançamentos a favor em conta corrente de sócios (conta 226922902), cumprindo o ónus da prova dos factos integradores da base da presunção, garantindo a demostração do facto conhecido que possibilita poder presumir como real o facto desconhecido, no caso a distribuição de adiantamento sobre lucros.
Cumprido o ónus da prova pela AT, competia no sentido da elisão da presunção ao sujeito passivo a demostração material e formal da existência de qualquer das causas de elisão da presunção, concretamente: mútuo(s), prestação de trabalho ou exercício de cargos sociais.
Vide nesse sentido Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, processo nº 1022/12.4BELRA de 07-05-2020 que refere:
I- Nos termos do disposto no art. 5º, nº 2, al. h) do CIRS, devem ser qualificados como rendimentos de capitais, de entre outros, os rendimentos derivados de lucros distribuídos por sociedades e os adiantamentos por conta desses lucros a favor dos respetivos sócios que sejam pessoas singulares.
II - Por sua vez, o art. 6º, nº 4 do CIRS estabelece uma presunção, no sentido de que as quantias lançadas a favor dos sócios, em quaisquer contas correntes de sócios de sociedades comerciais ou civis sob a forma comercial e que não resultem de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício do cargo social, correspondem a lucros ou a adiantamento por conta de lucros, devendo, por isso, ser sujeitas a tributação, nos termos do art. 5º, nº 1 e 2, al.h) do CIRS. A referida presunção é ilidível, mediante prova em contrário, nos termos do nº 5 da mesma norma.
III - Tendo a AT demonstrado a legalidade do seu agir, incumbia à recorrente o ónus de demonstrar que o dinheiro não pertencia aos acionistas mas sim à sociedade recorrente não logrou ilidir a presunção constante do art. 6º, nº 4, do CIRS”.
Vem a Requerida alegar nos artigos 49º e 50º g) do PPA que em momento algum lhe foi conferida a possibilidade de ilidir a presunção.
No que diz respeito a este argumento não pode o Tribunal Arbitral conceder o mesmo.
A presunção do nº 4 do artigo 6º do CIRS, conforme supra mencionamos é ilidível, através do procedimento especial previsto no nº 5 da norma - decisão judicial, ato administrativo, declaração do Banco de Portugal ou reconhecimento pela Autoridade Tributária e Aduaneira. Não resulta dos autos que a Requerida tenha deitado mão de qualquer dos meios consignados em lei para a elisão da presunção.
Por outro lado, em sede de procedimento de inspeção tributária, a Requerente foi notificada do teor do projeto de relatório de inspeção tributária para querendo, exercer o direito de audição prévia consignado no artigo 60º do RCPITA. A sociedade Requerida exerceu o contraditório, via exercício do direito de audição prévia, onde teve a possibilidade de elencar elementos materiais e formais que possibilitassem a elisão da presunção. No exercício do direito de audição prévia a Requerente poderia ter carreados elementos documentais que permitissem, nos termos da parte final do nº 4 do artigo 6º do CIRS, a elisão da presunção por comprovação de mútuo(s), prestação de trabalho, ou exercício de cargos sociais.
Não obstante o exercício do direito de audição prévia pela Requerente (págs. 98-102 do PPA), esta não juntou quaisquer contratos escritos com respeito pelas formalidades do artigo 1143º do Código Civil, ou mesmo sem cumprimento de formalidades legais, que comprovem a celebração de mútuo, ou documentação que ateste prestação de trabalho ou exercício de cargos sociais.
Termos em que a Requerente teve oportunidade no âmbito do procedimento inspetivo de ilidir a presunção, pelo que que não pode ter acolhimento a alegação de não lhe ter sido concedido esse direito.
Sendo certo que a Requerente não efetuou a elisão da presunção no processo inspetivo, teria ainda a oportunidade de o fazer em processo judicial ou arbitral.
No PPA a Requerente veio justificar as transferências e os registos na conta de sócios (conta 26922902), com base numa suposta operação de empréstimo à sócia B... que seria compensada pelo valor que esta iria auferir na repartição do saldo de liquidação da sociedade. Alegando ainda que os € 694.000 seriam, quanto muito, adiantamento por conta da partilha subsequente à liquidação da sociedade, mais referindo que não eram previsíveis quaisquer lucros futuros.
O Tribunal Arbitral teve em devida consideração a argumentação aduzida pela Requerente. Porém, verifica que a Requerente não juntou aos autos elementos documentais ou outros que permitam comprovar a existência de mútuo ou da não previsibilidade de lucros futuros.
Tendo em atenção o valor do suposto mútuo (€664.000,00), a sua validade nos termos artigo 1143º do Código Civil exigia a celebração de escritura pública ou documento particular autenticado. Para além de se exigir a liquidação e pagamento de Imposto de Selo pela concessão de crédito nos termos da Verba 17.1 da Tabela de Imposto de Selo.
Vide decisão arbitral nº 761/2022-T:
“II. Tendo a Requerente invocado a existência de um empréstimo para justificar a disposição patrimonial, contabilisticamente registada, a favor dos seus sócios, só, no caso e atento os valores, através de escritura-pública ou documento particular autenticado poderia provar a existência desses contratos – artigo 1143º, do Código Civil
III. A apresentação de documentos particulares simples de confissão de dívida subscritos pelos sócios, não equivale, não substitui e não comprova, pela forma legal, a celebração de contratos de mútuo, eventualmente causais de tais declarações confessórias de dívida”
Em vista do supramencionado não encontramos nos dados disponibilizados pela Requerente (tanto no procedimento inspetivo, como como no presente pedido de pronúncia arbitral) elementos documentais, deliberações sociais, ou quaisquer outros elementos que permitam demonstrar a concessão do mútuo à sócia, de forma a afastar a presunção.
Concludentemente, verificamos que, ao contrário do que lhe competia, a Requerente não logrou efetuar a elisão da presunção pela demonstração de mútuo, prestação de trabalho ou exercício de órgãos sociais. Cai assim por terra o argumento da demonstração da elisão da presunção.
Resta-nos a análise do último argumento da Requerente, de alegadamente no mesmo período de tributação ocorrer uma duplicação: alegada exigência de retenção na fonte e o pagamento decorrente de IRS decorrente da entrega do modelo 3 de IRS e respetivo pagamento pela sócia (artigo 32º do PPA).
Parece-nos que a Requerente vem alegar uma suposta duplicação de coleta.
De acordo com o artigo 205º do CPPT existe duplicação de coleta quando, estando pago por inteiro um tributo, se exigir da mesma ou de diferente pessoa um outro de igual natureza, referente ao mesmo facto tributário e ao mesmo período de tempo.
No caso dos autos não existe qualquer duplicação de coleta. Desde logo, as liquidações em crise por retenção na fonte têm por sujeito passivo a sociedade Requerente via artigo 101º, nº 2, alínea a), do CIRS, enquanto os rendimentos declarados e sujeitos a IRS constantes da declaração modelo 3 de IRS (docs. nºs 9, 9º-A e 9º-B) tem por sujeito passivo a referida sócia. Portanto sujeitos passivos divergentes para liquidações diferentes.
Paralelamente, estamos na presença de factos tributários distintos. No caso dos autos, a retenção na fonte por adiantamento de distribuição de resultados (rendimentos da categoria E), enquanto na alegação da Requerente estaríamos perante rendimentos de outras categorias (categoria G – Mais valias).
Pelo que também aqui o argumento da Requerente não pode ter acolhimento.
Concludentemente não se encontram nas liquidações em crise as ilegalidades e vícios invocados. Termos em que o PPA terá de ser julgado improcedente, por não provado, com a consequente absolvição da Requerida de todos os pedidos.
VII. Decisão
Termos em que se decide julgar o presente pedido de pronúncia arbitral improcedente e absolver a Requerida do pedido, condenando a Requerente nas custas, nos termos abaixo fixados.
VIII. Valor do processo
Fixa-se o valor do processo em € 209.310,26 (duzentos e nove mil trezentos e dez euros e vinte seis cêntimos) nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das e alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
IX. Custas
Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 4.284,00 nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerente uma vez que o PPA foi julgado improcedente nos termos dos artigos, 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT.
Registe-se e notifique-se.
Lisboa, 20 de Maio de 2025
Carlos Alberto Fernandes Cadilha
Luís Menezes Leitão
António Cipriano da Silva