Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 1051/2024-T
Data da decisão: 2025-05-16  IRC IRS  
Valor do pedido: € 53.431,01
Tema: IRC/IRS – tributação autónoma; princípio da especialização dos exercícios; dedutibilidade de gastos e perdas (requisitos do artigo 23.º, n.º 1, do Código do IRC); presunção constante do artigo 6.º, n.º 4, do Código do IRS.
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Sumário:

I.              {C}{C}Se a AT se limitar a qualificar as faturas emitidas ao sujeito passivo como despesas de representação, com a consequente sujeição a tributação autónoma, nos termos do disposto no artigo 88.º, n.º 7, do Código do IRC, com base no seu descritivo e sem qualquer indagação complementar quanto à efetividade e caracterização dos serviços prestados, a correção tributária assim fundamentada incorre em violação do princípio do inquisitório, consagrado no artigo 58.º da LGT.

II.            {C}{C}O princípio da especialização dos exercícios, a que se refere o artigo 18.º do Código do IRC, não obsta a que sejam imputáveis a um período de tributação custos referentes a períodos anteriores, desde que não resulte de omissões voluntárias e intencionais com vista a operar transferência de resultados entre exercícios.

III.          {C}{C}Apesar de resultar do artigo 18.º, n.º 1, do Código do IRC uma vinculação para a AT no sentido de, em regra, dever aplicar o princípio da especialização dos exercícios na sua atividade de controle das declarações apresentadas pelos sujeitos passivos, o exercício daquele poder de controle por parte da AT, predominantemente vinculado, pode conduzir a uma situação flagrantemente injusta e, nessas situações, é de fazer operar o princípio da justiça, consignado no artigo 266.º, n.º 2, da CRP e no artigo 55.º da LGT, para obstar a que se concretize essa situação de injustiça.

IV.          {C}{C}No contencioso de mera legalidade o tribunal tem de conter-se na formulação de um juízo sobre a legalidade do ato sindicado em face da fundamentação contextual integrante do próprio ato, estando impedido de valorar razões de facto e de direito que não constam dessa fundamentação, quer estas sejam por ele eleitas, quer sejam invocados a posteriori

V.             {C}{C}A versão atualmente em vigor do artigo 23.º, n.º 1, do Código do IRC, resultante da Lei n.º 2/2014, de 16 de janeiro, é distinta da versão anteriormente vigente, tendo designadamente sido eliminado o requisito da indispensabilidade.

VI.          {C}{C}As diferenças negativas de caixa derivadas, designadamente, das situações de furto, constituem custos fiscais para efeitos do disposto no artigo 23.º, n.º 1, do Código do IRC.

VII.        {C}{C}O artigo 6.º, n.º 4, do Código do IRS consagra uma presunção relativa a rendimentos de capitais, de que as quantias escrituradas em quaisquer contas correntes dos sócios de sociedades comerciais ou civis sob forma comercial, que não resultem de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais, presumem-se feitas a título de lucros ou adiantamento dos lucros.

VIII.      {C}{C}Só os lançamentos feitos em contas correntes dos sócios se presumem, face ao disposto no artigo 6.º, n.º 4, do Código do IRS, feitos a título de lucros ou adiantamento de lucros, sendo que, no domínio da vigência do SNC, apenas se consideram contas correntes dos sócios a conta 26 – Acionistas/Sócios e as respetivas subcontas.

 

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

            I. Relatório

1. No dia 17 de setembro de 2024, A... Unipessoal, Lda., NIPC ..., com sede na ..., n.º ..., ...-... Porto (doravante, Requerente), apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (doravante, abreviadamente designado RJAT), com vista à pronúncia deste Tribunal Arbitral relativamente à (i)legalidade dos seguintes atos tributários:

i) O ato de indeferimento da reclamação graciosa n.º ...2024...; 

ii) A liquidação adicional de IRC n.º 2023..., referente ao ano de 2019; 

iii) A liquidação de juros compensatórios n.º 2023...;

iv) A demonstração de acerto de contas n.º 2023..., da qual resultou o valor total a pagar de € 37.108,08; e,

v) A liquidação de retenções na fonte de IRS n.º 2023..., referente ao ano de 2019, e correspetivas liquidações de juros compensatórios, no valor total a pagar de € 16.322,93.

 A Requerente juntou 9 (nove) documentos e arrolou uma testemunha, não tendo requerido a produção de quaisquer outras provas.  

É Requerida a AT – Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante, Requerida ou AT). 

 

2. O pedido de constituição de tribunal arbitral foi aceite e notificado à AT em 23 de setembro de 2024.

 

3. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 6.º e na alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou o signatário como árbitro do Tribunal Arbitral singular, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.

Em 6 de novembro de 2024, as partes foram devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas b) e c), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral singular foi constituído em 26 de novembro de 2024.

 

4. No dia 19 de dezembro de 2024, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua Resposta, impugnando os argumentos aduzidos pela Requerente e concluindo no sentido da improcedência da presente ação, com a sua consequente absolvição do pedido.

A Requerida não requereu a produção de quaisquer provas; na mesma ocasião, a Requerida procedeu à junção aos autos do processo administrativo (doravante, PA).

 

5. No dia 31 de janeiro de 2025, foi realizada a reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT – na qual foi tratado o que consta da respetiva ata que aqui se dá por inteiramente reproduzida, tendo sido indicado o dia 26 de maio de 2025 como data limite para a prolação da decisão arbitral – e procedeu-se à produção de prova testemunhal.

 

6. Ambas as partes apresentaram alegações escritas, as quais aqui se dão por inteiramente reproduzidas.

 

II. Saneamento

7. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é competente, atenta a conformação do objeto do processo (cf. artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 5.º, n.ºs 1 e 2, do RJAT).

pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado no prazo previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março). 

Admite-se a cumulação de pedidos, nos termos do disposto no artigo 3.º, n.º 1, do RJAT.

O processo não enferma de nulidades.

Não existem quaisquer exceções ou questões prévias que obstem ao conhecimento de mérito e que cumpra conhecer. 

 

III. Fundamentação                             

III.1. De Facto

§1. Factos Provados

8. Com relevo para a apreciação e decisão da causa, consideram-se provados os seguintes factos:

a) A Requerente pertence ao grupo farmacêutico “B...”, dedicando-se, essencialmente, à atividade de comércio a retalho de produtos farmacêuticos (CAE 47730). 

b) No decurso do ano de 2019, a Requerente adquiriu serviços de publicidade à “C..., S.A.”, tendo esta empresa emitido as seguintes faturas à Requerente [cf. documento n.º 5 anexo ao PPA e PA]:

N.º Fatura

Data

Registo

Base

IVA deduzido

Total

...

31/01/2019

2019-01-31 ...

8.750,00 €

2.012,50 €

10.762,50 €

...

13/03/2019

2019-03-13 ...

8.750,00 €

2.012,50 €

10.762,50 €

...

19/06/2019

2019-06-19 ...

8.750,00 €

2.012,50 €

10.762,50 €

...

15/10/2019

2019-10-15 

...

8.750,00 €

2.012,50 €

10.762,50 €

 

c) No descritivo das aludidas faturas consta o seguinte: “Os serviços acessórios considerados em conformidade com o n.º 6 da circular n.º 20/2009 da DGI representam 10% do valor da presente parceria”. [cf. documento n.º 5 anexo ao PPA e PA]  

d) A Requerente registou contabilisticamente as referidas faturas na conta “6222 – Fornecimentos e serviços externos – Serviços especializados – Publicidade e propaganda” e “24323132311 – IVA – Dedutível – Outros Bens e Serviços – Outros Bens e Serviços – Continente – OBS – Taxa Normal – Obs – Taxa Normal – 23% - Obs Tx. Nm. – Mercado Nacional – Obs – Tx. Nm. – MN-TT/Dedutível”. [cf. documento n.º 5 anexo ao PPA e PA]

e) Relativamente ao ano de 2019, a Requerente efetuou os seguintes registos contabilísticos na conta “6881 – Correções relativas a períodos anteriores”, levando ao apuramento do resultado líquido gastos no montante de € 4.614,83, os quais se reportam a exercícios anteriores e têm como suporte documentos emitidos em anos anteriores [cf. documento n.º 5 anexo ao PPA e PA]:   

Registo Contabilístico

N.º Fatura

Data de emissão

Valor

2017-02-21 ...

1093079

21/02/2017

338,12 €

2017-03-08 ...

1095590 

08/03/2017

80,22 €

2017-04-05 ...

1100782

05/04/2017

543,54 €

2017-04-07 ...

12045

07/04/2017

0,10 €

2017-04-07 ...

12045

07/04/2017

61,50 €

2017-05-05 ...

172249

05/05/2017

231,20 €

2017-05-25 ...

201011357

24/05/2017

694,66 €

2017-06-01 ...

622334

01/06/2017

33,25 €

2017-06-06 ...

179005

26/06/2017

256,83 €

2017-06-27 ...

489

27/06/2017

50,00 €

2017-07-01 ...

737367

01/07/2017

33,25 €

2017-08-01 ...

862059

01/08/2017

33,25 €

2017-09-01 ...

966970

01/09/2017

33,25 €

2017-10-01 ...

1032934

01/10/2017

33,25 €

2019-05-01 ...

1100762

14/03/2017

392,22 €

2019-05-01 ...

1193437

01/11/2017

15,52 €

2018-01-09 ...

21

09/01/2018

870,00 €

2018-09-28 ...

6200134232

28/09/2018

67,53 €

2018-09-28 ...

6200134232

28/09/2018

589,79 €

2018-10-18 ...

6689

18/10/2018

257,35 €

Total

4.614,83 €

 

f) Relativamente ao ano de 2019, a Requerente efetuou o registo contabilístico 2019-04-23..., no montante de € 2.544,91, referente à fatura n.º 016 de 2019/04/23, emitida por D..., NIF..., levando aquele montante ao apuramento do resultado líquido. [cf. documento n.º 5 anexo ao PPA e PA]  

g) A referida fatura refere-se à aquisição de material de golf, incluindo roupa, nomeadamente “Polo”, “Luva”, entre outros. [cf. documento n.º 5 anexo ao PPA e PA]   

h) Relativamente ao ano de 2019, a Requerente deduziu e acresceu ao resultado líquido, no quadro 07 da declaração modelo 22 de IRC, os seguintes valores em variações patrimoniais positivas e negativas, no valor líquido de € 10.710,50 [cf. documento n.º 5 anexo ao PPA e PA]:

702 – Variações patrimoniais positivas não refletidas no resultado líquido do período (art. 21.º) e quota-parte do subsídio respeitante a ativos não correntes, não depreciáveis/não amortizáveis [art. 22.º, n.º 1, al. b) a al. d)] 

36.985,83 €

704 – Variações patrimoniais negativas não refletidas no resultado líquido do período (art. 24.º)

26.275,33 €

 

            i) Aqueles valores são referentes à subtração e apropriação de valores de caixa por parte de um trabalhador da Requerente, com funções comerciais, de apoio à gestão/gerência e de assistência informática. [cf. documento n.º 5 anexo ao PPA, PA e depoimento da testemunha D...]   

j) Tal facto levou ao despedimento com justa causa daquele trabalhador da Requerente e à apresentação de uma queixa-crime, pela Requerente, contra aquele seu trabalhador, em 07.03.2018. [cf. documento n.º 9 anexo ao PPA e depoimento da testemunha D...]    

k) No início do ano de 2019, a conta “2781210002 - Outros devedores e credores - Outros devedores e credores – Corrente – Outros credores – Corrente – Outros credores – corrente – mercado nacional – E...” apresentava um saldo nulo, mas ao longo do ano foram efetuados os seguintes registos a débito e crédito naquela conta, referentes à sócia-gerente da Requerente, E..., NIF ...[cf. documento n.º 5 anexo ao PPA e PA]:       

Registo

Descritivo Transação

Descritivo Linha

Débito

Crédito

OBS

2019-01-01 ...

Outras regularizações CC

Outras regularizações CC

0

869,22

Vencimentos

2019-01-31 ...

Pagamentos

Pagamentos

6.000,00

0

Beneficiário E...

2019-02-28 ...

Pagamentos

Pagamentos

6.000,00

0

Beneficiário E...

2019-03-31 ...

Pagamentos

Pagamentos

6.000,00

0

Beneficiário E...

2019-04-10 ...

Pagamentos

Pagamentos

6.000,00

0

Beneficiário E...

2019-05-16 ...

Pagamentos

Pagamentos

6.000,00

0

Beneficiário E...

2019-05-31 ...

Pagamentos

Pagamentos

6.000,00

0

Beneficiário E...

2019-05-31 ...

Salários-Vencimentos

Salários-Vencimentos

0

4.448,35

Vencimentos

2019-06-30 ...

Salários-Vencimentos

Salários-Vencimentos

0

876,86

Vencimentos

2019-07-31 ...

Salários-Vencimentos

Salários-Vencimentos

0

898,21

Vencimentos

2019-08-08 ...

Pagamentos

Pagamentos

6.000,00

0

Beneficiário E...

2019-08-31 ...

Salários-Vencimentos

Salários-Vencimentos

0

889,67

Vencimentos

2019-09-04 ...

Pagamentos

Pagamentos

6.000,00

0

Beneficiário E...

2019-09-30...

Salários-Vencimentos

Salários-Vencimentos

0

889,67

Vencimentos

2019-10-31 ...

Pagamentos

Pagamentos

6.000,00

0

Beneficiário E...

2019-10-31 ...

Pagamentos

Pagamentos

6.000,00

0

Beneficiário E...

2019-10-31...

Salários-Vencimentos

Salários-Vencimentos

0

898,21

Vencimentos

2019-11-30 ...

Salários-Vencimentos

Salários-Vencimentos

0

885,40

Vencimentos

 

l) Os valores registados a crédito da referida conta foram efetuados por contrapartida a débito da conta “2311 – Pessoal – Remunerações a pagar – Aos órgãos sociais” e referem-se aos valores das remunerações da sócia-gerente da Requerente, E..., NIF... . [cf. documento n.º 5 anexo ao PPA e PA]  

m) Os valores registados a débito da referida conta foram efetuados por contrapartida a crédito da conta “12 – Bancos”, tratando-se de transferência efetiva daqueles valores monetários a favor da sócia-gerente da Requerente, E..., NIF ... . [cf. documento n.º 5 anexo ao PPA e PA]      

n) A coberto da Ordem de Serviço n.º OI202..., a Requerente foi sujeita a um procedimento de inspeção tributária, de âmbito parcial (IRC, IVA e RF IRS) e incidente sobre o ano de 2019, realizado pelos Serviços de Inspeção Tributária da Direção de Finanças do Porto, que culminou com a elaboração do respetivo Relatório de Inspeção Tributária (RIT), notificado à Requerente e que aqui se dá por inteiramente reproduzido, do qual resultaram, entre outras, as seguintes correções em sede de IRC e de RF IRS assentes, nuclearmente, nos fundamentos que seguidamente se extratam [cf. documento n.º 5 anexo ao PPA e PA]:

V. Descrição dos factos e fundamentos das correções/irregularidades

A – Parceria Publicitária

(…)

No descritivo das referidas faturas consta o seguinte “Os serviços acessórios considerados em conformidade com n.º 6 da circular n.º 20/2009 da DGI representam 10% do valor da presente parceria”.

A C..., SA. fatura um “pacote”, sem discriminação das prestações de serviços incluídas, pelo que o gasto incorrido pela empresa com a sua aquisição não pode ser aceite para efeitos de IRC, na sua totalidade, como «despesas de publicidade», (…).

As despesas relativas aos serviços acessórios configuram despesas de representação, pelo que deveriam ter sido sujeitos à tributação autónoma prevista no n.º 7 do artigo 88.º do Código do IRC.

Assim, considerando a percentagem de 10% atribuída pela C... aos serviços acessórios, temos que, em cada uma das faturas o valor de € 1.076,25 (€ 10.762,50 x 10%) corresponderá a serviços acessórios, ou seja despesas de representação num total de € 4.305,00, de que resulta imposto em falta no montante de € 430,50.

(…)

B – No que se refere à conta “6881 – Correções relativas a períodos anteriores”, o sujeito passivo efetuou diversos registos, levando ao apuramento do resultado líquido gastos no montante de € 4.614,83.

(…)

Aqueles gastos, reportam-se a exercícios anteriores, têm como suporte documentos emitidos em anos anteriores, pelo que não eram imprevisíveis ou manifestamente desconhecidos, pelo que, em 2019, não são aceites como gastos fiscais, nos termos do art.º 18 do CIRC.

Deste modo o sujeito passivo deveria ter acrescido ao resultado líquido, no campo 710 – Correções relativas a períodos de tributação anteriores (art.º 18.º, n.º 2), da declaração mod. 22 o montante de € 4.614,83.

C – Na conta “62662-Desp. de Rep. - não aceites” efetuou o registo contabilístico 2019-04-23 ... no montante de € 2.544,91, referente à fatura n.º 016 de 2019/04/23, emitida por D... NIF..., levando ao apuramento do resultado líquido aquele montante.

Aquela fatura refere-se à aquisição de material de golf incluindo roupa nomeadamente “Polo”, “Luva”, entre outros. Estes bens não se referem a despesas de representação nem se comprova o seu caráter de indispensabilidade, pelo que o mesmo não é gasto no ano de 2019, nos termos do n.º 1 art.º 23 do CIRC. 

(…)

E – A Farmácia A..., deduziu e acresceu ao resultado líquido, no quadro 07 da declaração modelo 22 de IRC, valores em variações patrimoniais positivas e negativas no valor líquido de € 10 710,50 (…)

Questionada, referiu-nos que aqueles valores são referentes à subtração e apropriação de valores de Caixa por parte de um terceiro e que se encontra a correr um processo judicial – Inq..../18...T9MTS.

Analisando este procedimento do sujeito passivo, não são aceites essas correções, já que para a Autoridade Tributária as perdas que resultem de furtos não podem ser consideradas como decorrentes da atividade normal desenvolvida pelos sujeitos passivos, nem que contribuam para obter ou garantir rendimentos sujeitos a IRC, não podendo, por isso, aceitar-se para efeitos fiscais a sua dedutibilidade.

Para alem disso, pelo que foi relatado pelo sujeito passivo e mencionado na queixa crime apresentada no DCIAP, resultam indícios fortes de deficiências de controlo interno, no que respeita a procedimentos com vista à proteção dos ativos em causa.

Sem prescindir, a respetiva queixa foi apresentada em 2018/03/07 referindo-se a factos anteriores àquela data, cujo gasto, se aceite fiscalmente, o que não se admite, não seria gasto no ano de 2019, nos termos do art.º 18 do CIRC.

(…)

F – RFIRS

Da análise à conta “2781210002-Outros devedores e credores- Outros devedores e credores – Corrente- Outros credores – Corrente- Outros credores - corrente - mercado nacional -E...”, verificamos que no início do ano de 2019 apresentava um saldo de nulo, mas que ao longo do ano foram efetuados a diversos registos a débito e crédito naquela conta, que, da sua análise, referentes à sócia gerente E... NIF..., foram identificamos os seguintes valores: (…)

Os valores registados a crédito daquela conta foram efetuados por contrapartida (a débito) da conta “2311 – Pessoal - Remunerações a pagar - Aos órgãos sociais”, e referem-se ao valor de remunerações da referida sócia.

No que se refere aos valores registados a débito, foram efetuados por contrapartida (a crédito) da conta “12- Bancos”, que da sua análise verificamos tratar-se de transferência efetiva daqueles valores monetários a favor da referida sócia E... NIF... .

Nos termos do n.º 4 do art.º 6 do CIRS, os lançamentos a seu favor, em quaisquer contas correntes dos sócios, escrituradas nas sociedades comerciais ou civis sob forma comercial, quando não resultem de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais, presumem-se feitos a título de lucros ou adiantamento dos lucros.

Em 2023 /05/10 notificamos Viactt (IT -...), a Farmácia A... para justificar/esclarecer a que título foram efetuados aqueles movimentos, juntando documentos comprovativos, sob pena de não elisão da presunção prevista no n.º 4 do art.º 6 do CIRS.

O sujeito passivo não deu resposta à referida notificação.

Deste modo, a saída de fundos da Farmácia A... no valor de € 50 229,81 (€ 60.000,00 - € 10.655,59) a favor da sócia gerente, é um facto tributário qualificado como adiantamento por conta de lucros, ou seja, rendimentos da categoria E, nos termos da alínea h) do nº 2 do artigo 5º do CIRS, sujeitos a IRS, por retenção na fonte a uma taxa liberatória de 28%, nos termos do n.º 1 do artigo 71.º do Código do IRS.

Assim a Farmácia A... deveria ter procedido à retenção do referido imposto, nos termos do n.º 2 do art.º 101 do CIRS, o qual deveriam ser entregues nos termos do n.º 3 do art.º 98 do CIRS.

 

Mês

Base (1)

Taxa (2)

Imposto (3=1x2)

Janeiro

5 130,78 €

28,00%

1 436,62 €

Fevereiro

6 000,00 €

28,00%

1 680,00 €

Março

6 000,00 €

28,00%

1 680,00 €

Abril

6 000,00 €

28,00%

1 680,00 €

Maio

7 551,65 €

28,00%

2 114,46 €

Agosto

3 335,26 €

28,00%

933,87 €

Setembro

5 110,33 €

28,00%

1 430,89 €

Outubro

11 101,79 €

28,00%

3 108,50 €

 

50 229,81 €

 

14 064,35 €

o) Sequentemente, a AT emitiu e notificou à Requerente a liquidação adicional de IRC n.º 2023..., referente ao ano de 2019, a liquidação de juros compensatórios n.º 2023... e a respetiva demonstração de acerto de contas n.º 2023..., da qual resultou o valor total a pagar de € 37.108,08 e, ainda, a liquidação de retenções na fonte de IRS n.º 2023..., referente ao ano de 2019, e correspetivas liquidações de juros compensatórios, no valor total a pagar de € 16.322,93. [cf. documentos n.ºs 1, 2, 3 e 4 anexos ao PPA]

p) No dia 09.01.2024, a Requerente deduziu reclamação graciosa contra os atos tributários mencionados no facto provado o) – autuada sob o processo n.º ...2024..., no Serviço de Finanças do Porto ... –, nos termos e com os fundamentos constantes do respetivo requerimento inicial que, sob o documento n.º 6, está anexo ao PPA e aqui se dá por inteiramente reproduzido. [cf., também, PA]   

q) Por despacho do Chefe de Divisão da Direção de Finanças do Porto, datado de 19.06.2024 e emitido ao abrigo de subdelegação de competências, foi indeferida aquela reclamação graciosa, nos termos e com os fundamentos constantes do respetivo projeto de decisão que, sob o documento n.º 7, está anexo ao PPA e aqui se dá por inteiramente reproduzido. [cf., também, PA]   

r) A Requerente foi notificada da decisão de indeferimento da aludida reclamação graciosa através do ofício n.º 2024..., datado de 20.06.2024, da Direção de Finanças do Porto, remetido por carta registada (RF ... PT). [cf. documento n.º 8 anexo ao PPA e PA] 

s) No dia 17.09.2024, a Requerente apresentou o pedido de constituição de Tribunal Arbitral que deu origem ao presente processo. [cf. Sistema de Gestão Processual do CAAD]

 

§2. Factos não Provados

9. Com relevo para a apreciação e decisão da causa, não há factos que não se tenham por provados. 

 

§3. Motivação quanto à Matéria de Facto

10. Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, à face das soluções plausíveis das questões de direito. 

Não se deram como provadas nem não provadas as alegações feitas pelas partes e apresentadas como factos, consubstanciadas em afirmações meramente conclusivas e, por isso, insuscetíveis de prova e cuja veracidade terá de ser aquilatada em face da concreta matéria de facto consolidada.  

A convicção do Tribunal Arbitral resultou da apreciação crítica e de uma adequada ponderação, à luz das regras da racionalidade, da lógica e da experiência comum e segundo juízos de normalidade e razoabilidade, de todo o acervo probatório de natureza documental que foi carreado para os autos e que não foi impugnado, bem como da prova testemunhal produzida, em conjugação com as alegações das partes nos respetivos articulados quando reportadas a factos pertinentes para a decisão que não se mostraram controvertidos

No tocante à prova testemunhal produzida (cf. gravação do depoimento constante do Sistema de Gestão Processual do CAAD), importa referir que a testemunha arrolada pela Requerente – D..., coordenadora farmacêutica do grupo farmacêutico “B...”, desde finais de 2015, tendo sido anteriormente, desde junho de 2013, diretora técnica da “Farmácia F...” (integrada no referido grupo farmacêutico) – depôs de forma aparentemente isenta, objetiva e com conhecimento direto dos factos sobre os quais foi inquirida – artigos 68.º e 69.º do PPA –, que foram por si circunstanciadamente descritos, pelo que o seu depoimento afigurou-se credível e, nessa medida, contribuiu para a formação da convicção do Tribunal Arbitral quanto aos factos do probatório relativamente aos quais está indicado. 

   

 

III.2. De Direito

§1. thema decidendum

11. No epicentro do dissídio entre as partes estão diversas questões jurídico-tributárias emergentes das seguintes correções efetuadas pela AT, no âmbito do aludido procedimento de inspeção tributária, tal como enunciadas pela Requerente:

“Qualificação dos serviços acessórios resultantes da parceria publicitária com a C... como despesas de representação e consequente sujeição a tributação autónoma, daí resultando um alegado montante de imposto em falta de € 430,50”;

“Desconsideração de gastos relativos a exercícios anteriores, no montante de € 4.614,83, por os mesmos não serem imprevisíveis ou manifestamente desconhecidos”;

“Não aceitação do gasto referente à fatura n.º 016 de 23.04.2019 emitida por D..., no montante de € 2.544,91, por não se poder comprovar a sua indispensabilidade”;

“Não aceitação de gasto referente à subtração e apropriação de valores de caixa, no montante de € 10.710,50”;

“Sujeição a retenção na fonte de saída de fundos da Requerente, daí resultando imposto alegadamente em falta no montante de € 14.064,35”.

A apreciação que for feita quanto à (i)legalidade de cada uma destas correções será necessariamente determinante para o juízo a proferir relativamente à (i)legalidade dos atos tributários controvertidos.

 

§2. Da (i)legalidade da correção referente à sujeição a tributação autónoma dos alegados serviços acessórios prestados pela “C..., S.A.”

12. A Requerente alega, nuclearmente, o seguinte a este propósito:

“… a AT (re)qualificou um conjunto de gastos suportados pela Requerente com uma parcela publicitária como despesas de representação, sujeitando-os a tributação autónoma, sem, contudo, demonstrar que, em termos práticos, tais gastos revestem a natureza de despesas de representação e sem avançar qualquer justificação que permita à Requerente conhecer o rationale de tal requalificação.”

“…a Circular n.º 20/2009, divulga instruções administrativas referentes ao enquadramento em IRC dos gastos suportados pelos sujeitos passivos com a «aquisição de direitos de utilização de camarotes nos estádios de futebol» e que as faturas emitidas pela C... fazem alusão a essa circular, referindo, inclusivamente, que os serviços alegadamente acessórios representam 10% do valor da parceria publicitária.”

“…, a AT assumiu como com o mencionado nas faturas emitidas pela C... (cujo conteúdo não é da responsabilidade da Requerente e ao qual a Requerente não está naturalmente vinculado) e dispensou-se automaticamente de demonstrar que os serviços que a C... reputa de acessórios nas faturas configuram, na realidade, despesas de representação, infringindo quer o princípio do inquisitório, consagrado no artigo 58.º da LGT, quer o seu dever de fundamentação, previsto no artigo 77.º da LGT.” 

“No entender da AT, o descritivo constante numa fatura emitida por um fornecedor da Requerente constitui uma verdade absoluta, não admite possibilidade de padecer de um qualquer lapso, dispensa a prática de quaisquer atos adicionais de investigação e comprovação da natureza da despesa em questão por parte da inspeção tributária e é bastante para, por si só, afastar a presunção de veracidade de que gozam as declarações dos contribuintes, nos termos do artigo 75.º da LGT, e, bem assim, fundamentar a correção em questão.”

            - “…a regra geral de repartição do ónus da prova no domínio tributário, prevista no n.º 1 do artigo 74.º da LGT, …”

“…, no procedimento de liquidação da iniciativa da AT, esta terá de demonstrar a ocorrência dos factos de que deriva o direito à liquidação (os factos, pressupostos da sua existência, qualificação e quantificação do facto tributário), o que não sucedeu no caso vertente, dado que, (…), a AT não logrou provar que os serviços reputados de acessórios nas faturas emitidas pela C... consubstanciam despesas de representação."   

“Por conseguinte, a correção empreendida pela AT neste âmbito enferma de ilegalidade, porquanto viola o disposto nos artigos 58.º, 74.º e 77.º, todos da LGT, e n.º 7 do artigo 88.º do Código do IRC.”

 

13. Pronunciando-se sobre esta questão, a Requerida aduz, essencialmente, a seguinte argumentação:

“…, foram contratados pela Requerente serviços de publicidade conforme se comprova pelas quatro faturas emitidas em datas diferentes ao longo do ano de 2019 (…).”

“Faturas essas que foram não só aceites, como registadas, pela Requerente na sua contabilidade!”

“As faturas titulam serviços de publicidade, e, no seu descritivo referem que «os serviços acessórios considerados em conformidade com o n.º 6 da circular n.º 20/2009 da DGI representam 10% do valor da presente parceria».”

“Facto que a Requerente não podia ignorar, a não ser por incúria.”

“Pelo que entendeu a AT que o conteúdo da circular é oponível à Requerente.”

            Cumpre apreciar e decidir.

 

            14. Neste conspecto importa, desde logo, convocar as seguintes normas legais:

 

Lei Geral Tributária

“Artigo 58.º

Princípio do inquisitório

            A administração tributária deve, no procedimento, realizar todas as diligências necessárias à satisfação do interesse público e à descoberta da verdade material, não estando subordinada à iniciativa do autor do pedido.”

 

“Artigo 74.º

Ónus da prova

            1. O ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque.

(…)”

 

“Artigo 77.º

Fundamentação e eficácia

1. A decisão de procedimento é sempre fundamentada por meio de sucinta exposição das razões de facto e de direito que a motivaram, podendo a fundamentação consistir em mera declaração de concordância com os fundamentos de anteriores pareceres, informações ou propostas, incluindo os que integrem o relatório da fiscalização tributária.

2. A fundamentação dos atos tributários pode ser efetuada de forma sumária, devendo sempre conter as disposições legais aplicáveis, a qualificação e quantificação dos factos tributários e as operações de apuramento da matéria tributável e do tributo.

(…)”

 

RCPITA

“Artigo 6.º

Princípio da verdade material

            O procedimento de inspeção visa a descoberta da verdade material, devendo a administração tributária adotar oficiosamente as iniciativas adequadas a esse objetivo.”

            

            15. A propósito do princípio do inquisitório, Diogo Leite de Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa[1] afirmam que o mesmo “justifica-se pela obrigação de prossecução do interesse público imposta à actividade da administração tributária (arts. 266.º, n.º 1, da CRP e 55.º da LGT) e é corolário do dever de imparcialidade que deve nortear a sua actividade (art. 266.º, n.º 2, da CRP e 55.º da LGT).

            No domínio do procedimental, esta obrigação impõe que a administração tributária não aguarde pela iniciativa do interessado que formulou o pedido que deu origem ao procedimento, devendo ela própria tomar a iniciativa de realizar as diligências que se afigurem como relevantes para correcta averiguação da realidade factual em que deve assentar a sua decisão.     

Por outro lado, aquele dever de imparcialidade, reclama que a administração tributária procure trazer ao procedimento todas as provas relativas à situação fáctica em que vai assentar a decisão, mesmo que elas tenham em vista demonstrar factos cuja prova seja contrária aos interesses patrimoniais da Administração. (…)

Este dever imposto à administração tributária de averiguar a verdade material não dispensa os interessados particulares da obrigação de colaborarem na produção de provas, como se prevê no art. 59.º da LGT.

No entanto, a falta de realização pela administração tributária de diligências que lhe seja possível levar a cabo ou a falta de solicitação aos interessados de elementos probatórios necessários à instrução do procedimento, constitui vício deste, susceptível de implicar a anulação da decisão nele tomada. (…)

A previsão desta obrigação da administração tributária de averiguar os factos relevantes para a decisão não significa que ela tenha o ónus da prova desses factos, pois apenas a insuficiência probatória de factos constitutivos dos direitos invocados pela administração tributária é valorada processualmente contra ela (art. 74.º, n.º 1, da LGT).”  

 Abordando, igualmente, o princípio do inquisitório, Joaquim Freitas da Rocha[2], caracterizando-o como um “verdadeiro dever de agir”, afirma que uma das suas principais consequências é a “nível da instrução, sendo certo que a indicação dos elementos de prova deve ser efetuada pelos interessados – designadamente mediante a aplicação das regras do ónus da prova –, a Administração não se deve cingir aos elementos apresentados, mas antes deve diligenciar no sentido de trazer para o procedimento todos aqueles que lhe pareçam indispensáveis à descoberta da verdade material, mesmo que desfavoráveis à atividade de arrecadação. (…), de modo algum se pode considerar que a AT está dispensada de considerar os meios de prova que tenha em seu poder e que beneficiem a outra parte quando esta os não apresenta, do mesmo modo que é de exigir que sempre que existam dúvidas, existe igualmente um dever de investigar.” O mesmo autor afirma ainda que a “nível das consequências da não atuação, comina-se com invalidade a decisão que assente num procedimento omissivo, pois a não atuação da Administração quando está legalmente obrigada a agir – isto é, quando a sua atuação se consubstancia num dever e não apenas num poder-dever (o que somente poderá ser aferido caso a caso) – pode consubstanciar uma violação do princípio da vinculação à verdade material.”[3]

Ainda segundo o mesmo autor, a forma juridicamente adequada de compatibilizar esse dever de investigar com as regras atinentes à repartição do ónus da prova (que estatuem que o ónus de provar os factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque), “passa por conceber as regras do ónus da prova num sentido subsidiário ou supletivo, aplicando-as apenas quando o princípio do inquisitório se afigure insuficiente. Significa isto que, em primeira linha, o agente administrativo deve proceder a todas as diligências necessárias e convenientes à descoberta da verdade material, e apenas quando tais diligências são insuficientes se deverá lançar mão das regras de ónus probatório”.[4]

O autor que vimos citando salienta, por fim, que “o dever de agir da Administração tem como correspetivo, na esfera jurídica do contribuinte, um interesse legalmente protegido à boa atuação administração e à correta aplicação das normas”.[5]           

 

16. Na jurisprudência pátria, encontramos múltiplos pronunciamentos sobre esta matéria, sendo disso exemplo:

·      {C}{C}Acórdão do STA, proferido em 13.12.2023, no processo n.º 01683/11.1BEBRG, do qual decorre o seguinte: 

“I. O princípio do inquisitório encontra-se consagrado no artigo 58.º da Lei Geral Tributária (LGT) e consubstancia-se no dever na AT de realização oficiosa de todas as diligências necessárias para a descoberta da verdade material, sendo que é um princípio conformador da actividade da AT, na formação do acto lesivo dos interesses legalmente protegidos dos administrados e é, por isso, uma garantia não impugnatória do sujeito passivo e está aquém do ónus da prova, pelo que a verdade material ínsita no supracitado artigo se consubstancia numa verdade extraprocessual, que não é aquela que se afere pela prova ou não prova de factos.”;

·      {C}{C}Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, proferido em 11.05.2017, no processo n.º 163/17.6BELRS, no qual se decidiu o seguinte:

“4. A Administração Fiscal, no âmbito do procedimento tributário, está sujeita ao princípio do inquisitório (cfr. artº.58, da L.G.T.), o qual é um corolário da obrigação de imparcialidade que deve nortear a sua actuação. Este dever de imparcialidade reclama que a Fazenda Pública procure trazer ao procedimento todas as provas relativas à situação fáctica em que vai assentar a decisão, mesmo que elas tenham em vista demonstrar factos cuja revelação seja contrária aos interesses patrimoniais da Administração. Mais se deve realçar que o órgão instrutor pode utilizar, para conhecimento dos factos necessários à decisão do procedimento, todos os meios de prova admitidos em direito (cfr. artº.72, da L.G.T.).

5. O princípio do inquisitório justifica-se pela obrigação de prossecução do interesse público imposta à actividade da Administração Tributária (artº.266, nº.1, da C.R.P., e artº.55, da L.G.T.) e é corolário do citado dever de imparcialidade que deve nortear a sua actividade (artº.266, nº.2, da C.R.P., e artº.55, da L.G.T.). Concluindo, este princípio, obriga a administração tributária a realizar todas as diligências que se afigurem necessárias à satisfação do interesse público e à descoberta da verdade material. Quer isto dizer, que todas as diligências devem ser efectuadas ainda que as mesmas não tenham sido requeridas, não dependendo por isso de um qualquer impulso procedimental do sujeito passivo”.

·      {C}{C}Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, proferido em 27.10.2016, no processo n.º 00957/09.6BEVIS, assim sumariado:

“1. O princípio do inquisitório e da verdade material visa a descoberta da verdade material, devendo a administração tributária adoptar oficiosamente as iniciativas adequadas a esse efeito (art. 6º do RCPIT). Tem assento constitucional (Art. 266º da CRP) e encontra-se inscrito em várias normas que regem a actividade administrativa, de que são exemplo, além do citado art. 6º do RCPIT, os art.s 13º do CPPT, e 55º, 59º, 63º/1 e 99º da LGT bem como os artigos 58º, 115º e segs.. do CPA.

2. Este princípio fundamenta-se na obrigação de a administração prosseguir o interesse público (artigo 266º/1 da CRP e artigo 55º da LGT), assim como no dever de imparcialidade da actuação administrativa (266º/2 da CRP e artigo 55º da LGT) que a par dos restantes princípios constitucionais a que os órgão administrativos estão subordinados integram as designadas medidas materiais da juridicidade administrativa.

3. Por força deste princípio, a administração tributária não tem de aguardar pela iniciativa do interessado, devendo, pelos seus próprios meios e determinação, realizar as diligências necessárias para averiguação da verdade factual em que deve assentar a sua decisão. 

4. Isto mesmo que estejam em causa factos contrários aos interesses patrimoniais do credor tributário.”

·      {C}{C}Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, proferido em 23.04.2020, no processo n.º 01089/16.6BEAVR, no qual se decidiu o seguinte:

“I. O princípio do inquisitório, previsto no artigo 58.º da LGT e aplicável ao procedimento inspetivo por força do artigo 6.º do RCPITA, postula que a administração tributária deve, no procedimento, realizar todas as diligências necessárias à satisfação do interesse público e à descoberta da verdade material, não estando subordinada à iniciativa do autor do pedido.

II. Este princípio fundamenta-se na obrigação de a administração prosseguir o interesse público (artigo 266º/1 da CRP e artigo 55º da LGT), assim como no dever de imparcialidade da actuação administrativa (266º/2 da CRP e artigo 55º da LGT).

III. O dever de inquisitório a cargo da AT situa-se a montante do ónus da prova, por isso não é possível afirmar que a AT cumpriu o ónus da prova a seu cargo quando não haja, sequer, realizado as diligências probatórias que o dever de inquisitório e de descoberta da verdade material lhe impunham.”

 

17. Volvendo ao caso concreto, atenta a fundamentação aduzida no RIT que está subjacente à correção sob análise (cf. facto provado n)), constatamos que, relativamente às faturas aqui em causa (cf. factos provados b), c) e d)), a AT se dispensou de demonstrar que os serviços que a “C..., S.A.” apelida de “serviços acessórios” consubstanciam despesas de representação e que, por isso, estão sujeitas a tributação autónoma, nos temos do disposto no artigo 88.º, n.º 7, do Código do IRC; com efeito, a AT limitou-se, sem mais, a afirmar o seguinte:

“No descritivo das referidas faturas consta o seguinte “Os serviços acessórios considerados em conformidade com n.º 6 da circular n.º 20/2009 da DGI representam 10% do valor da presente parceria”.

A C..., SA. fatura um “pacote”, sem discriminação das prestações de serviços incluídas, pelo que o gasto incorrido pela empresa com a sua aquisição não pode ser aceite para efeitos de IRC, na sua totalidade, como «despesas de publicidade», (…).

As despesas relativas aos serviços acessórios configuram despesas de representação, pelo que deveriam ter sido sujeitos à tributação autónoma prevista no n.º 7 do artigo 88.º do Código do IRC.”

Ao invés de ter atuado dessa forma, ou seja, dando por adquirido o vertido no descritivo das mencionadas faturas, sem qualquer indagação adicional visando apurar a real caracterização dos serviços em apreço, a AT deveria ter encetado todas as diligências que se afigurassem necessárias para apurar a verdadeira natureza dos aludidos serviços prestados pela “C..., S.A.” à Requerente, designadamente se os mesmos configuram, ou não, despesas de representação. 

Não o tendo feito, como não fez, a AT violou o princípio do inquisitório, consagrado no artigo 58.º da LGT, bem como o dever de fundamentação que sobre si impende, nos termos previstos no artigo 77.º, n.ºs 1 e 2, da LGT, o que tem por consequência a ilegalidade da correção referente à sujeição a tributação autónoma dos alegados serviços acessórios prestados pela “ C..., S.A.”.

Consequentemente, a liquidação adicional de IRC n.º 2023... padece de ilegalidade, na parte atinente a essa correção, o que implica a respetiva anulação, nessa mesma parte (cf. artigo 163.º, n.º 1, do CPA).

 

§3. Da (i)legalidade da correção referente a gastos relativos a exercícios anteriores

18. Neste conspecto, a Requerente alega, essencialmente, o seguinte:

- “A AT considera que a Requerente levou «ao apuramento do resultado líquido gastos no montante de € 4.614,83» relativos a exercício anteriores e que, no seu entender, não eram imprevisíveis ou manifestamente desconhecidos, tendo concluído que a Requerente “deveria ter acrescido ao resultado líquido, no campo 710 – Correções relativas a períodos de tributação anteriores (art. 18.º, n.º 2), da declaração Mod. 22 o montante de € 4.614,83».”

“…, ainda que o princípio da especialização dos exercícios possa não ter sido integralmente observado, em momento algum a AT coloca em causa a efetividade dos gastos ou a sua dedutibilidade nem tampouco suscita uma intencionalidade fraudulenta da Requerente, não tendo sido provado qualquer intenção de omitir custos ou de deferir ilegitimamente o seu pagamento.”  

“Acresce que a AT também não refere existir qualquer duplicação de gastos nem provou vir a existir qualquer prejuízo resultante do facto de a Requerente deduzir os gastos no exercício em causa.”

“Assim sendo, ponderando os interesses e princípios em jogo, a saber, por um lado, o princípio da especialização dos exercícios e, por outro lado, os princípios da justiça e da capacidade contributiva do contribuinte, afiguram-se desproporcionadas as correções efetuadas pela AT nesta matéria, no contexto apontado, devendo ser anuladas, o que se requer.”

 

19. Pronunciando-se sobre esta questão, a Requerida afirma, além do mais, o seguinte:

“Tais gastos são, (…), referentes aos anos de 2017 e 2018 e não foram declarados nas declarações próprias para efeitos fiscais.”

“(…), no âmbito do CIRC, vigora o princípio da periodização económica.”

“A exceção a esse princípio encontra-se prevista no artigo 18.º, n.º 2 do CIRC, …”

“Ou seja, está expressamente previsto que a possibilidade de declarar gastos referentes a períodos anteriores, em derrogação do princípio da periodização económica, apenas pode ser admitida pela AT, relativamente a gastos imprevisíveis ou manifestamente desconhecidos.”

“Tal não é manifestamente o caso, como aliás decorre da argumentação da Requerente, que em nenhum momento nega a previsibilidade.”

 

Cumpre apreciar e decidir.

 

20. Na apreciação jurídico-tributária desta questão importa ter presente o seguinte bloco normativo:

 

Código do IRC

“Artigo 3.º

Base do imposto

1. O IRC incide sobre:

            a) O lucro das sociedades comerciais ou civis sob forma comercial, das cooperativas e das empresas públicas e o das demais pessoas coletivas ou entidades referidas nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo anterior que exerçam, a título principal, uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola;

            (…)

            2. Para efeitos do disposto no número anterior, o lucro consiste na diferença entre os valores do património líquido no fim e no início do período de tributação, com as correções estabelecidas neste Código.

            (…)”

 

“Artigo 17.º

Determinação do lucro tributável

            1. O lucro tributável das pessoas coletivas e outras entidades mencionadas na alínea a) do n.º 1 do artigo 3.º é constituído pela soma algébrica do resultado líquido do período e das variações patrimoniais positivas e negativas verificadas no mesmo período e não refletidas naquele resultado, determinados com base na contabilidade e eventualmente corrigidos nos termos deste Código.

            (…)”

 

Artigo 18.º

Periodização do lucro tributável

            1. Os rendimentos e os gastos, assim como as outras componentes positivas ou negativas do lucro tributável, são imputáveis ao período de tributação em que sejam obtidos ou suportados, independentemente do seu recebimento ou pagamento, de acordo com o regime de periodização económica.

            2. As componentes positivas ou negativas consideradas como respeitando a períodos anteriores só são imputáveis ao período de tributação quando na data de encerramento das contas daquele a que deviam ser imputadas eram imprevisíveis ou manifestamente desconhecidas.

(…)”

 

            21. O princípio da periodização económica ou da especialização dos exercícios está positivado no n.º 1 do artigo 18.º do Código do IRC e traduz-se na regra de que devem ser considerados como ganhos ou perdas de determinado exercício os proveitos e os custos, assim como as outras componentes positivas ou negativas do lucro tributável, que a esse exercício digam respeito, sendo irrelevante o exercício em que elas se materializam.

No n.º 2 daquele mesmo artigo 18.º prevê-se uma exceção para as componentes positivas ou negativas do lucro tributável que, na data do encerramento das contas de determinado exercício, eram imprevisíveis ou manifestamente desconhecidas.

O princípio da especialização dos exercícios deriva da periodização dos resultados que é imposta por necessidades de gestão e de informação, sendo “caracterizado pela cisão da vida da empresa em intervalos temporais e pela imputação dada a um deles das componentes, positivas e negativas, que tornem possível determinar o resultado que lhe corresponde”, impondo essa especialização “a realização de inventário de fim de exercício, dela decorrendo a necessidade de imputar a cada exercício todos os proveitos e custos que lhe são inerentes e só esses”[6]; desta forma, “a periodização anual do imposto implica que tanto os rendimentos como os gastos (e as variações patrimoniais fiscalmente relevantes) sejam imputados a cada período de tributação. Esta imputação resulta essencialmente da aplicação das normas contabilísticas, justamente porque o nosso legislador entendeu que as regras de periodização aí previstas oferecem um sistema coerente, fiável e eficaz também para efeitos fiscais.”[7]

            Como é mencionado por Tomás Cantista Tavares, “a periodização temporal dos proveitos e dos gastos é uma característica imanente à noção de rendimento. O rédito obtém-se pela comparação entre dois pontos temporais definidos. (…)

            A periodização do rendimento das sociedades encaixa-se, assim, em dois magnos princípios que se interpenetram numa relação de complementaridade – e por vezes de contraposição: por um lado, o conjunto das regras técnicas e operacionais que definem a imputação temporal das componentes positivas e negativas do rendimento, aglutinadas no chamado princípio prático da especialização dos exercícios ou, na actual nomenclatura, no princípio do acréscimo. Por outro lado, o princípio material da justiça, concretizado, em grande medida, na regra da solidariedade dos exercícios, onde na constatação da real continuidade do rendimento, se permite uma certa interpenetração entre os vários períodos temporais, que não funcionam assim como compartimentos completamente estanques. (…)

            O princípio da especialização dos exercícios (do acréscimo ou da periodização económica) tem fonte contabilística e reprodução tributária.”[8]

A importância e razão de ser do princípio da periodização económica resultam evidentes se se tiver presente que “a especialização temporal das componentes do lucro é ainda mais importante para efeitos fiscais do que contabilísticos, dados os condicionalismos em que decorre a determinação do imposto a pagar, de modo a evitar desvios de resultados entre exercícios diferentes com propósitos de minimização da carga fiscal, (…). Com efeito, essa imputação temporal pode ser instrumento de uma manipulação de resultados, de modo a, designadamente:

            a) Diferir no tempo os lucros;

            b) Fraccionar os lucros, distribuindo-os por exercícios diferentes, com o objectivo de evitar, num imposto de taxas progressivas, a tributação por taxas mais elevadas;

c) Concentrar o lucro em exercício onde se podem efectivar deduções mais avultadas (v. g. por reporte de prejuízos ou por incentivos fiscais).”[9]   

            Efetivamente, existem, “em abstracto, dois tipos de erros fiscais ligados à imputação temporal das componentes positivas e negativas do rédito ao exercício competente:

            - a omissão ou esquecimento (erro voluntário ou involuntário): conhece-se a regra, que é indisputável, mas por algum motivo (ilegítimo ou justificado) não se regista o proveito ou o custo no ano devido;

            - a álea ou abertura interpretativa: errónea inscrição temporal dum proveito ou um custo, efectuada, todavia, com base numa interpretação plausível da regra fiscal (geral ou específica) da especialização dos exercícios, regra essa que possui um conteúdo aplicativo equívoco (ou não concludente) diante do caso concreto.”[10]

É, pois, vedado aos contribuintes definirem como bem entenderem ou segundo critérios de oportunidade ou, ainda, em conformidade com a sua estratégia comercial ou de gestão, o timing para declararem os proveitos e os custos decorrentes da sua atividade comercial ou industrial, porquanto lhes são legalmente impostos limites e regras para o efeito, designadamente no sentido de os obrigar a imputar esses proveitos e custos ao exercício a que digam respeito.

            Assim, todos os custos e proveitos que sejam reconhecidos em determinada data devem ser registados no exercício a que correspondem de modo a que se produza uma imagem fidedigna da posição da empresa para esse período; ou seja, devem ser imputados “ao exercício os encargos que emergem de operações nele realizadas, ainda que nele não suportadas, do mesmo modo que se devem imputar a um exercício os proveitos resultantes de operações nele feitas mesmo que arrecadados noutro” (acórdão do STA, proferido em 02/04/2008, no processo n.º 0807/07). Como afirma Rui Duarte Morais, “a imputação de um proveito ou custo a certo exercício obedece a um critério económico (e não a um critério financeiro), ou seja, as operações nele efectuadas afectam o respectivo resultado, independentemente do recebimento ou pagamento do respectivo preço ou outra contrapartida. Contabilizam-se créditos e débitos e não pagamentos e recebimentos.”[11]  

Não obstante o que se vem de dizer, como salienta Tomás Cantista Tavares, os tribunais nacionais já se confrontaram “com o problema da compaginação entre o interesse tributário e os erros contabilísticos e fiscais da especialização dos exercícios. Com a questão da hipotética aceitação fiscal (e, em caso afirmativo, sob que condições) duma errónea inscrição contabilística, em violação formal do princípio da especialização dos exercícios; com a admissibilidade do registo fiscal de um custo ou de um proveito num ano diverso (anterior ou posterior) ao da sua correcta imputação temporal.

            A Jurisprudência gira em torno de duas teses antagónicas:

            a) a corrente primitiva, de cariz formal e legalista, não admite quaisquer violações do princípio da especialização de exercícios;

            b) a tese actual, de cariz material, aceita a violação formal do princípio da especialização, desde que essas inscrições erróneas não se reconduzam a comportamentos voluntários e intencionais, com vista a operar a transferência de resultados entre exercícios.

            (…)

            Esta corrente jurisprudencial [a tese primitiva] não pactua com a violação da regra legal da especialização de exercícios. Não aceita a inscrição duma rubrica (positiva ou negativa) do rendimento, em exercício diverso do que lhe compete. Fica-se pelo mero enunciado do princípio. Sobrevaloriza-o face à ponderação doutros factores de justiça material, como a interferência em exercício alheio ao objecto do processo ou ao atendimento de razões desculpabilizantes (actuação de boa-fé, sustentada numa interpretação plausível dum comando complexo).

            (…)

            A Jurisprudência consente, actualmente, a violação formal do princípio da especialização de exercícios, desde que não se reconduzam a comportamentos voluntários e intencionais, com vista a operar a transferência de resultados entre exercícios. Aceita a inscrição dum custo ou proveito em exercício diverso do que lhe competia, por intervenção de razões desculpabilizantes (actuação de boa-fé, sustentada numa interpretação séria e plausível dum comando complexo, assente em interpretações abertas e dúbias da sua estatuição). (…)

A tese actual (…) rompe com o facilitismo do formalismo legalista. Procura a solução material e justa. Faz prevalecer um princípio estrutural (capacidade contributiva) sobre uma regra operacional (especialização de exercícios). O seu ponto de partida é irrepreensível: se a sociedade incorreu num verdadeiro custo, esse decaimento tem de modelar, obrigatoriamente, o rédito fiscal. A convenção formal da especialização não tem o condão de impedir o efeito material, nem de torná-lo excessivamente oneroso ou complexo. O mesmo se passa, mutatis mutandis, com os proveitos. Contribuem uma só vez para o lucro (…).”[12]  

 

22. No plano jurisprudencial, o Supremo Tribunal Administrativo tem reiteradamente afirmado que a rigidez do princípio da especialização dos exercícios tem de ser temperada com a invocação do princípio da justiça – nomeadamente, nas situações em que, estando já ultrapassados todos os prazos de revisão do ato tributário e não havendo prejuízo para o Estado, se deve evitar cair numa injustiça não justificada para o administrado –, o qual funcionará então como uma válvula de escape. Neste sentido, ficou lapidarmente consignado o seguinte no acórdão proferido em 19.11.2008, no processo n.º 0325/08[13]:

            O princípio da justiça é um princípio básico que deve enformar toda a actividade da Administração Tributária, como resulta do preceituado nos arts. 266.º, n.º 2, da CRP e 55.º da LGT.

Embora estes princípios constitucionais tenham um domínio primacial de aplicação no que concerne aos actos praticados no exercício de poderes discricionários, introduzindo neste exercício aspectos vinculados cuja não observância é susceptível de constituir vício de violação de lei, a sua relevância não se esgota nos actos praticados no exercício desses poderes discricionários.

Na verdade, por um lado, o texto do art. 266.º da CRP não deixa entrever qualquer restrição à sua aplicação a qualquer tipo de actividade administrativa, pelo que, em princípio, dever-se-á fazer tal aplicação, se não se demonstrar a sua inviabilidade.

Por outro lado, na aplicação da legalidade, tanto pela Administração como pelos tribunais, não pode ser encarada isoladamente cada norma que enquadra uma determinada actuação da Administração, antes terá de se atender à globalidade do sistema jurídico, com primazia para o direito constitucional, como impõe o princípio da unidade do sistema jurídico, que é o elemento primacial da interpretação jurídica (art. 9.º, n.º 1, do CC).

Não se pode afirmar, que, nos casos de exercício de poderes vinculados, a obediência a uma determinada lei ordinária se sobrepõe aos princípios constitucionais referidos, pois estes princípios fazem também parte do bloco normativo aplicável, eles são também definidores da legalidade e, como normas constitucionais, são de aplicação prioritária em relação ao direito ordinário. 

Tanto são normas legais a primeira parte do n.º 2 do art. 266.º da CRP, que impõe à Administração a observância do princípio da legalidade (…), como a sua segunda parte em que se prevêem os outros princípios e que generalizadamente impõem os modelos de actuação de toda a actividade administrativa, como também é uma norma legal a que, em determinada situação específica, prevê uma determinada actuação da Administração, designadamente, no caso em apreço, a aplicação do princípio da especialização dos exercícios (art. 18.º, n.º 1, do CIRC).

Por isso, para definir a legalidade a que a Administração está vinculada, terão de se ter em conta todas essas normas e fazer uma ponderação e escolha entre elas caso a sua aplicação global, abstractamente compatível, se demonstre inviável em determinada situação concreta.

Assim, (…), do referido art. 18.º, n.º 1, do CIRC resulta uma vinculação para a Administração, que, em regra, deve aplicar o princípio da especialização dos exercícios na sua actividade de controle das declarações apresentadas pelos contribuintes.

Mas, o exercício deste poder de controle, predominantemente vinculado, pode conduzir a uma situação flagrantemente injusta e, nessas situações, é de fazer operar o princípio da justiça, consagrado nos arts. 266.º, n.º 2, da CRP e 55.º da LGT, para obstar a que se concretize essa situação de injustiça repudiada pela Constituição.

Na ponderação dos valores em causa (por um lado o princípio da especialização dos exercícios que é uma regra legislativamente arbitrária de separação temporal, para efeitos fiscais, de um facto tributário de duração prolongada e, por outro lado, o princípio da justiça, que reflecte uma das preocupações nucleares de um Estado de Direito), é manifesto que, numa situação de incompatibilidade se deve dar prevalência a este último princípio.”

Neste mesmo sentido, pronunciou-se por diversas vezes o Tribunal Central Administrativo Sul, sendo disso exemplo os seguintes arestos:

·      {C}{C}Acórdão proferido em 28.03.2007, no processo n.º 01551/06, assim sumariado:

“I - O princípio da especialização ou autonomia dos exercícios impõe que os proveitos e os custos economicamente imputáveis a um determinado exercício, sejam considerados apenas nesse exercício, só eles podendo, assim, influenciar o seu resultado. 

II - Tal princípio sofre as excepções, previstas na lei, quais sejam: nos casos em que haja imprevisibilidade ou manifesto desconhecimento das componentes positivas ou negativas e das obras de carácter plurianual (artigos 18.º, n.ºs 2 e 5 e 19.º do CIRC); nas situações em que a administração fiscal não teve qualquer prejuízo com o erro praticado pelo contribuinte e quando esse erro não resultar de omissões voluntárias ou intencionais, com vista a operar as transferências de resultados entre exercícios.”    

·      {C}{C}Acórdão proferido em 03.03.2016, no processo n.º 04403/10, assim sumariado:

I. O princípio da especialização ou autonomia dos exercícios, tendo em vista a tributação do rendimento que se gera em cada um. Este princípio, consagrado no POC sob a designação de princípio de efectivação dos encargos, impõe que os proveitos e os custos economicamente imputáveis a um determinado exercício, sejam considerados apenas nesse exercício, só eles podendo, assim, influenciar o seu resultado. 

II. Este princípio da especialização dos exercícios surge como corolário do princípio da anualidade dos tributos, sendo ele o garante da tributação real, se tivermos em vista que com a imposição do tributo em causa se visa agravar apenas o fluxo de rendimento gerado num determinado período de tempo: razão pela qual apenas a esse período se deverão imputar os custos nele efectivamente suportados. 

III. Todavia, a lei admite (por força de um outro princípio – o da solidariedade dos exercícios) excepções ao princípio em questão, dispondo que os custos fiscalmente relevantes e os proveitos respeitantes a exercícios anteriores possam ser imputados ao exercício em causa quando, na data do encerramento das contas daquele a que deveriam ser imputados, eram imprevisíveis ou manifestamente desconhecidos.”

Na jurisprudência tributária do CAAD também constatamos o mesmo sentido decisório em múltiplas decisões arbitrais, sendo disso exemplo as proferidas em 24.11.2014, no processo n.º 367/2014-T, em 22.01.2016, no processo n.º 262/2015-T, em 29.04.2016, no processo n.º 588/2015-T, em 15.12.2017, no processo n.º 244/2017-T e em 24.10.2017, no processo n.º 233/2017-T, respigando-se aqui o seguinte segmento desta última decisão arbitral:  

“(…) Questão da prevalência do princípio da justiça sobre o princípio da especialização dos exercícios

O princípio da justiça, invocado pela Requerente, é imposto à globalidade da actividade da Administração Tributária pelos artigos 266.º, n.º 2, da CRP e 55.º da LGT.

Da observância concomitante dos princípios da legalidade e da justiça conclui-se que o dever de a Administração Tributária aplicar o princípio da legalidade não se traduz numa mera subordinação formal às normas que especificamente regulam determinadas situações, abrangendo também o dever de a Administração Tributária ter em conta as consequências da sua actividade e abster-se da aplicação estrita de normas quando delas decorra um resultado manifestamente injusto.

A aplicação do princípio da justiça será de sobrepor ao princípio da especialização dos exercícios nos casos em que do incumprimento não tenha resultado prejuízo para o erário público e aquele não tenha sido concretizado intencionalmente com o objectivo de obter vantagens fiscais.

O Supremo Tribunal Administrativo tem adoptado este entendimento, tendo decidido, relativamente ao princípio da especialização dos exercícios, que «esse princípio deve tendencialmente conformar-se e ser interpretado de acordo com o princípio da justiça, com conformação constitucional e legal (artigos 266.º, n.º 2 da CRP e 55.º da LGT), (…), desde que não resulte de omissões voluntárias e intencionais, com vista a operar a transferência de resultados entre exercícios».

A própria Administração Tributária há muito reconheceu a necessidade de flexibilidade na aplicação do princípio da especialização dos exercícios, no Ofício-circular n.º C-1/84, de 8-6-84, publicado, com o respectivo parecer, em Ciência e Técnica Fiscal, n.ºs 307-309, páginas 781-791, em que se adoptou o seguinte entendimento, a propósito da questão paralela que se colocava no domínio da Contribuição Industrial:

“Sempre que em determinado exercício existam custos e proveitos de exercícios anteriores, o tratamento fiscal correspondente deverá obedecer às seguintes regras:

a) Não aceitação dos custos e dos proveitos resultantes de omissões voluntárias ou intencionais no exercício em que são contabilizados, considerando-se, em princípio, como tais as que forem praticados com intenções fiscais, designadamente, quando:

- está para expirar ou para se iniciar um prazo de isenção;

- o contribuinte tem interesse em reduzir os prejuízos em determinado exercício para retirar maior benefício do reporte dos prejuízos previsto no artigo 43.º do Código; 

- o contribuinte pretende reduzir o montante dos lucros tributáveis para aliviar a sua carga fiscal. 

b) Nos restantes casos, não deverão corrigir-se os custos e proveitos de exercícios anteriores.”

(…)

Nos casos em que o Supremo Tribunal Administrativo tem admitido que deva prevalecer o princípio da justiça sobre a legalidade estrita relativa ao princípio da especialização dos exercícios são situações em que da não observância desse princípio não advém qualquer prejuízo para o erário público, nomeadamente situações em que o sujeito passivo não obteve vantagens ou até foi prejudicado pelo erro que praticou na aplicação do princípio da especialização dos exercícios. Em situações desse tipo, não se pode justificar que seja infligida ao contribuinte uma maior oneração fiscal, em nome de um respeito fetichista e acrítico pela observância da legalidade e à margem de qualquer perspectiva de prossecução do interesse público, que é o dever primacial a observar pela Administração Pública, como decorre do n.º 1 do artigo 266.º da CRP.”

                          

23. Destarte, pese embora do artigo 18.º, n.º 1, do Código do IRC resultar uma vinculação para a AT no sentido de, em regra, dever aplicar o princípio da especialização dos exercícios na sua atividade de controle das declarações apresentadas pelos sujeitos passivos, não podemos escamotear o facto de que o exercício daquele poder de controle por parte da AT, predominantemente vinculado, pode conduzir a uma situação flagrantemente injusta e, nessas situações, é de fazer operar o princípio da justiça, consignado no artigo 266.º, n.º 2, da CRP e no artigo 55.º da LGT, para obstar a que se concretize essa situação de injustiça.

Como evidenciado pelas posições doutrinais e jurisprudenciais acima citadas, na ponderação dos valores em causa – por um lado, o princípio da periodização económica e, por outro lado, o princípio da justiça – é manifesto que, em caso de incompatibilidade, deve ser dada prevalência ao princípio da justiça nos casos em que não tenha resultado prejuízo para o erário público e se constate que não estamos perante comportamentos voluntários e intencionais, com o objetivo de obter vantagens fiscais.

No caso sub judice, atenta a fundamentação vertida no RIT que subjaz à correção em apreço (cf. facto provado n)), verificamos que, como afirma a Requerente, “em momento algum a AT coloca em causa a efetividade dos gastos ou a usa dedutibilidade nem tampouco suscita uma intencionalidade fraudulenta da Requerente, não tendo sido provado qualquer intenção de omitir custos ou de deferir ilegitimamente o seu pagamento”, sendo ainda que “a AT também não refere existir qualquer duplicação de gastos nem provou vir a existir qualquer prejuízo resultante do facto de a Requerente deduzir os gastos no exercício em causa”.

Com efeito, apesar de ser indubitável a inobservância do princípio da especialização dos exercícios, por parte da Requerente, relativamente aos aludidos gastos relativos aos exercícios de 2017 e 2018, é igualmente certo que a AT não alegou nem que a situação em apreço resultou de omissões voluntárias e intencionais com intuito fraudulento por parte da Requerente, nem a obtenção por esta de quaisquer vantagens, nem ainda que do inadimplemento de tal princípio tenha advindo qualquer prejuízo para o erário público. 

Assim sendo, estamos perante uma situação em que o exercício de um poder vinculado (correcção da matéria colectável em face de uma violação do princípio da especialização dos exercícios) conduz a uma situação flagrantemente injusta e em que, por isso, se coloca a questão de fazer operar o princípio da justiça, consagrado nos arts. 266.º, n.º 2, da CRP e 55.º da LGT, para obstar à possibilidade de efectuar a referida correcção.

Há, nesta situação, dois deveres a ponderar, ambos com cobertura legal: um é o de repor a verdade sobre a determinação da matéria colectável dos exercícios referidos, dando execução ao princípio da especialização, reposição essa que a administração fiscal deve efectuar mesmo que não lhe traga vantagem; outro é o de evitar que a actividade administrativa se traduza na criação de uma situação de injustiça.  

Entre esses dois valores, designadamente nos casos em que a administração fiscal não teve qualquer prejuízo com o erro praticado pelo contribuinte, deve optar-se por não efectuar a correcção, limitando aquele dever de correcção por força do princípio da justiça.”[14]

Nesta conformidade, a correção atinente a gastos relativos a exercícios anteriores padece de ilegalidade, por violação do princípio da justiça, consagrado no artigo 266.º, n.º 2, da CRP e no artigo 55.º da LGT.

Consequentemente, a liquidação adicional de IRC n.º 2023 ... padece de ilegalidade, na parte atinente a essa correção, o que implica a respetiva anulação, nessa mesma parte (cf. artigo 163.º, n.º 1, do CPA).

 

§4. Da (i)legalidade da correção referente à não aceitação do gasto referente à fatura n.º 016, de 23.04.2019, emitida por D...

24. A este propósito é pela Requerente alegado o seguinte que importa aqui destacar:

“A AT desconsidera a dedução de gastos incorridos pela Requerente utilizando, essencialmente, como fundamento para negar a dedução desses gastos o argumento de que não «se comprova o seu caráter de indispensabilidade, pelo que o mesmo não é gasto no ano de 2019 nos termos do n.º 1 do art. 23.º do CIRC».”

“Todavia, a argumentação aduzida para negar a dedutibilidade dos gastos suportados pela Requerente parece denotar que a AT não se apercebeu de que a redação do n.º 1 do artigo 23.º do Código do IRC foi alterada em 2014, por intermédio da Lei n.º 2/2014, de 16 de janeiro.”

“Pese embora a AT tenha, ulteriormente, em sede de Projeto de RIT, procurado “emendar” a sua posição, referindo que “[a]pesar de ao referido artigo ter sido retirada a alusão expressa ao critério de indispensabilidade, continua a ser necessário, para que os gastos possam ser aceites fiscalmente, que os mesmos cumpram o previsto no n.º 1 do artigo 23.º, ou seja, que se tratem de gastos potencialmente suscetíveis de contribuir para a obtenção de rendimento empresarial e para a realização do escopo societário”, o certo é que, como é evidente, não pode a AT, uma vez concluída a inspeção tributária e elaborado o RIT, vir a posteriori, em sede de reclamação graciosa, aperfeiçoar/corrigir o RIT!”

“…, a AT procura sustentar a tese de que não existe qualquer inconveniente no facto de a AT ter efetuado correções ao abrigo da redação anterior de uma norma que não era aplicável à data dos factos, com o fundamento de que ao abrigo da redação da norma aplicável à data dos factos essa correção também seria devida.”

“Assim, ao negar a dedutibilidade de gastos incorridos pela Requerente por não ter sido comprovado o caráter da sua indispensabilidade, a AT socorre-se de um critério que já não tem respaldo no elemento literal da redação do n.º 1 do artigo 23.º do Código do IRC aplicável à data dos factos e, nessa medida, o seu juízo decisório encontra-se irremediavelmente inquinado, enfermando, consequentemente, as correções produzidas nesta sede de ilegalidade, por violação da redação do n.º 1 do artigo 23.º do Código do IRC aplicável à data dos factos, …”      

 

25. A Requerida, por seu turno, alega essencialmente o seguinte a este respeito:

“… a fatura refere-se à aquisição de material de golfe, incluindo roupa, nomeadamente “Polo”, “Luva”, entre outros (…).”

“Aquisição que, manifestamente, não se insere no âmbito de gastos suportados para obter rendimentos sujeitos a IRC, conforme prevê o artigo 23.º, n.º 1 do CIRC.”

“Com efeito, apesar de a redação atual ser menos restritiva, admitindo gastos não “indispensáveis”, certo é que têm de ter uma conexão mínima com a atividade desenvolvida pela pessoa coletiva sujeita a IRC.”

“Ora, a aquisição de material de golfe e de roupa não tem qualquer conexão com o objeto social de comércio a retalho de produtos farmacêuticos!”   

“E em nenhum momento a Requerente ofereceu uma justificação para tal aquisição e a putativa conexão com a atividade por si desenvolvida.”

 

Cumpre apreciar e decidir.

 

26. A análise jurídico-tributária da correção em apreço impõe que nos detenhamos na norma do n.º 1 do artigo 23.º do Código do IRC.

Antes da Reforma do Código do IRC de 2014, operada pela Lei n.º 2/2014, de 16 de janeiro, o n.º 1 do respetivo artigo 23.º tinha a seguinte redação (na parte aqui a considerar):

“1. Consideram-se gastos os que comprovadamente sejam indispensáveis para a realização dos rendimentos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora, nomeadamente: (…)”   

Na redação vigente à data dos factos, tal como agora, o n.º 1 do artigo 23.º do Código do IRC estatui o seguinte:

“1. Para a determinação do lucro tributável, são dedutíveis todos os gastos e perdas incorridos ou suportados pelo sujeito passivo para obter ou garantir os rendimentos sujeitos a IRC.” 

Como salienta Gustavo Lopes Courinha[15][n]a Reforma de 2014 foi eliminada a referência, então existente no artigo 23.º/1, a “indispensáveis para a realização dos rendimentos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora” em favor de uma redação ampla que, além de eliminar a consideração de indispensabilidade (…), abrangia quaisquer “…gastos relacionados com a atividade do sujeito passivo”. Naturalmente, encontravam-se ali incluídos quer os gastos para obter rendimentos quer os gastos para a manutenção da fonte produtora.”

Ainda segundo o mesmo autor, [o] critério hoje relevante na lei é, portanto, o da exigência de uma relação entre o gasto e a atividade societária, como precisamente já sugeria a quase totalidade da jurisprudência fiscal que interpretava o termo indispensabilidade. (…)

Visa-se, em qualquer caso, eliminar os juízos de mérito quanto à atividade social que o conceito de indispensabilidade continuava a legitimar. (…)

Assim, a generalidade dos gastos, ainda que não obrigatórios, excessivos, desrazoáveis e improdutivas podem ser fiscalmente aceites, desde que motivados pela prossecução do fim empresarial.

Tratam-se das business related expenses, ou despesas enquadradas (e assim justificadas) por um motivo empresarial, o que traduz de certo modo a transposição da doutrina do business purpose test, comum noutras paragens e que, em larguíssima medida, a jurisprudência já vinha (mesmo inconscientemente) adotando.”[16]   

 

27. Temos, pois, que o n.º 1 do artigo 23.º do Código do IRC, na versão em vigor à data dos factos, se rege pela redação resultante da Lei n.º 2/2014, de 16 de janeiro, a qual é distinta da versão anteriormente vigente, tendo designadamente sido eliminado o requisito da indispensabilidade.

Acontece que, a correção em apreço está nuclearmente sustentada na seguinte fundamentação aduzida no RIT (cf. facto provado n)): 

“Aquela fatura refere-se à aquisição de material de golf incluindo roupa nomeadamente “Polo”, “Luva”, entre outros. Estes bens não se referem a despesas de representação nem se comprova o seu caráter de indispensabilidade, pelo que o mesmo não é gasto no ano de 2019, nos termos do n.º 1 do art. 23.º do CIRC.”  (sublinhado nosso)

Posteriormente, na decisão da reclamação graciosa instaurada pela Requerente contra os atos tributários mencionados no facto provado o) (cf. facto provado p)), a AT adotou a seguinte fundamentação para sustentar a manutenção da correção em apreço (cf. facto provado q)):

“Conforme determina o n.º 1 do artigo 23.º do CIRC, são dedutíveis todos os gastos e perdas, desde que estes tenham sido realizados com vista a obtenção dos rendimentos que são sujeitos a IRC. Como tal, todos os gastos incorridos e suportados que não obedeçam a este princípio não são considerados fiscalmente.

Apesar de ao referido artigo ter sido retirada a alusão expressa ao critério de indispensabilidade, continua a ser necessário, para que os gastos possam ser aceites fiscalmente, que os mesmos cumpram o previsto no n.º 1 do artigo 23.º, ou seja, que se tratem de gastos potencialmente suscetíveis de contribuir para a obtenção de rendimento empresarial e para a realização do escopo societário.

Esta condição não se verifica no caso em apreço, porquanto não se comprova que estes gastos cumpram a condição essencial de serem realizados com vista à obtenção de rendimentos, pois claramente não têm a potencialidade de gerar um incremento dos rendimentos.

Cumpre reconhecer que o RIT descreve a factualidade e os fundamentos legais que levaram à conclusão de que os gastos em causa não cumprem com os requisitos necessários para serem considerados gastos fiscais, já que não são necessários à obtenção de rendimentos.”     

Confrontando tais segmentos do RIT e da decisão da reclamação graciosa, afigura-se que, nesta última, a AT adotou uma diferente fundamentação – concretamente quanto ao requisito da indispensabilidade dos gastos – para sustentar a manutenção da correção em apreço, ou seja, para justificar a desconsideração do gasto referente à fatura n.º 016 de 2019/04/23, emitida por D... (cf. factos provados f) e g)).

Constitui jurisprudência assente e uniforme dos tribunais superiores[17] que a AT não pode efetuar qualquer fundamentação a posteriori, sendo que, no contencioso de mera legalidade, o tribunal tem de conter-se na formulação de um juízo sobre a legalidade do ato sindicado em face da fundamentação contextual integrante do próprio ato, estando impedido de valorar razões de facto e de direito que não constam dessa fundamentação, quer estas sejam por ele eleitas, quer sejam invocados a posteriori. Pelo que não pode a AT pretender que se aprecie a legalidade da correção em apreço à luz de outros fundamentos que não aqueles que constam da declaração fundamentadora que oportunamente externou no âmbito do RIT.

Nesta conformidade, uma vez que a fundamentação vertida no RIT está estribada na redação do n.º 1 do artigo 23.º do Código do IRC vigente antes da Reforma do Código do IRC de 2014 e que, portanto, à data dos factos, havia sido já alterada por aquela que é a redação atualmente em vigor, a correção atinente à não aceitação do gasto referente à fatura n.º 016, de 23.04.2019, emitida por D..., padece de ilegalidade, por violação do disposto no artigo 23.º, n.º 1, do Código do IRC.  

Consequentemente, a liquidação adicional de IRC n.º 2023 ... padece de ilegalidade, na parte atinente a essa correção, o que implica a respetiva anulação, nessa mesma parte (cf. artigo 163.º, n.º 1, do CPA).

 

§5. Da (i)legalidade da correção referente à não aceitação de um gasto referente à subtração e apropriação de valores de caixa

28. Neste conspecto, a Requerente aduz, nuclearmente, a seguinte argumentação:

“A AT entende, …, que a subtração e apropriação de valores de caixa de que a Requerente foi alvo não consubstancia uma perda decorrente da sua atividade normal nem contribui para obter ou garantir os rendimentos sujeitos a IRC, não aceitando, por isso, a sua dedução.”

“… para se aferir da dedutibilidade da perda por furto em questão deverá avaliar-se se a mesma ocorreu no âmbito e por força da atividade empresarial da Requerente.”

“…, à luz da jurisprudência assente e consolidada existente sobre esta matéria, não pode senão concluir-se que a perda por furto sofrida pela Requerente se considera imputável à atividade económica por si prosseguida e, nessa medida, deverá ser admitida a sua dedução.”

“Esta é, aliás, a única solução consentânea com o princípio da justiça, não sendo concebível numa situação como a da Requerente em que não se contesta a genuinidade da perda por furto nem o seu montante, em que tal perda por furto se encontra devidamente comprovada na queixa-crime apresentada penalizar-se fiscalmente o contribuinte que se viu privado de valores que lhe foram ilicitamente subtraídos.”

“Sendo de refutar veementemente o alegado pela AT quando propugna que “pelo que foi relatado pelo sujeito passivo e mencionado na queixa-crime apresentada no DCIAP, resultam indícios fortes de deficiências de controlo interno, no que respeita a procedimentos com vista à proteção dos ativos em causa”.”

“…, para além de não serem reconhecidas à AT especiais competências ou atribuições legais para apreciar os sistemas de controlo interno dos contribuintes, se o controlo interno da Requerente fosse fortemente deficiente, como alega a AT, como é que se explicaria o facto de a Requerente ter detetado que uma pessoa em quem depositava grande confiança, lhe subtraiu valores de caixa?”

“…, alega ainda a AT que “[s]em prescindir, a respetiva queixa foi apresentada em 2018/03/07 referindo-se a factos anteriores àquela data, cujo gasto, se aceite fiscalmente, o que não se admite, não seria gasto no ano de 2019, nos termos do nº 2 art.º 18 do CIRC.”

“Ora, (…), os princípios da justiça e da capacidade contributiva sempre deverão prevalecer sobre o princípio da especialização dos exercícios.”

“… a correção empreendida pela AT nesta matéria padece de ilegalidade, por violação do n.º 1 do artigo 23.º do Código do IRC, devendo ser anulada.”  

 

29. Sobre esta questão, a Requerida propugna, essencialmente, o seguinte:

“…, tais perdas não foram sofridas em atividades para obter os rendimentos sujeitos a IRC, conforme prevê o artigo 23.º, n.º 1 do CIRC.”

“Com efeitos, as perdas sofridas resultam de alegados furtos sucessivos por parte de um trabalhador da Requerente.”

“Factos que foram objeto de queixa-crime e que dizem respeito a uma alegada apropriação indevida de valores monetários em diferentes datas nos anos de 2015, 2016 e 2017.”

“Não se pode, contudo, esperar que a AT aceite como provados, crimes relativamente aos quais não foi proferida decisão judicial transitada em julgado favorável à Requerente.”

“Mas mesmo assumindo que a Requerente lograria vencimento total no processo-crime em apreço, os factos reportam-se a alegados furtos ocorridos nos anos de 2015, 2016 e 2017.”

“E o processo-crime deu entrada no ano de 2018!”

- “Fazendo novamente apelo ao princípio da periodização económica resulta claro que as alegadas perdas sofridas deviam ter sido declaradas à data do conhecimento dos factos.”

“E não imputadas a período posterior, como aconteceu.” 

 

Cumpre apreciar a decidir.

 

30. Resulta do discurso fundamentador alinhado pela AT, no RIT, para sustentar a correção em apreço (cf. facto provado n)), que a AT não questiona a ocorrência das perdas por furto em questão, apenas tendo desconsiderado as mesmas por, nuclearmente, entender que “as perdas que resultem de furtos não podem ser consideradas como decorrentes da atividade normal desenvolvida pelos sujeitos passivos, nem que contribuam para obter ou garantir rendimentos sujeitos a IRC, não podendo, por isso, aceitar-se para efeitos fiscais a sua dedutibilidade” e que “a respetiva queixa foi apresentada em 2018/03/07 referindo-se a factos anteriores àquela data, cujo gasto, se aceite fiscalmente, o que não se admite, não seria gasto no ano de 2019, nos termos do art.º 18 do CIRC”.    

 

31. Como bem afirma a Requerente, “para se aferir da dedutibilidade da perda por furto em questão deverá avaliar-se se a mesma ocorreu no âmbito e por força da atividade empresarial da Requerente”; ora, atenta a factualidade que resultou provada a este propósito (cf. factos provados h), i) e j)), não se nos suscita qualquer dúvida de que tal assim foi, sendo certo que “qualquer actividade implica perdas por deficiente utilização ou descuido, e qualquer actividade que implique o livre acesso do público está sujeita a danos e furtos. Essas perdas são intrínsecas à actividade económica e irremovíveis e sempre teriam de encontrar cobertura no sistema de contabilidade e no sistema fiscal.” (decisão arbitral proferida no processo n.º 262/2019-T). 

Em sentido idêntico, pronunciou-se o Tribunal Central Administrativo Sul, entre outros, nos seguintes arestos[18]:

·      {C}{C}Acórdão proferido em 05.07.2020, no processo n.º 101/06.1BESNT, do qual decorre o seguinte:  

“Neste particular, importa chamar à colação o entendimento de VÍTOR FAVEIRO, o qual doutrina, de forma expressa, que “a Administração Tributária vem seguindo o critério geral de não aceitar, como custos ou perdas, o roubo ou o extravio de mercadorias, e, portanto, o seu abatimento ao inventário das existências. Trata-se, porém, de um entendimento manifestamente errado, enquanto critério geral uniforme, porquanto se a existência de mercadorias é havida como um valor positivo porque se destinam à realização de operações de afluxo de valores positivos ao rédito da empresa, a perda material de tais unidades, seja a que título for, e desde que comprovada em termos razoáveis, não pode deixar de ser havida como realidade que «foi indispensável suportar para a realização dos proveitos ou para a manutenção da fonte produtora” (sublinhado nosso).

Doutrina o mesmo autor, avançando com o seguinte exemplo: “O assalto a um estabelecimento em que, além do arrombamento de portas, janelas ou cofres, logo se constata e verifica o roubo de determinadas mercadorias é um evento negativo integrado no exercício da actividade, devendo, por isso, ser levado à conta de resultados os abatimentos ao inventário do «stock» de momento e adrede elabora, bem como as despesas de reparação dos bens danificados. O mesmo deverá suceder com os desvios de mercadorias em trânsito, quer por acidente quer por furto de viaturas ou seu arrombamento razoavelmente comprovado”. 

Dir-se-á, portanto, que o valor do furto de dinheiro ou de mercadorias constitui custo ou perda imputável ao exercício respetivo, sendo que o desaparecimento de mercadorias originado por causas exógenas aÌ atividade da empresa, e inserindo-se no seu escopo societário, deve ser havido como custo subsumível no artigo 23.º do CIRC.”

·      {C}{C}Acórdão proferido em 24.06.2021, no processo n.º 2263/17.7BELSB, no qual se sumariou o seguinte:

“III. As diferenças negativas de caixa (derivadas das situações de furtos e/ou enganos nos trocos incorridos pelos funcionários da recorrida) constituem custos fiscais porque provenientes do desenvolvimento da actividade da empresa.”  

Consideramos, deste modo, que as aludidas perdas por furto suportadas pela Requerente no âmbito da atividade económica por si prosseguida, têm cabimento na norma do n.º 1 do artigo 23.º do Código do IRC, devendo, por isso, ser fiscalmente aceite a sua dedutibilidade.

Por outro lado, quanto ao argumento aduzido pela AT no sentido de recusar essa dedutibilidade no exercício de 2019, por violação do princípio da especialização dos exercícios, consagrado no artigo 18.º do Código do IRC, também aqui a AT não alegou nem que a situação em apreço resultou de omissões voluntárias e intencionais com intuito fraudulento por parte da Requerente, nem a obtenção por esta de quaisquer vantagens, nem ainda que do inadimplemento de tal princípio tenha advindo qualquer prejuízo para o erário público. Por isso, dando aqui por inteiramente reproduzido o que acima se deixou dito a propósito do princípio da especialização dos exercícios, deve aqui prevalecer o princípio da justiça, consagrado no artigo 206.º, n.º 2, da CRP e no artigo 55.º da LGT e, nessa medida, deve ser aceite a dedutibilidade de tais perdas no exercício de 2019.  

Nesta conformidade, a correção atinente à não aceitação do gasto referente à subtração e apropriação de valores de caixa padece de ilegalidade, por violação do disposto no n.º 1 do artigo 23.º do Código do IRC e por violação do princípio da justiça, consagrado no artigo 266.º, n.º 2, da CRP e no artigo 55.º da LGT.

Consequentemente, a liquidação adicional de IRC n.º 2023 ... padece de ilegalidade, na parte atinente a essa correção, o que implica a respetiva anulação, nessa mesma parte (cf. artigo 163.º, n.º 1, do CPA).

 

§6. Da (i)legalidade da correção referente à sujeição a retenção na fonte de IRS relativamente a alegados adiantamentos por conta de lucros

24. Relativamente a esta correção, a Requerente sustenta, nuclearmente, a seguinte posição:

“… só nos casos expressamente previstos no n.º 4 do artigo 6.º do Código do IRS podem ser presumidos os rendimentos ali referidos, i.e. a presunção de adiantamentos por conta dos lucros só pode operar se se demonstrar, por um lado, a existência de lançamentos em quaisquer contas corrente dos sócios a favor destes e, por outro lado, que tais lançamentos não resultam de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais.”

“Feita a demonstração daqueles requisitos, opera, então, a presunção legal consignada no n.º 4 do artigo 6.º do Código do IRS, cabendo, depois, ao contribuinte ilidir tal presunção mediante prova em contrário.”

“Não é, contudo, esta a realidade que se verifica in casu.”

“…, na situação vertente, temos que a AT considera, a partir dos registos a débito na conta “2781210002 – Outros devedores e credores-corrente – mercado nacional –E...” que existe uma saída de fundos a favor da gerente da Requerente e que tal saída de fundos se deverá presumir como tendo sido efetuada a título de adiantamento dos lucros nos termos e para os efeitos do n.º 4 do artigo 6.º do Código do IRS.”

“Dispensando-se, inclusivamente, de demonstrar que tais lançamentos não resultam de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais.”

“…, antes sequer de demonstrar cabalmente que os requisitos de que depende o funcionamento da presunção legal consagrada no n.º 4 do artigo 6.º do Código do IRS estão plenamente verificados, o que não logrou de modo algum fazer, a AT fez impender sobre a Requerente o ónus de ilidir tal presunção, o que frontalmente se repudia, por violar grosseiramente o disposto n.º 4 do artigo 6.º do Código do IRS e, bem assim, as regras de repartição do ónus da prova previstas no n.º 1 do artigo 74.º da LGT.” 

 

25. Por seu turno, a Requerida entende, essencialmente, o seguinte a este respeito:

“Conforme resulta do relatório de inspeção, na data de 10/05/2023 a Requerente foi notificada para justificar/esclarecer a que título foram efetuados aqueles movimentos, dando-lhe a possibilidade de juntar documentos comprovativos (…).”

“Requerente que não respondeu à referida notificação, o que implica a presunção de adiantamento dos lucros, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 4 do CIRC.”

“…, nem na reclamação graciosa nem agora no pedido de pronúncia arbitral a Requerente logrou provar documentalmente que a natureza das transferências detetadas pela AT, têm outra natureza que não adiantamento dos lucros.”

“…, após análise da conta “2781210002 – Outros devedores e credores – Corrente – Outros credores – Corrente – Outros credores – Corrente – Mercado Nacional –E...”, verificou-se diversos registos a débito e crédito na mesma (…).”

“Os valores registados a crédito daquela conta foram efetuados por contrapartida (a débito) da conta “2311 – Pessoal – Remunerações a pagar – Aos órgãos sociais”, e referem-se ao valor de remunerações da referida sócia.”

No que se refere aos valores registados a débito, foram efetuados por contrapartida (a crédito) da conta “12 Bancos”, que da sua análise verificou tratar-se de transferência efetiva daqueles valores monetários a favor da referida sócia E..., com o NIF... .”

“…, estão reunidas as condições para se presumir o adiantamento dos lucros, uma vez que houve uma transferência efetiva para a referida sócia (…).”

“É irrelevante, no que ao caso dos autos em apreço concerne, se o lançamento contabilístico foi efetuado na conta-corrente da sócia.”

“Outro entendimento seria contrário ao espírito da norma 6.º, n.º 4 do CIRS, a qual visa evitar situações de evasão fiscal, …”

 

Cumpre apreciar e decidir.

 

26. A correção em apreço está, nuclearmente, fundamentada pela AT, no RIT, nos termos seguintes: “…a saída de fundos da Farmácia A... no valor de € 50 229,81 (€ 60.000,00 - € 10.655,59) a favor da sócia gerente, é um facto tributário qualificado como adiantamento por conta de lucros, ou seja, rendimentos da categoria E, nos termos da alínea h) do nº 2 do artigo 5º do CIRS, sujeitos a IRS, por retenção na fonte a uma taxa liberatória de 28%, nos termos do n.º 1 do artigo 71.º do Código do IRS. Assim a Farmácia A... deveria ter procedido à retenção do referido imposto, nos termos do n.º 2 do art.º 101 do CIRS, o qual deveriam ser entregues nos termos do n.º 3 do art.º 98 do CIRS.” (cf. facto provado n))

 

27. O artigo 5.º, n.º 1, do Código do IRS, epigrafado “Rendimentos da categoria E”, estatui que se consideram “rendimentos de capitais os frutos e demais vantagens económicas, qualquer que seja a sua natureza ou denominação, sejam pecuniários ou em espécie, procedentes, direta ou indiretamente, de elementos patrimoniais, bens, direitos ou situações jurídicas, de natureza mobiliária, bem como da respetiva modificação, transmissão ou cessação, com exceção dos ganhos e outros rendimentos tributados noutras categorias.”

O n.º 2 do mesmo artigo determina que os “frutos e vantagens económicas referidos no número anterior compreendem, designadamente”, entre outros, os “lucros e reservas colocados à disposição dos associados dos associados ou titulares e adiantamentos por conta de lucros, com exclusão daqueles a que se refere o artigo 20.º” (alínea h)).    

            O subsequente artigo 6.º, estatuindo sobre presunções relativas a rendimentos da categoria E, estabelece o seguinte no seu n.º 4: “Os lançamentos a seu favor, em quaisquer contas correntes dos sócios, escrituradas nas sociedades comerciais ou civis sob forma comercial, quando não resultem de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais, presumem-se feitos a título de lucros ou adiantamento dos lucros.”

            O n.º 5 do mesmo artigo 6.º determina que as “presunções estabelecidas no presente artigo podem ser ilididas com base em decisão judicial, ato administrativo, declaração do Banco de Portugal ou reconhecimento pela Autoridade Tributária e Aduaneira.”

Com relevo para a situação sub judice, importa ainda convocar o artigo 71.º, n.º 1, alínea a), do Código do IRS, norma da qual decorre que “Estão sujeitos a retenção na fonte a título definitivo, à taxa liberatória de 28%: a) Os rendimentos de capitais obtidos em território português, por residentes ou não residentes, pagos por ou através de entidades que aqui tenham sede, direção efetiva ou estabelecimento estável a que deva imputar-se o pagamento e que disponham ou devam dispor de contabilidade organizada;”.

Temos, assim, que o artigo 5.º, n.º 2, alínea h), do Código do IRS, estatui que os lucros, incluindo os adiantamentos por conta dos lucros, colocados à disposição dos respetivos associados, são rendimentos de capitais sujeitos a incidência de IRS, sendo por isso necessário que fique demonstrado que as entregas feitas aos sócios ocorreram por conexão com os lucros obtidos pela sociedade, para se preencher aquela estatuição legal.

Por seu turno, o artigo 6.º, n.º 4, do Código do IRS, consagra uma presunção relativa aos rendimentos de capitais, concretamente de que as quantias escrituradas em quaisquer contas de sócios de sociedades comerciais ou civis sob forma comercial, desde que não resultem de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais, presumem-se realizadas a título de lucros ou adiantamento dos lucros.

 

28. A propósito de tal presunção José Guilherme Xavier de Basto[19] afirma o seguinte:

“A previsão de presunções deriva da própria natureza dos rendimentos de capitais, alguns deles de relativamente fácil sonegação. Assim, em certos casos, a lei presume a existência desses rendimentos, (…).      

De qualquer modo, destinadas a prevenir fraudes, estas presunções, além de poderem ser ilididas, são um conjunto limitado, como é próprio de um imposto que visa a tributar o rendimento real e efectivo.

Estão restritas aos casos, muito contados, em que há risco de ocultação de rendimentos.

(…)

Finalmente, no n.º 4, presume-se que as quantias escrituradas em quaisquer contas de sócios de sociedades comerciais ou civis em forma comercial, que não resultem de mútuos, de prestação de trabalho ou de exercício de cargo social, correspondem a lucros ou adiantamentos por conta de lucros. (…) Com esta presunção, procede-se a uma qualificação supletiva de quantias, cuja causa não esteja expressa nas contas correntes em causa. (…) O que a lei, com aquela presunção, quis resolver foi a qualificação das quantias escrituradas cuja “causa” jurídica não foi expressamente declarada.” 

Sobre a mesma temática, Rui Duarte Morais[20] diz o seguinte: 

“Visando facilitar o ónus da prova da existência do facto tributário por parte da administração, a lei estabelece, no art. 6.º, diversas presunções legais, quer quanto à existência do facto gerador de imposto (…), quer quanto à existência de rendimento (…), quer quanto ao montante do rendimento tributável (…).

Estas presunções são ilidíveis – de acordo com a regra geral constante do art. 73.º da LGT – nos termos do n.º 6 do art. 6.º.”

A propósito da mesma matéria, Paula Rosado Pereira[21] afirma que “o legislador fiscal considerou não ser possível abdicar da adoção de algumas presunções relativamente aos rendimentos de capitais. Entre as razões subjacentes ao recurso a tais presunções, conta-se a dificuldade sentida pela AT, face à natureza específica dos rendimentos desta categoria, em assegurar a eficiência da tributação. As presunções desempenham a função de facilitar a prova da AT relativamente à existência de certos rendimentos e à respetiva quantificação. (…)

Para que se verifique a ilisão da presunção, é necessário que, por qualquer das formas (…) referidas [no artigo 6.º, n.º 5, do Código do IRS], se provem factos, condições ou taxas de juro distintas dos que resultariam da aplicação da presunção.”

 

29. No plano jurisprudencial, são diversas as decisões proferidas sobre esta temática, sendo disso exemplo as seguintes:

            (i) Tribunal Constitucional

·      {C}{C}Acórdão n.º 452/2003, proferido em 14.10.2003, no processo n.º 273/03:

“(…) a presunção que se estabelece no n.º 4 do artigo 7.º do CIRS, na redacção anterior à Lei n.º 30-G/2000, não é uma presunção inilidível. A comprová-lo está o facto de o n.º 5 do mesmo artigo vir definir os meios pelos quais tal presunção poderá ser ilidida. E a circunstância de entre esses meios não estarem todos os “meios em Direito admissíveis” não converte a presunção numa presunção juris et de jure. Esta última é uma presunção que se estatui sem possibilidade de prova em contrário (cf. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, 4.ª ed., Coimbra, 1987, pp. 312-313; J. de Oliveira Ascensão, O Direito. Introdução e teoria geral, 6.ª ed., Coimbra, 1991, p. 526). Manifestamente, não é o que sucede no caso em apreço, em que a ilisão da presunção pode ser alcançada através de um amplo e diversificado conjunto de meios: decisão judicial, acto administrativo, declaração do Banco de Portugal, reconhecimento pela Direcção-Geral dos Impostos.  

De facto, este conjunto de meios probatórios à disposição do impugnante é suficientemente amplo para que se não possa falar numa restrição desproporcionada ou irrazoável de instrumentos de prova, susceptível de, na prática, converter uma presunção juris tantum numa presunção juris et de jure. Mais ainda (…), a garantia de acesso ao Direito e aos tribunais prevista no artigo 20.º da Constituição não contempla a possibilidade de utilização irrestrita de todos os meios de prova em qualquer processo judicial (no caso, num processo de impugnação da liquidação tributária), nem proíbe o legislador de restringir o uso de certos instrumentos probatórios, desde que tal restrição não se configure como desproporcionada ou irrazoável. Ora, (…) pode o impugnante dispor de uma decisão judicial (na qual o requerente pode utilizar todos os meios de prova em geral admissíveis), um acto administrativo, uma declaração do Banco de Portugal ou um reconhecimento pela Direcção-Geral dos Impostos, tudo meios probatórios idóneos para proceder à impugnação judicial de uma liquidação tributária. Finalmente, havendo a possibilidade de ilisão da presunção definida no nº 4 do artigo 7º do CIRS, não fica postergado o princípio constitucional da capacidade contributiva (…).”

(ii) Tribunal Central Administrativo Sul

·      {C}{C}Acórdão proferido em 04.06.2015, no processo n.º 07246/13:

1- Para que a presunção constante do n.º 4 do art. 7.º do CIRS (em vigor em 2000) possa funcionar é necessário que se mostre provada a base da presunção (…), sob pena de a mesma não poder operar e a causa ter de ser decidida contra a parte onerada com esse ónus da prova, ou seja, que a importância em causa tenha sido escriturada como lançamento na respectiva conta corrente do sócio e que não resultava de mútuo, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais.

2- Tal prova que cabe à Administração Fiscal.”

·      {C}{C}Acórdão proferido em 05.02.2015, no processo n.º 08216/14:

5. O art. 5.º, n.º 2, al. h), do C.I.R.S., sistematicamente inserido na categoria de incrementos patrimoniais (normas de incidência real), consagra como rendimentos de capitais sujeitos a incidência de I.R.S. os lucros, incluindo o adiantamento por conta de lucros, colocados à disposição dos respectivos associados. 

6. Por sua vez, o art. 7.º do C.I.R.S., define o momento da sujeição à tributação dos rendimentos de capitais, ou seja, define o momento em que o imposto se torna exigível.

7. O art. 6.º, n.º 4, do C.I.R.S., consagra uma presunção relativa a rendimentos de capitais, de que as quantias escrituradas em quaisquer contas de sócios de sociedades comerciais ou civis sob forma comercial, quantias essas que não resultem de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais, presumem-se feitos a título de lucros ou adiantamento dos lucros.

8. Não se encontram reunidos os factos índice que permitem à A. Fiscal fazer o enquadramento de valores contabilísticos como rendimentos da categoria E, colocados à disposição dos sócios, nos termos previstos no art. 5.º, n.ºs 1 e 2, al. h), do C.I.R.S., quando não se pode valer da presunção prevista no art. 6.º, n.º 4, do C.I.R.S.”

·      {C}{C}Acórdão proferido em 18.02.2016, no processo n.º 08760/15:

“5. O art. 5.º, n.º 2, al. h), do C.I.R.S., sistematicamente inserido na categoria de incrementos patrimoniais (normas de incidência real), consagra como rendimentos de capitais sujeitos a incidência de I.R.S. os lucros, incluindo o adiantamento por conta de lucros, colocados à disposição dos respectivos associados. 

6. O art. 6.º, n.º 4, do C.I.R.S., consagra uma presunção relativa a rendimentos de capitais, de que as quantias escrituradas em quaisquer contas de sócios de sociedades comerciais ou civis sob forma comercial, quantias essas que não resultem de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais, presumem-se feitos a título de lucros ou adiantamento dos lucros. Com esta presunção o legislador quis resolver a qualificação das quantias escrituradas nas contas correntes dos sócios, cuja "causa" jurídica não tenha sido expressamente declarada, assim conduzindo a que tais montantes tenham o tratamento dos lucros distribuídos. Estamos, portanto, perante presunção legal (estabelecida expressa e directamente na lei), sendo incidente sobre o facto gerador do imposto.

7. Estando em causa a pretensa ilisão de uma presunção legal relativa (iuris tantum), impendia sobre o impugnante e ora recorrente, o ónus de produzir prova do contrário (cfr. art. 350.º, n.º 2, do C.Civil), ou seja, de desenvolver actuação probatória dirigida contra o casuístico facto presumido, com o objectivo e de molde a convencer o julgador de que, não obstante a ocorrência do facto (lançamentos em contas correntes dos sócios, escrituradas em sociedades comerciais) que serve de base ao funcionamento da presunção invocada, o facto presumido não se verificou e/ou o direito presumido não existe. Acresce, tratando-se da presunção prevista no art. 6.º, n.º 4, do C.I.R.S., por força do disposto, de forma expressa, no n.º 5 do mesmo normativo, a necessidade incontornável de a mesma só poder ser ilidida pelos quatro meios de prova aí, taxativamente, previstos, decisão judicial, acto administrativo, declaração do Banco de Portugal ou reconhecimento pela Direcção-Geral dos Impostos, consagrando a lei procedimento probatório específico para o efeito no art. 64.º do C.P.P.T.”

·      {C}{C}Acórdão proferido em 19.01.2023, no processo n.º 702/10.3BELRA:

“I. A presunção constante do art.º 6.º, n.º 4, do CIRS só funciona quando estejamos perante lançamentos em quaisquer contas correntes dos sócios, nos termos ali previstos.

II. Não funcionando qualquer presunção, cabe à AT demonstrar que determinadas transferências bancárias ou valores titulados por cheques se configuram como rendimentos da categoria E de IRS.

III. A falta de demonstração, por parte da AT, do referido em II. reverte contra a mesma.”

(iii) Tribunal Central Administrativo Norte

·      {C}{C}Acórdão proferido em 07.07.2016, no processo n.º 00446/11.9BEBRG:

I - O artigo 5.º, n.º 2, alínea h), do CIRS, sistematicamente inserido na categoria de incrementos patrimoniais (normas de incidência real), consagra como rendimentos de capitais sujeitos a incidência de IRS os lucros, incluindo o adiantamento por conta de lucros, colocados à disposição dos respectivos associados.

II - O artigo 6.º, n.º 4, do CIRS consagra uma presunção relativa a rendimentos de capitais, de que as quantias escrituradas em quaisquer contas de sócios de sociedades comerciais ou civis sob forma comercial, quantias essas que não resultem de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais, presumem-se feitos a título de lucros ou adiantamento dos lucros.

III - Só os lançamentos feitos em conta de sócio (e que não se prove que respeitem a alegados mútuos) se presumem, face ao disposto no n.º 4 do artigo 6.º do CIRS, feitos a título de lucros ou adiantamento de lucros.

(…)

V - Competia à Administração Tributária fazer prova dos pressupostos do seu agir (cfr. artigo 74.º, n.º 1, da LGT), (…).”

·      {C}{C}Acórdão proferido em 29.04.2021, no processo n.º 00337/14.1BEPRT:

“I - O artigo 6.º, n.º 4, do CIRS consagra uma presunção relativa a rendimentos de capitais, de que as quantias escrituradas em quaisquer contas correntes de sócios de sociedades comerciais ou civis sob forma comercial, que não resultem de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais, presumem-se feitas a título de lucros ou adiantamento dos lucros.

II - Só os lançamentos feitos em conta corrente de sócios se presumem, face ao disposto no n.º 4 do artigo 6.º do CIRS, feitos a título de lucros ou adiantamento de lucros.

III – No domínio da vigência do POC, apenas se consideram contas correntes de sócios as inseridas na conta 25 e respetivas subcontas.”

            (iv) No âmbito da jurisprudência tributária do CAAD, também encontramos diversas decisões arbitrais sobre esta temática, sendo disso exemplo as proferidas nos processos n.ºs 130/2012-T, 131/2012-T, 165/2013-T, 395/2017-T, 409/2018-T e 961/2024-T.

 

30. Uma vez que o artigo 6.º, n.º 4, do Código do IRS consagra uma presunção, importa termos presente o artigo 349.º do Código Civil, do qual decorre que [p]resunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido”.

A este propósito, dizem Pires de Lima e Antunes Varela[22] que nas presunções “supõe-se a prova dum facto conhecido (base da presunção), do qual, depois, se infere o facto desconhecido.

As presunções podem ser legais, se estabelecidas pela lei, ou judiciais, simples ou de experiência, quando assentam no simples raciocínio de quem julga. Estas últimas inspiram-se nas máximas de experiência, nos juízos correntes de probabilidade, nos princípios da lógica ou nos próprios dados da intuição humana.”

A presunção estatuída no artigo 6.º, n.º 4, do Código do IRS é uma presunção legal – estabelecida expressa e diretamente na lei – e não uma presunção simples, apenas natural ou judicial, que tenha por base os dados da experiência comum.

Por isso, valem aqui as regras estatuídas no artigo 350.º do Código Civil, ou seja, [q]uem tem a seu favor a presunção legal escusa de provar o facto a que ela conduz” (n.º 1) e, nos casos em que a lei o permitir, as presunções legais podem “ser ilididas mediante prova em contrário” (n.º 2). 

 A presunção do artigo 6.º, n.º 4, do Código do IRS é uma presunção juris tantum pois, como resulta do n.º 5 do mesmo artigo, pode ser ilidida pelos meios aí previstos, mediante prova em contrário.

Destarte, no uso da presunção estabelecida no artigo 6.º, n.º 4, do Código do IRS, a AT fica dispensada de provar o facto a que ela conduz, isto é, que os lançamentos efetuados na conta corrente do sócio são feitos a título de lucros ou adiantamento de lucros; no entanto, para firmar esse “facto desconhecido” que é o adiantamento por conta de lucros, a AT tem de provar a base da presunção, isto é, tem que provar quer que ocorreu o lançamento em conta corrente do sócio, quer que o mesmo não resulta de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais.

 

31. Volvendo ao caso concreto, temos que a AT não logrou provar que o referido montante de € 50.229,81 foi objeto de lançamento em conta corrente da dita sócia-gerente da Requerente, pois, como resulta do probatório: no início do ano de 2019, a conta “2781210002 - Outros devedores e credores - Outros devedores e credores – Corrente – Outros credores – Corrente – Outros credores – corrente – mercado nacional – E...” apresentava um saldo nulo, mas ao longo do ano foram efetuados diversos registos a débito e crédito naquela conta, referentes à sócia-gerente da Requerente, E... (cf. facto provado k)); os valores registados a crédito da referida conta foram efetuados por contrapartida a débito da conta “2311 – Pessoal – Remunerações a pagar – Aos órgãos sociais” e referem-se aos valores das remunerações da mencionada sócia-gerente da Requerente (cf. facto provado l)); e, os valores registados a débito da referida conta foram efetuados por contrapartida a crédito da conta “12 – Bancos”, tratando-se de transferência efetiva daqueles valores monetários a favor da dita sócia-gerente da Requerente (cf. facto provado m)).

 Ora, no domínio da vigência do Sistema de Normalização Contabilística (SNC), aplicável aos aludidos registos contabilísticos, apenas se consideram contas correntes dos sócios a conta 26 – Acionistas/Sócios e as respetivas subcontas; com efeito, a conta 26 – Acionistas /sócios “regista todas as operações relativas às relações com os titulares de capital entendidos nessa qualidade”[23], sendo que a subconta 263 – Adiantamentos por conta de lucros [r]egista os adiantamentos efetuados aos acionistas / sócios por conta de lucros de um determinado período que estão ainda por atribuir”[24]. Destarte, somente os lançamentos efetuados nessas conta e subconta podem beneficiar da presunção legal decorrente do artigo 6.º, n.º 4, do Código do IRS; o que, atenta a factualidade provada, é manifesto que não se verifica no caso concreto.

Nesta conformidade, não tendo a AT provado um dos factos que consubstanciam a base da presunção prevista no artigo 6.º, n.º 4, do Código do IRS – lançamento do montante de € 50.229,81 a favor da dita sócia-gerente da Requerente em contas correntes dos sócios –, não podia estribar-se, como fez, nessa mesma presunção para concluir que “a saída de fundos da Farmácia A... no valor de € 50 229,81 (€ 60.000,00 - € 10.655,59) a favor da sócia gerente, é um facto tributário qualificado como adiantamento por conta de lucros”, uma vez que não demonstrou o preenchimento dos pressupostos necessários para fazer uso da mesma e, por isso, não podia alicerçar-se nela para determinar a correção em apreço.

Não sendo possível estribar-se naquela presunção, recaía então sobre a AT o ónus da prova de que o montante de € 50.229,81 foi colocado à disposição da dita sócia-gerente da Requerente a título de adiantamento por conta de lucros e que, por isso, constitui um rendimento de capital (cf. artigo 74.º, n.º 1, da LGT), o que é evidente que não fez, tendo-se limitado a concluir, sem mais, que aquele montante “é um facto tributário qualificado como adiantamento por conta de lucros”.

Deste modo, a correção atinente à sujeição a retenção na fonte de IRS relativamente a alegados adiantamentos por conta de lucros padece de ilegalidade, por violação do disposto nos artigos 5.º, n.ºs 1 e 2, alínea h) e 6.º, n.º 4, do Código do IRS.

Consequentemente, a liquidação de retenções na fonte de IRS n.º 2023... padece de ilegalidade, o que implica a respetiva anulação (cf. artigo 163.º, n.º 1, do CPA).

*

            32. Atenta a declaração de ilegalidade e a sequente anulação quer da liquidação adicional de IRC n.º 2023..., na parte referente às sobreditas correções, quer da liquidação de retenções na fonte de IRS n.º 2023..., inexiste fundamento para as liquidações de juros compensatórios respeitantes quer ao IRC resultante das sobreditas correções, quer às retenções na fonte de IRS, pois não se verificam aí os respetivos pressupostos legais previstos no artigo 35.º, n.º 1, da LGT, pelo que, naquelas exatas medidas, são as mesmas ilegais e devem ser anuladas (cf. artigo 163.º, n.º 1, do CPA).

            O ato de indeferimento da reclamação graciosa n.º ...2024..., na medida em que manteve integralmente os atos de liquidação adicional de IRC e de liquidação de retenções na fonte de IRS controvertidos, padece dos mesmos vícios invalidantes de que estes enfermam, o que tem por consequência a respetiva anulação (cf. artigo 163.º, n.º 1, do CPA).  

*

33. A finalizar, importa referir que foram conhecidas e apreciadas as questões relevantes submetidas à apreciação deste Tribunal Arbitral, não o tendo sido aquelas cuja decisão ficou prejudicada pela solução dada a outras ou cuja apreciação seria inútil (cf. artigos 130.º e 608.º, n.º 2, do CPC ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT). 

 

IV. Decisão

Nos termos expostos, este Tribunal Arbitral decide julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral e, consequentemente:

a)     {C}{C}Declarar ilegais e anular, na parte em que decorrem das sobreditas correções, a liquidação adicional de IRC n.º 2023..., referente ao ano de 2019, a liquidação de juros compensatórios n.º 2023... e a respetiva demonstração de acerto de contas n.º 2023..., com as legais consequências; 

b)    {C}{C}Declarar ilegal e anular a liquidação de retenções na fonte de IRS n.º 2023..., referente ao ano de 2019, e correspetivas liquidações de juros compensatórios, com as legais consequências;

c)     {C}{C}Declarar ilegal e anular o ato de indeferimento da reclamação graciosa n.º ...2024..., com as legais consequências; 

d)    {C}{C}Condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira no pagamento das custas processuais.

 

V. Valor do Processo

Atento o disposto no artigo 306.º, n.º 2, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT, no artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT e no artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, é fixado ao processo o valor de € 53.431,01 (cinquenta e três mil quatrocentos e trinta e um euros e um cêntimo).

 

VI. Custas

Nos termos do disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT e no artigo 4.º, n.º 4, e na Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, o montante das custas é fixado em € 2.142,00 (dois mil cento e quarenta e dois euros)cujo pagamento fica a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 16 de maio de 2025.

 

O Árbitro,

 

 

(Ricardo Rodrigues Pereira)

 

 



[1] Lei Geral Tributária, Anotada e Comentada, 4.ª Edição, Lisboa: Encontro da Escrita, 2012, p. 488.

[2] Lições de Procedimento e Processo Tributário, 8.ª Edição, Coimbra: Almedina, 2021, p. 140.

[3] Ibidem, p. 141. 

[4] Ibidem, pp. 141-142.

[5] Ibidem, p. 142.

[6] Manuel Henrique de Freitas Pereira, “A periodização do lucro tributável”, Ciência e Técnica Fiscal, 1988, n.º 349, pp. 77 e ss.

[7] António Rocha Mendes, IRC e as Reorganizações Empresariais, Lisboa: Universidade Católica Editora, 2016, p. 72.

[8] Tomás Cantista Tavares, “Especialidades Fiscais no Incumprimento da Especialização de Exercícios”, Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal, Ano 3, Número 4, Coimbra: Almedina, 2011, pp. 249 e 250.

[9] Manuel Henrique de Freitas Pereira, ob. cit., pp. 80-81.

[10] Tomás Cantista Tavares, IRC e contabilidade: da realização o justo valor, Coimbra: Almedina, 2011, p. 63.

[11] Rui Duarte Morais, Apontamentos ao IRC, Coimbra: Almedina, 2009, p. 64.

[12] Ibidem, pp. 63-66.

[13] No mesmo sentido, vide, entre outros, os acórdãos proferidos em 02.04.2008, no processo n.º 0807/07, em 25.06.2008, no processo n.º 0291/08, em 09.05.2012, no processo n.º 0269/12, em 02.03.2016, no processo n.º 01204/13 e em 14.03.2018, no processo n.º 0716/13.  

[14] Diogo Leite de Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, ob. cit., pp. 452-454.  

[15] Manual do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas, Coimbra: Almedina, 2019, p. 107.  

[16] Ob. cit., pp. 113-115.

[17] Ver, por todos, o acórdão do STA, proferido em 28.10.2020, no processo n.º 02887/13.8BEPRT.

[18] Ver, ainda, a título exemplificativo, os acórdãos do TCAS proferidos em 09.12.1998, no processo n.º 00400/97 e em 02.07.2002, no processo n.º 6540/02; no mesmo sentido, igualmente a título exemplificativo, o acórdão do STA proferido em 11.06.1997, no processo n.º 012610.

[19] IRS: Incidência Real e Determinação dos Rendimentos Líquidos, Coimbra: Coimbra Editora, 2007, pp. 338-340.

[20] Sobre o IRS, Coimbra: Almedina, 2006, p. 89.

[21] Manual de IRS, Coimbra: Almedina, 2018, pp. 113 e 144.

[22] Código Civil Anotado, Volume I, 4.ª edição revista e actualizada, Coimbra: Coimbra Editora, 1987, p. 312.

[23] António Ribeiro Gameiro, Nuno Moita da Costa e Liliana Marques Pimentel, Manual de Contabilidade para Juristas, Coimbra: Almedina, 2019, p. 241.

[24] Ibidem, p. 242.