Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 1404/2024-T
Data da decisão: 2025-04-17  IRC  
Valor do pedido: € 166.162,78
Tema: IRC. Rédito omitido da contabilidade atinente à transmissão de imóveis entregues no âmbito de contrato de promessa de compra e venda, Gastos fiscalmente não dedutíveis e Correção de depreciações contabilísticas anteriores ao início de utilização dos ativos. Juros compensatórios.
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SUMÁRIO

I. As correções em procedimento inspetivo feitas em observância do princípio da tributação pelo rendimento real, não colidem com o princípio da justiça.

II. Tendo havido transferência de riscos e vantagens sobre os imóveis entregues em observância dos requisitos da NCRF 20, § 14, devem ser contabilizados os correspondentes réditos e gastos, mesmo antes da formalização da escritura. Os gastos suportados pela Requerente depois da entrega, não são fiscalmente dedutíveis, nos termos do n.º 1 do artigo 23.º CIRC.

III. Devem ser expurgadas do resultado contabilístico as depreciações registadas antes do início de utilização dos ativos (neste caso, arrendamento), nos termos da NCRF 7, § 55.

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

            Os árbitros Conselheiro Jorge Lopes de Sousa (árbitro-presidente), Dr. Nuno Miguel Morujão e Dr.ª Rita Guerra Alves (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 05-03-2025, acordam no seguinte:

 

I- Relatório

 

1. A... S.A., com o NIPC..., adiante designada por “Requerente”, veio, ao abrigo da al. a) e b) do n.º 2 do artigo 10.º do decreto-lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (adiante apenas designado por RJAT), em conjugação com o artigo 99.º e com o n.º 1 do artigo 102.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”), requerer a constituição de tribunal arbitral, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante “AT” ou “Requerida”), com vista à pronúncia arbitral sobre pedido de declaração de ilegalidade e consequente anulação do ato de liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC) identificado sob o n.º 2024 ..., relativo ao período de tributação de 2022, bem como, da respetiva demonstração de acerto de contas, identificada sob o n.º 2024 ... e demonstração de liquidação de juros, num montante total de imposto e juros a pagar, de 166.162,78 € (cento e sessenta e seis mil cento e sessenta e dois euros e setenta e oito cêntimos).

 

2. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT, em 26-12-2024.

 

3. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico designou como árbitro do Tribunal Arbitral o signatário, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável. As partes foram notificadas da designação do árbitro em 12-02-2025, não tendo arguido qualquer impedimento.

 

4. O Tribunal Arbitral foi constituído em 05-03-2025, sendo que ainda nesse dia foi a Requerida notificada para apresentar a sua resposta e remeter cópia do processo administrativo, e, querendo, solicitar a produção de prova adicional.

 

5. Em 09-04-2025, a Requerida apresentou resposta e juntou aos autos o processo administrativo.

 

6. A Requerente sustenta o pedido que formula alegando, em síntese:

  1. No decorrer do ano 2023 e 2024, a Requerente foi sujeita a um Procedimento Inspetivo Externo, do qual, em síntese, se concluíram regularizações respeitantes a 2022: i) Réditos não reconhecidos; e Depreciações não aceites fiscalmente.
  2. Sustenta a AT que os réditos omitidos na contabilidade, serão devidos pela entrega de imóveis objeto de contrato de compra e venda aos promitentes compradores, ainda que sem formalização de escritura, entendendo, assim, ser de acrescer ao lucro tributável/prejuízo fiscal declarado do ano 2022, o montante de € 2.094.000,00, correspondente ao valor de transmissão acordado nos respetivos contratos de promessa de compra e venda.
  3. Porém, essa correção não é devida, em virtude da não imperatividade do n.º 1 e n.º 3, al. a) do artigo 18.º do CIRC, que não deve ser aplicado de forma cega, antes considerando o “princípio da justiça”, que permite encontrar o “ideal de equidade do caso concreto, que transcende o princípio da legalidade”, cf. artigo 55.º da LGT e 266.º n.º 2 CRP (cf. jurisprudência: processos n.º 606/2022-T e 582/2017-T do CAAD, e acórdãos da secção de Contencioso Tributário de 19/11/2008, recurso 325/08, de 2/4/2008, recurso 807/07, de 19/5/2010, recurso 214/07, de 25/6/2008, recurso 291/08, de 9/5/2012, recurso 269/12 e de 2/3/2016, recurso 1204/13, e acórdão do STA de 13 de outubro de 1996 (Processo n.º 20404), e acórdão do STA, de 197/11/2008, proc. nº 0325/08).
  4. Durante o ano de 2022, pretendendo-se que certos imóveis em carteira passassem a ser rentabilizados por via de arrendamento, foi transferido contabilisticamente, de "inventários" para "ativos fixos tangíveis", um conjunto de imóveis pela quanta de 1.246.081 €, correspondente a 6 frações autónomas. Por consequência, registaram-se gastos com depreciações dos referidos imóveis (18.691 €).
  5. Verificando-se que esses imóveis ainda não tinham começado, de facto, a ser utilizados para deles obter rendimento (ainda não tinha sido iniciada a sua utilização, ou funcionamento), a AT considerou que os gastos deviam ser acrescidos (cf. al. g) do n.º 2 do artigo 23.º e da al. b) do n.º 1 e n.º 4 do artigo 29.º, ambos do CIRC).
  6. Porém, quanto a este conceito de “funcionamento”, segundo a Norma Contabilística e de Relato Financeiro n.º 7 – Ativos Fixos Tangíveis, “a depreciação de um ativo começa quando este esteja disponível para uso, isto é, quando estiver na localização e condição necessárias para que seja capaz de operar na forma pretendida” (NCRF 7), cf. processo n.º 66/2016-T do CAAD.

 

7. A Requerida, Autoridade Tributária e Aduaneira (de ora em diante “Requerida” ou “AT”) ofereceu Resposta, acompanhada do Processo Administrativo, alegando, em síntese:

  1. Considerando o § 14 da NCRF 20, constata-se que se verificam os requisitos exigíveis para que deva ser reconhecido o rédito na contabilidade (§ 50 e ss):
  1. Os imóveis já haviam sido transmitidos e eram habitados pelos promitentes compradores, que portanto beneficiavam do uso dos mesmos, suportando os gastos necessários à sua utilização (água, gás, luz, etc.).
  2. Os réditos podem ser fiavelmente mensurados, cf. contratos de promessa de compra e venda.
  3. O contrato de promessa e o já referido permite concluir ser provável que venham a existir os benefícios económicos futuros.
  1. Em suma, houve transferência de riscos e vantagens sobre os imóveis, pelo que, deveriam ter sido contabilizados os réditos, mesmo antes da formalização da escritura (§ 77), cf. processo n.º 763/2016-T e processo nº 196/2024-T do CAAD.
  2. Relativamente aos imóveis que foram transferidos da carteira para comercialização para propriedades de investimento, verificou-se que no período em que foram registadas depreciações, os imóveis ainda não tinham começado, de facto, a ser utilizados para deles obter rendimento, pelo que os gastos devem ser acrescidos cf. al. g) do n.º 2 do artigo 23.º e da al. b) do n.º 1 e n.º 4 do artigo 29.º, ambos do CIRC.

 

8. Por Despacho Arbitral, de 14-04-2025, notificaram-se as partes da dispensa a realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, ao abrigo dos princípios da autonomia do Tribunal na condução do processo, e em ordem a promover a celeridade, simplificação e informalidade deste, cf. artigos 19.º, n.º 2 e 29.º, n.º 2 do RJAT.

 

II- Saneamento

 

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, sendo beneficiárias de legitimidade processual (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT e artigo 1.º da portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

A AT procedeu à designação dos seus representantes nos autos e o Requerente juntou procuração, encontrando-se, assim, as Partes devidamente representadas.

Em conformidade com o preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, 6.º, n.º 1 e 11.º, n.º 1, do RJAT (com a redação introduzida pelo artigo 228.º da lei nº 66-B/2012, de 31 de dezembro), o Tribunal é competente e encontra-se regularmente constituído.

O processo não enferma de nulidades.

Não foram suscitadas questões prévias.

Cumpre apreciar e decidir.

 

III - Fundamentação

 

III.1.1- Matéria de facto

Com relevo para a apreciação e decisão das questões suscitadas quanto ao mérito, dão-se como assentes e provados os seguintes factos:

  1. A Requerente é uma pessoa coletiva com o NIPC..., cuja atividade consiste na “Gestão de imóveis próprios e compra de imóveis para revenda e o arrendamento de bens imobiliários” – CAE’s 68100 – Compra e venda de bens imobiliários e 68200 – Arrendamento de bens imobiliários.
  2. No decorrer do ano 2023 e 2024, a Requerente foi sujeita a um Procedimento Inspetivo Externo, levada a cabo pela Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante “AT” ou “Requerida”), sob a ordem de serviço n.º OI2023..., incidindo sobre IRC, e sobre o ano de 2022, o qual teve a sua conclusão no passado dia 31/07/2024 (cf. Relatório Final de Inspeção, Doc. 4).
  3. No âmbito desse procedimento foram identificadas irregularidades referentes ao ano de 2022, em sede de IRC:
    1. Réditos/gastos contabilísticos omitidos (2.094.000,00 € - 1.190.062,10 €),
    2. Gastos com eletricidade não dedutíveis (4.043,17 €), e
    3. Depreciações contabilísticas não aceites fiscalmente (18.691,22 €).
  4. Resultando nas seguintes correções:
  1. Prejuízo fiscal declarado                                                -76.309,34 €
  2. Total das correções fiscais                                 +926.672, 29 €
  3. Lucro tributável corrigido                                           =850.362,95 €
  4. Dedução de prejuízos                                                      -89.387,83 €
  5. Matéria coletável corrigida                                         =760.975,12 €
  1. Tudo considerado, resultando na liquidação de IRC de 160.909,07 € (incluindo juros compensatórios de 7.272,97 € (cf. artigos 12.º e ss e artigos 31.º e ss do PPA, não contraditados, cf. Relatório Final de Inspeção, Doc. 4, pp. 46 e 47 e cf. Demonstração de liquidação de IRC, Documentos n.ºs 1, 2 e 3).
  2. No decorrer do ano 2022 a Requerente concluiu as obras de reabilitação do edifício Norton de Matos, procedendo à licenciação de 23 frações destinadas a habitação e, tendo em vias de conclusão, 3 frações destinadas a comércio e serviços, num total de 26 frações: 6 com destino ao arredamento – dessas, 3 destinadas ao comércio e 3 destinadas à habitação – e as restantes 20 frações com finalidade de venda (cf. artigo 14.º do PPA, não contraditado).
  3. Até janeiro de 2024, a propriedade horizontal deste empreendimento apresentava-se registada provisoriamente, por razões alheias ao sujeito passivo, facto que impediu a realização das diversas escrituras de venda de frações já sinalizadas e com contratos de promessa de compra e venda, bem como, a realização de contratos de arrendamento das frações a esse fim destinadas (cf. artigo 15.º do PPA, não contraditado).
  4. Por consequência, os prazos acordados nos contratos promessa de compra e venda foram ultrapassados, foi acordada a alteração dos prazos para a realização das escrituras, sendo que no ano de 2022 foram entregues pagamentos adicionais por parte dos promitentes compradores, por forma que os negócios não ficassem comprometidos (cf. artigo 16.º e 17.º do PPA, não contraditados).
  5. Na sequência do exposto, foram entregues aos promitentes compradores, em 2022, as seguintes frações (cf. artigo 18.º PPA, não contraditado):
    1. Fração 2A (Identificação matricial: ...-... -E);
    2. Fração 2B (Identificação matricial: ...-... -F);
    3. Fração 3A (Identificação matricial: ...-... -H);
    4. Fração 5B (Identificação matricial: ...-... -O);
    5. Fração 6B (Identificação matricial: ...-... -R);
    6. Fração 8A (Identificação matricial: ...-... -U);
    7. Fração 10A (Identificação matricial: ...-...-Z).
  6. O Relatório de Inspeção concluiu que as frações E (2º A), F (2º B), H (3º A), O (5º B), R (6º B), U (8º A) e Z (10º A) encontravam-se habitadas pelos promitentes compradores que passaram a usufruir do imóvel (suportando consumos de eletricidade e gás) tendo os promitentes compradores alterado o domicílio fiscal para aqueles imóveis, beneficiando do uso imediato dos imóveis (cf. artigos 50.º a 52.º do PPA não contraditados, e Relatório Final de Inspeção, Doc. 4, pp. 26 e ss).
  7. Os contratos de compra e venda a que se referem as frações autónomas acima mencionadas incluem informação relativa a: i) data do contrato, ii) promitente comprador, iii) sinal, iv) preço de compra, v) nome do comprador e vi) data prevista para a escritura (entre 2020 e 2022) (cf. Relatório Final de Inspeção, Doc. 4, pp. 27 e ss).
  8. Em 2022 a Requerente suportou gastos de eletricidade, gás e taxa audiovisual atinentes às frações autónomas entregues aos promitentes compradores, por 4.043,17 € (cf. Relatório Final de Inspeção, Doc. 4, pp. 48).
  9. No decorrer do ano 2022, ocorreu uma redução do inventário no valor global de € 1.246.081,07, com transferência a crédito das contas SNC 32-Mercadorias e 34-Produtos acabados e intermédios, para a conta SNC 4321-Ativos fixos tangíveis – edifícios e outras construções – continente, das frações B (fração r/c - comercio), C (fração r/c e 1º andar - serviços), D (fração 1º andar - comercio), E (fração 2A), M (fração 4C) e AA (fração 12A) do prédio urbano, da freguesia ... (... e ...), com artigo matricial n.º ... (anterior Artigo U-.. da freguesia do ...) a débito da conta SNC 4321-Ativos fixos tangíveis – edifícios e outras construções – continente (cf. artigo 31.º do PPA, não contraditado).
  10. A Requerente procedeu à transferência destas frações de inventários para ativos fixos tangíveis por as frações B, C e D terem como destino, desde o início, o mercado de arrendamento comercial e serviços, e as frações E, M e AA, terem, também, passado a ter como destino arrendamento para habitação (artigos 31.º e 33.º do PPA, não contraditados).
  11. Em resultado desta reclassificação de ativos, a aqui Requerente, registou na conta SNC 6422 - Ativos fixos tangíveis-Edifícios e outras construções, do ano de 2022, gastos com depreciações dos mesmos, num valor global de 18.691,22 €, relativamente às frações: U-...E, U-...-M, U-...-AA, U-...-B, U-...-C, e U-...-D, de acordo com o quadro que segue:

Descrição dos elementos do ativo

Valor de produção

Depreciações praticadas

taxa

valor

Habitacionais

 

 

 

2022.00017 – U-...-E

188.096,30 €

1,5%

2.821,44 €

2022.00017 – U-...-M

181.720,15 €

1,5%

2.725,80 €

2022.00017 – U – ...-AA

235.006,52 €

1,5%

3.525,10 €

Comerciais e administrativos

 

 

 

2022.00017 – U-...-B

235.461,96 €

1,5%

3.531,93 €

2022.00017 – U-...-C

79.246,39 €

1,5%

1.188,70 €

2022.00017 – U-...-D

326.549,75 €

1,5%

4.896,25 €

 

 

 

 

 

1.246.081,07 €

 

18.691,22 €

 

(cf. artigo 32.º do PPA, não contraditado e Relatório Final de Inspeção, Doc. 4, pp. 43-44)

  1. A fração E foi entregue ao promitente-comprador em 2022, tendo nele sido fixado o seu domicílio fiscal desde 02-06-2022 e 18-05-2023 (processo administrativo 2.ª parte página 14).
  2. Em 2022, a Requerente tinha obtido licença de utilização para as frações M e AA destinadas a arrendamento que se encontravam em fase de acabamentos (cf. artigos 35.º e 71.º do PPA, não contraditados, Relatório Final de Inspeção, Doc. 4, p. 46 e processo administrativo 2.ª parte página 14).
  3. Em 2022, a Requerente não tinha ainda obtido licença de utilização para as frações B, C e D, destinadas ao arrendamento comercial e administrativo, que se encontravam em fase de acabamentos, mas ainda não arrendadas (documento n.º 5, em que se refere apenas licenciamento de frações para habitação, e artigo 71.º do PPA).
  4. Por despacho de 07-03-2025, a Administração Tributária revogou parcialmente a liquidação de IRC impugnada bem como a correspondente liquidação de juros compensatórios, na parte relativa em que têm como pressuposto a desconsideração de depreciações no valor de € 6.250,90, respeitantes às frações M e AA (€ 2725,80 e € 3.525,10 respectivamente), que foram reconhecidas como gastos pela Requerente. passando o valor global das correcções relativas a depreciações a ser de €12 440,32, em vez de €18.691,22.

 

III.1.2- Factos não provados

Inexistem factos que se considerem não provados, com relevo para a boa decisão deste pleito, exceto o seguinte: não se demonstrou ter sido prestada garantia com hipoteca de imóveis em processo de execução fiscal atinente a esta liquidação.

 

III.1.3- Fundamentação da fixação da matéria de facto

Ao Tribunal incumbe o dever de selecionar os factos que interessam à decisão e discriminar a matéria que julga provada e declarar a que considera não provada, não tendo de se pronunciar sobre todos os elementos da matéria de facto alegados pelas partes, tal como decorre dos termos conjugados do artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e do artigo 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.

Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram assim selecionados e conformados em função da sua relevância jurídica, a qual é definida tendo em conta as várias soluções plausíveis das questões de direito para o objeto do litígio, tal como resulta do artigo 596.º, n.º 1 do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

Tendo em conta as posições assumidas pelas partes, o disposto nos artigos 110.º, n.º 7 e 115.º, n.º 1, ambos do CPPT, o PPA e a Resposta junto aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.

 

III.2- Matéria de Direito

 

III.2.1- Impugnação da liquidação de imposto, em sede de IRC

 

No decorrer do ano 2023 e 2024, a Requerente foi sujeita a um Procedimento Inspetivo Externo, do qual se concluíram regularizações respeitantes a 2022 e correspondente liquidação de IRC. A Requerente impugnou a liquidação de imposto, que compreende três tipos de correções:

 

  1. Réditos e gastos omitidos da contabilidade

 

Sustenta a AT que os réditos omitidos na contabilidade, serão devidos pela entrega e utilização de imóveis objeto de contrato de compra e venda aos promitentes compradores, ainda que sem formalização de escritura, entendendo, assim, ser de acrescer ao lucro tributável/prejuízo fiscal declarado do ano 2022, pela margem da transmissão dos seguintes imóveis, considerando os registos omitidos da contabilidade: rendimento e custo de alienação de imóveis: +2.094.000,00 €, e -1.190.062,10 €:

  1. Fração 2A (Identificação matricial: ...-U...-E);
  2. Fração 2B (Identificação matricial: ...-U...-F);
  3. Fração 3A (Identificação matricial: ...-U...-H);
  4. Fração 5B (Identificação matricial: ...-U...-O);
  5. Fração 6B (Identificação matricial: ...-U...-R);
  6. Fração 8A (Identificação matricial: ...-U...-U);
  7. Fração 10A (Identificação matricial: ...-U...-Z).

 

A Requerente reclama que a correção não é devida, em virtude da não imperatividade do n.º 1 e n.º 3, al. a) do artigo 18.º do CIRC, que não deve ser aplicado de forma cega, e que deve ceder perante o “princípio da justiça”, que na situação sub judice, permite encontrar o “ideal de equidade do caso concreto, que transcende o princípio da legalidade”, cf. artigo 55.º da LGT e 266.º n.º 2 CRP.

 

Vejamos.

 

Ao considerar dever ser corrigida a contabilidade em virtude dos factos alegados e não contraditados, concluindo a AT que foram omitidos réditos e gastos, a lei não está a ser aplicada de forma cega. Antes, está a considerar a realidade da situação contributiva da Requerente, ao retificar a contabilidade e a tributação para que seja observado o princípio da tributação pelo rendimento real (cf. artigo 104.º CRP), a AT estará, precisamente, a observar o princípio da justiça, que não colide com o princípio da tributação pelo rendimento real.

 

Por outro lado, se é certo que a Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo tem vindo a reconhecer que a aplicação do princípio da justiça pode prevalecer sobre o princípio da legalidade estrita, designadamente sobre o princípio da especialização dos exercícios, previsto no artigo 18.º do CIRC, a aceitação dessa aplicação restringe-se a situações em que da violação deste não há prejuízo para o interesse público. ( [1] )

 

No caso em apreço, está em causa o diferimento do reconhecimento do rédito resultante da comercialização  das frações, com o consequente prejuízo para o erário público decorrente do atraso na arrecadação da receita tributária resultante, pelo que, a concluir-se que houve violação do princípio da especialização dos exercícios, a sua aplicação é a forma de eliminar esse prejuízo e assegurar a tributação justa, não podendo, por isso, a sua aplicação ser afastada com fundamento no princípio da justiça.  É irrelevante, assim, que a não realização das escrituras de venda em 2022 não tenha sido intencional.

 

A AT sustenta que se verificam os requisitos das normas contabilísticas, para que sejam reconhecidos os réditos omitidos.

 

Com efeito, nos termos do regime do acréscimo (especialização do exercício), e concretamente o § 14 da NCRF 20, verificam-se os requisitos de que depende o reconhecimento do rédito e o correspondente custo associado à transmissão dos imóveis, já que:

  1. Os imóveis já haviam sido transmitidos e eram habitados pelos promitentes compradores, que portanto beneficiavam do uso dos mesmos, suportando os gastos necessários à sua utilização (água, gás, luz, etc.);
  2. Os réditos podem ser fiavelmente mensurados, cf. contratos de promessa de compra e venda;
  3. O contrato de promessa permite concluir ser provável que venham a existir os benefícios económicos futuros.

 

Concluindo, em suma, ter havido transferência de riscos e vantagens sobre os imóveis entregues, e consequentemente, concluindo-se que deveriam ter sido contabilizados os correspondentes réditos e gastos, mesmo antes da formalização da escritura.

 

À mesma conclusão se chega por via da aplicação da alínea a) do n.º 3 do artigo 18.º do CIRC, em que se estabelece que «os réditos relativos a vendas consideram-se em geral realizados, e os correspondentes gastos suportados, na data da entrega ou expedição dos bens correspondentes ou, se anterior, na data em que se opera a transferência de propriedade».

 

Termos em que improcede a impugnação da liquidação de IRC, relativamente a esta correção da contabilidade e consequente tributação.

 

  1. Gastos com eletricidade não fiscalmente dedutíveis

 

Deu-se como provado, também, que relativamente aos imóveis entregues e ao período subsequente, a Requerente suportou gastos com eletricidade (4.043,17 €). A AT considerou que, para efeitos fiscais, deveriam ser expurgados estes gastos que constam da contabilidade da Requerente.

 

Precisamente considerando a entrega, e a conclusão quanto a ser devido o reconhecimento do rédito pela transmissão dos imóveis (rendimentos e correspondentes gastos), não são dedutíveis os gastos com eletricidade suportados com a sua utilização das frações autónomas, para além do momento que se considera ser o da transmissão, porque, a partir desse momento, deixam de ser indispensáveis para a realização dos rendimentos sujeitos a imposto, cf. artigo 23.º CIRC.

 

Termos em que improcede a impugnação da liquidação de IRC, relativamente a esta correção da contabilidade e consequente tributação.

 

  1. Depreciações fiscalmente não dedutíveis

 

Durante o ano de 2022, pretendendo-se que certos imóveis em carteira passassem a ser rentabilizados por via de arrendamento, foi transferido contabilisticamente, de “inventários” para “ativos fixos tangíveis”, um conjunto de imóveis pela quantia de 1.246.081,07 €, correspondente a 6 frações autónomas:

  1. Fração B (fração r/c - comercio),
  2. Fração C (fração r/c e 1º andar - serviços),
  3. Fração D (fração 1º andar - comercio),
  4. Fração E (fração 2A),
  5. Fração M (fração 4C), e
  6. Fração AA (fração 12A).

 

Consequentemente, essas frações autónomas vieram a ser objeto de depreciações contabilísticas (18.691,22 €).

 

Porém, na sequência do procedimento inspetivo, por se ter verificado que esses imóveis ainda não tinham começado, de facto, a ser utilizados para deles obter rendimento (ainda não tinha sido iniciada a sua utilização, ou funcionamento), a AT considerou que os gastos deviam ser acrescidos, para efeitos fiscais, cf. al. g) do n.º 2 do artigo 23.º e da al. b) do n.º 1 e n.º 4 do artigo 29.º, ambos do CIRC.

 

Sendo certo que, entretanto, a Administração Tributária reconheceu que tinha sido obtida licença de utilização para as frações M e AA e procedeu a revogação parcial do ato tributário de liquidação adicional de IRC n.º 2024.... Tendo por base a pronúncia emitida pela DSIRC, analisada que foi a prova aduzida pela Requerente, no que respeita à correção efetuada pelos SIT relativa à desconsideração de depreciações reconhecidas como gastos pelo sujeito passivo, nos termos da alínea g) do n.º 2 do artigo 23.º e dos n.ºs 1 e 4 do artigo 29.º, ambos do CIRC, foi determinada a anulação parcial da sobredita correção, passando o valor global de 18.691,22 € para o montante de 12.440,32 €.

 

Assim, controvérsia sobre as depreciações ficou limitada às frações B, C, D e E.

 

A AT considerou que as depreciações realizadas pela aqui Requerente quantos aos imóveis anteriormente detalhados eram indevidas, nos termos da NCRF 7, § 55, uma vez que os mesmos ainda não se encontravam em “funcionamento” (e portanto ainda não estavam a ser desgastados com a utilização). Concretamente, os imóveis ainda não estavam arrendados, e nos termos da citada norma contabilística, a “a depreciação de um ativo começa quando este esteja disponível para uso, isto é, quando estiver na localização e condição necessárias para que seja capaz de operar na forma pretendida”. E por isso, a AT acresceu esses gastos ao resultado contabilístico.

 

Nos termos literais desta norma contabilística, a depreciação começa com a mera disponibilidade para uso, independentemente do uso efetivo. No entanto, a interpretação da referida norma (§ 55 NCRF 7) compatível com os princípios contabilísticos do acréscimo (periodização económica) e balanceamento entre gastos e rendimentos[2], determinará que a mesma seja entendida (em termos teleológicos e de coerência sistemática) como desgaste em função da utilização efetiva (consistente com a cessação da depreciação quando o ativo passe a estar disponível para venda e tenha deixado de ser efetivamente utilizado).

 

Além do que, as normas contabilísticas apenas são aplicáveis para determinação do lucro tributável de IRC quando não estejam em dissonância com o preceituado no CIRC, como decorre dos seus artigos 3.º, n.º 2, e 17.º, n.º 1.

 

E, como se entendeu no Relatório da Inspecção Tributária, nos termos do artigo 29.º, n.º 4, do CIRC, «salvo razões devidamente justificadas e aceites pela Autoridade Tributária e Aduaneira, os elementos do ativo só se consideram sujeitos a deperecimento depois de entrarem em funcionamento ou utilização». Só assim, de resto, se poderá considerar cumprido o “business purpose test”, cf. n.º 1 do artigo 23.º do CIRC.

 

Este regime justifica-se porque, com efeito, o desgaste ocorre não com a disponibilidade para a utilização, mas apenas com a utilização efetiva. Ainda que possa dizer-se que o ativo desvaloriza mesmo sem ser objeto de depreciações, nesse caso estarão em causa, eventualmente, imparidades, que podem ou não ser fiscalmente dedutíveis, e não depreciações.

 

No caso em apreço, as frações B, C e D não se encontravam em utilização em 2022, pelo que está afastada a possibilidade de serem objecto de depreciações.

 

No que respeita à fração E, que já tinha sido entregue ao promitente-comprador e  encontrava-se na sua posse no último dia de tributação, em que se considera verificado o facto gerador de imposto (artigo 8.º, n.º 9, do CIRC), pelo que não se considera estar-se perante uma propriedade de investimento da Requerente, para efeitos de IRC, pelo que se referiu .

 

Termos em que improcede a impugnação da liquidação de IRC, também relativamente a esta correção da contabilidade e consequente tributação.

 

III.2.2- Juros compensatórios.

 

A Requerente impugna também os juros compensatórios incluídos na liquidação (7.272,97 €), sem para tanto expor qualquer fundamento, pelo que a sua anulação apenas poderia ter como fundamento a ilegalidade da liquidação adicional de IRC.

 

Assim, improcedendo o pedido de pronúncia arbitral quanto aos vícios imputados à liquidação de IRC, improcede a impugnação de juros compensatórios.

 

 

 

 

 

IV- Decisão

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:

  1. Julgar improcedente o pedido de anulação da liquidação de IRC;
  2. Julgar improcedente o pedido de anulação da liquidação de juros compensatórios;
  3. Absolver a Autoridade Tributária e Aduaneira dos pedidos;
  4. Condenar a Requerente ao pagamento das custas processuais.

 

V- Valor do processo

De harmonia com o disposto nos artigos 306.º, n.º 2, do CPC, 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de 166.162,78 € (cento e sessenta e seis mil, cento e sessenta e dois euros, e setenta e oito cêntimos).

 

VI- Custas

Em conformidade com o estatuído no artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, da decisão arbitral proferida pelo Tribunal Arbitral consta a fixação do montante e a repartição pelas partes das custas diretamente resultantes do processo arbitral.

 

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em 3.672,00 € (três mil, seiscentos e setenta e dois euros), nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerente, nos termos do disposto no artigo 527.º, n.º 1, do CPC, aplicável por força do artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 17de abril de 2025.

 

 

 

 

Os Árbitros,

 

 

 

Jorge Lopes de Sousa.

(presidente)

 

 

 

 

Nuno M. Morujão.

(vogal relator)

 

 

Rita Guerra Alves.

(vogal)

 



[1] Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 10-04-2024, processo n.º 1382/14.2BEBRG 0528/17, em que se decidiu que «a prevalência do princípio da justiça sobre o princípio da especialização dos exercícios pressupõe que, cumulativamente, esteja apurado que do afastamento daquele último não resulte prejuízo para o erário público e que o erro cometido na contabilização dos proveitos e/ou custos não resultou de omissões voluntárias ou intencionais, com vista a operar transferências de resultados entre exercícios»

 

[2] Cf. 2.3 do anexo ao decreto-lei n.º 158/2009, de 13 de julho e § 93 da estrutura conceptual do SNC, que tem por base a Estrutura Conceptual do IASB, constante do Anexo 5 das “Observações relativas a certas disposições do Regulamento (CE) n.º 1606/2002, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 19 de julho”, publicado pela Comissão Europeia em novembro de 2003: “Os gastos são reconhecidos na demonstração de resultados com base numa associação direta entre os custos incorridos e a obtenção de rendimentos específicos. Este processo, geralmente referido como o balanceamento de custos com réditos, envolve o reconhecimento simultâneo ou combinado de réditos e de gastos que resultem direta e conjuntamente das mesmas transações ou de outros acontecimentos”.

Mesmo que se diga que, nesta norma do SNC, a relação entre o gasto (desgaste) e o rédito proporcionado por um ativo fixo não é direto, sempre terá de existir correlação entre a utilização efetiva e a produção / rédito proporcionado. Nesse sentido, Rodrigues, J., Sistema de Normalização Contabilística – SNC Explicado (6.ª edição), Porto Editora, 2018, p. 486: “5.6 Depreciações… estaremos a correlacionar o gastos de uso de um ativo com os rendimentos que ele gera”.