Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 1391/2024-T
Data da decisão: 2025-05-05  IRC  
Valor do pedido: € 127.805,05
Tema: OIC não Residentes – Retenções na Fonte – Discriminação e Violação da Livre Circulação de Capitais – arts. 22.º, n.ºs 1 a 3 e 10 do EBF e 63.º do TFUE.
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SUMÁRIO

  1. A interpretação do Tribunal de Justiça sobre o direito da União Europeia é vinculativa para os órgãos jurisdicionais nacionais, com a necessária desaplicação do direito interno em caso de desconformidade com aquele.
  2. A legislação portuguesa de IRC, ao tributar por retenção na fonte dividendos distribuídos por sociedades residentes em Portugal a OIC’s constituídos ao abrigo da legislação de outro Estado, ao mesmo tempo que permite aos OIC equiparáveis constituídos ao abrigo da legislação nacional beneficiar, em idêntica situação, de isenção dessa retenção na fonte, não é compatível com o direito da União Europeia, por violação da liberdade fundamental de circulação de capitais consagrada no artigo 63.º do TFUE, conforme resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça no processo C-545/19, (acórdão de 17.03.2022).

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

A..., NIPC ..., com sede em ..., ..., Luxemburgo, representado pela sua entidade gestora B..., com sede no mesmo local, veio, nos termos legais, requerer a constituição de tribunal arbitral.

É requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

 I – RELATÓRIO

 

  1. O pedido

 

O Requerente peticiona a anulação dos atos tributários (liquidações por retenção na fonte liberatória, adiante melhor identificadas), relativos a IRC, que incidiram sobre rendimentos auferidos em Portugal em 2022, com a consequente devolução dos montantes indevidamente pagos.

Pede a anulação da decisão de indeferimento tácito da reclamação graciosa relativa a tais liquidações.

Pede a condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios.

 

  1. O litígio

 

A questão a decidir é saber se viola a liberdade de circulação de capitais, consagrada no artigo 63.º do TFUE, o facto de os dividendos distribuídos a organismos de investimento coletivo (OIC) não residentes por entidades com sede ou com estabelecimento estável em Portugal estarem aqui sujeitos a tributação por retenção na fonte, enquanto idêntico tipo de rendimentos, quando distribuídos a fundos de investimento constituídos e operando de acordo com a legislação nacional, estão isentos de tributação por força do disposto no nº 3 do art. 22 do EBF.

 

O Requerente conclui, obviamente, pela positiva.

A Requerida defende posição contrária à da Requerente, entendendo, nomeadamente, que os regimes fiscais em IRC aplicáveis aos OIC constituídos ao abrigo da legislação nacional (residentes) e aos OIC constituídos noutros países (não residentes) não são diretamente comparáveis, pois que a tributação dos primeiros repousa sobretudo no Imposto do Selo; e que nada permite concluir que, no conjunto dos impostos suportados em Portugal e Luxemburgo, a situação dos Requerentes resulte mais gravosa.

 

 

  1. Tramitação processual

 

O pedido foi aceite em 23/12/2024

Os árbitros foram nomeados pelo Conselho Deontológico do CAAD, aceitaram as nomeações, as quais não foram objeto de oposição.

O tribunal arbitral ficou constituído em 28/02/2025.

A Requerida apresentou resposta e juntou o PA. A requerente replicou à questão “da impossibilidade de obtenção de crédito de imposto no estado da residência relativamente às retenções na fonte controvertidas.”.

Por despacho de 30/04/2025 foi dispensada a realização da reunião a que se refere o art. 18º do RJAT bem como a produção de alegações. Nenhuma das partes se opôs.

 

 

  1. Saneamento

 

O processo não enferma de nulidades ou irregularidades.

Não foram alegadas exceções.

Não existem questões que possam obstar ao conhecimento do mérito da causa.

 

  • PROVA

 

II.1 – Factos Provados

 

Consideram-se provados os seguintes factos:

 

  1. O Requerente é um Organismo de Investimento Coletivo ("OIC") constituído e a operar no Grão-Ducado do Luxemburgo, sob supervisão da Commission de Surveillance du Secteur Financier, operando ao abrigo da Loi du 17 décembre 2010 concernant les organismes de placement collectif, que transpõe para a ordem jurídica luxemburguesa a Directiva 2009/65/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de Julho de 2009, que coordena as disposições legislativas, regulamentares e administrativas respeitantes a alguns OIC.
  2. O Requerente é um sujeito passivo de IRC, com residência fiscal no Luxemburgo e sem estabelecimento estável em Portugal.
  3. Em 2022, o Requerente auferiu dividendos de fonte portuguesa, no montante total de € 852.033,68, os quais foram sujeitos a tributação em Portugal em sede de IRC através de retenção na fonte liberatória, a qual ascendeu ao montante total de € 127.805,05.
  4. As retenções na fonte em apreço foram efetuadas pelo C..., NIPC..., na qualidade de entidade registadora e depositária de valores mobiliários.
  5. As retenções na fonte de IRC em causa, no montante total de EUR 127.805,05, foram efetuadas e entregues nos cofres da Fazenda Pública, através das guias de retenção na fonte nº..., de 20 de Maio de 2022, ..., de 20 de junho de 2022, e..., de 20 de Outubro de 2022.
  6. Em 20 de maio de 2024, o Requerente apresentou reclamação graciosa necessária relativamente às liquidações (retenções na fonte) que ora impugna, mantendo-se o silêncio administrativo para além do prazo legal de decisão.

 

A convicção do tribunal fundou-se na análise dos documentos juntos aos autos, sendo que os factos acima descritos não suscitaram qualquer concreta divergência entre as partes.

A Requerida, na sua resposta, transcreveu longos excertos de um voto de vencido proferido no âmbito do processo nº 619/2023-T, ao que se entende para sustentar a sua afirmação anterior (não concretizada minimamente) de que o Requerente não logrou fazer a prova dos factos por si alegados.

Para além da eventual discordância quanto a algumas das afirmações constantes de tal texto, o certo é que ele em nada poderá relevar para o caso em análise, desde logo porque os factos cujo ónus da prova incumbia ao Requerente são diferentes e, em especial, pela pertinência dos documentos por este juntos, cuja verdade material não foi posta em causa nem suscitaram ao tribunal quaisquer dúvidas.

 

II.2 - Factos não provados

 

Não existem factos dados como “não provados” relevantes para a decisão da causa.

 

 

  • O DIREITO

 

Cumpre aferir se assiste razão ao Requerente quando alega a existência de uma discriminação, violadora do princípio da livre circulação de capitais previsto no artigo 63.º do TFUE, dados os regimes de tributação diferenciados que o artigo 22.º do EBF estabelece, nos seus n.ºs 1, 3 e 10, para os dividendos de fonte portuguesa auferidos por OIC constituídos e a operar de acordo com a legislação nacional, por comparação com os mesmos dividendos quando recebidos por OIC’s constituídos e residindo noutro Estado.

Esta questão foi objeto de pronúncia pelo Tribunal de Justiça, em 17 de março de 2022, no processo de reenvio prejudicial C-545/19, o qual versou sobre uma situação factual idêntica às dos presentes autos, suscitada por Tribunal constituído no CAAD (processo n.º 93/2019-T) no mesmo enquadramento legislativo.

Tendo em conta que a jurisprudência do TJUE quanto à interpretação do Direito da União tem carácter vinculativo para os Tribunais nacionais, corolário do primado do Direito da União consagrado no n.º 4, do artigo 8.º da CRP, apenas há que tomar em consideração o constante de tal decisão do TJUE, a qual é (o último) exemplo de uma jurisprudência, versando sobre diferentes aspetos do tema em questão, desde há muito afirmada[1].

 

Citamos:

37         No caso em apreço, é facto assente que a isenção fiscal prevista pela legislação nacional em causa no processo principal é concedida aos OIC constituídos e que operam de acordo com a legislação portuguesa, ao passo que os dividendos pagos a OIC estabelecidos noutro Estado‑Membro não podem beneficiar dessa isenção.

38 Ao proceder a uma retenção na fonte sobre os dividendos pagos aos OIC não residentes e ao reservar aos OIC residentes a possibilidade de obter a isenção dessa retenção na fonte, a legislação nacional em causa no processo principal procede a um tratamento desfavorável dos dividendos pagos aos OIC não residentes.

39 Esse tratamento desfavorável pode dissuadir, por um lado, os OIC não residentes de investirem em sociedades estabelecidas em Portugal e, por outro, os investidores residentes em Portugal de adquirirem participações sociais em OIC e constitui, por conseguinte, uma restrição à livre circulação de capitais proibida, em princípio, pelo artigo 63.° TFUE (v., por analogia, Acórdão de 21 de junho de 2018, Fidelity Funds e o., C‑480/16, EU:C:2018:480, n.os 44, 45 e jurisprudência referida).

 

Nos números seguintes de tal acórdão, o TJUE responde especificadamente às objeções do governo português, as quais, no essencial, coincidem com o argumentário vertido pela AT na sua resposta. Muito embora este tribunal não esteja obrigado a considerar todos e cada um dos argumentos expendidos pelas partes, mas apenas a apreciar os vícios invocados, remete-se para a decisão do TJUE também enquanto “contraponto” à resposta da AT.

 

Pelo que a este tribunal arbitral nada mais resta que cumprir com o ditame do TJUE.

 

 

IV- JUROS INDEMNIZATÓRIOS

A liquidação e cobrança de imposto em violação do Direito da União Europeia confere ao contribuinte o direito a receber juros indemnizatórios, o que é jurisprudência pacífica (cf. neste sentido, entre outros, a decisão arbitral proferida no processo n.º 114/2022-T e o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 14.10.2020, proferido no processo n.º 01273/08.6BELRS).

Só que, porque num primeiro momento o erro apenas pode ser imputável ao substituto (e não à AT), há que observar o decidido pelo STA no acórdão de uniformização de jurisprudência de 29.06.2022, proferido no processo n.º 093/21.7BALSB: em caso de retenção na fonte e havendo lugar a impugnação administrativa do acto tributário em causa (v.g. reclamação graciosa), o erro passa a ser imputável à A. Fiscal depois de operar o indeferimento do mesmo procedimento gracioso, efectivo ou presumido, funcionando tal data como termo inicial para cômputo dos juros indemnizatórios a pagar ao sujeito passivo, nos termos do artº.43, nºs.1 e 3, da L.G.T.

 

 V – DECISÃO

 

Pelo exposto, acorda o Tribunal,  em:

  1. Anular, por ilegais, as liquidações (retenções na fonte liberatórias) que incidiram sobre dividendos obtidos pelo Requerente, acima melhor identificados por referência às respetivas “guias” de entrega em 2022, a que correspondeu o pagamento de imposto no valor de € 127.805,05.
  2. Condenar a Requerida, a pagar ao Requerente juros indemnizatórios sobre a quantia referida na alínea anterior, a liquidar nos termos legais, contados desde o dia seguinte ao do termo do prazo legal para decisão da reclamação graciosa.

 

Valor:   € 127.805,05, correspondente ao montante total das liquidações impugnadas.

Custas, no valor de € 3.060,00 a cargo da Requerida por ter ido total o seu decaimento,

 

5 de maio de 2025.

 

 

 

Rui Duarte Morais (relator)

 

 

Jesuíno Alcântara Martins

 

 

 

 

 

 

Henrique Nogueira Nunes

 



[1]  Uma referência ao facto de o STA – como era seu dever – ter uniformizado a jurisprudência em obediência ao decidido pelo TJUE (ac. 093/19, de 28/09/2023).