SUMÁRIO
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O erro no enquadramento de operações, em sede de IVA, em concreto sobre a exclusão de tributação das operações nos termos do artigo 16.º, n.º 6, alínea b) do Código deste imposto, constitui um erro de direito. Tal erro deve poder ser retificado no prazo de quatro anos, de harmonia com o preceituado no artigo 98.º, n.º 2 do Código do IVA.
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As entregas adicionais de bens enquadráveis como bónus de quantidade concedidos pelo sujeito passivo aos seus clientes, na sequência de ter sido alcançado um patamar mínimo de vendas, num dado período, conforme contratualmente predefinido, revestem-se de uma ligação direta às operações onerosas de fornecimento de bens que as precederam ou de que são contemporâneas.
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Tais entregas são, desta forma, excluídas do valor tributável nas transmissões onerosas de bens sujeitas a IVA, nos termos da alínea b) do n.º 6 do artigo 16.º do Código do IVA. Para este efeito, não se exige que tais bónus tenham a mesma natureza dos bens previamente transacionados.
DECISÃO ARBITRAL
Os árbitros Alexandra Coelho Martins (presidente), Sofia Quental e Pedro Guerra Alves, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formarem o presente Tribunal Arbitral Coletivo, constituído em 28 de Janeiro de 2025, acordam no seguinte:
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Relatório
A... LDA., doravante “Requerente”, NIPC..., com sede em ..., n.º ..., ..., ...-... Barcarena, veio, em 18 de Novembro de 2024, ao abrigo do artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do Decreto‐Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), e do artigo 102.º, n.º 1, alínea d), do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”), requerer a constituição de Tribunal Arbitral e apresentar pedido de pronúncia arbitral (“PPA") contra os atos de liquidação de Imposto sobre o Valor Acrescentado (“IVA”) relativos às declarações periódicas dos meses de Janeiro a Dezembro 2020, no valor de € 118.457,55, pretendendo a respetiva declaração de ilegalidade e anulação, e contra a decisão de indeferimento expresso do pedido de revisão oficiosa n.º ...2023..., bem como o reembolso dos montantes indevidamente pagos, acrescido de juros indemnizatórios, ao abrigo do artigo 43.º da Lei Geral Tributária (“LGT”).
É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante “AT” ou “Requerida”).
A Requerente fundamenta a sua pretensão, em síntese, nos seguintes termos:
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A Requerente é uma sociedade comercial unipessoal por quotas, com sede e direção efetiva em Portugal, encontrando-se enquadrada, para efeitos de IVA, no regime normal de periodicidade mensal.
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A Requerente desenvolve a sua atividade no setor da saúde, dedicando-se, entre outras atividades, à comercialização de produtos farmacêuticos, médicos, ortopédicos, sanitários e hospitalares.
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Com o intuito de promover a comercialização dos seus produtos, a Requerente realiza diversas ações promocionais, entre as quais se inclui a atribuição de descontos de quantidade.
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Os descontos de quantidade podem ter caráter meramente financeiro, operando através da emissão de notas de crédito, ou assumir a natureza de atribuição em espécie. Atingido um determinado patamar de compras por parte do cliente, a Requerente atribui-lhe um desconto em espécie através da disponibilização a custo zero de produto de valor máximo correspondente a 5% do montante global das aquisições efetuadas.
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Os descontos de quantidade em espécie são, na maioria das vezes, concedidos pela Requerente após a venda dos produtos que origina o desconto, podendo assumir a mesma natureza dos produtos comercializados ou natureza distinta.
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Estando normalmente em causa descontos postecipados, a Requerente procede à emissão de faturas para titular a sua atribuição, o que lhe permite “dar baixa” dos produtos em causa dos seus inventários.
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No exercício de 2020, a Requerente concedeu vários descontos em espécie, e a Requerente emitiu um conjunto de faturas.
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Em tais faturas, os campos relativos ao preço de venda e ao IVA encontram-se a zero.
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Não obstante nas faturas não tenha sido efetuada a liquidação de IVA, a Requerente registou contabilisticamente, na conta #24332000 – IVA Liquid. De Autoc, o IVA incidente sobre os produtos disponibilizados a título gratuito aos seus clientes – ilustrando o procedimento de contabilização inerente a uma fatura que contém produtos atribuídos a título de desconto.
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Tal IVA foi incluído no campo 4 de cada uma das declarações periódicas relativas aos meses de janeiro a dezembro de 2020, tendo a Requerente procedido à entrega desse montante junto dos cofres do Estado.
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O IVA autoliquidado e entregue em excesso por referência ao exercício de 2020 ascende a 118.457,55 EUR.
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Com o objetivo de obter a regularização a seu favor do imposto indevidamente liquidado e pago nos termos supra expostos, a 28 de dezembro de 2023, a Requerente apresentou pedido de revisão oficiosa Nessa sede, a Requerente solicitou a regularização a seu favor do montante de 118.457,55 EUR com fundamento em erro de direito no enquadramento das operações e consequente liquidação indevida de IVA.
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A Requerente defende que a Administração Tributária concluiu que as disponibilizações de bens se subsumem no conceito de ofertas e não de descontos de quantidade, estando, nessa medida, sujeitas a tributação em sede de IVA e a Requerente não se conforma com este entendimento, reputando-o de ilegal.
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A Requerente defende que as transmissões de bens se encontram excluídas de tributação nos termos do artigo 16.º, n.º 6, alínea b), do CIVA.
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A Requerente defende que o pedido de regularização de IVA sub júdice alicerça-se no artigo 98.º, n.º 2, do CIVA, podendo ser apresentado no prazo de quatro anos.
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Sustenta que o contribuinte dispõe do prazo de quatro anos, contados desde o momento do pagamento em excesso do imposto, para requerer a sua regularização sem necessidade de verificação de quaisquer requisitos adicionais.
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Alega que é manifestamente inadmissível, à luz dos princípios gerais de Direito transversalmente aplicáveis no nosso ordenamento jurídico, fazer depender a operacionalidade da prerrogativa ínsita no artigo 98.º, n.º 2, do CIVA da verificação de requisitos plasmados no artigo 78.º, n.º 1, da LGT, designadamente da existência de erro imputável aos serviços, porquanto o legislador conferiu ao sujeito passivo o direito à regularização do imposto indevidamente liquidado no prazo de quatro anos sempre que se verifique erro de direito, independentemente da sua imputabilidade à Administração Tributária.
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Como tal, sendo patente a inaplicabilidade do artigo 78.º da LGT à situação sub júdice, claudicam necessariamente todos os argumentos da Administração Tributária fundados nesse normativo legal, designadamente os atinentes à pretensa necessidade de verificação de erro imputável aos serviços para recurso à possibilidade de regularização do IVA no prazo de quatro anos previsto no artigo 98.º, n.º 2, do CIVA, o que se invoca para os devidos efeitos legais.
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Mais alega, que o erro sub judice inequivocamente de direito, uma vez que decorre da incorreta interpretação da lei e subsequente enquadramento erróneo das transmissões de bens em causa nestes autos (descontos de quantidade em espécie) no conceito de ofertas, previsto no artigo 3.º, n.º 3, alínea f), do CIVA.
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A Requerente tem direito à correção do erro de direito em referência nos quatro anos subsequentes à apresentação das declarações periódicas de IVA objeto (mediato) destes autos.
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Tendo as declarações periódicas de IVA sub júdice sido apresentadas pela Requerente entre os dias 3 de março de 2020 e 4 de fevereiro de 2021, o prazo legal de quatro anos para apresentação do pedido de revisão oficiosa só terminava a 4 de março de 2024, pelo que, tendo o mesmo sido apresentado a 28 de dezembro de 2023, é inequívoca a sua tempestividade.
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A Requerente mais defende a ilegalidade dos atos tributários, sustentando, que no que especificamente respeita aos bónus de quantidade em causa nestes autos, os mesmos são conferidos no contexto de transmissões onerosas de bens, traduzindo um estímulo a que o cliente adquira mais quantidade de produto.
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É precisamente a existência deste sinalagma entre uma transmissão a título oneroso e a atribuição dos bónus que os distingue das ofertas, enquadrando-se os mesmos no contexto de uma operação comercial concreta.
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Defende que o principal elemento que caracteriza os bónus de quantidade em espécie, distinguindo-os das ofertas, é a sua necessária relação com certas transmissões de bens efetuadas a título oneroso, traduzindo um estímulo a que o cliente adquira maior quantidade por forma a receber uma quantidade adicional a custo zero.
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Mais alega, que não pode senão considerar-se que o critério determinante para a subsunção de certa transmissão de bens a título gratuito no conceito de bónus plasmado no 16.º, n.º 6, alínea b), do CIVA é, não a idêntica natureza dos produtos entregues com a dos produtos vendidos, mas antes ratio da sua concessão, i.e., a sua conexão com a transmissão de bens efetuada a título oneroso pelo sujeito passivo
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Assim, os bónus de quantidade em espécie como os em causa nestes autos – i.e., em que os produtos entregues a título gratuito pelo sujeito passivo não possuem a mesma natureza dos produtos por si vendidos ao cliente –, quando diretamente relacionados com as concretas operações de venda, excluem-se, como os demais bónus de quantidade, da base tributável de imposto nos termos da alínea b) do n.º 6 do art.º 16.º do CIVA.
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No caso em apreço, os bónus atribuídos pela Requerente encontram-se numa relação de estrita dependência com transmissões de bens a título oneroso por si realizadas, operando através da disponibilização gratuita de produto quando as vendas atingem determinado patamar.
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Assim, os produtos entregues “a custo zero” pela Requerente aos seus clientes situam-se no quadro de relações comerciais com estes estabelecidas, no âmbito do fornecimento continuado de produtos farmacêuticos e na dependência desses fornecimentos, em função da compra de determinadas quantidades de produtos, prática generalizada nas empresas que operam neste setor.
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Resulta claro que as operações sub judice devem considerar-se excluídas de tributação nos termos do artigo 16.º, n.º 6, alínea b), do CIVA, por se reconduzirem ao conceito de bónus aí previsto.
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Conclui a Requerente, que lhe assiste o direito à regularização a seu favor, por referência ao período de janeiro a dezembro de 2020, do IVA comprovadamente autoliquidado e entregue em excesso, no montante total de 118.457,55 EUR, tudo conforme peticionado no pedido de revisão oficiosa cujo indeferimento está na origem dos presentes autos.
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Termina a Requerente, peticionado que julgue procedente, por provado, o presente pedido de pronúncia arbitral e, por conseguinte determine a anulação dos atos tributários com fundamento na violação do artigo 16.º, n.º 6, alínea b), do CIVA, de acordo com o artigo 163.º do CPA;
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O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD em 20 de Novembro de 2024, e subsequentemente notificado à AT.
A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 6.º e na alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Conselho Deontológico designou os ora signatários como árbitros do Tribunal Arbitral Coletivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
Em 9 de Janeiro de 2025, as partes foram devidamente notificadas dessa designação, e não manifestaram vontade de a recusar, nos termos do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT, e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
O Tribunal Arbitral Coletivo foi constituído em 28 de Janeiro de 2025, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alíneas a), e 10.º, n.º 1, do RJAT, para apreciar e decidir o objeto do presente litígio.
A Requerida apresentou a sua resposta, com defesa por impugnação, e juntou o processo administrativo (“PA”), alegando, em síntese, o seguinte:
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Sustenta, ainda que o artigo 98.º do Código do IVA estabeleça um prazo de caducidade do direito à dedução, tal não se mostra suficiente para habilitar a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) a efetuar a revisão oficiosa para além dos prazos legalmente estabelecidos para o efeito.
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Sustenta que embora a Requerente invoque o entendimento constante do Ofício n.º 1353, de 17 de junho de 1985, do então Núcleo do IVA, não se pode considerar que estamos perante erro imputável aos serviços.
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Não se tratando de erro imputável aos serviços, nem vigorando ao tempo dos factos, a ficção legal prevista no n.º 2 do artigo 78.º da LGT, que permitia considerar como tal o erro na autoliquidação, carecem de fundamento legal os pedidos de revisão oficiosa (em prazo alargado), como acontece no caso em apreço.
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A Requerida sustenta, que no caso vertente, mostra-se intempestivo o pedido de revisão dos atos tributários referentes aos períodos 2020-01 a 2020-12, por não ter sido apresentado no prazo de reclamação administrativa, a que se refere o n.º 1 do artigo 78.º da LGT e artigo 131.º, n.º 1 do CPPT.
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Tendo o pedido de revisão sido apresentado em 2023-12-28, não foi respeitado o prazo de 2 anos após a apresentação da respetiva declaração periódica.
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A isto acresce que os fundamentos do presente pedido de revisão não têm enquadramento nos conceitos de injustiça grave ou notória ou de duplicação de coleta, a que se refere o artigo 78.º, n.ºs 4 a 6, da LGT, nem tal se alega ou demonstra.
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A Requerida sustenta que os bónus de quantidade estão expressamente excluídos do conceito de ofertas, porque estão excluídos de tributação, nos termos da alínea b) do n.º 6 do artigo 16.º do Código do IVA.
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A Requerida alega que se entende por bónus de quantidade ou rappel, os bens que são atribuídos mediante a aquisição de determinados produtos, desde que sejam da mesma natureza destes. E tem sido entendido que os bónus concedidos em quantidade (rappel) têm enquadramento na norma.
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Sustenta que a atribuição de determinados produtos a título gratuito - bónus em espécie – pela quantidade de compras efetuadas pelo cliente (e desde que os bónus sejam da mesma natureza dos bens adquiridos), fica excluída da base tributável da operação, nos termos da alínea b) do n.º 6 do artigo 16.º do Código do IVA, conforme Informação Vinculativa n.º 731, por despacho do Diretor-Geral, em 2010-06-15.
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Quando se trate da entrega de produtos de natureza diferente dos faturados ao cliente, se está perante uma oferta, para efeitos do disposto no n.º 7 do artigo 3.º do Código do IVA e Portaria n.º 497/2008.
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Conclui a Requerida que não resulta demonstrado que a autoliquidação do IVA efetuada pela Requerente, com referência aos períodos de tributação aqui em causa, padeça de qualquer erro de direito.
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Termina a Requerida, peticionado que deve a presente ação ser julgada totalmente improcedente e a Requerida ser absolvida de todos os pedidos, com todas as consequências legais.
Por despacho de 26 de março de 2025, o Tribunal Arbitral dispensou a realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, ao abrigo dos princípios da autonomia do Tribunal Arbitral na condução do processo e da celeridade, simplificação e informalidade processuais (artigos 16.º, alínea c) e 29.º, n.º 2 do RJAT), considerando que as questões a decidir são de direito.
As Partes foram notificadas para apresentarem alegações simultâneas e fixado o prazo para a decisão até à data-limite prevista no artigo 21.º, n.º 1 do RJAT, com indicação para pagamento da taxa arbitral subsequente, nos termos do n.º 4 do artigo 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”).
A Requerente e Requerida apresentaram alegações escritas, respetivamente, nos dias 29 e 30 de Abril de 2025, reafirmando, no essencial, as posições assumidas nos respetivos articulados.
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Saneamento
O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente para apreciar da legalidade de atos de (auto)liquidação de IVA, nos termos do artigo 2.º, n.º 1, alínea a), do RJAT.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias (cfr. artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março) e estão devidamente representadas.
O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado no prazo de 90 dias previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, conjugado com o artigo 102.º, n.º 1, alínea a) do CPPT, contado da data da notificação da decisão de indeferimento expresso do pedido de revisão oficiosa realizada em 5 de Agosto de 2024, tendo a presente ação sido proposta em 18 de Novembro de 2024.
O processo não enferma de nulidades.
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Matéria De Facto
§3.1. Factos provados
Consideram-se provados os seguintes factos relevantes para a decisão da causa:
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A Requerente é uma sociedade comercial unipessoal por quotas, com sede e direção efetiva em Portugal, encontrando-se enquadrada, para efeitos de IVA, no regime normal de periodicidade mensal. Cf. Doc.2 do PPA e PA.
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A Requerente desenvolve a sua atividade no setor da saúde, dedicando-se, entre outras atividades, à comercialização de produtos farmacêuticos, médicos, ortopédicos, sanitários e hospitalares. Com o intuito de promover a comercialização dos seus produtos, a Requerente realiza diversas ações promocionais, entre as quais se inclui a atribuição de descontos de quantidade. Cf. Doc.2 e 3 do PPA e PA.
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A Requerente oferece descontos de quantidade, que podem ter caráter meramente financeiro, operando através da emissão de notas de crédito, ou assumir a natureza de atribuição em espécie. Neste último caso, atingido um determinado patamar de compras por parte do cliente, a Requerente atribui-lhe um desconto em espécie através da disponibilização a custo zero de produto de valor máximo correspondente a 5% do montante global das aquisições efetuada. Cfr. documentos n.º 4, 5 e 6 do PPA.
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Os descontos de quantidade em espécie são, na maioria das vezes, concedidos pela Requerente após a venda dos produtos que origina o desconto[1], podendo assumir a mesma natureza dos produtos inicialmente vendidos ou natureza distinta, em qualquer caso todos produtos comercializados pela Requerente. Cfr. documento n.º 4, 5 e 6 do PPA.
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No exercício de 2020, a Requerente concedeu vários descontos em espécie, tendo a Requerente emitido um conjunto de faturas para esse fim. Em tais faturas, os campos relativos ao preço de venda e ao IVA encontram-se a zero. Cfr. Doc 5 e 6 do PPA.
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Nas faturas não foi efetuada a liquidação de IVA. No entanto, a Requerente registou contabilisticamente, na conta #24332000 – IVA Liquid. De Autoc, o IVA incidente sobre os produtos disponibilizados a título gratuito aos seus clientes. Cfr. documento n.º 7 do PPA.
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O IVA relativo a estas atribuições de produtos faturados a “zeros” foi incluído no campo 4 de cada uma das declarações periódicas relativas aos meses de janeiro a dezembro de 2020, as quais foi atribuído o seguinte número de declaração periódica, respetivamente:
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Quanto ao período de Janeiro de 2020, foi atribuído o n.º ... .
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Quanto ao período de Fevereiro de 2020, foi atribuído o n.º ... .
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Quanto ao período de Março de 2020, foi atribuído o n.º ... .
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Quanto ao período de Abril de 2020, foi atribuído o n.º ... .
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Quanto ao período de Maio de 2020, foi atribuído o n.º ... .
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Quanto ao período de Junho de 2020, foi atribuído o n.º... e ... .
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Quanto ao período de Julho de 2020, foi atribuído o n.º ... e ....
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Quanto ao período de Agosto de 2020, foi atribuído o n.º ... e ... .
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Quanto ao período de Setembro de 2020, foi atribuído o n.º....
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Quanto ao período de Outubro de 2020, foi atribuído o n.º... . Cfr.doc 1 do PPA e PA.
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Em 28 de dezembro de 2023 a Requerente apresentou pedido de revisão oficiosa e solicitou a regularização a seu favor do montante de 118.457,55 EUR com fundamento em erro de direito no enquadramento das operações e consequente liquidação indevida de IVA, ao qual foi atribuído no número ...2023... . Cfr. PA.
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A 6 de Maio de 2024, a Administração Tributária emitiu projeto de decisão do pedido de revisão oficiosa com os seguintes fundamentos:
I- APRECIAÇÃO DO PEDIDO, FUNDAMENTAÇÃO E TEMPESTIVIDADE
Em conformidade com a previsão normativa do n.º 1 do artigo 98.º do Código do IVA, “[qluando, por motivos imputáveis aos serviços, tenha sido liquidado imposto superior ao devido, procede-se à revisão oficiosa nos termos do artigo 78.º da Lei Geral Tributária”.
O n.º 2 do mesmo artigo estatui que, “[slem prejuízo de disposições especiais, o direito à dedução ou ao reembolso do imposto entregue em excesso só pode ser exercido até ao decurso de quatro anos após o nascimento do direito à dedução ou pagamento em excesso do imposto, respectivamente”.
A este respeito, no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (STA), de 28-06-2017, no processo n.º 01427/14, conclui-se que “[0] prazo aplicável para reclamar do IVA entregue, em excesso, numa situação enquadrável no denominado erro de direito é de quatro anos, nos termos previstos no artigo 98.º, n.º 2 do CIVA”.
Porém, ainda que o artigo 98.º do Código do IVA estabeleça um prazo de caducidade do direito à dedução, tal não se mostra suficiente para habilitar a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) a efetuar a revisão oficiosa para além dos prazos legalmente estabelecidos para o efeito.
Conforme decorre do artigo 2.º da LGT, “[dje acordo com a natureza das matérias, às relações jurídico-tributárias aplicam-se, sucessivamente:
a) A presente lei;
b) O Código de Processo Tributário e os demais códigos e leis tributárias, incluindo a lei geral sobre infracções tributárias e o Estatuto dos Benefícios Fiscais;
c) O Código do Procedimento Administrativo e demais legislação administrativa;
d) O Código Civil e o Código de Processo Civil”.
“Isto significa que as normas da LGT devem ser, nos termos do presente artigo que reflecte um princípio geral de Direito Tributário, "lidas" antes das normas referidas nas alíneas b), c) e d).
Só se não der resposta ao caso em análise, se poderá recorrer a outras normas” (cfr. Diogo Leite Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, In Lei Geral Tributária Anotada e Comentada, 2012, p. 65).
“Não é a presente lei uma lei reforçada, mas o seu carácter geral reclama que seja em primeiro lugar na Lei Geral Tributária que se tenha de procurar a solução de cada caso concreto.
A aplicação em segunda linha das normas dos códigos e leis tributárias, que terá de se fazer de acordo com a natureza das matérias, resulta da própria autonomia do Direito Tributário. Só na impossibilidade de recurso aos códigos e leis tributárias e princípios gerais que contêm deve, assim, o intérprete-aplicador recorrer às normas adequadas à natureza de cada caso omisso” (cfr. António Lima Guerreiro, in Lei Geral Tributária Anotada, 2001, p. 42).
Ora, de harmonia com o disposto no n.º 1 do artigo 78.º da LGT, “[a] revisão dos actos tributários pela entidade que os praticou pode ser efectuada por iniciativa do sujeito passivo, no prazo de reclamação administrativa e com fundamento em qualquer ilegalidade, ou, por iniciativa da administração tributária, no prazo de quatro anos após a liquidação ou a todo o tempo se o tributo ainda não tiver sido pago, com fundamento em erro imputável aos serviços”.
Segundo o Acórdão do STA, de 2005-10-06, no processo n.º 0653/05, “[a] revisão do acto tributário com fundamento em erro imputável aos serviços deve ser efectuada pela Administração tributária por sua própria iniciativa, mas, como se conclui do n.º 7 (anterior n.º 6) do art. 78.º da L.G.T., o contribuinte pode pedir que seja cumprido esse dever, dentro dos limites temporais em que Administração tributária o pode exercer”.
Não obstante, “(...) nestes casos em que existe um pedido do contribuinte efectuado após o prazo que lhe estava consentido — da reclamação administrativa — mas no prazo consentido para a administração, a eventual revisão considera-se, para todos os efeitos, de iniciativa da administração tributária, não obstante a existência de um impulso do interessado. Desta forma, não servirá, aqui, como fundamento da revisão “qualquer ilegalidade” (fundamento previsto no n.º 1 do artigo 78.º para os casos de iniciativa do contribuinte), sendo necessário a existência de erro imputável aos serviços (de acordo com o mesmo dispositivo) ou injustiça grave ou notória, como refere o n.º 4 do mesmo artigo” (Conforme José Maria Fernandes Pires, Gonçalo Bulcão, José Ramos Vidal e Maria João Menezes; in Lei Geral Tributária Comentada e Anotada; 2015; p. 847).
Nesse sentido, vide Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul (TCAS), de 2017-03-23, no processo n.º 1349/10, onde se declara que “[0] conceito de "erro imputável aos serviços" a que alude o art.º 78, n.º 1, 2.º parte, da L.G.T., embora não compreenda todo e qualquer "vício" (designadamente vícios de forma ou procedimentais) mas tão só "erros", estes abrangem o erro nos pressupostos de facto e de direito, sendo essa imputabilidade aos serviços independente da demonstração da culpa dos funcionários envolvidos na emissão do acto afectada pelo erro. Por outras palavras, o dito "erro imputável aos serviços" concretiza qualquer ilegalidade não imputável ao contribuinte por conduta negligente, mas à A. Fiscal, mais devendo tal erro revestir carácter relevante, gerando um prejuízo efectivo, em virtude do errado apuramento da situação tributária do contribuinte, daí derivando o seu carácter essencial”.
No caso vertente, embora a Requerente invoque o entendimento constante do Ofício n.º 1353, de 17 de junho de 1985, do então Núcleo do IVA, não se pode considerar que estamos perante erro imputável aos serviços.
Tal como considerou o Tribunal Arbitral, na Decisão de 19 de outubro de 2022, proferida no processo n.º 493/2021-T CAAD:
“1. As orientações genéricas (instruções administrativas) ínsitas em circulares ou ofícios
circulados, que visam a uniformização de interpretação e aplicação das leis tributárias, só vinculam os funcionários e os órgãos da Autoridade Tributária e Aduaneira, não vinculam os contribuintes.
2. A circunstância dos sujeitos passivos optarem por adotar o entendimento vertido nas
orientações genéricas, só por si, não implica ou determina que o erro em que o sujeito passivo tenha incorrido seja imputável aos serviços da AT.
Com a revogação do n.º 2 do artigo 78.º da LGT, operada pela alínea h) do n.º 1 do artigo 215.º da Lei n.º 7-A/2016 de 30 de março, deixou de se poder considerar imputável aos serviços o erro na autoliquidação, deixando de se aplicar tal normativo.
Por conseguinte, não se tratando de erro imputável aos serviços, nem vigorando ao tempo dos factos, a ficção legal prevista no n.º 2 do artigo 78.º da LGT, que permitia considerar como tal o erro na autoliquidação, carecem de fundamento legal os pedidos de revisão oficiosa (em prazo alargado) nos casos como aquele que aqui se analisa.
Apresentam-se infra as (primeiras) declarações periódicas (DP) submetidas pela ora Requerente, com referência aos períodos de tributação em causa:
Período DP n.º Data Submissão
2020-01 ... 2020-03-03
2020-02 ... 2020-04-06
2020-03 ... 2020-05-04
2020-04 ... 2020-06-02
2020-05 ... 2020-06-24
2020-06 ... 2020-07-31
2020-07 ...| 2020-09-02
2020-08 ... | 2020-10-02
2020-09 ... 2020-11-09
2020-10 ... 2020-12-03
2020-11 ... 2021-01-11
2020-12 ... 2021-02-04
Nos termos do n.º 1 do artigo 59.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), “[o] procedimento de liquidação instaura-se com as declarações dos contribuintes ou, na falta ou vício destas, com base em todos os elementos de que disponha ou venha a obter a entidade competente”.
O n.º 3 do mesmo artigo, estipula que “[eJm caso de erro de facto ou de direito nas declarações dos contribuintes, estas podem ser substituídas:
a) Seja qual for a situação da declaração a substituir, se ainda decorrer o prazo legal da respectiva entrega;
b) Sem prejuízo da responsabilidade contra-ordenacional que ao caso couber, quando desta declaração resultar imposto superior ou reembolso inferior ao anteriormente apurado, nos seguintes prazos:
1) Nos 30 dias seguintes ao termo do prazo legal, seja qual for a situação da declaração a substituir;
Il) Até ao termo do prazo legal de reclamação graciosa ou impugnação judicial do acto de liquidação, para a correcção de erros ou omissões imputáveis aos sujeitos passivos de que resulte imposto de montante inferior ao liquidado com base na declaração apresentada;
III) Até 60 dias antes do termo do prazo de caducidade, para a correcção de erros imputáveis aos sujeitos passivos de que resulte imposto superior ao anteriormente liquidado”.
Segundo o n.º 5 do mesmo artigo, “[a] declaração de substituição entregue no prazo legal para a reclamação graciosa, quando a administração tributária não proceder à sua liquidação, é convolada em reclamação graciosa, de tal se notificando o sujeito passivo”.
No n.º 6 do mesmo artigo, determina-se que, “[dja apresentação das declarações de substituição não pode resultar a ampliação dos prazos de reclamação graciosa, impugnação judicial ou revisão do acto tributário, que seriam aplicáveis caso não tivessem sido apresentadas”.
O artigo 131.º, n.º 1 do CPPT estatui que, “[eJm caso de erro na autoliquidação, a impugnação será obrigatoriamente precedida de reclamação graciosa dirigida ao dirigente do órgão periférico regional da administração tributária, no prazo de 2 anos após a apresentação da declaração”.
Ou seja, “[a] reclamação graciosa é dirigida ao dirigente do órgão periférico regional da administração tributária, no prazo de dois anos a contar da data da apresentação da declaração” (cfr. Jorge Lopes de Sousa, in Código de Procedimento e de Processo Tributário, Anotado e Comentado, | Volume, 2011, p. 410).
Acresce que, conforme consta do Acórdão do STA, de 03-02-2021, no processo n.º 02683/14.5BELRS 0181/18: [..]
III - A doutrina e a jurisprudência referem-se à autoliquidação para aludir ao acto cuja iniciativa pertence ao contribuinte, por disposição legal, consubstanciando-se na apresentação de uma declaração, o que pressupõe as necessárias operações de qualificação (identificação do "an debeatur") e quantificação (aferição do "quantum debeatur") necessárias para avaliar o montante de imposto a pagar ou a restituir, normalmente acompanhada do respectivo meio de pagamento (cfr.artº.82, al.a), do C.I.R.C., então em vigor; artºs.27 e 41, do C.IV.A.).
IV - Deve o aplicador do Direito relevar o elemento sistemático de interpretação, dado que o legislador fiscal, quanto a uma situação de autoliquidação e de cômputo do respectivo prazo, utilizou como termo inicial a data de entrega da declaração (cfr.art?.131, nº.1, do C.P.P.T.), não se vislumbrando qualquer obstáculo a que se utilize o mesmo critério na interpretação do artº.78, nº.1, da L.G.T., para situações de autoliquidação, nas quais o termo inicial do prazo de quatro anos deve coincidir com a data de entrega da declaração que consubstancia a mesma autoliquidação, enquanto acto de "liquidação" que quantifica a obrigação tributária”.
Assim sendo, no caso vertente, mostra-se intempestivo o pedido de revisão dos atos tributários referentes aos períodos 2020-01 a 2020-12, por não ter sido apresentado no prazo de reclamação administrativa, a que se refere o n.º 1 do artigo 78.º da LGT e artigo 131.º, n.º 1 do CPPT.
Com efeito, tendo o pedido de revisão sido apresentado em 2023-12-28, não foi respeitado o prazo de 2 anos após a apresentação da respetiva declaração periódica.
Tal como se refere na Decisão Arbitral, com data de 2021-09-13, referente ao processo n.º 9/2021-T CAAD:
“[..]
O n.º 2 do artigo 78.º da LGT foi revogado pela Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março [Lei de Orçamento do Estado para 2016], revogação esta que operou e produziu os seus efeitos, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 12.º da LGT de imediato — com entrada em vigor daquela Lei de Orçamento do Estado, ou seja, a 31 de Março de 2016.
Sucede que o referido preceito legal tinha uma especial relevância no caso de autoliquidações, uma vez que, para efeitos de revisão oficiosa de acto tributário, ficcionava o erro imputável aos serviços.
[...]
Como a AT salienta neste contexto, para demonstrar a falta de preenchimento, no âmbito do pedido de revisão oficiosa, do pressuposto processual da tempestividade, cumpre responder a duas questões:
a) Determinar qual a redação do artigo 78.º da LGT é aplicável ao referido caso e;
b) Determinar se existe, no caso em apreço, erro imputável aos serviços, uma vez que daqui decorre a determinação do prazo para a apresentação da revisão oficiosa.
Ao tempo da prática do acto de autoliquidação em causa, i.e., em 30 de Maio de 2016, 0 n.º 1 do artigo 78.º da LGT determinava que (...).
Atendendo ao disposto no artigo 12.º da LGT, aplicar-se-á a «lei antiga» quando o erro invocado e que serve de fundamento ao procedimento de revisão oficiosa do acto tributário, previsto na 2.º parte do nº 1 do artigo 78.º da LGT, respeite a actos tributários autoliquidados praticados até 30 de Março de 2016, dado que, até essa data, estes se encontram abrangidos pela «ficção legal» de «imputabilidade do erro aos serviços» contida no entretanto revogado n.º 2 do mesmo preceito legal.
Por sua vez, aplicar-se-á a «lei nova», ou seja, a aludida redacção do artigo 78.º da LGT em que o nº 2 está revogado, a todos os procedimentos de revisão que tenham por objeto actos tributários autoliquidados, praticados a partir, inclusive, do dia 31 de Março de 2016, dado que é a partir dessa data que, dada a entrada em vigor da revogação do n.º 2, do artigo 78.º da LGT, os actos tributários autoliquidados deixaram de estar abrangidos pela «ficção legal» de «imputabilidade do erro aos serviços».
Sucede que na situação controvertida o acto tributário em causa foi praticado depois de 31 de Março de 2016, pelo que se deverá aplicar a lei nova para efeitos de determinação da possibilidade de ser revisto oficiosamente.
No caso em apreço, para a realização da revisão oficiosa exigir-se-ia assim que, cumulativamente, se tivesse verificado os seguintes requisitos: i) que o pedido tivesse sido formulado no prazo de quatro anos contados a partir do ato cuja revisão se solicita; ii) que o mesmo tivesse origem em «erro imputável aos serviços» e i) que este procedesse da iniciativa do contribuinte ou se realize oficiosamente pela AT.
Ou seja, ultrapassado o prazo para a impugnação judicial ou reclamação graciosa, o artigo 78.º,n.ºs 1,3 e 4, da LGT, estabelece, como requisito essencial da revisão oficiosa, que o erro seja imputável aos serviços.
Por sua vez, em conformidade com o disposto no artigo 131.º do CPPT que versa sobre a impugnação em caso de autoliquidação, ...
Mais se refira que «erro imputável aos serviços» poderá consistir num erro sobre os pressupostos de facto ou de direito, contudo a ilegalidade não pode ser imputável ao contribuinte por conduta negligente, mas à AT.
Ora, certo é que, no caso dos autos, o alegado erro na declaração do montante do imposto apenas poderá ser imputável à Requerente.
Com efeito, não se vê como pode a Autoridade Tributária ter contribuído para a prática desse erro no acto tributário em questão.
Ora, constata-se que só após o decurso dos prazos de reclamação graciosa e de impugnação judicial, é que o Requerente solicitou a revisão oficiosa da autoliquidação do período de 2015, ao abrigo do artigo 78.º da LGT.
Pelo que, não obstante à data da apresentação do pedido de revisão, junto da Direcção de Finanças de Lisboa, ainda se encontrar a decorrer o prazo de quatro anos a que se refere a segunda parte, do n.º 1, do artigo 78.º da LGT, não se verifica que a liquidação ora contestada enferme de erro, de facto ou de direito, imputável aos Serviços da Administração Tributária, que possibilite o alargamento do prazo para ser efectuada a sua revisão oficiosa — nem tão pouco a Requerente o alega, tendo-se esta limitado, no âmbito do pedido de revisão oficiosa, a fazer referência ao «erro na autoliquidação» constante do entretanto já revogado n.º 2, do artigo 78.º da LGT, não tendo sequer apresentado alegações neste processo para se defender da invocada excepção de intempestitividade invocada pela AT na sua Resposta.
Destarte, concluindo-se que o pedido de revisão em causa só teria enquadramento no prazo da reclamação, com fundamento em qualquer ilegalidade, previsto na 1.2 parte do n.º 1 do artigo 78.º da LGT e encontrando-se, à data da apresentação do pedido de revisão, em 15 de Maio de 2020, ultrapassado o prazo de reclamação, conclui-se ser extemporâneo.
Por outro lado, os fundamentos do presente pedido de revisão não têm enquadramento nos conceitos de injustiça grave ou notória ou de duplicação de coleta, a que se refere o artigo 78.º,n.ºs 4a 6, da LGT, nem tal se alega ou demonstra.
Assim sendo, mostra-se prejudicada a apreciação do mérito do pedido, bem como a verificação e validação do montante que se alega ter sido liquidado em excesso, sendo que esta última sempre caberia aos Serviços de Inspeção Tributária competentes.
Cfr. Doc. 3 do PPA e PA.
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A AT, notificou a Requerente em 06 de Maio de 2024, para vir exercer o seu direito de audição prévia a qual exerceu em 5 de junho de 2024. Cfr. Doc 9 e 11 do PPA, e PA.
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A 5 de agosto de 2024, a Administração Tributária emitiu decisão final, indeferindo totalmente a pretensão da Requerente, com os seguintes fundamentos:
“Il — CONCLUSÕES
Em face do exposto, somos de parecer que se deverá manter a proposta de decisão constante da informação n.º 2024..., de 24-04-2024, no sentido da REJEIÇÃO do presente pedido de revisão dos atos tributários e correspondente pedido de convolação em meio adequado”. Cfr. Doc 11 do PPA e PA.
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A Requerente apresentou no CAAD, em 18 de Novembro de 2024, o pedido de constituição do Tribunal Arbitral e de pronúncia arbitral tendo em vista a anulação parcial das (auto)liquidações de IVA impugnadas. – cf. registo de entrada no SGP do CAAD.
§3.2. Factos não provados
Com relevância para a decisão da causa, não foram identificados factos que devam ser considerados não provados.
§3.3. Fundamentação da matéria de facto
Cabe ao Tribunal Arbitral selecionar os factos relevantes para a decisão, em função da sua relevância jurídica considerando as várias soluções plausíveis das questões de Direito, bem como discriminar a matéria provada e não provada (cfr. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.ºs 3 e 4, do CPC, aplicáveis ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).
Segundo o princípio da livre apreciação dos factos, o Tribunal baseia a sua decisão, quanto à matéria de facto, na sua íntima e prudente convicção, formada a partir do exame e avaliação dos meios de prova trazidos ao processo, e de acordo com as regras da experiência (cfr. artigo 16.º, alínea e), do RJAT, e artigo 607.º, n.º 4, do CPC, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
Somente relativamente a factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, a factos que só possam ser provados por documentos, a factos que estejam plenamente provados por documentos, acordo ou confissão, ou quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (e.g., força probatória plena dos documentos autênticos, cfr. artigo 371.º do Código Civil), é que não domina, na apreciação da prova produzida, o referido princípio da livre apreciação (cfr. artigo 607.º, n.º 5, do CPC, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
Consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados como factos provados, tendo por base a análise crítica e conjugada dos documentos juntos aos autos.
Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas Partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada, nem os factos incompatíveis ou contrários aos dados como provados.
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Matéria de Direito
§4.1. Delimitação das questões a decidir:
Tendo em consideração a posição das Partes e a matéria de facto dada como assente, as questões a decidir são as seguintes:
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A aplicação do prazo de regularização de IVA nos termos do artigo 98.º, n.º 2, do CIVA;
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A exclusão da tributação nos termos do artigo 16.º, n.º 6, alínea b), do CIVA;
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Reembolso e direito a juros indemnizatórios nos termos do artigo 43.º da LGT.
§4.2. A aplicação do prazo de regularização de IVA nos termos do artigo 98.º, n.º 2, do CIVA
A Requerente alega, em suma, que que o pedido de regularização de IVA sub judice alicerça-se no artigo 98.º, n.º 2, do CIVA, podendo ser apresentado no prazo de quatro anos. Alega que é manifestamente inadmissível, à luz dos princípios gerais de Direito transversalmente aplicáveis no nosso ordenamento jurídico, fazer depender a operacionalidade da prerrogativa ínsita no artigo 98.º, n.º 2, do CIVA da verificação de requisitos plasmados no artigo 78.º, n.º 1, da LGT, designadamente da existência de erro imputável aos serviços, porquanto o legislador conferiu ao sujeito passivo o direito à regularização do imposto indevidamente liquidado no prazo de quatro anos sempre que se verifique erro de direito, independentemente da sua imputabilidade à Administração Tributária. E conclui, que tem direito à correção do erro de direito em referência nos quatro anos subsequentes à apresentação das declarações periódicas de IVA objeto (mediato) destes autos.
A Requerida sustenta que, não se tratando de erro imputável aos serviços, nem vigorando ao tempo dos factos, a ficção legal prevista no n.º 2 do artigo 78.º da LGT, que permitia considerar como tal o erro na autoliquidação, carecem de fundamento legal os pedidos de revisão oficiosa (em prazo alargado). No caso vertente, mostra-se intempestivo o pedido de revisão dos atos tributários referentes aos períodos 2020-01 a 2020-12, por não ter sido apresentado no prazo de reclamação administrativa, a que se refere o n.º 1 do artigo 78.º da LGT e artigo 131.º, n.º 1 do CPPT.Com efeito, tendo o pedido de revisão sido apresentado em 2023-12-28, não foi respeitado o prazo de 2 anos após a apresentação da respetiva declaração periódica
Cumpre apreciar,
O presente pedido reconduz-se a aferir se, in casu, se a Requerente pode ou não corrigir dentro do prazo de 4 anos previsto no artigo 98.º, n.º 2, do CIVA, o IVA referente aos períodos de Janeiro a Dezembro de 2020, a parte do IVA autoliquidado (no campo 4 das declarações periódicas) sobre o valor dos produtos disponibilizados com faturação “zero” relativa a descontos de quantidade concedidos aos clientes da Requerente.
Assim, com relevância para a matéria em discussão nestes autos, prevê o artigo 78.º, n.º 6, do CIVA o seguinte:
A correção de erros materiais ou de cálculo no registo a que se referem os artigos 44.º a 51.º e 65.º, nas declarações mencionadas no artigo 41.º e nas guias ou declarações mencionadas nas alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 67.º é facultativa quando resultar imposto a favor do sujeito passivo, mas só pode ser efetuada no prazo de dois anos, que, no caso do exercício do direito à dedução, é contado a partir do nascimento do respetivo direito nos termos do n.º 1 do artigo 22.º, sendo obrigatória quando resulte imposto a favor do Estado.
E dispõem o artigo 98.º, n.º 2, do CIVA, o seguinte:
Sem prejuízo de disposições especiais, o direito à dedução ou ao reembolso do imposto entregue em excesso só pode ser exercido até ao decurso de quatro anos após o nascimento do direito à dedução ou pagamento em excesso do imposto, respetivamente.
O legislador prevê duas modalidades de prazo para a correção em sede de IVA, com a seguinte classificação dicotómica:
(a) Correções derivadas de erro material ou de cálculo - governadas pelo artigo 78.º, n.º 6 do Código do IVA, que estabelece um prazo limite de dois anos ;
(b) Correções de erros de direito – cuja disciplina se extrai do artigo 98.º, n.º 2 do Código do IVA, que estabelece o prazo geral de quatro anos.
De acordo com o n.º 1 do referido artigo 98.º do Código do IVA “Quando, por motivos imputáveis aos serviços, tenha sido liquidado imposto superior ao devido, procede-se à revisão oficiosa nos termos do artigo 78.º da lei geral tributária”.
Nos termos do n.º 2 do artigo 98.º do Código do IVA, “Sem prejuízo de disposições especiais, o direito à dedução ou ao reembolso do imposto entregue em excesso só pode ser exercido até ao decurso de quatro anos após o nascimento do direito à dedução ou pagamento em excesso do imposto, respetivamente”. (negrito nosso)
Deste modo, face ao disposto no artigo 98.º, n.º 2, do Código do IVA, em caso de erro de direito, o prazo para a restituição de imposto pago (leia-se, liquidado) em excesso, tal como sucede na situação dos autos, é de quatro anos após o pagamento desse imposto.
Este critério é patente em diversos acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo. Vejam-se, a título ilustrativo:
-
o processo n.º 01427/14, de 28 de junho de 2017, que afastou o erro na interpretação e aplicação do artigo 23.º do Código do IVA do conceito de erro material, por ser “juridicamente complexa pelo que o erro decorrente da aplicação deste regime jurídico não constitui nem erro material nem erro de cálculo”;
-
os processos n.º 136/14.0BEALM, de 2 de dezembro de 2020, e n.º 01783/13.3BEBRG, de 18 de novembro de 2020, que consideraram que a inclusão do valor dos descontos na matéria tributável do IVA constitui um erro de direito, por contender com a interpretação de normas jurídicas e o quadro jurídico aplicável, podendo a correção da autoliquidação efetuada com base nesse erro de direito ser objeto de pedido de revisão oficiosa ao abrigo do disposto nos artigos 98.º n.º 2 do CIVA e 78.º da LGT, não tendo aplicação o prazo de dois anos previsto no n.º 6 do artigo 78.º do CIVA;
-
o processo n.º 0443/13.0BEPRT, de 17 de junho de 2020, segundo o qual “não constitui erro material ou de cálculo, antes erro na interpretação e aplicação do regime jurídico, a desconsideração pelo sujeito passivo de operações relativas a instrumentos financeiros derivados realizadas com contrapartes estabelecidas ou domiciliadas fora da União Europeia que conferiam direito a dedução, dela resultando alteração da percentagem de dedução (pro rata)”
-
o processo n.º 0498/15.2BEMDL, de 3 de junho de 2020, que dispõe que “o prazo aplicável para reclamar do IVA entregue em excesso numa situação enquadrável no denominado erro de direito é de quatro anos, nos termos previstos no artigo 98.º, n.º 2 do Código do IVA”.
Nos presentes autos, estamos perante uma questão de enquadramento das operações e em concreto da exclusão do valor tributável nos termos do artigo 16.º, n.º 6, alínea b), pelo que configura um erro de direito. Como acima exposto, tal erro deve poder ser retificado no prazo de quatro anos, de harmonia com o preceituado no artigo 98.º, n.º 2 do Código do IVA.
Nesse contexto, não se pode negar o reconhecimento do referido direito, razão pela qual o ato de indeferimento da revisão oficiosa apresenta vício por violação de lei, decorrente de erro na apreciação dos pressupostos jurídicos, materializado numa interpretação incorreta do artigo 98.º, n.º 2.
Tal circunstância impõe a declaração da sua ilegalidade e, por conseguinte, a sua anulação, na parte em que foi negado à Requerente o direito à regularização do IVA que autoliquidou em excesso sobre o valor dos produtos disponibilizados gratuitamente aos seus clientes no âmbito dos descontos de quantidade acordados com estes por terem atingido um determinado patamar superior de vendas.
Em face de todo o exposto, conclui-se pela errada interpretação do direito do disposto no artigo 98.º, n.º 2, do Código do IVA por parte da AT.
§4.3. Sobre a ilegalidade da exclusão de tributação com fundamento na violação dos artigo 16.º, n.º 6, alínea b), do CIVA
A Requerente defende que as suas transmissões de bens se encontram excluídas de tributação nos termos do artigo 16.º, n.º 6, alínea b), do CIVA. Sustentando, que no que especificamente respeita aos bónus de quantidade em causa nestes autos, os mesmos são conferidos no contexto de transmissões onerosas de bens, traduzindo um estímulo a que o cliente adquira mais quantidade de produto. Assim, os bónus de quantidade em espécie como os em causa nestes autos, em que os produtos entregues a título gratuito pelo sujeito passivo não têm necessariamente a mesma natureza dos produtos por si inicialmente vendidos ao cliente, quando diretamente relacionados com as concretas operações de venda, excluem-se, como os demais bónus de quantidade, da base tributável de imposto nos termos da alínea b) do n.º 6 do art.º 16.º do CIVA.
A Requerida, sustenta, a atribuição de determinados produtos a título gratuito - bónus em espécie – pela quantidade de compras efetuadas pelo cliente (e desde que os bónus sejam da mesma natureza dos bens adquiridos), fica excluída da base tributável da operação, nos termos da alínea b) do n.º 6 do artigo 16.º do Código do IVA. Quando se trate da entrega de produtos de natureza diferente dos faturados ao cliente, se está perante uma oferta, para efeitos do disposto no n.º 7 do artigo 3.º do Código do IVA e Portaria n.º 497/2008.
O thema decidendum respeita à qualificação jurídico-tributária dos “bónus” de produtos atribuídos pela Requerente aos seus clientes. Interessa saber se devem ser enquadrados como descontos em espécie ou de quantidade e beneficiar do regime de exclusão do valor tributável constante do artigo 16.º, n.º 6, alínea b) do CIVA ou se constituem ofertas e como tal tributados nos termos do n.º 7 do artigo 3.º do Código do IVA.
Assim sendo, importa então analisar a legislação e regulamentação nacional, bem como as normas e regulamentos comunitários aplicáveis a estas matérias.
4.3.1. As operações gratuitas e o IVA
A. O princípio da tributação proporcional sobre o preço das operações
O sistema comum do IVA estabelecido pela Diretiva 2006/112/CE[2] (“Diretiva IVA”) baseia-se no princípio fundamental de aplicação de um imposto exatamente proporcional ao preço dos bens e serviços transacionados[3] e rege-se pelo princípio da neutralidade, de acordo com o qual o imposto deve ser cobrado da forma mais geral possível, abranger todas as fases de produção e de distribuição e sujeitar à mesma carga fiscal bens e serviços do mesmo tipo, em todos os Estados-Membros[4].
É este princípio que subjaz ao recorte do caráter “oneroso” das operações que caem no âmbito de incidência do IVA, implicando que comportem um “preço” ou contraprestação, seja em dinheiro ou em espécie. A regra geral é, assim, a da tributação das transações efetuadas a título oneroso (cf. artigo 2.º, n.º 1, alíneas a), b) e c) da Diretiva IVA e artigo 1.º, n.º 1, alínea a) do Código do IVA; Acórdão do Tribunal de Justiça – “TJUE” – Naturally Yours, 230/87, de 23 de novembro de 1988, 15 a 18).
É também o referido princípio de um “imposto exatamente proporcional ao preço” que determina que o valor tributável para efeitos de IVA deva corresponder ao valor transacional, i.e., à contraprestação obtida ou a obter do adquirente, do destinatário ou de um terceiro, e não ao valor normal das operações (cf. artigos 72.º e seguintes da Diretiva IVA com correspondência no artigo 16.º do Código do IVA).
Não obstante, a par da disciplina geral descrita, o sistema do IVA prevê um regime especial de tributação de operações realizadas a título gratuito, e por conseguinte, desprovidas de “preço” ou de “contraprestação”, equiparando-as a operações efetuadas a título oneroso (cf. artigo 16.º da Diretiva IVA, transposto pelo artigo 3.º, n.º 3, alínea f) do Código do IVA). O objetivo fundamental desta assimilação é o de tributar os autoconsumos realizados pelos sujeitos passivos como consumos finais (que são), impedindo que beneficiem da desoneração do IVA que procede do direito à dedução.
Nestes casos, apesar da ausência de qualquer pagamento, a tributação impõe-se como corolário do princípio da igualdade e a benefício da neutralidade. O sujeito passivo deve ser equiparado a um consumidor final quando afeta um bem ou serviço do património da sua empresa, relativamente ao qual recuperou (deduziu) o imposto incorrido, ao seu uso privado ou ao do seu pessoal, ou a sectores de atividade não tributados (“autoconsumos externos”)[5].
Refere a este propósito o TJUE que o objetivo “é garantir a igualdade de tratamento entre o sujeito passivo que afeta um bem ou que fornece serviços para o seu uso privado ou o do seu pessoal, por um lado, e o consumidor final que adquire um bem ou um serviço do mesmo tipo, por outro (…). Para a realização deste objetivo, os referidos artigos 5.°, n.° 6, e 6.°, n.° 2, alínea a) [da Sexta Diretiva, atuais artigos 16.º e 26.º da Diretiva IVA], impedem que um sujeito passivo que pôde deduzir o IVA na aquisição de um bem afetado à sua empresa se subtraia ao pagamento deste imposto, quando afeta este bem do património da sua empresa ao seu uso privado ou ao do seu pessoal, beneficiando assim de vantagens indevidas em relação ao consumidor final que adquire o bem pagando o IVA” – cf. Acórdão do TJUE, Hotel Scandic, C-412/03, de 20 de Janeiro de 2005, processo C-412/03, 23.
Nas operações gratuitas não é acordada qualquer contraprestação, circunstância em que o critério primordial do preço é inaplicável, valendo como referencial da base de incidência o preço de aquisição ou o preço de custo dos bens (cf. artigo 74.º da Diretiva IVA, transposto pelo artigo 16.º, n.º 2, alínea b) do Código do IVA).
B. O regime de tributação das ofertas
É no contexto descrito que se enquadra a disciplina constante do artigo 16.º da Diretiva IVA, segundo o qual:
“É assimilada a entrega de bens efetuada a título oneroso a afetação, por um sujeito passivo, de bens da sua empresa ao seu uso próprio ou do seu pessoal, a transmissão desses bens a título gratuito ou, em geral, a sua afetação a fins alheios à empresa, quando esses bens ou os elementos que os constituem tenham conferido direito à dedução total ou parcial do IVA.
Todavia, não é assimilada a entrega de bens efetuada a título oneroso a afetação a ofertas de pequeno valor e a amostras efetuadas para os fins da empresa.”
Esta norma da Diretiva foi rececionada pelo artigo 3.º, n.º 3, alínea f) do Código do IVA, que considera como transmissões de bens: “(…) a afetação permanente de bens da empresa, a uso próprio do seu titular, do pessoal, ou em geral a fins alheios à mesma, bem como a sua transmissão gratuita, quando, relativamente a esses bens ou aos elementos que os constituem, tenha havido dedução total ou parcial do imposto”.
Ficam excluídos do regime vertente, nos termos da densificação do n.º 7 do artigo 3.º do Código do IVA, e nas condições definidas por portaria do Ministro das Finanças, “os bens não destinados a posterior comercialização que, pelas suas características, ou pelo tamanho ou formato diferentes do produto que constitua a unidade de venda, visem, sob a forma de amostra, apresentar ou promover bens produzidos ou comercializados pelo próprio sujeito passivo, assim como as ofertas de valor unitário igual ou inferior a (euro) 50 e cujo valor global anual não exceda cinco por mil do volume de negócios do sujeito passivo no ano civil anterior, em conformidade com os usos comerciais.”.
O conceito indeterminado de oferta de pequeno valor previsto na Diretiva IVA é, deste modo, concretizado pela lei interna em limites quantitativos concretos que, de acordo com o TJUE, podem ser fixados pelos Estados-Membros, desde que observadas determinadas condições – cf. Acórdão do TJUE, EMI Group, C-581/08, de 30 de setembro de 2010, 44 e 45.
De referir que a Portaria n.º 497/2008, de 24 de junho, veio regulamentar os termos e condições em que ocorre a exclusão da tributação de amostras e de ofertas de pequeno valor prevista no Código do IVA, dispondo, no que às ofertas respeita, o seguinte:
“Artigo 3.º
Delimitação do conceito de oferta
1 – A oferta pode ser constituída por bens comercializados ou produzidos pelo sujeito passivo ou por bens adquiridos a terceiros.
2 – Quando a oferta seja constituída por um conjunto de bens, o valor de € 50, a que se refere o n.º 7 do artigo 3.º do Código do IVA, aplica -se a esse conjunto.
3 – Excluem-se do conceito de oferta os bónus de quantidade concedidos pelo sujeito passivo aos seus clientes.”
Interessa notar que a delimitação de conceitos constitutivos dos pressupostos de incidência fiscal, como os de amostras e ofertas, por intermédio de portaria, pode suscitar questões similares àquelas que foram discutidas a propósito da fixação de limites quantitativos pela Circular n.º 19/89, de 18 de dezembro[6], sobre os quais recaiu juízo de inconstitucionalidade material e formal determinante da sua desaplicação, embora tenha sido um exemplo de longevidade, pois, como refere Xavier de Basto, a Circular resistiu 18 anos ao escrutínio judiciário (cf. “Sobre o regime IVA das amostras e das ofertas de «pequeno valor»”, Revista da Câmara dos Técnicos Oficiais de Contas, n.º 90, setembro 2007, e o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo “STA”, proc. n.º 01180/06, de 21 de março de 2007[7]).
Sem prejuízo do exposto, e tal como refere a portaria, devem considerar-se excluídos do conceito de oferta e, consequentemente da tributação em IVA, os bónus de quantidade.
Um dos pontos a favor deste entendimento prende-se com a própria teleologia do regime especial de tributação em IVA das transmissões gratuitas de bens ou “ofertas”, que, como acima referido, é essencialmente uma técnica, utilizada pela Diretiva e pelo Código do IVA, de assimilação a operação onerosa de situações de afetação de bens (no pressuposto de que relativamente a estes se deduziu o IVA) para evitar o desvio, para uma zona de não tributação, de bens utilizados para finalidades de consumo (final), que não quadra com a figura do desconto, seja comercial ou financeiro, em valor ou em espécie, concedido pelos sujeitos passivos aos seus clientes no âmbito de uma relação comercial que envolve a realização de operações a título oneroso, nas quais são estabelecidas prestações recíprocas.
No entanto, para além da tributação de situações materialmente equivalentes às de um consumo final, o TJUE, no Acórdão Kuwait Petroleum, C-48/97, de 27 de abril de 1999, preconiza que, se o desconto for integral, ou seja, correspondente a 100% do preço, mesmo que seja concedido para fins da empresa, e portanto não enquadrável como “consumo final” ou para fins alheios, estamos perante uma transmissão e bens a título gratuito abrangida pela equiparação a operações onerosas operada pela Diretiva IVA (à data do aresto, pelo artigo 5.º, n.º 6 da Sexta Diretiva, a que corresponde o atual artigo 16.º da Diretiva IVA)[8].
Neste processo estava em causa um sistema promocional de atribuição de selos[9] por cada abastecimento de 12 litros de combustível. A acumulação de um determinado número de selos permitia ao cliente escolher brindes de um catálogo, sem despender qualquer importância monetária adicional. O Tribunal europeu reconheceu expressamente que a transmissão dos brindes se inseria nas finalidades da empresa, pois visava o aumento das vendas de combustível, porém, manteve que, ainda assim, a entrega devia ser qualificada como oferta (transmissão gratuita) e tributada, caso não se subsumisse ao conceito de pequeno valor – cf. ponto 19 do Acórdão Kuwait Petroleum.
Deste modo, a gratuitidade é uma propriedade das operações de entregas de bens qualificadas como ofertas, incluindo-se nesse conceito os descontos integrais, de 100%, mas já não as meras reduções de preço. Interessa notar que as ofertas, na aceção do IVA, não reclamam um animus donandi, de liberalidade pura, pois como acabou de se ver, normalmente têm intuitos comerciais que comungam com a figura dos descontos e abatimentos, visando, de um modo geral, cativar os clientes e, por essa via, incentivá-los a comprar.
Uma operação considera-se realizada a título oneroso, não preenchendo dessa forma os pressupostos do conceito de oferta e transmissão gratuita, se “existir entre o fornecedor e o comprador uma relação jurídica durante a qual são transacionadas prestações recíprocas, constituindo o preço recebido pelo fornecedor o contravalor efetivo do bem fornecido” – cf. ponto 19 do Acórdão Kuwait Petroleum.
Em conclusão, para que se possa falar em desconto e afastar-se a disciplina das transmissões gratuitas (“ofertas”) é necessário identificar previamente uma operação a título oneroso. Acresce que a redução de preço terá de ser apenas parcial, caso contrário estar-se-á perante uma transmissão de bens gratuita. Neste sentido, conforme refere Mafalda Coelho Moreira “resulta da jurisprudência comunitária que a concessão de um desconto ou de um abatimento do preço pressupõe a entrega de um bem ou a prestação de um serviço a título oneroso”, ponto que, de seguida, se aprecia de forma mais detalhada (cf. da autora, “O IVA nas Atividades Promocionais com Vista à Fidelização e Angariação de Clientela”, Cadernos IVA 2014, Almedina, p. 247).
C. O conceito de descontos. Redução do valor tributável de operações realizadas a título oneroso
A realização de operações a título oneroso pressupõe um nexo direto (“direct link”), resultante de um vínculo sinalagmático de prestações recíprocas, entre uma operação configurada objetivamente como transmissão de bens ou prestação de serviços e uma contraprestação que constitua a sua remuneração – cf. Acórdãos do TJUE, Hong-Kong Trade, 89/81, de 1 de abril de 1982, 10; Apple and Pear, 102/86, de 8 de março de 1988, 12; Naturally Yours, acima citado, 11 e 12; e Tolsma, C-16/93, de 3 de março de 1994, 12 a 20.
De acordo com o artigo 73.º da Diretiva IVA, secundado pelo artigo 16.º, n.º 1 do Código do IVA, “o valor tributável compreende tudo o que constitui a contraprestação que o fornecedor ou o prestador tenha recebido ou deva receber (…) do aquirente, do destinatário ou de um terceiro”. Tal valor corresponde rigorosamente ao da contraprestação real e subjetivamente acordada, podendo ser paga pelo cliente ou por um terceiro, e tem de ter tradução pecuniária, embora possa consistir num pagamento em espécie, conquanto convertível monetariamente – cf. Acórdãos do TJUE, Naturally Yours, acima citado; Balkan and Sea, C-621/10, de 26 de abril de 2012; e Orfey Balgaria, C-549/11, de 19 de dezembro de 2012.
Do valor tributável para efeitos de IVA são excluídos os “abatimentos e bónus concedidos ao adquirente ou ao destinatário” – cf. artigo 79.º, alínea b) da Diretiva IVA e artigo 16.º, n.º 6, alínea b) do Código do IVA, sendo que o diploma nacional acrescenta a esta enumeração o sinónimo “descontos”.
A jurisprudência comunitária é, neste domínio, extensa, em particular no que se refere a campanhas promocionais realizadas com vales de desconto ou cupões. De forma resumida, o TJUE entende que apenas devem ser incluídas no valor tributável as quantias efetivamente recebidas pelo sujeito passivo e não os valores nominativos constantes dos vales utilizados/rebatidos pelos clientes, relativamente aos quais não foi recebida qualquer contraprestação (cf. Acórdão do TJUE, Acórdão Boots, C-126/88, de 27 de março de 1990), ou foi recebido um pagamento inferior ao valor nominal do vale, caso em que deve prevalecer a consideração do montante realmente recebido pelo fornecedor pela venda do vale e não o valor facial (cf. Acórdão do TJUE, Argos, C-288/94, de 24 de outubro de 1996).
O entendimento do TJUE mantém-se no caso de o desconto (designadamente por via de vales) ser dado (suportado) pelo fabricante, mas apenas se materializar numa fase posterior, de venda a retalho. Na interpretação do Acórdão Elida Gibbs, C-317/94, de 24 de outubro de 1996, o Tribunal europeu reconhece o direito de o fabricante ver reduzida a matéria coletável, através da diminuição do valor indicado no cupão e reembolsado ao retalhista, independentemente do número de intermediários na cadeia de fornecimento. Entende o TJUE que, quanto às transações intermédias, não é necessário reajustar a matéria coletável que se mantém inalterável, dado que, no que respeita a essas transações, a aplicação do princípio da neutralidade é garantida recorrendo ao regime de dedução (33). Esta interpretação foi recentemente reiterada pelo TJUE no Acórdão Boehringer, C-462/16, de 20 de dezembro de 2017.
Independentemente da atribuição do desconto ser realizada por intermédio de vales e no caso de redução de preço posterior ao momento em que se realiza a operação, o TJUE continua a fazer prevalecer o valor efetivamente recebido pelo fornecedor, concluindo pela redução do valor tributável na medida do desconto ou abatimento concedido ao cliente – cf. Acórdão Freemans, C-86/99, de 29 de Maio de 2001.
A intangibilidade do princípio da incidência do IVA sobre o preço efetivamente recebido, que perpassa o modelo de tributação proporcional sobre o (valor do) consumo, tem repercussões em diversas soluções do sistema comum do IVA, como, por exemplo, a redução do valor tributável e consequente restituição aos sujeitos passivos do valor do imposto liquidado em excesso, quando, após a realização das operações, ocorram vicissitudes que determinem a sua anulação, rescisão, resolução, ou o não recebimento do preço, como estipula o artigo 90.º da Diretiva IVA, ainda que remeta para as condições que sejam fixadas pelos Estados-Membros, que, no caso português, nos reconduzem aos artigos 98.º e 78.º do Código do IVA.
De referir que o artigo 79.º, alínea b) da Diretiva IVA constitui a fonte do artigo 16.º, n.º 6, alínea b) do Código do IVA e exclui do valor tributável tanto os bónus em dinheiro, como em espécie.
No caso dos bónus em espécie, o seu tratamento como descontos ou abatimentos ao valor tributável chegou a ser condicionado ao facto de os bens atribuídos “gratuitamente” terem natureza idêntica à dos bens vendidos como se extrai da fundamentação do Acórdão do STA, no proc. n.º 020365, de 10 de novembro de 1999, que considera como “ofertas e não descontos, abatimentos ou bónus, os produtos entregues gratuitamente aquando da venda de um outro diferente.” No mesmo sentido também se encontram diversas Informações da Autoridade Tributária[10].
No entanto, afigura-se que o critério decisivo para o enquadramento dos bónus em espécie na disciplina da determinação do valor tributável, no sentido da sua não inclusão e consequente não tributação em IVA, é o da sua indispensável conexão – direct link – com o fornecimento dos bens a que estão (devem estar) associados, por forma que sejam enquadráveis na mesma operação onerosa relativamente à qual é calculada a matéria coletável. Dito de outro modo, o bónus está dependente e condicionado pela venda (prévia ou contemporânea) de outros bens.
Para tanto, conforme acima referido, a operação não pode ser totalmente gratuita, pois, nesse caso, a totalidade do fornecimento de bens é tratada como “oferta”, de harmonia com a interpretação preconizada no Acórdão do TJUE, Kuwait Petroleum, acima citado.
Afigura-se, pois, que a questão central não é tanto a de os bónus deverem ser produtos com natureza idêntica, mas a da sua relação com os fornecimentos efetuados a título oneroso pelo sujeito passivo e o contexto e condições em que são concedidos[11].
Seguiremos de perto o que ficou consignado no citado Acórdão Arbitral do CAAD proferido no processo n.º 141/2012, de 5 de fevereiro de 2014, argumentação à qual não podemos deixar de aderir:
“Os bónus, pelas suas características, não se confundem com as ofertas de pequeno valor: estamos, no caso dos bónus, no âmbito de uma operação de transmissão de bens ou prestações de serviços a um cliente em que lhe são atribuídos gratuitamente bens ou serviços de igual natureza; no caso das ofertas de pequeno valor […], (i) o âmbito é mais alargado quanto aos seus destinatários, que podem ser clientes ou terceiros, (ii) não há uma conexão direta com uma operação de venda concreta e o (iii) seu valor deve, segundo as práticas comerciais ou ditames legais, ser reduzido.
Apesar da existência de uma relação entre o bónus e uma operação concreta, poderá não existir uma correlação direta entre o seu valor e o saldo de vendas dos clientes. Com efeito, razões de natureza comercial poderão ditar, por exemplo, a necessidade de uma política comercial mais agressiva relativamente a um cliente ou grupo de clientes específicos.
Sem prejuízo, é comum às duas figuras o objetivo de promoção de um produto e o incremento das vendas ou prestações de serviços. Caberá ao sujeito passivo, na liberdade do exercício de uma atividade comercial, optar pelos meios que considere mais idóneos e eficazes para atingir aqueles objetivos. […]
Conforme referimos, os conceitos de bónus ou ofertas de pequeno valor, apesar do enquadramento em sede de IVA ser similar, não são sinónimos e devem atender ao “animus” subjacente: foi intenção do sujeito passivo atribuir gratuitamente bens de igual natureza no âmbito de uma operação determinada ou, em sentido diverso, tratou-se de uma oferta de reduzido valor destinada a promover um determinado produto, sem qualquer relação de dependência direta com os produtos vendidos ao destinatário da oferta? Ora, da documentação junta ao pedido de pronúncia arbitral […] resulta provada a conexão entre as ofertas gratuitas e as vendas efetuadas aos clientes, pelo que não podemos deixar de concluir que se encontram verificadas os requisitos para a qualificação como bónus.
E em sentido semelhante quanto à qualificação como bónus, os Acórdãos Arbitral n.º 539/2015-T, 588/2016-T, 12/2018-T e 781/2019-T.
D. Apreciação
Aplicando o exposto ao caso vertente, para efeitos de exclusão do valor tributável nas transmissões onerosas de bens sujeitas a IVA, nos termos da alínea b) do n.º 6 do artigo 16.º do Código do IVA, as entregas adicionais de bens atribuídas a título de bónus de quantidade — seja em espécie, seja sob a forma de produto — concedidas pelo sujeito passivo aos seus clientes, revestem-se de uma ligação direta às operações onerosas de venda ou fornecimento de bens por este realizadas. Não se exige, contudo, que tais bónus tenham a mesma natureza dos bens transacionados, sendo admissível que assumam a forma de “bónus”, correspondentes a produtos distintos dos vendidos.
No presente caso, os produtos entregues a título de “bónus” pela Requerente aos seus clientes foram-no no quadro de relações comerciais com estes estabelecidas, no âmbito do fornecimento continuado de produtos farmacêuticos, médicos, ortopédicos, sanitários e hospitalares, e na dependência desses fornecimentos, em função da compra de determinadas quantidades, conforme contratualmente acordado com os clientes.
Atendendo ao exposto, conclui-se que estamos perante descontos de quantidade, concedidos no quadro de transmissões de bens efetuadas a título oneroso e que, assim, estão previstos no regime de determinação da matéria coletável do IVA, os bónus atribuídos pela Requerente encontram-se numa relação de estrita dependência com transmissões de bens a título oneroso por si realizadas, operando através da disponibilização gratuita de produto quando as vendas atingem determinado patamar, estão diretamente relacionados com as concretas operações de venda, excluem-se, como os demais bónus de quantidade, da base tributável de imposto, são assim enquadráveis na exclusão prevista na alínea b) do n.º 6 do art.º 16.º do CIVA, em consonância com o artigo 79.º, alínea b) da Diretiva IVA.
Nesse contexto, não se pode negar o reconhecimento do referido direito, razão pela qual o ato de indeferimento da revisão oficiosa apresenta vício por violação de lei, decorrente de erro na apreciação dos pressupostos jurídicos, materializado numa interpretação incorreta da alínea b) do n.º 6 do art.º 16.º do CIVA.
Tal circunstância impõe a declaração de ilegalidade e, por conseguinte, anulação, da decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa submetido pela Requerente bem como parcialmente dos atos de autoliquidação de IVA objeto desta ação arbitral, referentes aos períodos de Janeiro a Dezembro de 2020, na parte em que contêm IVA autoliquidado (no campo 4 das declarações periódicas) sobre o valor dos produtos disponibilizados com faturação “zero” relativos a descontos de quantidade concedidos aos clientes da Requerente.
§4.4. Pedido de restituição do imposto indevidamente pago e juros indemnizatórios
A Requerente pede reembolso do imposto pago indevidamente, e peticiona o direito a juros indemnizatórios.
Na sequência da declaração de ilegalidade e anulação da decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa, há lugar ao reembolso das prestações tributárias que indevidamente tenham sido suportadas pela Requerente, por força do disposto nos artigos 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e 100.º da LGT, pois tal afigura-se essencial para restabelecer a situação que existiria se aqueles atos tributários não tivessem sido praticados nos termos em que foram. Cabe à AT em sede de execução da decisão arbitral repor a situação que existiria não fosse o erro das autoliquidações agora parcialmente anuladas.
No caso concreto, apesar da prova, pela Requerente, da atribuição dos bónus de quantidade, tendo junto as respetivas faturas a valor zero (Documentos 6 e 7), não foi mencionado o IVA nessas faturas, embora tenha sido contabilizado (conta #2433200). Assim, o imposto em causa consta apenas dos extratos de conta e da autoliquidação no campo 4 das declarações periódicas de IVA, conjuntamente com o valor do IVA liquidado relativo a outras operações do sujeito passivo.
Assim, não dispõe este tribunal arbitral de elementos para determinar com rigor os valores de IVA a serem anulados em relação a cada um dos doze atos de autoliquidação impugnados (as declarações periódicas de IVA de Janeiro a Dezembro de 2020) que têm de ser confirmados pela análise/confronto dos referidos extratos da conta de IVA com os valores de IVA reportados no campo 4 das declarações periódicas em causa.
Deste modo, deve a Requerida, em execução do presente julgado, quantificar os montantes devidos à Requerente, com observância do decidido, nos termos do artigo 24.º, n.º 1, do RJAT.
A Requerente peticiona ainda o direito a juros indemnizatórios computados sobre o montante cuja regularização foi rejeitada pela Administração Tributária desde a data de indeferimento do pedido de revisão oficiosa, nos termos dos artigos 43.º, n.º 1, da LGT e 61.º, n.º 5, do CPPT.
Quanto ao pedido de juros indemnizatórios formulado pela Requerente, o disposto no artigo 43.º, n.º 1, da LGT estabelece que são devidos juros indemnizatórios quando se determine, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.
O n.º 5 do artigo 24.º do RJAT, ao dizer que «é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário», deve ser entendido como permitindo o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios no processo arbitral, posição que tem sido acolhida de forma unânime pela jurisprudência.
Nos termos do art. 24º, 5 do RJAT “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”, o que remete para o disposto nos artigos 43.º, n.º 1, e 61.º, n.º 5, de um e outro desses diplomas.
Tudo isso condicionado pela existência, ou não, de erro imputável aos serviços, que já determinámos ter existido.
Por efeito da reconstituição da situação jurídica em resultado da anulação do acto tributário, e em aplicação do art. 24º, 1, b) e 5 do RJAT, há assim lugar ao reembolso do imposto indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios.
A própria Requerente sustenta, no seu pedido de pronúncia, que, tratando-se de um caso de autoliquidação, o erro dos serviços só se manifesta no momento do indeferimento da revisão oficiosa, pelo que os juros indemnizatórios só são peticionados a partir dessa data, ou seja, desde 6 de Agosto de 2024.
Segue-se o Supremo Tribunal Administrativo, no Acórdão proferido no processo n.º 0360/11.8BELRS, de 2021-04-07:
“(…) afigura-se-nos justo e equitativo que a indemnização ao contribuinte (decorrente do pagamento de juros indemnizatórios, pela AT) não retroaja ao momento da prática do ato de retenção na fonte (da responsabilidade do substituto tributário), porquanto, tratando‑se de uma situação de autoliquidação, só com a competente impugnação administrativa, atempada, os serviços da AT ficam em condições de conhecer e reparar uma cometida ilegalidade, sendo, a partir do momento em que não assumem a respetiva reparação, justificado o ressarcimento do sujeito passivo, decorrente de não receber e passar a dispor desde esse momento (que podia ter sido de viragem) do imposto indevidamente entregue ao Estado, através do mecanismo da substituição tributária.
Neste ponto, apenas, resta problematizar se, na situação versada (ou equiparáveis), o dies a quo deve corresponder ao da data da apresentação da impugnação administrativa (reclamação graciosa e/ou recurso hierárquico) ou ao do momento em que os competentes serviços da AT se pronunciam/comunicam o resultado da pronúncia ao contribuinte”.
Os juros indemnizatórios são, pois, devidos, nos termos dos arts. 43º, 1 e 4, e 35º, 10 da LGT, 61º, 5 do CPPT, 559º do Código Civil e Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril, à taxa legal supletiva, e contados desde 6 de Agosto de 2024 até à data do processamento da respetiva nota de crédito.
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Decisão
De harmonia com o exposto, acordam os árbitros, neste Tribunal Arbitral, em:
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Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral.
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Condenar a Requerida a reembolsar o IVA autoliquidado pela Requerente no ano de 2020 quanto aos “Bónus” de quantidade, no valor que for determinado em execução da presente decisão arbitral;
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Julgar procedente o pedido de condenação da AT ao pagamento de juros indemnizatórios desde a data de indeferimento do pedido de revisão oficiosa.
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Condenar a Requerida nas custas do processo.
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Valor do Processo
De harmonia com o disposto nos artigos 305.º, n.º 2, do CPC, 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT, e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 118.457,55 (cento e dezoito mil, quatrocentos e cinquenta e sete euros, e cinquenta e cinco cêntimos), indicado pela Requerente e não contestado pela Requerida, correspondente ao valor das liquidações de IVA cuja anulação constitui o objeto desta ação.
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Custas Arbitrais
Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 3.060,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, ficando o respetivo pagamento a cargo da Requerida conforme decidido supra (artigo 22º-4, do RJAT).
Notifique-se.
Lisboa, 8 de Maio de 2025
Os Árbitros,
Alexandra Coelho Martins
Sofia Quental
Pedro Guerra Alves, Relator
[1] Podendo também ser contemporâneos.
[2] Datada de 28 de novembro de 2006 (JOUE L 347, de 11.12.2006).
[3] Desígnio que consta logo do artigo 1.º, n.º 2 da Diretiva IVA.
[4] Cf. considerandos 5 e 7 da Diretiva IVA.
[5] Sobre este tema v. Xavier de Basto, “A Tributação do Consumo e a sua Coordenação Internacional”, Lisboa, Ciência e Técnica Fiscal, n.º 164, 1991, pp. 160-170 e 174-176.
[6] Esta Circular tinha sido precedida pela Circular n.º 3/87, de 9 de fevereiro de 1987.
[7] Ao qual se seguiram diversos Acórdãos do STA de idêntico sentido, designadamente nos processos n.ºs 01167/06, de 16 de Maio de 2007; 0563/07, de 17 de outubro de 2007; 0204/08, de 14 de julho de 2008, e 0470/08, de 15 de outubro de 2008.
[8] Pontos 16, 17 e 23 do citado Acórdão Kuwait Petroleum.
[9] Em Portugal é comum a designação de “pontos”.
[10] V., por todos, os referidos por Mafalda Coelho Moreira, “O IVA nas Atividades Promocionais com Vista à Fidelização e Angariação de Clientela”, Cadernos IVA 2014, Almedina, pp. 253-254, notas de rodapé 25 e 27.
[11] Neste sentido, Mafalda Coelho Moreira, “O IVA nas Atividades Promocionais com Vista à Fidelização e Angariação de Clientela”, Cadernos IVA 2014, Almedina, pp. 254-256.