Decisão Arbitral
Os árbitros Cons. Jorge Lopes de Sousa (árbitro-presidente), Dr. Gaspar Vieira de Castro e Dr. A. Sérgio de Matos (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 15-01-2025, acordam no seguinte:
1. Relatório
A... LDA., contribuinte fiscal n.º..., com sede em ..., Pombal, doravante designada por «Requerente», apresentou pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante “RJAT”), tendo em vista anulação da liquidação de IRC e juros compensatórios relativa ao período de 2022, com o n.º 2024... referente a IRC e JC, no valor de € 1.032.308,07.
A Requerente pede ainda os «juros em causa».
É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante também identificada por “AT” ou simplesmente “Administração Tributária”).
O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 08-11-2024.
Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral coletivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
Em 27-12-2024, foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados das alíneas a) e e) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral coletivo foi constituído em 15-01-2025.
A Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou resposta, em que, além do mais, defendeu a improcedência do pedido de pronúncia arbitral.
Em 17-03-2025, realizou-se uma reunião em que foi produzida prova testemunhal e por declarações de parte e decidido que o processo prosseguisse com alegações simultâneas.
Depois da reunião, a Requerente apresentou documentos.
As Partes apresentaram alegações.
O tribunal arbitral foi regularmente constituído, à face do preceituado na alínea e) do n.º 1 do artigo 2.º, e do n.º 1 do artigo 10.º, ambos do RJAT, e é competente.
As partes estão devidamente representadas, gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (artigo 4.º e n.º 2 do artigo 10.º, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
O processo não enferma de nulidades.
2. Matéria de facto
2.1. Factos provados
Consideram-se provados os seguintes factos com relevo para a decisão:
-
Em 17-02-2023, foram efectuadas diligências de inspecção que tiverem por objecto a contagem dos valores em caixa existentes na sede e estabelecimentos da Requerente, ao abrigo de despachos com os n.ºs DI2023..., DI2023..., DI2023..., DI2023... e DI2023..., que constam do anexo I do processo administrativo, cujos teores se dão como reproduzidos;
-
As referidas diligências não foram precedidas de qualquer notificação;
-
Em 22-04-2024, a Autoridade Tributária e Aduaneira iniciou um procedimento inspectivo à Requerente, ao abrigo da Ordem de Serviço OI2023..., de 13-11-2023, em que foi elaborado o Relatório da Inspecção Tributária (RIT) que consta do processo administrativo, cujo teor se dá como reproduzido, em que se refere, além do mais, o seguinte:
I.4.1. Correção meramente aritméticas ao imposto – IRC: Tributações autónomas
(...)
Da análise do balanço ressalta o elevado valor dos fluxos de caixa (caixa e depósitos bancários), no montante de €2.369.504,61, cujo detalhe é apresentado no Quadro 05041-A da IES.
c) Quadro 05041-A – Fluxos de Caixa: Quantia escriturada e movimentos do período
Conforme se evidência no quadro anterior, o saldo de caixa é o que mais contribui para o valor das disponibilidades declaradas no final do ano. O elevado valor da conta caixa, cujo saldo a 31-12-2022 apresenta o montante de €2.014.126,87, foi confirmado nos balancetes exibidos pelo sujeito passivo e analisado posteriormente, conforme se detalha no capítulo seguinte deste relatório.
À semelhança do ano de 2022, também nos anos de 2019 a 2021 o saldo de Caixa é o que mais contribui para as disponibilidades declaradas anualmente, apresentando uma tendência sempre crescente. - No ano de 2020 verifica-se um aumento do saldo de caixa face a 2019 no valor de €365.792,19(€1.335.676,68 - €969.884,49).
- No ano de 2021 verifica-se um aumento do saldo de caixa face a 2020 no valor de €177.030,14(€1.512.706,82 - €1.335.676,68).
- No ano de 2022 verifica-se um aumento do saldo de caixa face a 2021 no valor de €501.420,05 (€2.014.126,87 - €1.512.706,82).
Tendo em conta a atividade exercida, o saldo de Caixa apresenta-se anormalmente elevado, refletindo uma tendência crescente como se pode constatar nos quadros anteriores. Estes factos impõem um controlo dirigido à conta caixa.
IV.2. Processo individual do sujeito passivo
IV.2.1. Contagem de caixa (DI2023.../.../.../.../...)
Em 17 de fevereiro de 2023, pelas 10H00, procedeu-se à contagem dos valores que se encontravam em Caixa, que decorreu em simultâneo na sede do sujeito passivo e nos 4 estabelecimentos de padaria e pastelaria nos quais este exerce a sua atividade, cujas moradas se encontram indicadas no capítulo III.3.3.
As diligências foram credenciadas com Despachos externos (DI2023.../.../.../... /...) emitidos para contagem dos valores em caixa, tendo-se lavrado os correspondentes Autos de Ocorrência e Termos de Contagem de Caixa que se anexam ao presente relatório (Anexo 1).
Conforme se detalha no quadro anterior, na contagem efetuada foram apurados valores na Caixa no montante de €28.372,35.
No âmbito da contagem efetuada na sede (DI2023...) foi solicitado ao sujeito passivo a contabilização de todos os elementos com relevância na conta Caixa até à data da contagem, ou seja, 17 de fevereiro de 2023, e a exibição de Folha de Corte de Operações de Caixa relativa ao período compreendido entre o último balancete disponível e a data da contagem.
Na sequência do solicitado foram exibidos os balancetes a 31-12-2022 (antes e após apuramento de resultados) e os Extratos da Caixa de janeiro (01-01-2023 a 31-01-2023) e fevereiro (01-02-2023 a 28-02-2023).
Relativamente aos movimentos de caixa realizados de 1 de fevereiro à data da contagem (17 de fevereiro) o contabilista certificado informou não lhe ser possível enviar a Folha de Corte de Operações de Caixa a essa data devido ao facto de efetuarem todos lançamentos com referência ao final de cada mês (no caso 28 de fevereiro).
IV.2.2. Corte de Operações de Caixa (DI2024...)
Para aferir o valor contabilístico que se encontrava em Caixa à data da contagem (17-02-2023) é indispensável apurar o saldo da conta Caixa até essa data (16-02-2023). Assim, a partir do Extrato de Caixa de fevereiro 2023 e da consulta de todos os documentos contabilizados com relevância na conta Caixa do mês de fevereiro, foi efetuado um Corte de Operações de Caixa de forma a apurar o saldo reportado a 16-02-2023. Para o efeito foi emitido o Despacho externo DI2024... .
Da análise do quadro anterior verifica-se que o saldo da conta caixa refletido na contabilidade a 16 de fevereiro de 2023 é de €1.988.933,00 (€2.186.541,48 - €197.608,48).
Relativamente ao Quadro 12 importa efetuar algumas observações:
- Linha 1: Saldo da conta caixa refletido na contabilidade a 31-01-2023;
- Linhas 2 e 3: Documentos emitidos pelo sujeito passivo e por si comunicados no e-fatura, conforme pesquisa efetuada na base de dados da AT, cujos detalhes se apresentam no quadro seguinte. Importa referir que a integração da faturação na contabilidade é efetuada de forma automática através de programa próprio.
- Linhas 4 a 9: valores recebidos através de multibanco no período de 01-02-2023 a 16-02-2023 apurados com base nas Listagens das Operações comunicadas pela Caixa de Crédito Agrícola – Carriço, cujos mapas de apuramento se encontram nos anexos 2 a 7 (Quadro 12, coluna de observações).
- Linhas 10 e 11: movimentos a crédito e a débito refletidos na Conta Caixa, referentes ao período de 1 a 16 de fevereiro de 2023. Os mapas de apuramento constam do anexo 8.
- Linha 12 (DIVD 20004): listagem das faturas emitidas aos clientes no período de 1 a 16 de fevereiro de 2023, cujos mapas de apuramento constam do anexo 9, e se resumem no quadro seguinte.
- Linha 13 (REC 20001): listagem dos recibos emitidos aos clientes no período de 1 a 16 de fevereiro de 2023, cujo mapa de apuramento consta do anexo 10.
IV.2.3. Diferença de Caixa Apurada
Da análise efetuada decorre a seguinte informação relevante:
- Efetuado o Corte de Operações de Caixa reportado a 16-02-2023 verifica-se que o saldo da conta Caixa refletido na contabilidade nesta data é de €1.988.933,00 (Quadro 12).
- Efetuada a contagem dos valores que se encontravam em Caixa a 17-02-2023 verifica-se que nessa contagem foram apurados valores na Caixa no montante de €28.372,35 (Quadro 11).
Assim, conforme se demonstra no quadro seguinte, resulta uma diferença entre os elementos registados na contabilidade e os elementos da contagem efetuada no montante de € 1.960.560,65.
A análise efetuada permite concluir que os saldos de caixa apresentados na contabilidade em 16-02-2023 não correspondem aos valores físicos em caixa contados em 17-02-2023.
V. Descrição dos factos e fundamentos das correções/irregularidades
V.1. Correções meramente aritméticas ao imposto – IRC: Tributações autónomas
V.1.1. Conta 1111 – Caixa Geral
1. Enquadramento Legal
O n.º 1 do artigo 123.º do Código do IRC (CIRC) estabelece que as sociedades comerciais que exerçam, a título principal, uma atividade comercial, industrial ou agrícola, com sede ou direção efetiva em território português, são obrigadas a dispor de contabilidade organizada nos termos da lei que, além dos requisitos indicados no n.º 3 do artigo 17.º do mesmo código, permita o controlo do lucro tributável e das variações patrimoniais positivas e negativas verificadas no mesmo período e não refletidas naquele resultado.
(...)
Estando o sujeito passivo obrigado a elaborar a sua contabilidade em conformidade com o Sistema de Normalização Contabilística (SNC), importa realçar os pontos 2.1.3 e 2.1.5 do capítulo 2 – Bases para a apresentação de demonstrações financeiras (BADF) do Anexo ao Decreto-Lei n.º 158/2009, de 13 de julho, que a seguir se transcrevem.
(...)
Atentos os factos em análise, transcreve-se parte dos artigo 63.º-C e 63.º-E da LGT, no que ao caso importa:
(...)
Por fim, estabelece o n.º 1 do artigo 88.º do CIRC que as “despesas não documentadas são tributadas autonomamente, à taxa de 50 %, sem prejuízo da sua não consideração como gastos nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 23.º-A”.
Importa esclarecer o conceito de despesa e de despesa não documentada:
-
Despesas são saídas de recursos financeiros da empresa. São consideradas despesas as saídas de dinheiro, porém, estes dispêndios não constituem necessariamente gastos que afetem resultados;
-
Despesas não documentadas são todas as despesas que não têm qualquer suporte documental a nível contabilístico que possibilite a identificação inequívoca da natureza da operação efetuada, dos beneficiários e do fim a que se destina.
2. Factos
Tendo por base a informação recolhida no processo do sujeito passivo, nomeadamente a inventariação física dos valores em caixa efetuada em fevereiro de 2023, conforme explicitado no capítulo IV.2. para o qual se remete leitura, foi apurada uma divergência entre a contagem de caixa efetuada o e valor refletido no saldo da conta caixa constante da contabilidade reportada a 16-02-2023, no montante de €1.960.560,65 (Quadro 15).
Reportando a análise ao último dia do período de tributação de 2022, ou seja, a 31 de dezembro, constatamos que o valor em caixa deveria ascender a €53.566,22, conforme demonstrado no quadro seguinte:
Importa referir que a 31-12-2022 a contabilidade (designadamente o saldo da conta caixa, balancetes, IES) apresentava um saldo contabilístico de caixa no montante de €2.014.126,87 (Quadro 9).
A divergência de valores apurada a 31-12-2022, no montante de €1.960.560,65 (€2.014.126,87 - €53.566,22) demonstra que os saldos apresentados na contabilidade do sujeito passivo não correspondem a valores reais.
No sentido da descoberta da verdade material que incumbe à Autoridade Tributária, tendo como objetivo obter junto do sujeito passivo justificação para a divergência identificada entre os valores reais em caixa e os refletidos na contabilidade, foi solicitada pela Inspeção Tributária uma reunião com a sócia gerente B... e com o contabilista certificado C... . A reunião aconteceu no dia 07-06-2023 no gabinete de contabilidade onde decorriam os atos de inspeção, com a presença da inspetora tributária D... (ITA ...) e da coordenadora E... (ITA ...).
Perante os factos apresentados, tanto a sócia gerente como o contabilista certificado afirmaram conhecer a situação dos elevados saldos de caixa e que os mesmos não tinham correspondência com os valores monetários reais detidos pelo sujeito passivo. A sócia gerente referiu ainda que os “desvios de dinheiro” estavam
relacionados com problemas de natureza familiar. Face ao elevado montante que estava em causa, foi nessa reunião solicitado pela sócia gerente o período de uma semana para analisar a situação em concreto.
Findo o período solicitado pela sócia gerente, não foram apresentados quaisquer elementos comprovativos do destino do dinheiro no valor de €1.960.560,65 não sendo conhecida(s) a(s) operação(ões) subjacente(s) a essa saída, visto não ter(em) sido apresentado(s) documento(s) de suporte admissível(eis).
Ou seja, por falta de documentação, não é possível comprovar se houve lugar ao pagamento de tributos que fossem devidos em relação à(s) operação(ões) realizada(s), ou se foram declarados para efeitos de incidência do imposto sobre o rendimento os proventos que terceiros tenham vindo a auferir.
No caso em concreto, atendendo a que o valor da caixa evidenciado na contabilidade não se encontra na posse da empresa, que não existem quaisquer documentos de prova das despesas incorridas ou das operações efetuadas, nem se sabe o destino dessas despesas e, portanto, não se consegue provar a natureza, finalidade e origem das despesas, estamos perante despesas não documentadas.
Refira-se ainda que, a saída de meios financeiros apurada no âmbito deste procedimento de inspeção, não refletida na contabilidade, não afeta o resultado líquido do período, mas afeta negativamente o Ativo da sociedade e, por essa via, o seu Património pelo que as demonstrações financeiras e as declarações fiscais não representam de forma verdadeira e apropriada a situação patrimonial e tributária do sujeito passivo induzindo em erro grave, dada a materialidade, todos os utilizadores das mesmas (clientes, fornecedores, entidades bancárias, entre outros).
3. Cálculo do imposto em falta
Conforme já referido, devem ser tidas como despesas não documentadas, sujeitas a tributação autónoma à taxa de 50%, as despesas que não se encontram refletidas na contabilidade do sujeito passivo, através de documento justificativo.
A despesa não documentada, deve ser objeto de tributação quando quantificada, dado que o sujeito passivo não apresentou prova documental de quando ocorreu a saída do dinheiro e não é possível comprovar se houve lugar ao pagamento de tributos que fossem devidos em relação a essas saídas, ou ainda se esses valores foram declarados para efeitos de imposto sobre o rendimento na esfera de quem beneficiou dessas verbas.
Em face do que, e de acordo com a referida legislação, será de proceder ao ajuste da correspondente tributação autónoma no montante de € 980.280,33 mediante o seu acréscimo no campo 365 do quadro 10 da declaração modelo 22 de IRC relativa ao período de 2022.
Assim, as tributações autónomas corrigidas ascendem a €980.828,02.
(...)
X.2. Análise dos argumentos aduzidos pelo sujeito passivo no Direito de Audição
Da análise do Direito de Audição supra importa referir o seguinte:
(...)
4. Conforme explicitado no capítulo V.1.1 deste relatório, para o qual se remete leitura, a diferença entre o saldo contabilístico e os valores existentes em Caixa denunciava a ocorrência de saída de meios monetários (saídas de dinheiro) do património do sujeito passivo (Ativo) que, além de não terem sido objeto do adequado registo na contabilidade, também não existia qualquer evidência documental suscetível de permitir a identificação dos seus destinatários, natureza das operações subjacentes e dos momentos da sua realização.
5. Encontravam-se preenchidos os elementos caracterizadores da figura designada por “despesas não documentadas” sujeitas a tributação autónoma à taxa de 50%, em conformidade com o disposto no n.º 1 do artigo 88.º do IRC.
6. A afirmação do sujeito passivo estabelece uma confusão terminológica entre “despesa” (saída de dinheiro) e “gasto” que afete o resultado líquido do período.
7. A tributação autónoma das “despesas não documentadas” à taxa de 50% não depende da sua contabilização como “gastos”, sem prejuízo de operar mesmo quando as despesas, estando contabilizadas como “gastos”, não sejam dedutíveis por força da alínea b) do n.º 1 do artigo 23.º-A do CIRC.
8. A aplicação de métodos indiretos tem por objetivo apurar o lucro tributável, conforme resulta do n.º 4 do artigo 16.º e dos artigos 57.º e 59.º todos do IRC, e não para apurar se e quando foram feitas despesas que não estão documentadas nem contabilizadas, para sobre elas fazer incidir a tributação autónoma.
9. Assim, não pode ser atendida a pretensão do sujeito passivo de aplicação de métodos indiretos, conforme alega nas páginas 36 e 37 do direito de audição, porquanto os métodos indiretos têm por objetivo apurar o lucro tributável, quando se demonstra que a contabilidade não é feita e mantida com o rigor exigido por lei e pelos princípios contabilísticos, não sendo relevantes para apurar se e quando foram feitas despesas não documentadas nem contabilizadas, para sobre elas fazer incidir a tributação autónoma. Isto mesmo é afirmado, pelo TCA Sul, para quem, “[e]m face do ordenamento jurídico português, cabe distinguir entre a tributação autónoma, incidente sobre gastos detetados, mas não suportados em elementos justificativos e a determinação do rendimento por métodos indiretos, a qual, na falta de credibilidade da contabilidade impossibilitante da avaliação direta, determina, verificados os pressupostos elencados na lei, a necessidade da fixação da matéria coletável através de métodos indiretos (artigos 87.º e 88.º da LGT)”.
10. As despesas em causa não correspondem a rendimento, mas antes a despesas incorridas e não documentadas, as quais são tributadas nos termos do n.º 1 do artigo 88.º do CIRC, o que nada tem a ver com a determinação do rendimento, segundo os critérios dos artigos 89.º a 90.º da LGT.
(...)
12. A este propósito importa referir o seguinte:
i. É a constatação da falta de meios financeiros apurada pela contagem física que gera, por si mesma, o momento da ocorrência do facto tributário para efeitos do n.º 1 do artigo 88.º do CIRC;
ii. No presente caso, como as saídas de meios financeiros não foram registados na contabilidade, o momento da verificação do facto gerador só ficou evidenciado na data da contagem física;
iii. O sujeito passivo não demonstra que os saldos da conta Caixa no final dos exercícios anteriores a 2022 não representam de modo credível a realidade, tanto mais que constam dos balanços aprovados pelos sócios, e também não foram disponibilizados documentos validados pelo órgão de gestão a evidenciar que os resultados de contagens físicas realizadas no final de cada exercício revelam divergências relativas aos saldos contabilísticos;
iv. Se as despesas não estão documentadas então não é possível aferir sobre o destino, datas, locais e beneficiários dos meios financeiros não encontrados em Caixa, sendo factual e juridicamente impossível aplicar-lhes o princípio da especialização;
v. O sujeito passivo não demonstrou que a divergência apurada nos valores em Caixa é explicada por saídas de meios monetários do património social, não documentadas nem contabilizadas, ocorridas em períodos anteriores a 2022;
vi. A ausência de documentação justificativa da saída dos meios monetários da esfera da sociedade, juntamente com a sua não contabilização, impedem a averiguação do seu destino e momento de concretização;
vii. É ao sujeito passivo que recai o ónus de prova das saídas de meios monetários e das concretas despesas realizadas, uma vez que só este se encontraria em condições de provar, através, nomeadamente, da apresentação de mapas e documentos internos como as folhas de Caixa, por cuja elaboração é responsável o órgão de gestão, ou de documentos externos (faturas e recibos).
13. Assim, atendendo a que o sujeito passivo não cumpriu obrigação de contabilizar as despesas não documentadas, a verificação da falta de meios financeiros foi detetada pela contagem física do dinheiro em Caixa. Pelas suas características específicas as despesas não documentadas afastam a aplicação do princípio da especialização dos exercícios e periodização do lucro tributável.
14. No decurso do procedimento de inspeção, foi solicitada uma reunião (que decorreu em 07-06-2024) com a sócia gerente B... (na qualidade de representante do sujeito passivo) e com o contabilista certificado C... (responsável pela contabilidade desde 2006), tendo como objetivo obter junto do sujeito passivo justificação para a divergência entre a contagem física dos valores em caixa e o valor refletido na contabilidade, no montante de €1.960.560,65.
Nesta reunião foram detalhados todos os procedimentos efetuados pela Inspeção Tributária para o apuramento do montante em falta, conforme se resume nos capítulo IV.2.2 e IV.2.3 do presente relatório para os quais se remete leitura.
15. Tanto a sócia gerente como o contabilista certificado afirmaram estar cientes dos elevados saldos de Caixa e que os mesmos não correspondiam aos valores monetários reais detidos pelo sujeito passivo.
Contudo, não foram apresentados quaisquer elementos justificativos da divergência quantificada nem do destino dado ao dinheiro.
16. A sócia gerente referiu ainda que os “desvios de dinheiro” estavam relacionados com problemas de natureza familiar. Importa referir que a sócia gerente B... assumiu funções de gerência no ano de 2016, sendo à data de análise a única gerente.
17. Face ao reconhecimento por parte da sócia gerente da saída de dinheiro da sociedade, caso o sujeito passivo viesse a demonstrar que a sua utilização havia sido efetuada por um antigo sócio gerente, foi abordado nessa reunião o enquadramento fiscal na esfera do beneficiário, através da distribuição por adiantamentos por conta de lucros.
18. Contudo, face à situação em concreto, foi a sócia gerente informada do enquadramento fiscal da infração por parte da AT, designadamente do enquadramento como despesas não documentadas caso não fossem apresentados elementos comprovativos das saídas de dinheiro que permitissem a identificação dos seus destinatários, da natureza das operações subjacentes e dos momentos da sua realização.
19. Face ao elevado montante que estava em causa, foi solicitado pela sócia gerente o período de uma semana para analisar a situação em concreto. Findo o período solicitado, não foram apresentados quaisquer elementos comprovativos do destino dado ao dinheiro no montante de €1.960.560,65, nem identificados os destinatários, a natureza das operações, a finalidade e o momento da sua realização, pelo que estamos perante despesas não documentadas.
20. Importa referir que no âmbito do direito de audição o sujeito passivo ainda podia ter apresentado elementos comprovativos das saídas de dinheiro que permitissem a identificação dos seus destinatários, da natureza das operações subjacentes e dos momentos da sua realização, o que não aconteceu.
X.3. Síntese da situação em análise
21. Tendo por base a contagem física dos valores em caixa efetuada em fevereiro de 2023 (conforme capítulo IV.2), reportado a 31-12-2022 (conforme Ponto 2 do capítulo V.1.1) foi apurada uma divergência entre a contagem física dos valores detidos em caixa e os valores refletidos na contabilidade na conta Caixa no montante de €1.960.560,65.
22. No decorrer do procedimento de inspeção o sujeito passivo não demonstra em que medida o saldo da conta Caixa não correspondia à realidade das existências em numerário ou outros meios monetários.
Contudo, a sócia gerente B..., na qualidade de representante do sujeito passivo, e o contabilista certificado reconheceram que os elevados saldos de caixa não tinham correspondência com os valores monetários reais detidos pelo sujeito passivo.
23. O sujeito passivo no direito de audição não contesta a quantificação da divergência (no montante de €1.960.560,65) entre o saldo contabilístico da conta Caixa e os montantes do numerário que deveriam estar disponíveis em Caixa e não se encontravam à data em que foi realizada a contagem física.
24. No caso em apreço, constatou-se que a conta 11-Caixa tinha um saldo elevado, mas não existiam na empresa os meios financeiros correspondentes a esse saldo, não se apurando quais as razões da divergência. A diferença entre o saldo contabilizado e os valores efetivamente existentes na empresa denunciava a ocorrência de saídas de meios monetários do património social (Ativo) que, além de não terem sido objeto do adequado registo na contabilidade, também não constavam de qualquer evidência documental suscetível de permitir a identificação dos seus destinatários, da natureza das operações subjacentes e dos momentos da sua realização.
25. Encontravam-se, assim, preenchidos os elementos caracterizadores da figura designada por «despesas não documentadas» sujeitas a tributação autónoma à taxa de 50%, em conformidade com o disposto no n.º 1 do art.º 88.º do CIRC.
26. É o sujeito passivo que tem de demonstrar e justificar as saídas de meios monetários e as concretas despesas realizadas, através, nomeadamente, da apresentação de mapas e documentos internos como as folhas de Caixa, por cuja elaboração é responsável o órgão de gestão, ou de documentos externos (faturas e recibos).
27. Não pode ser atendida a pretensão do sujeito passivo de aplicação de métodos indiretos, conforme alega no direito de audição, porquanto os métodos indiretos têm por objetivo apurar o lucro tributável não sendo relevantes para apurar se e quando foram feitas despesas não documentadas nem contabilizadas, para sobre elas fazer incidir a tributação autónoma.
28. Atendendo a que o sujeito passivo não cumpriu obrigação de contabilizar as despesas não documentadas, a verificação da falta de meios financeiros foi detetada pela contagem física do dinheiro em Caixa. Pelas suas características específicas as despesas não documentadas afastam a aplicação do princípio da especialização dos exercícios e periodização do lucro tributável
29. Sendo a pretensão do sujeito passivo destituída de fundamentação legal pelos motivos anteriormente expostos, devem ser mantidas na totalidade as propostas de correção apuradas em sede IRC – Tributações Autónomas, constantes do Projeto de Relatório de Inspeção, devidamente fundamentadas de facto e de direito no capítulo V e que se resumem no capítulo I.4 – Conclusões da Ação Inspetiva.
-
Na sequência da inspecção, a Autoridade Tributária e Aduaneira emitiu a liquidação de IRC n.º 024..., datada de 13-10-2024, com o valor de € 1.032.308,07, em que se incluem € 53.535,58 de juros compensatórios (documento junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
-
As divergências entre os saldos da conta caixa e os meios financeiros realmente existentes na Requerente começaram por volta de 2014/2015 e foram-se agravando nos anos subsequentes, até 2022 (depoimento da testemunha C...);
-
Os saldos da conta Caixa no final dos exercícios anteriores a 2022, designadamente os relativos aos anos de 2019, 2020 e 2021 que são referidos no RIT, não representavam a realidade dos meios financeiros disponíveis na Requerente 2022 (depoimento da testemunha C...);
-
A diferença apurada pela Autoridade Tributária e Aduaneira entre o saldo da conta caixa e os meios financeiros existentes na Requerente em 31-12-2022 é o resultado da soma de vários anos de acumulação de diferenças e anos anteriores com a ocorrida em 2022 (depoimento da testemunha C...);
-
Parte dos valores em falta foram retirados da esfera da Requerente por um antigo gerente, antes do Verão de 2022 (depoimento da testemunha C... e declarações de parte de B... e documento n.º 1 junto pela Requerente em 19-03-2025, cujo teor se dá como reproduzido);
-
Nos anos de 2026 e 2017, foram efectuados vários pagamentos, com origem na conta bancária da Requerente, a entidades com as referências multibanco ..., ..., ... e ..., relativamente às quais não foi possível apurar o destinatário efectivo (dois documentos com n.º 1 junto pela Requerente em 19-03-2025, cujo teor se dá como reproduzido);
-
Em 06-11-2024, a Requerente apresentou o pedido de constituição do tribunal arbitral que deu origem ao presente processo.
2.2. Factos não provados e fundamentação da matéria de facto
2.2.1. Factos não provados
Não se provou que destino foi dado às importâncias que foram retiradas.
Os documentos juntos pela Requerente não permitem concluir com segurança que tenham sido feitos pagamentos a empresas de jogo on line, nomeadamente correspondentes ao montante em falta.
Houve, nos anos de 2016 e 2017, múltiplos pagamentos através de multibanco, assinalados a azul pela Requerente nos dois documentos com o n.º 1 juntos em 19-03-2025, que foram efectuados a partir da conta bancária da Requerente com as referências ..., ..., ... e ..., que não permitem saber qual o real destinatário, por serem códigos utilizados pelas empresas de pagamentos on line HIPAY SAS e IFTHENPAY, que disponibilizam métodos de pagamento a empresas (como é verificável em qualquer homebanking e a Autoridade Tributária e Aduaneira refere nas suas alegações), e não permitem perceber a que fim se destinaram.
2.2.2. Os factos foram dados como provados com base nos documentos que constam do processo administrativo e, nos pontos indicados, com base nas declarações de parte de B..., gerente da Requerente desde 2016, e no depoimento da testemunha C..., contabilista certificado que trabalha para a Requerente desde 2006.
Tanto a declarante como a testemunha aparentaram depor com isenção e com conhecimento directo dos factos que foram dados como provados com base nas suas declarações e depoimento.
2.2.3. No que concerne à prova de que parte das despesas não documentadas terão ocorrido antes do ano de 2022, resulta das declarações e depoimento referidos, que são confirmados pelo facto de, pelo menos nos anos de 2016 e 2017, terem ocorrido vários pagamentos, assinalados a azul nos dois documentos com o n.º 1 juntos pela Requerente em 19-03-2025, relativamente aos quais não é possível identificar o destinatário, designadamente os múltiplos pagamentos de serviços efectuados à entidade com os códigos multibanco ..., ..., ... e ... .
Para além disso, os saldos da conta caixa anormalmente elevados constituem um indício de que pode haver divergências entre o valor desse saldo e os meios financeiros existentes na empresa (foi esse saldo anormalmente elevado com tendência crescente o facto que levou a Autoridade Tributária e Aduaneira a decidir efectuar a inspecção, como se refere na página 128 do RIT). À face das regras da experiência, não se justifica a manutenção de saldos da conta Caixa tão elevados para dimensão da empresa durante vários anos, se existissem na empresa os valores contabilizados.
Neste caso, o facto de o saldo já ser anormalmente elevado em anos anteriores a 2022 e ter tendência fortemente crescente (€ 969.8984,49 em 2019, € 1.335.676,68 em 2020, € 1.512.706,82 em 2021) leva a concluir, com base nas regras da experiência que os árbitros devem aplicar na fixação da matéria de facto [artigo 16.º, alínea e) do RJAT], que a falta de correspondência entre os saldos e a realidade teve origem antes de 2022, sendo a divergência constatada pela Autoridade Tributária e Aduaneira em 2023 o resultado da acumulação de múltiplas retiradas de meios financeiros da esfera de Requerente, ocorridas em anos anteriores, a partir de 2016, pelo menos.
2.2.4. Não se provou que a Requerente tenha efectuado o pagamento da quantia liquidada.
Não foi apresentado qualquer documento comprovativo, nem isso é alegado.
3. Matéria de direito
A Autoridade Tributária e Aduaneira efectuou uma inspecção à Requerente em que decidiu efectuar correcção relativamente a tributações autónomas respeitante ao período de 2022, com base em despesas não documentadas, no âmbito do n.º 1 do artigo 88.º do CIRC.
Subjacente a essa correcção está uma contagem física dos valores que se encontravam em Caixa, que decorreu em simultâneo na sede do sujeito passivo e nos 4 estabelecimentos de padaria e pastelaria nos quais este exerce a sua atividade.
A Requerente imputa à liquidação efectuada com base nessa correcção as seguintes ilegalidades, em suma:
– ilegalidade de erro sobre os pressupostos de facto na imputação das despesas indocumentadas ao período de 2022, por parte delas terem sido efectuadas em anos anteriores;
– falta de notificação prévia do procedimento de inspecção;
– falta de realização de diligências no procedimento de inspecção, com violação do princípio do inquisitório.
3.1. Vício de erro sobre os pressupostos de facto
As tributações autónomas previstas no artigo 88.º do CIRC têm de ser conexionadas com um período de tributação, como impõe o n.º 14 deste artigo, ao estabelecer que «as taxas de tributação autónoma previstas no presente artigo são elevadas em 10 pontos percentuais quanto aos sujeitos passivos que apresentem prejuízo fiscal no período a que respeitem quaisquer dos factos tributários referidos nos números anteriores relacionados com o exercício de uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola não isenta de IRC ».
No caso das despesas não documentadas, sendo a realização das despesas o facto tributário, a tributação faz-se necessariamente com referência ao período de tributação em que elas foram realizadas.
A Autoridade Tributária e Aduaneira efectuou a correcção relativa à tributação autónoma por despesas não documentadas, imputando-a ao período de 2022, por ter entendido que não há prova de que parte dessas despesas tenham sido realizadas antes desse ano, como se refere no RIT:
O sujeito passivo não demonstrou que a divergência apurada nos valores em Caixa é explicada por saídas de meios monetários do património social, não documentadas nem contabilizadas, ocorridas em períodos anteriores a 2022.
A Requerente defende que existia prova de que parte das despesas não documentadas foram realizadas antes de 2022.
Da matéria de facto fixada resulta que grande parte das despesas não documentadas que estão subjacentes à correcção foram efectivamente efectuadas antes de 2022.
São nesse sentido as declarações e depoimento produzidos na reunião, a que o Tribunal Arbitral atribui credibilidade, e que são confirmados, quanto aos anos de 2016 e 2017, pelos dois documentos com n.º 1 juntos pela Requerente em 19-03-2025.
Por outro lado, é esse facto de ter havido despesas não documentadas anteriores a 2022, concretizadas pelo menos parcialmente através de retiradas de meios financeiros da esfera da Requerente, com a consequente divergência entre os valores contabilizados na conta Caixa e os valores realmente existentes, a única explicação que se vislumbra nos autos para os saldos da conta caixa anormalmente elevados, que são um indício de que pode haver divergências entre o valor desse saldo e os meios financeiros existentes na empresa, como a própria Autoridade Tributária e Aduaneira entendeu ao decidir realizar a inspecção, como se refere nas páginas 127 e 128 do RIT.
Assim, o facto de o saldo já ser anormalmente elevado em anos anteriores a 2022 e ter tendência fortemente crescente (nomeadamente, € 969.8984,49 em 2019, € 1.335.676,68 em 2020, € 1.512.706,82 em 2021) leva concluir, à face das regras da experiência, que já existiriam no final de cada um daqueles anos divergências entre os valores contabilizados na conta Caixa e os que realmente existiam na esfera da Requerente.
Ocorre erro sobre os pressupostos de facto ( [1] ) quando há uma divergência entre a realidade e a matéria de facto utilizada como pressuposto na prática do acto, como acontece, por exemplo, quando está erradamente quantificada a matéria tributável ou se dá como existente um facto tributário que não existiu.
O erro sobre os pressupostos de facto constitui vício de violação de lei, uma vez que, sendo os poderes legais exercidos no acto tributário atribuídos para serem exercidos em determinadas condições, está em dissonância com a lei o seu uso em situações fácticas que não correspondem àquelas que estiveram subjacentes à atribuição de tais poderes. ( [2] )
No caso em apreço, a correcção efectuada assenta, objectivamente, no pressuposto de que as despesas indocumentadas ocorreram no ano de 2022, o que não corresponde à realidade.
Por isso, a correcção efectuada e a liquidação com base nela emitida enfermam de vício de erro sobre os pressupostos de facto que justifica a sua anulação, nessa parte, nos termos do artigo 163.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 2.º, alínea c), da LGT.
Diga-se, ainda, obter dictum, que, a tese defendida pela Autoridade Tributária e Aduaneira no artigo 35.º da sua resposta, de «fazer coincidir o facto tributário com a data da contagem física de caixa», independentemente da sua incorrecção e de consubstanciar fundamentação a posteriori, não tem qualquer aplicação no caso em apreço, pois a contagem física da caixa ocorreu em 2023 e, por isso, essa tese conduziria a que a tributação autónoma fosse imputada ao período de 2023 e não de 2022.
3.2. Vício de falta de notificação prévia do procedimento de inspecção
A Requerente imputa à liquidação impugnada vicio derivado da falta de notificação prévia dos actos de inspecção praticados em 17-02-2023, ao abrigo de despachos com os n.ºs DI2023..., DI2023..., DI2023..., DI2023... e DI2023... .
O artigo 49.º do Regime Complementar do Procedimento de Inspecção Tributária e Aduaneira (RCPITA), em sintonia com a alínea l) do n.º 3 do artigo 59.º da LGT, estabelece que «o procedimento externo de inspecção deve ser notificado ao sujeito passivo ou obrigado tributário com uma antecedência mínima de cinco dias relativamente ao seu início».
Essa notificação prévia não foi efectuada, mas, como bem diz a Autoridade Tributária e Aduaneira na sua resposta, essa notificação é dispensada nos casos em que o objeto do procedimento for a inventariação de valores em caixa, como estabelece a alínea c) do n.º 1 do artigo 50.º do RCPITA.
Foi precisamente o que sucedeu no caso em apreço, pois os actos inspectivos praticados ao abrigo daqueles despachos com os n.ºs DI2023..., DI2023..., DI2023..., DI202... e DI2023... foram apenas de inventariação dos valores em caixa.
Por isso, não se está perante uma situação em que fosse obrigatória a notificação prévia.
Por outro lado, quanto ao procedimento inspectivo realizado ao abrigo da Ordem de Serviço n.º OI2023..., foi precedido de notificação, como consta da página 6 do processo administrativo.
Assim, não ocorreu qualquer vício de falta de notificação.
3.3. Vicio de violação do princípio do inquisitório
O artigo 58.º da LGT enuncia o princípio do inquisitório, estabelecendo que «a administração tributária deve, no procedimento, realizar todas as diligências necessárias à satisfação do interesse público e à descoberta da verdade material, não estando subordinada à iniciativa do autor do pedido».
No caso em apreço, a Requerente imputa à liquidação impugnada vício de violação deste princípio por não terem sido inquiridos os ex-gerentes da Requerente, F... e G... .
A Autoridade Tributária e Aduaneira diz na sua resposta que «à data dos factos (exercício de 2022), o gerente do contribuinte que constava da base de dados da AT, era a sócia B..., aliás gerente da sociedade desde 08-06-2016, sendo esta ouvida, em reunião solicitada pelos inspetora tributária D... (ITA ... ) e respetiva coordenadora E... ( ITA ... ), no dia 07.06.2024» e que «tendo presente que o trabalho dos SIT consiste em verificar se é dado cumprimento ou não às normas fiscais em vigor, sendo que nesta situação estando em causa o ano de 2022, o responsável do contribuinte é o gerente nesta data e não pessoas que já não eram gerentes à data dos factos».
É manifesto que esta «justificação» não procede, pois as pessoas referidas foram gerentes em 2022, F... entre 30-05-2012 e 06-07-2022 e G... desde 08-06-2016 até 06-07-2022, como se refere na página 120 do RIT.
A audição dos gerentes no período a que se imputa a realização de despesas não documentadas era uma diligência que era de presumir poder ter utilidade para a descoberta da verdade, pois, obviamente, seriam, a par da gerente B..., as pessoas que previsivelmente melhor saberiam qual o destino que foi dado aos valores em falta.
Para além disso, a falta de audição daqueles anteriores gerentes até foi questionada pela Requerente ao exercer o direito de audição e não é dada no RIT qualquer explicação para não proceder às diligências e a dada no presente processo («estando em causa o ano de 2022, o responsável do contribuinte é o gerente nesta data e não pessoas que já não eram gerentes à data dos factos»), até corrobora que deveriam ter sido ouvidos aqueles anteriores gerentes.
Por isso, é de concluir que ocorreu vício procedimental, por violação do princípio do inquisitório.
3.4. Juros compensatórios
A liquidação de juros compensatórios tem como pressuposto a liquidação de tributação autónoma pelo que enferma dos vícios que a afectam, justificando-se também a sua anulação.
4. Juros
A Requerente faz um pedido de «juros em causa», o que se interpreta como referindo-se a juros indemnizatórios.
No entanto, os juros indemnizatórios dependem de pagamento indevido (artigo 43.º, n.º 1, da LGT) e não se provou que a quantia liquidada tenha sido paga.
Por isso, improcede o pedido de juros indemnizatórios.
5. Decisão
De harmonia com o exposto, acordam neste Tribunal Arbitral em:
-
Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral;
-
Anular a liquidação de IRC (tributações autónomas) e juros compensatórios n.º 2024 ... .
6. Valor do processo
De harmonia com o disposto nos artigos 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de 1.032.308,07, indicado pelas Requerentes e sem oposição da Autoridade Tributária e Aduaneira.
7. Custas
Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 14.382,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.
Lisboa, 24-04-2025
Os Árbitros
(Jorge Lopes de Sousa)
(Gaspar Vieira de Castro)
(A. Sérgio de Matos)
[1] Sobre o uso desta terminologia, consagrada pela jurisprudência, pode ver-se MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA, Manual de Direito Administrativo, volume I, páginas 564-565.
[2] MARCELLO CAETANO, Manual de Direito Administrativo, volume I, 10.ª edição, página 503, refere que «está implícita na lei ou constitui princípio geral de direito a norma segundo a qual os factos que sirvam de causa a um acto administrativo devem sempre ser verdadeiros».
Na mesma linha, SÉRVULO CORREIA, Noções de Direito Administrativo, página 467, e MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Teoria Geral do Direito Administrativo, página 303.
No entanto, em sentido diferente, pode ver-se FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, Volume II, página 400, que entende que «o que se passa é que falta um requisito de validade que a lei exige, qual seja o de que a vontade da Administração seja uma vontade livre e esclarecida».