Sumário
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Se as operações em causa forem qualificadas de “crédito utilizado sob a forma de conta corrente, descoberto bancário ou qualquer outra forma em que o prazo de utilização não seja determinado ou determinável”, aplica-se a verba 17.1.4 TGIS.
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Ao invés, caso se qualifiquem como operações financeiras por utilização de crédito, em virtude da concessão de crédito a qualquer título por prazo superior a 5 anos – estarão sujeitas à verba 17.1.3 da TGIS.
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Se, em sede inspetiva, a requerente não responde a questões formuladas pela AT para obter factos que permitam concluir num ou noutro sentido jurídico – cuja informação está na posse do contribuinte e seria facilmente entregue – então, inverte-se o ónus da prova, que passa a competir ao contribuinte, que não provou os factos que permitissem aplicar a verba 17.1.3 da TGIS (e não aplicar verba 17.1.4).
DECISÃO ARBITRAL
A..., SGPS, S.A., sociedade anónima, matriculada na Conservatória do Registo Comercial sob número único de matrícula e pessoa coletiva ..., com sede na ..., no lugar de ..., na freguesia de ... e ..., no concelho de Coimbra (...-...Coimbra) (doravante “Requerente”), veio, nos termos legais, requerer a constituição de tribunal arbitral.
É requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira.
I - RELATÓRIO
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O pedido
A requerente pede a apreciação da legalidade dos atos de liquidação de Imposto de Selo (IS) 2023... e respetivas Demonstrações de Liquidação de Juros Compensatórios nºs 2023 ..., 2023..., 2023..., 2023..., 2023..., 2023..., 2023..., 2023..., 2023..., 2023..., 2023..., 2023..., das quais resultou uma prestação tributária a pagar no montante total de € 265.466,95 (duzentos e sessenta e cinco mil quatrocentos e sessenta e seis euros e noventa e cinco cêntimos) referentes aos meses de janeiro a dezembro de 2019, e em termos mediatos e reflexivos a anulação do ato de indeferimento da reclamação graciosa contra esses atos de liquidação.
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O litígio
O tema consiste em saber se os empréstimos do sócio à requerente são qualificados como empréstimos, com características de suprimentos, com um prazo de duração superior a 5 anos (caso em que se aplica a verba 17.1.3 da Tabela Geral do Imposto do Selo – doravante TGIS), como advoga a requerente; ou, como defende a requerida, não sendo o seu prazo determinado nem determinável, se deve antes aplicar-se a taxa prevista da verba 17.1.4 da TGIS – de 0,04% sobre a média mensal obtida através da soma dos saldos em dívida, apurados diariamente, durante o mês, divididos por 30.
O tema está, pois, na análise factual e qualificação jurídica e tributária desse contrato de empréstimo (celebrado em 2013) e sua dinâmica de entregas e devoluções entre o sócio e a sociedade.
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Tramitação processual
O pedido de constituição do tribunal foi aceite pelo CAAD; os árbitros foram nomeados pelo Conselho Deontológico do CAAD, aceitaram as nomeações, as quais não foram objeto de oposição. O tribunal arbitral ficou constituído em 24/12/2024. A Requerida apresentou resposta e juntou o PA. As partes prescindiram da prova testemunhal arrolada por ambas.
O Tribunal dispensou a reunião a que se refere o art. 18º do RJAT, por desnecessidade e na autonomia na condução do processo; as partes apresentaram alegações nas quais reiteraram os argumentos constantes dos seus articulados.
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Saneamento
O processo não enferma de nulidades ou irregularidades. Não existem outras questões que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
II – PROVA
II.1 – Factos provados
Consideram-se provados os seguintes factos:
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A Requerente foi constituída em fevereiro de 2008, com a natureza jurídica de sociedade anónima, sendo o seu objeto social “A gestão de participações sociais noutras sociedades, como forma indireta do exercício de atividades económicas”, tendo a sua sede em Coimbra.
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A inspeção tributaria à requerente ocorreu entre 22.05.2023 e 25.10.2023.
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A.., NIF ..., com residência fiscal no Mónaco, é o sócio que controla totalmente o capital social da requerente.
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O acionista efetuou empréstimos à requerente, inseridos na conta contabilística de suprimentos (subconta 25322001 - Participantes de capital - Outros participantes -Suprimentos e outros mútuos - Não Corrente - Outros participantes - Sr. B...)
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Em 2019, houve lançamentos contabilísticos a crédito dessa subconta, no montante total de € 8.172.779,39,
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E, nesse ano, houve movimentos contabilísticos a débito desta subconta, no montante total de € 3.108.743,28: cerca de 93,29% do total respeita a uma transferência para a conta bancária suíça do acionista; e os restantes movimentos referem-se a “Levantamento cartão débito p/ Sr. B...” e outros pagamentos efetuados pelo acionista abatidos aos suprimentos.
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Em 2019, essa subconta apresenta um saldo inicial credor de € 43.812.030,93, e após os movimentos registados na subconta, apresenta um saldo final credor, no mesmo período, do montante de € 48.876.067,04.
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Durante a inspeção, a AT solicitou que a Requerente prestasse vários esclarecimentos, no que respeita aos movimentos contabilizados nessa subconta, nomeadamente, “(…) cópia de contratos dos suprimentos, ou outros documentos, tais como, atas com deliberação sobre a constituição dos suprimentos, relacionados com os valores contabilizados na subconta 25322001 – Participantes de capital – Outros participantes – Suprimentos - Sr. B..., dos anos períodos de tributação de 2019 e 2020, nos quais se encontre evidenciado o requisito do caráter de permanência dos créditos/ índices de permanência. Ao solicitado, deve atender-se aos empréstimos com a caraterística de suprimentos, anteriores à data de 01.01.2019, em que seja demonstrado o requisito do caráter de permanência dos créditos/ índices de permanência”.
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O sujeito passivo não respondeu a este ofício.
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Em 2013, o sócio celebrou um contrato com a Sociedade, que dispõe:
“Considerando que:
A - O Primeiro Contraente é titular da totalidade das ações da Segunda Contraente
B - Para o desenvolvimento da atividade comercial da Segunda Contraente o Primeiro Contraente, naquela sua qualidade de único acionista, já lhe emprestou, por diversas vezes, diversas quantias, mas será necessário proceder a novos empréstimos à Segunda Contraente, que, por sua vez, se obriga a restituir;
Face aos mencionados considerandos obrigam-se nos seguintes termos:
Cláusula Primeira (Objeto)
Pelo presente contrato, pelo prazo e nas condições previstas nas cláusulas seguintes, a Primeira Contraente concederá à Segunda Contraente, crédito, a título de suprimentos, até ao montante global, em cada momento, de 50.000.000,00€ (cinquenta milhões de euros), mediante pagamentos parcelares que serão efetuados à medida das suas necessidades de financiamento.
(…) Cláusula Terceira (Prazo e Reembolso)
a) A Segunda Contraente procederá a reembolsos, parciais, do capital mutuado, após solicitação feita pelo Primeiro Contraente, mas nunca antes de decorridos dez anos da data da entrega efetiva do valor/parcela emprestado(s).
b) Os reembolsos de suprimentos serão sempre imputados aos suprimentos prestados há mais tempo.”
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Estas operações de crédito entre o único acionista e a requerente não beneficiam, da isenção nos termos da alínea i), do nº 1 do art.º 7º do CIS, dado que uma das partes, o único acionista, tem residência no Mónaco, país de baixa tributação (com regime fiscal privilegiado) perante a legislação portuguesa.
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Na reclamação Graciosa, a requerente entregou aditamento ao contrato (celebrado em 30/11/2023, data posterior ao encerramento da inspeção) onde se estipula que “os suprimentos são prestados pelo prazo de vinte anos, findo o qual terão de ser integralmente reembolsados pela Segunda Contraente ao Primeiro Contraente”.
II.2- Factos não provados
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Não está provado que os empréstimos em causa tenham a natureza de suprimentos, ou de operações financeiras com prazo de reembolso efetivo superior a 5 anos.
Motivação da matéria de facto
Os factos provados e não provados resultam da documentação junta aos autos e da falta de colaboração do requerente com a inspeção, designadamente no que concerne ao fornecimento de elementos contabilísticos que permitissem uma inequívoca caracterização das sobreditas operações financeiras – situação que impacta no ónus da prova, que passou a ser do requerente e que não provou os factos em que se estriba a sua posição, como se verá adiante.
III – O DIREITO
A questão jurídica é a seguinte: se as operações em causa forem de “crédito utilizado sob a forma de conta corrente, descoberto bancário ou qualquer outra forma em que o prazo de utilização não seja determinado ou determinável”, aplica-se a verba 17.1.4 TGIS.
Ao invés, caso se qualifiquem como operações financeiras por utilização de crédito, sob a forma de fundos, em virtude da concessão de crédito a qualquer título por prazo superior a 5 anos – então estarão sujeitas à verba 17.1.3 da TGIS.
A linha divisória jurídica e fiscal está, pois, entre a utilização por “concessão de crédito a qualquer título” (17.1.3 da TGIS) e o “crédito utilizado sob a forma de conta corrente” (17.1.4 TGIS).
Em ambos os casos, o facto tributário associa-se à utilização do crédito: não surge com a celebração do contrato que corporiza a operação financeira, mas apenas com a utilização dos respetivos fundos, podendo nunca surgir – se esses fundos nunca forem efetivamente emprestados.
Existem diferenças substanciais entre a situação factual e jurídica da verba 17.1.3 e 17.1.4 da TGIS, ao nível do regime das restituições dos meios financeiros utilizados – e é isso o que os distingue para efeitos do imposto do selo:
Nos casos recortados na verba 17.1.3 da TGIS, as restituições (reembolsos), totais ou parciais, do valor utilizado implica a liquidação e extinção do crédito utilizado.
Nas aberturas de crédito em conta corrente (17.1.4 da TGIS), ao invés, o creditado pode reutilizar várias vezes essas restituições, levantando de novo os respetivos meios financeiros, sem nunca poder ultrapassar, em cada momento, o valor máximo contratualizado.
Ou seja: na verba 17.1.3, há apenas dois movimentos (estáticos) em direções opostas: (a) no início, com a transferência dos montantes do mutuante para o mutuário (numa ou várias utilizações); (b) e depois, no final (ou antes se acordado) com o reembolso do capital mutuado – sendo permitido, também, reembolsos parciais na pendência do contrato, com a redução, nessa medida, do montante da dívida. E o que sai disso são considerados novos contratos.
Ao invés, nos casos da verba 17.1.4 há inúmeros feixes intermédios: o mutuário pode devolver quantias e solicitá-las depois, novamente, em face dos seus interesses, num enorme volume de feixes de operações com essa natureza.
Assim, no final do contrato de abertura de crédito em conta corrente, a soma global (somatório) dos levantamentos efetuados pelo creditado pode exceder largamente o limite de crédito contratado, desde que em cada momento esse limite não tenha sido excedido. Mas isso não sucede nos demais contratos de concessão de crédito (17.1.3 da TGIS).
O recorte jurídico dos contratos comerciais de conta corrente consta do art. 344.º do Código Comercial: quando os créditos se transformam em artigos “de deve e há-de haver, de sorte que só o saldo final resultante da sua liquidação é exigível” – só o saldo credor no momento do fecho do contrato é que é juridicamente exigível.
Pois bem: pede-se ao tribunal que efetue a subsunção dos factos a esta grelha jurídica clara, sendo certo que “a qualificação do negócio jurídico efetuada pelas partes, mesmo em documento autêntico, não vincula a administração tributária” (art. 36.º, n.º 4 da LGT), nem evidentemente, o Tribunal.
A questão colocada pela AT durante a inspeção foi muito pertinente: o contrato foi celebrado em 2013 (e não se sabe quando as verbas foram sendo disponibilizadas – se em 2013 ou noutros momentos); e as questões colocadas visavam perceber se a subconta intitulada dos suprimentos tinha estado estática nos anos anteriores ou, ao invés, se ocorreu um feixe dinâmico de transferências recíprocas entre a sociedade e os sócios.
Quer dizer: a recorrente tinha a informação à mão – e podia mostrá-la facilmente à AT: bastava entregar os movimentos da subconta em causa, nos anos anteriores.
Aí se comprovaria quando é que as verbas foram disponibilizadas: em 2013 ou anos posteriores, de uma só vez, ou em poucas tranches – ou em muitas entregas. E sobretudo, conseguir-se-ia reparar se há dois movimentos ou um feixe enorme de transferências, nos dois sentidos, entre o sócio e a sociedade.
Do que se viu, em 2019, o ano da inspeção – houve movimentos nos dois sentidos, de valores substanciais e com aumento do valor total dos empréstimos do sócio à sociedade.
Ora, a requerente, em vez de mostrar esses dados na inspeção – optou apenas por entregar um aditamento ao contrato, com data posterior ao enceramento da inspeção, em que indica que os créditos só serão devolvidos passados 20 anos. Claro que pode fazer os contratos que entender, bem entendido, mas teria de responder às questões da AT; além disso, o facto de se dizer que o prazo é de 20 anos, não significa que antes – de 2013 a 2019 não tenha havido entregas e devoluções de fundos, entre o sócio e a sociedade, de curto prazo, como operações de tesouraria.
É certo que, por regra, o ónus da prova é da AT; porém, quando o contribuinte não colabora com a inspeção, entregando informações pertinentes e fulcrais para o apuramento da verdade material (que as possui diretamente na contabilidade e seria fácil disponibilizá-las) – então nesses casos, o ónus da prova passa a ser do contribuinte (cfr. art. 75.º, nº 2, al. b) da LGT).
Foi isso o que aconteceu no presente caso: as informações solicitadas na inspeção são muito pertinentes para apurar os factos que sustentam depois a aplicação do direito. E são indiciadas, no sentido de conta corrente, pelos movimentos do ano de 2019. A requerente não tinha qualquer fundamento para recusar a informação. Consta diretamente da sua contabilidade, do extrato dessa conta contabilística. Logo, poderia rapidamente mostrar tal extrato. E tem a obrigação de a guardar por 10 anos (art. 40.º do Código Comercial) – e a AT pediu informações com menos de 10 anos.
Perante esta falta de colaboração, sem invocar circunstâncias putativamente legitimadoras, inverte-se o ónus da prova. Passa a ser a requerente a ter de provar que o contrato celebrado com o sócio não se reconduz a “crédito utilizado sob a forma de conta corrente”. E a prova apresentada pela requerente nada prova a seu favor: não é o nome que se dá aos contratos que os qualifica em termos fiscais, mas sim a sua dinâmica e interações. E sendo o aditamento posterior à inspeção, tal é irrelevante, porque não tem efeitos retroativos e se acaso se pretendesse que fosse interpretado como um esclarecimento da natureza do contrato inicial, tal não procede porque isso seria efetuado de forma direta com a entrega dos elementos solicitados pela AT – com o efeito direto na qualificação fiscal do contrato – e não apenas com alterações e aditamentos contratuais.
V - DECISÃO
Assim sendo, há que concluir pela improcedência do pedido, mantendo-se na ordem jurídica as liquidações impugnadas, com todas as consequências legais.
Valor: 265.466,95€ (o das liquidações impugnadas)
Custas, no montante de € 4.896,00 a cargo da Requerente.
29 de abril de 2025
Os árbitros
Victor Calvete (Presidente)
A. Sérgio de Matos (vogal)
Tomás Cantista Tavares (vogal e relator)