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Sumário
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A Contribuição de Serviço Rodoviário reveste a natureza de um imposto sobre combustíveis, pelo que sob essa qualificação os tribunais arbitrais têm competência para apreciar os correspondentes atos de liquidação.
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A Requerente não é o sujeito passivo da CSR, nem repercutido legal deste imposto. Assim, a sua legitimidade é aferida pela qualidade de mera repercutida de facto, circunstância em que sobre si recai o ónus de demonstrar um interesse legalmente protegido, como se extrai do cotejo dos artigos 9.º, n.º 1 do CPPT, 18.º, n.º 4, alínea a) e 65.º da LGT.
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Esse interesse há-de corresponder à circunstância de ter suportado, do ponto de vista económico, o imposto [CSR] liquidado, pela AT, ao sujeito passivo fornecedor dos combustíveis.
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Não tendo ficado provado que a Requerente foi repercutida, falece-lhe legitimidade para pedir a anulação das respetivas liquidações e o reembolso do imposto.
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A solução preconizada enquadra-se numa interpretação conforme à Constituição (v. artigo 20.º, n.º 1), porquanto o direito à impugnação dos atos lesivos não pode deixar de reportar-se aos sujeitos cuja esfera jurídico-patrimonial sofreu a lesão (os lesados) e não a outros, que não dispõem, nesse âmbito, de um direito legalmente protegido.
DECISÃO ARBITRAL
Os árbitros designados para formarem o Tribunal Arbitral Coletivo, constituído em 13 de novembro, Alexandra Coelho Martins (presidente), Rui Miguel Marrana (vogal) e Tomás Cantista Tavares (relator), acordam no seguinte:
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Relatório
A..., S.A., pessoa coletiva n.º ..., com sede na Rua ..., n.º ..., ...-... Lisboa, B..., S.A., pessoa coletiva n.º..., com sede na Rua ..., n.º ..., ...-... Lisboa, C..., S.A., pessoa coletiva n.º..., com sede na Rua..., n.ºs ... e ..., ...-... Funchal, D..., SGPS, S.A., pessoa coletiva n.º..., com sede na Rua..., n.º ..., ...-... Lisboa, E..., S.A., pessoa coletiva n.º..., com sede na Rua..., n.º ..., ...-... Lisboa, F..., S.A., pessoa coletiva n.º..., com sede na Rua..., n.ºs ... e ..., ...-... Funchal, G..., S.A., pessoa coletiva n.º..., com sede na Rua ..., n.º ..., ...-... Lisboa, H..., S.A., pessoa coletiva n.º..., com sede na Rua ..., n.º ..., ...-... Lisboa, I... LDA., pessoa coletiva n.º..., com sede na Rua ..., n.º, ... ...-... Lisboa, J..., S.A., pessoa coletiva n.º..., com sede na Rua ..., n.º ..., ...-... Lisboa, e K... S.A., pessoa coletiva n.º..., com sede na Rua ..., n.º ..., ...-... Lisboa, entidades integrantes do GRUPO L... (adiante conjuntamente designadas como “Requerentes”),
apresentaram pedido de constituição de Tribunal Arbitral e de pronúncia arbitral, com vista à declaração de ilegalidade e consequente anulação dos atos de liquidação de Contribuição de Serviço Rodoviário (“CSR”), referentes aos anos de 2020, 2021 e 2022, que consideram incluídas nas liquidações de Imposto sobre os Produtos Petrolíferos (“ISP”) dos vários períodos, e cujo encargo, nos montantes de €916.458,71 e € 55.846,96, foi repercutido nas Requerentes pelos fornecedores M... GmbH (doravante “M...”) e N..., S.A. (doravante, “N...”) na sequência da aquisição de 8.256.384,73 litros de gasóleo e 641.919,10 litros de gasolina e, bem assim, a anulação da decisão (tácita) de indeferimento do Pedido de Revisão Oficiosa contra os aqueles atos, com o consequente reembolso das quantias pagas acrescidas de juros indemnizatórios.
É demandada a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante identificada por “AT” ou Requerida.
Após nomeação de todos os árbitros, os mesmos comunicaram, em prazo, a aceitação do encargo, não tendo sido manifestada oposição pelas partes.
O Tribunal Arbitral Coletivo ficou constituído em 13/11/2024.
A Requerida apresentou a sua Resposta, com defesa por exceção e por impugnação, e juntou o processo administrativo (“PA”).
As Requerentes exerceram o contraditório sobre a matéria de exceção.
Por despacho do Tribunal, foi dispensada a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, ao abrigo dos princípios da autonomia do Tribunal Arbitral na condução do processo e da celeridade, simplificação e informalidade processuais (v. artigos 16.º, alínea c) e 29.º, n.º 2 do RJAT). As Partes foram notificadas para, querendo, apresentarem alegações (o que ambas fizeram, reproduzido, no essencial, os argumentos dos articulados anteriores).
Verificam-se os pressupostos da coligação de autores, nos termos do art. 3.º do RJAT.
Diga-se, desde já, que esta Sentença se inspira fortemente na sentença arbitral do processo 806/2024-T (com muitas partes de transcrição, por assunção da argumentação dessa Sentença) em que o Relator e a Presidente deste coletivo intervieram, como árbitros, nesse processo – e os argumentos destes autos, depois de analisados e ponderados, reforçam o que foi decidido no proc. 806/2024-T.
Posição das Requerentes
De acordo com as Requerentes, a Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto, que instituiu a CSR, viola o disposto no artigo 1.º, n.º 2 da Diretiva n.º 2008/118/CE, do Conselho, de 16 de dezembro de 2008 (“Diretiva IEC[1]”), sendo contrária ao direito da União Europeia, conforme declarado pelo Tribunal de Justiça no acórdão proferido no processo C-460/21, Vapo Atlantic, de 7 de fevereiro de 2022, pelo que os atos tributários nela fundados são ilegais e devem ser revogados pela AT.
Na sua perspetiva, a liquidação da CSR pela Requerida, em violação da Diretiva IEC, configura erro de direito “imputável aos serviços”, situação enquadrável no disposto no artigo 78.º, n.º 1, II parte da Lei Geral Tributária (“LGT”), com a consequente adequação do meio procedimental de revisão oficiosa, ao qual se aplica o prazo de quatro anos aí previsto.
As Requerentes caracterizam a CSR como um imposto e não como uma contribuição financeira, já que não tem por pressuposto uma prestação/benefício emanado da atividade da entidade pública a favor de um grupo de sujeitos passivos, nem a estrutura comutativa característica das contribuições financeiras. Deste modo, a apreciação da legalidade dos correspondentes atos de liquidação cabe na competência material do Tribunal Arbitral.
Sustentam a legitimidade para o procedimento e para a propositura da ação arbitral na qualidade de repercutidas legais do imposto, que invocam com amparo no artigo 6.º da Lei n.º 24-E/2022, de 30 de dezembro (e artigo 2.º do Código dos IEC), no artigo 18.º, n.º 4, alínea a) da LGT e no artigo 9.º, n.º 1, alínea b) do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”), alegando que foram quem, de facto, suportou a final o valor da CSR, por efeito da repercussão.
Sobre a CSR, salientam que os Estados-Membros não podem fazer incidir sobre os combustíveis fósseis outros impostos especiais de consumo para além do ISP, sem que, cumulativamente: (i) tal se justifique por motivos específicos, que não podem reconduzir-se a razões puramente orçamentais; e (ii) sejam respeitadas as regras europeias aplicáveis em matéria de impostos especiais de consumo e de imposto sobre o valor acrescentado. Argumentam que a consignação da receita da CSR à Infraestruturas de Portugal, S.A. é insuscetível de, por si só, demonstrar a existência de um motivo específico na aceção do artigo 1.º, n.º 2 da Diretiva IEC, uma vez que se reconduz a uma finalidade puramente orçamental, sem que se identifique outro propósito que justifique e legitime a tributação.
Referem que a CSR visa o financiamento da «concepção, projecto, construção, conservação, exploração, requalificação e alargamento» da rede rodoviária nacional, constituindo a contrapartida pela sua utilização inexistindo qualquer conexão entre a liquidação e cobrança da CSR e um qualquer objetivo juridicamente atendível, distinto do ISP e sem cariz meramente orçamental.
Mais invocam que o Tribunal de Justiça se pronunciou no caso C-460/21, Vapo Atlantic, no sentido de que a CSR não prosseguia “motivos específicos” na aceção do artigo 1.º, n.º 2 da Diretiva 2008/118, além de que tinha uma finalidade puramente orçamental e a sua estrutura não atestava a intenção de desmotivar o consumo dos principais combustíveis rodoviários, sendo, por isso, contrária ao direito da União Europeia, posição a que a Requerente adere.
Suscitam, por fim, a inconstitucionalidade da Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto (que criou a CSR) por violação do princípio da igualdade ínsito no artigo 13.º da CRP.
Em consequência, pugnam pela procedência do pedido, solicitando o reembolso da CSR que afirmam ter pago, ao abrigo do disposto na LGT e do direito da União Europeia.
Requerem, a final, que o reembolso da CSR impugnada seja acrescido de juros indemnizatórios.
Posição da Requerida
A Requerida começa por assinalar que as Requerentes não são sujeitos passivos das liquidações objeto do pedido, não detêm o estatuto fiscal de Depositário Autorizado e/ou Destinatário Registado, não processaram qualquer Declaração de Introdução no Consumo (“DIC”), nem apresentaram quaisquer comprovativos de pagamento ao Estado da CSR.
Em relação ao fornecedor de combustíveis M..., salienta que este não é titular de estatuto fiscal/sujeito passivo de CSR e como tal não pode ter sido responsável pela introdução dos produtos no consumo, nem pelo pagamento da CSR e configura, quanto muito, mero intermediário na cadeia de distribuição de combustíveis. Em relação ao fornecedor N..., apesar de este ser titular de estatuto fiscal no âmbito do ISP, não foram identificadas as DIC e/ou liquidações subjacentes ao pedido.
Denota a inexistência de relação entre DIC e faturas, de onde retira que não são identificáveis os atos de liquidação impugnados pelas faturas juntas pelas Requerentes aos autos.
Sobre a repercussão mencionada no artigo 2.º do Código dos IEC assinala que o vocábulo “repercutidos” consta da alteração operada pelo artigo 3.º da Lei n.º 24-E/2022 de 30 de dezembro, que só entrou em vigor a partir de 1 de janeiro de 2023, quando, em simultâneo, foi extinta a CSR, ou seja, sendo-lhe inaplicável.
Por exceção, a Requerida começa por alegar a caducidade do direito de ação, por esta só ter sido proposta em 2 de setembro de 2024, quando o indeferimento tácito se formou em 1 de junho de 2002, considerando que o facto de o prazo ter terminado em férias judiciais (v. artigos 20.º, n.º 1 do CPPT e 279.º do Código Civil) é irrelevante, pois “a presunção de indeferimento tácito não implica a pratica de um acto em juízo”, concluindo que esse prazo expirou em 30 de agosto de 2024.
Acrescente que à mesma conclusão se chega face à impossibilidade de se aferir em pleno da tempestividade dos pedidos de revisão oficiosa, dada a falta de identificação dos atos de liquidação em causa, uma vez que a contagem do prazo para a apresentação dos pedidos se inicia a partir do termo do prazo de pagamento do imposto, tendo por referência a data do ato de liquidação. Todavia, caso assim não se entenda, conclui que, quer o pedido de revisão oficiosa, quer o pedido arbitral, são intempestivos, suscitando a exceção de caducidade do direito de ação.
A este respeito assinala que, estando em causa aquisições nos anos de 2020 e 2022, na data de apresentação do pedido de revisão oficiosa, em 1 de fevereiro de 2024, já estava ultrapassado o prazo de 120 dias para deduzir a reclamação graciosa, previsto na primeira parte do artigo 78.º, n.º 1 da LGT.
Para a Requerida, as Requerentes não se podem fazer valer do prazo de quatro anos previsto no artigo 78.º, n.º 1, II parte da LGT, por não se verificar o requisito de erro imputável aos serviços, uma vez que as liquidações de CSR foram efetuadas de acordo com a disciplina legal aplicável e não enfermam de qualquer vício.
Sem conceder, entende, também, que os pedidos de reembolso dos IEC devem ser apreciados à luz do disposto nos artigos 15.º a 20.º do respetivo Código, que prevê o prazo de 3 anos para requerer o reembolso, que se encontrava expirado para todas as aquisições efetuadas pelas Requerentes em datas anteriores a 1 de fevereiro de 2021.
Conclui, desta forma, que quer o pedido de revisão oficiosa, quer a presente ação arbitral são intempestivos, o que consubstancia uma exceção perentória que determina a absolvição da Requerida do pedido, ou, a título subsidiário, uma exceção dilatória, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 89.º, n.ºs 1, 2 e 4 alínea k) do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (“CPTA”), devendo, nessa medida, ser absolvida da instância.
A Requerida argui também a incompetência do Tribunal Arbitral em razão da matéria, qualificando a CSR como uma contribuição financeira, enquadrável como uma das “demais contribuições financeiras a favor das entidades públicas” a que aludem os artigos 165.º, n.º 1, alínea i) da Constituição e 3.º, n.º 2 da LGT, e não como um imposto, concluindo que o seu conhecimento está excluído da arbitragem tributária, pois a vinculação da AT à jurisdição arbitral, operada pela Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, circunscreve-se à apreciação de pretensões relativas a impostos (artigo 2.º da Portaria), não abrangendo outros tributos, como se decidiu em diversos processos arbitrais.
Suscita, de igual forma, a incompetência material deste Tribunal, por entender, ad cautelem, que ainda que se considerasse existir competência do Tribunal Arbitral para a apreciação da ilegalidade dos atos de liquidação de CSR, nunca poderia o tribunal pronunciar-se sobre atos de repercussão de CSR, subsequentes e autónomos dos atos de liquidação de ISP/CSR, por não serem atos tributários, extravasando o âmbito material da arbitragem tributária.
Do exposto, conclui que se verifica a exceção dilatória de incompetência do tribunal em razão da matéria, que prejudica o conhecimento do mérito, nos termos vertidos nos artigos 576.º, n.ºs 1 e 2 e 577.º, alínea a) do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis por via do artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT, com a consequente absolvição da Requerida da instância.
Ainda no domínio dos pressupostos processuais, a Requerida invoca diversas exceções, infra enumeradas: ilegitimidade processual e substantiva da Requerente, ineptidão da petição inicial por falta de objeto e por ininteligibilidade do pedido e contradição entre este e a causa de pedir.
No tocante à ilegitimidade procedimental e processual (ativa), salienta que, ao abrigo do disposto nos artigos 15.º e 16.º do Código dos IEC, aplicável à CSR por remissão do artigo 5.º, n.º 1 da Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto (que criou a CSR), tal pressuposto apenas assiste aos sujeitos passivos que tenham procedido à introdução no consumo dos produtos em território nacional e provem o pagamento do imposto, o que não é o caso das Requerentes, que alegam apenas a qualidade de repercutidas.
Por outro lado, o diploma que criou a CSR [Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto] não contempla qualquer mecanismo de repercussão legal. A repercussão da CSR tem natureza meramente económica ou de facto e depende de vários fatores próprios de cada transação comercial. Acresce que não basta às Requerentes alegar (e provar) a repercussão económica, têm igualmente que provar que a mesma assume natureza progressiva.
Assinala que mesmo que a CSR, ou parte dela, tenha sido repassada às Requerentes, estas teria ainda de demonstrar que foram quem, a final, suportou o encargo do tributo, isto é, que não o repassaram no preço dos serviços prestados aos seus clientes, sendo estes os consumidores finais.
Mais refere que as Requerentes não provaram ter efetuado qualquer pagamento a título de CSR, pois as faturas juntas apenas contêm referência ao IVA. Para a Requerida, as faturas não corporizam atos de repercussão de CSR, apenas titulam operações de compra e venda de combustíveis, podendo, ou não, ter sido repercutida a CSR no preço pago pelo adquirente.
Sublinha que as Requerentes não são sujeitos passivos de ISP/CSR e não integram a relação tributária subjacente às liquidações contestadas, não são um terceiro substituído, não suportam o imposto por repercussão legal, nem tão-pouco correspondem ao consumidor final, pelo que não têm legitimidade para apresentar o pedido de revisão oficiosa e, de igual modo, o presente pedido arbitral, nos termos do disposto no artigo 15.º, n.º 2 do Código dos IEC, no artigo 9.º, n.º 1 do CPPT e no artigo 18.º, n.º 3 e n.º 4 alínea a) da LGT.
Nota ainda que, sem a identificação dos atos de liquidação, a Requerida pode vir a ser sucessivamente condenada a pagar a mesma CSR mais do que uma vez, a todo e qualquer operador económico que tenha tido intervenção na cadeia de comercialização de combustíveis, o que configuraria um atentado à segurança jurídica.
À face do exposto, sustenta que as Requerentes não preenchem o pressuposto processual da legitimidade ativa, o que consubstancia uma exceção dilatória, nos termos dos artigos 576.º, n.ºs 1 e 2, 577.º, alínea e) e 578.º, todos do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT, que prejudica o conhecimento do mérito da causa e gera a absolvição da Requerida da instância.
Ou, se assim não se entender, deve considerar-se que as Requerentes carece de legitimidade substantiva, o que consubstancia uma exceção perentória, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 576.º, n.ºs 1 e 3 e 579.º do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT, devendo a Requerida ser absolvida do pedido.
De seguida, a Requerida argui a ineptidão da petição inicial por duas ordens de razões.
A primeira prende-se com a falta de objeto, em virtude de não terem sido identificados pelas Requerentes os atos tributários praticados pela AT, nem as DIC submetidas pelo(s) sujeito(s) passivo(s) do imposto, tão-só faturas de aquisição de combustíveis. Por outro lado, dos autos não constam quaisquer elementos dos alegados “atos de repercussão da CSR”.
Acrescenta que não é possível à AT identificar factos essenciais omitidos pelas Requerentes e estabelecer a correspondência entre os atos de liquidação originados nas DIC e as faturas apresentadas pela Requerente, nem sobre a AT recai tal ónus. Situação que, adianta, não é superável por atuações processuais, como sejam a recolha, consulta ou análise de elementos ao dispor da AT.
Adicionalmente, afirma não ser possível fazer a correspondência entre as quantidades de produtos introduzidos no consumo e as quantidades de produto adquiridas pelas Requerentes aos seus fornecedores, pois a unidade de tributação, de 1000 litros, é determinada tendo em conta a temperatura de referência de 15ºC. Nas vendas subsequentes, não é possível fazer tal conversão, sendo consideradas as quantidades em função da temperatura observada, o que pode gerar oscilações, em regra superiores, tendo em conta as temperaturas médias em Portugal.
O segundo fundamento de ineptidão respeita à ininteligibilidade do pedido e à contradição entre este e a causa de pedir. Na perspetiva da Requerida, as Requerentes formulam um pedido de anulação de liquidações que não identificam, através da mera impugnação de alegadas repercussões, sem sequer identificarem o nexo entre estas e aquelas. E fazem-no com assento na ideia errada de que na CSR vigora um regime de repercussão legal e de que esta pode ser presumida. Contudo, não se pode inferir da ilegalidade das liquidações a ilegalidade das repercussões.
Pelas razões expostas, considera verificada a exceção de ineptidão do pedido arbitral, por falta de identificação do ato tributário, exigida pelo artigo 10.º, n.º 2, alínea b) do RJAT, e por contradição entre o pedido e a causa de pedir, o que determina a nulidade de todo o processo e consequente absolvição da Requerida da instância, conforme resulta dos artigos 186.º, n.ºs 1 e 2, 576.º, n.ºs 1 e 2, 577.º, alínea b) e 278.º, n.º 1, alínea b), todos do CPC, aplicáveis por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.
Por impugnação, a Requerida invoca que as Requerentes não lograram fazer prova do que alegam, i.e., de terem suportado por repercussão, integralmente e de forma definitiva (a final), o encargo da CSR liquidada por referência ao combustível adquirido, ónus que sobre si impendia (v. artigo 74.º da LGT), não se podendo presumir a existência da repercussão económica ou de facto.
Por outro lado, considera inadmissível que se exigisse à Requerida fazer prova de que não houve repercussão (prova de facto negativo), o que seria inconstitucional, desde logo, por violação do princípio da proporcionalidade, da tutela jurisdicional efetiva e do processo equitativo (v. artigos 2.º e 20.º da Constituição).
As faturas juntas pelas Requerentes não contêm uma única referência à CSR, nem à repercussão na sua esfera, ou ao pagamento da CSR cuja legalidade sindicam. Nem foram juntos documentos comprovativos de pagamento ao Estado da CSR. Em síntese, nenhum dos elementos de prova apresentados sustentam os factos invocados no pedido arbitral, nomeadamente que o valor pago pela aquisição do combustível tem incluída a totalidade, ou sequer parte, da CSR paga pelos sujeitos passivos de ISP/CSR, e os valores alegadamente suportados a título de CSR, impendendo sobre as Requerentes tal prova.
Ainda que as Requerentes tivessem provado que tinham sofrido a repercussão dos valores da CSR, os valores invocados são incorretos, pois aquelas limitaram-se a aplicar à quantidade de litros fornecidos a taxa de CSR em vigor, sem terem em consideração a conversão para a temperatura de referência de 15º C, pelo que sempre seriam inferiores.
Em relação ao Despacho do Tribunal de Justiça no processo C-460/21, Vapo Atlantic, a Requerida sustenta que em momento algum este considera ilegal a CSR. Afirma que existe um vínculo intrínseco entre o destino da CSR e o motivo específico que levou à sua criação, que se prende com a redução da sinistralidade rodoviária e a sustentabilidade ambiental, ambos distintos de uma finalidade orçamental. Deste modo, a CSR é conforme ao direito da União Europeia, não se constatando erro imputável aos serviços.
Por outro lado, ainda que a repercussão económica viesse a ser provada, de acordo com o Tribunal de Justiça (v. processo C-94/10), um Estado-Membro pode opor-se a um pedido de reembolso de um imposto indevido, apresentado pelo comprador sobre quem esse imposto tenha sido repercutido, com o fundamento de não ter sido esse comprador que o pagou às autoridades fiscais, desde que, nos termos do direito interno, esse comprador possa exercer uma ação civil de repetição do indevido e que o reembolso não seja, na prática, impossível ou excessivamente difícil.
Por fim, em relação ao pedido de reembolso da CSR e dos juros indemnizatórios, sustenta não estarem reunidos os respetivos pressupostos legais.
Conclui pela extinção e absolvição da instância por verificação da exceção de incompetência em razão da matéria, e/ou da exceção da ilegitimidade processual, e/ou da exceção da ineptidão da petição inicial/pedido arbitral, ou, se assim não se entender, pela absolvição do pedido, por verificação da exceção de caducidade do direito de ação, e/ou da exceção de falta de legitimidade substantiva; ou, por fim, caso assim não se entenda, pela improcedência total do pedido, por infundado e não provado.
Posição das Requerentes quanto às exceções
Sobre a matéria da ineptidão, as Requerentes afirmam ter identificado suficientemente os atos que pretendem ver anulados e satisfeito o ónus probatório com a apresentação das faturas e os cálculos do imposto, não podendo ir além do produzido, tendo a AT todos os meios para complementar tal prova e o dever de o fazer, podendo ser oficiada pelo Tribunal para os apresentar.
Em relação à exceção de caducidade, refere que o termo do prazo impugnatório se verificaria no dia 30 de agosto de 2024, não fora o disposto no artigo 20.º, n.º 1 do CPPT, que estatui que esse termo se transfere para o primeiro dia útil seguinte quando os prazos terminarem em dias em que os tribunais estejam encerrados. No caso, o primeiro dia útil foi o dia 2 de setembro de 2024, data em que deu entrada o pedido de pronúncia arbitral, pelo que a exceção é improcedente.
Ainda em relação à intempestividade reiteram a posição do pedido arbitral, no sentido de que é aplicável o prazo de quatro anos, previsto na II parte do n.º 1 do artigo 78.º da LGT, por estarmos perante uma situação de erro imputável aos serviços, pelo que consideram a ação tempestiva, o que resulta reforçado com a suspensão de prazos ocorrida por efeito da legislação extraordinária produzida por ocasião da pandemia Covid19. Defendem a inaplicabilidade dos artigos 15.º a 20.º do Código dos IEC por não estar em causa um pedido de reembolso, mas a declaração de ilegalidade dos atos tributários por violação do direito da União Europeia.
Relativamente à incompetência, as Requerentes pronunciam-se no sentido de que a CSR é um imposto, pelo que cabe na competência material do Tribunal Arbitral.
No tocante à suscitada ilegitimidade, invocam a qualidade de repercutidas legais e de lesadas, considerando que apenas o repercutido é afetado na sua esfera jurídica pelo ato lesivo, não podendo deixar de lhes assistir legitimidade processual e substantiva.
III. Questões a Apreciar
A questão de mérito a decidir respeita à compatibilidade do regime da CSR subjacente aos atos tributários impugnados com o direito da União Europeia, em concreto, com o disposto no artigo 1.º, n.º 2 da Diretiva 2008/118/CE.
No entanto, a Requerida invocou múltiplas exceções, quer dilatórias, quer perentórias, de que o Tribunal deve conhecer a título prévio, logo após a fixação da matéria de facto, a começar pelas dilatórias, pois a sua procedência, impede a apreciação do mérito da causa.
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Fundamentação de Facto
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Factos Provados
Com relevo para a decisão, importa atender aos seguintes factos:
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As “Requerentes” são entidades do grupo L..., que no exercício das suas atividades utilizam e consomem combustíveis (gasolina e gasóleo).
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Nos anos de 2020, 2021 e 2022, as Requerentes adquiriram 8.256.384,73 litros de gasóleo e 641.919,10 litros de gasolina aos fornecedores M... e N..., S.A.
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As faturas que titulam a aquisição do combustível acima referido não contêm qualquer menção à CSR ou à repercussão deste imposto.
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Por não concordarem com as liquidações de CSR referentes ao período de dezembro de 2020 a 2022, no valor de 972.305,67€, as Requerentes apresentaram pedido de revisão oficiosa.
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Até ao momento, as Requerentes não foram notificadas de qualquer decisão da AT sobre o referido pedido de revisão oficiosa.
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Presumindo o indeferimento do pedido de revisão oficiosa, com base na não decisão em 4 meses, as Requerentes apresentaram o pedido de constituição do Tribunal Arbitral e de pronúncia arbitral que deu origem à presente ação.
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Factos não Provados
Não se provou a alegação de que as Requerentes suportaram o montante de 972.305,67 €, a título de CSR, nos fornecimentos de combustível por si adquiridos aos fornecedores, por via da repercussão desses fornecedores, no período entre 2020 e 2022.
Com relevo para a decisão, não existem outros factos que devam considerar-se não provados.
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Motivação da Decisão da Matéria de Facto
Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, em face das soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2 do CPPT, 596.º, n.º 1 e 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e) do RJAT, não tendo o Tribunal que se pronunciar sobre todas as alegações das Partes, mas apenas sobre as questões de facto necessárias para a decisão.
No que se refere aos factos provados, a convicção dos árbitros fundou-se unicamente na análise crítica da prova documental junta aos autos.
Em relação às alegações de que a CSR foi repercutida às Requerentes e de que estas suportaram economicamente em definitivo este imposto, as Requerentes não juntaram meios de prova idóneos à respetiva comprovação.
Com efeito, as faturas dos fornecedores não contêm qualquer menção à CSR e nada mais há de relevante no processo que leve a conclusão diversa.
Por outro lado, as Requerentes não juntaram qualquer meio de prova de terem suportado, a final, o encargo da CSR. Neste âmbito, cabia-lhes evidenciar, se e na medida em que lhes tivesse sido repercutida a CSR pelos seus fornecedores (quod demonstrandum), que o respetivo encargo havia sido por si definitivamente suportado (sem ter sido repassado no preço dos serviços prestados aos seus clientes).
Note-se que as declarações genéricas dos dois fornecedores de combustíveis, um dos quais não sendo sequer sujeito passivo de ISP/CSR estão longe de conter elementos concretos indispensáveis a esta comprovação. E são os fornecedores de combustíveis que estão na posse dos elementos de facto que permitem alcançar quais as DIC que apresentaram (números e data) e qual o valor de CSR que delas consta em correspondência com as faturas emitidas aos seus cliente, as aqui Requerentes. Também só com estes elementos se poderia exigir à AT que identificasse os atos de liquidação, que deles dependem.
A Requerente procura provar a repercussão através das mencionadas declarações juntas aos autos, onde aqueles se limitam a afirmar de forma genérica e abstrata que repercutiram o encargo da CSR. Declarações que não versam sobre as concretas transações realizadas; não fazem a correspondência entre as operações praticadas e as DIC dos combustíveis transacionados; não estabelecem a relação entre as transações e as DIC com as correspondentes liquidações emitidas pela AT e, finalmente, não demonstram a incorporação do encargo da CSR nas faturas de venda de combustíveis às Requerentes, nem tão pouco em que grau e/ou medida tal incorporação se processou, não se podendo presumir a repercussão da CSR.
Por outro lado, mesmo que se soubesse o concreto valor de CSR repercutido às Requerentes (que não se sabe), do adquirido processual não se retira, de igual modo, que tenham sido as Requerentes, a final, a suportar economicamente o imposto em causa e que o encargo da CSR se cristalizou na sua esfera, como entidades que, em última instância, foram oneradas com o tributo em causa. Tal asserção exige como premissa que o encargo com a CSR não estivesse compreendido no preço/tarifa dos serviços prestados aos clientes das Requerentes (e/ou na medida em que não estava).
Em síntese, nada se comprovou em relação ao concreto pagamento da CSR em discussão nestes autos, à sua repercussão às Requerentes que, importa notar, não é consumidora final, ou ao facto de estas terem suportado, em definitivo, aquele imposto.
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Do Direito
Questões Prévias
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Sobre a Ineptidão do Pedido de Pronúncia Arbitral
A AT defende que o pedido de pronúncia arbitral é inepto, quer porque as Requerentes não identificam os atos que são objeto do pedido arbitral, como exige o artigo 10.º, n.º 2, alínea b) do RJAT, quer porque o pedido está em contradição com a causa de pedir. As Requerentes declinam esta argumentação e sustentam que, da análise da contestação da Requerida, resulta claro que esta percecionou corretamente o pedido e a causa de pedir.
O artigo 98.º, n.º 1, alínea a) do CPPT, subsidiariamente aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea c) do RJAT indica como nulidade insanável do processo judicial tributário, a ineptidão da petição inicial, sem, contudo, esclarecer as situações que configuram essa ineptidão. Desta forma, deve aplicar-se, a título subsidiário (v. artigos 2.º, alínea e) do CPPT e 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT), o disposto no compêndio processual civil que, no artigo 186.º, rege esta matéria (v. neste sentido a decisão do processo arbitral n.º 410/2024-T, de 13 de novembro de 2023, que a seguir se acompanha).
No artigo 186.º, n.º 1 do CPC, indicam-se as seguintes situações de ineptidão da petição inicial:
a) Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir;
b) Quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir;
c) Quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis.
O n.º 3 do mesmo artigo determina que “se o réu contestar, apesar de arguir a ineptidão com fundamento na alínea a) do número anterior, a arguição não é julgada procedente quando, ouvido o autor, se verificar que o réu interpretou convenientemente a petição inicial”.
Em relação à identificação dos atos tributários, não tendo as Requerentes a qualidade de sujeitos passivos da CSR, não lhes é exigível que disponham das liquidações correspondentes, uma vez que não são as destinatárias das mesmas, nem participaram na sua emissão. Aliás, tal exigência comprometeria a sindicabilidade dos atos tributários por repercutidos legais, ou, no caso de retenções na fonte, pelos substituídos, com a consequente contração do acesso ao direito, incompatível com o direito a uma tutela jurisdicional efetiva e com o princípio da proporcionalidade (v. artigos 20.º e 268.º, n.º 4 da Constituição).
A não identificação dos atos tributários não impediu o exercício do contraditório pela Requerida, que, pelo teor da extensa e circunstanciada resposta, manifestou compreender o alcance da pretensão das Requerentes e os argumentos que a alicerçam. Nem essa identificação é necessária para aferir da legalidade da cobrança de CSR.
O pedido formulado é perfeitamente inteligível e idóneo ao meio processual (ação arbitral tributária) – anulação dos atos de liquidação de CSR e consequente reembolso das quantias pagas pelas Requerentes, acrescidas de juros de lei.
Em relação à alegada contradição entre o pedido e a causa de pedir esta também não existe, pois as Requerentes não pretendem atingir os atos de repercussão qua tale, antes visam a anulação das liquidações de CSR subjacentes e a restituição do imposto que alegam ter suportado por repercussão (v. a este respeito a decisão de 12 de março de 2024 no processo arbitral n.º 676/2023).
Pelo exposto, improcede a exceção da ineptidão do pedido de pronúncia arbitral, pois não se verifica nenhuma das situações elencadas no artigo 186.º do CPC.
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Da Competência Material do Tribunal Arbitral
A Requerida qualifica a CSR como contribuição financeira e não como imposto, daí retirando a consequente exclusão do âmbito da jurisdição arbitral por falta de vinculação da AT (v. artigo 4.º, n.º 1 do RJAT[2]). Isto porque a Portaria de Vinculação[3], no corpo do seu artigo 2.º, delimita o respetivo âmbito à “apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida [à AT]”, sem prever outros tributos. (sublinhado nosso)
A questão releva do ponto de vista da competência “relativa” do Tribunal Arbitral e não “absoluta”, em razão da matéria, já que a norma que rege a competência, o artigo 2.º, n.º 1 do RJAT, faz referência a “atos de liquidação de tributos”, categoria ampla que compreende a tripartição clássica refletida no artigo 165.º, n.º 1, alínea i) da Constituição e no artigo 3.º, n.º 2 da LGT – impostos, taxas e contribuições financeiras –, pelo que aí tem claro enquadramento a CSR.
Porém, mesmo na perspetiva da competência “relativa” não assiste razão à Requerida, porquanto, apesar de o artigo 2.º da citada Portaria parecer limitar o âmbito da vinculação da AT à jurisdição arbitral aos “impostos” e de o nomen juris da CSR sugerir que estamos perante uma contribuição financeira, a sua natureza é, na realidade, a de um imposto administrado pela AT, ainda que de receita consignada, não sendo a denominação determinante para esta qualificação.
Em relação a esta matéria acompanhamos o decidido no processo arbitral 304/2022-T, de 5 de janeiro de 2023[4], e que, com suporte na jurisprudência do Tribunal Constitucional, conclui que a CSR é um imposto.
Desde logo, a designação de contribuição não vincula o aplicador do direito e não é o facto de o tributo ter a receita consignada que o qualifica como contribuição financeira (v. Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 539/2015; 369/99 e 232/2022, respetivamente), existindo vários impostos que têm a sua receita consignada (ainda que ao arrepio do princípio da não consignação da receita dos impostos).
O elemento decisivo para a qualificação da CSR como contribuição financeira é a existência de uma estrutura paracomutativa[5], ou dito de outra forma, de um nexo de bilateralidade/causalidade que se estabelece entre o ente beneficiário da receita [Estado] e os sujeitos passivos do tributo. A prestação deve destinar-se a compensar prestações administrativas aproveitadas (bilateralidade) ou provocadas (causalidade) pelos respetivos sujeitos passivos, “(...) acabando por se reconduzir à categoria de impostos de receita consignada as prestações pecuniárias coativas cobradas com o intuito de financiar despesa pública – mesmo que se trate de despesa pública concretamente identificada no âmbito da consignação das receitas – sempre que essa despesa se não possa reconduzir ao suporte financeiro de medidas ou atividades administrativas provocadas pelos sujeitos passivos ou de que estes sejam beneficiários” (v. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 232/2022, citado na decisão arbitral 304/2022-T).
No caso da CSR, constata-se que a mesma não tem por finalidade compensar prestações administrativas realizadas de que o sujeito passivo seja presumidamente beneficiário e também não se identificam prestações administrativas a que o sujeito passivo tenha dado causa.
Conforme explicita a decisão arbitral 304/2022-T:
“Desde logo, a CSR não tem como pressuposto uma prestação, a favor de um grupo de sujeitos passivos, por parte de uma pessoa coletiva. A contribuição é estabelecida a favor da EP — Estradas de Portugal, E. P. E. (art. 3º, nº 2 da Lei n.º 55/2007), sendo essa mesma entidade a titular da receita correspondente (art.º 6º). No entanto, os sujeitos passivos da contribuição (as empresas comercializadoras de produtos combustíveis rodoviários) não são os destinatários da atividade da EP — Estradas de Portugal, E. P. E., a qual consiste na “conceção, projeto, construção, conservação, exploração, requalificação e alargamento” da rede de estradas (art. 3º, nº 2 da Lei n.º 55/2007).
Em segundo lugar, também não se encontra base legal alguma para afirmar que a responsabilidade pelo financiamento da tarefa administrativa em causa – que no caso será a “conceção, projeto, construção, conservação, exploração, requalificação e alargamento da rede de estradas” – é imputável aos sujeitos passivos da contribuição, que são as empresas comercializadoras de combustíveis rodoviários. Pelo contrário, o art.º 2.º da Lei n.º 55/2007 diz expressamente que o “financiamento da rede rodoviária nacional a cargo da EP - Estradas de Portugal, E.P. E., (...), é assegurado pelos respetivos utilizadores e, subsidiariamente, pelo Estado, nos termos da lei e do contrato de concessão aplicável.”
Portanto, apesar de ser visível, de forma clara, o elemento de afetação da contribuição para financiar a atividade de uma entidade pública não territorial – a EP - Estradas de Portugal, E. P. E. – não é de modo algum evidente a existência, pelo contrário, afigura-se inexistir um “nexo de comutatividade coletiva” entre os sujeitos passivos e a responsabilidade pelo financiamento da respetiva atividade, ou entre os sujeitos passivos e os benefícios retirados dessa atividade.
A Contribuição de Serviço Rodoviário visa financiar a rede rodoviária nacional a cargo da EP — Estradas de Portugal, E. P. E. (art.º 1º da Lei 55/2007). O financiamento da rede rodoviária nacional a cargo da EP — Estradas de Portugal, E. P. E., é assegurado pelos respetivos utilizadores (art.º 2º). São, estes, como se conclui, os sujeitos que têm um vínculo com a atividade da entidade titular da contribuição e com a atividade pública financiada pelo tributo; são eles os beneficiários, e são eles os responsáveis pelo seu financiamento.
No entanto, a contribuição de serviço rodoviário é devida pelos sujeitos passivos do imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos, que, nos termos do art.º 4º n.º 1, al. a) do CIEC, são os “depositários autorizados” e os “destinatários registados”, não existindo qualquer nexo específico entre o benefício emanado da atividade da entidade pública titular da contribuição e o grupo dos respetivos sujeitos passivos.
Embora a Autoridade Tributária afirme que a posição dos revendedores de produtos petrolíferos é a de uma “espécie de substituição tributária”, não entendemos assim, pois tal entendimento não tem apoio na lei.
[…]
Ainda poderia acrescentar-se que o universo de entidades que beneficiam ou dão causa à atividade financiada pela CSR não é um grupo delimitado de pessoas, mas é toda a população de um modo geral. E que o efetivo sacrifício fiscal, suportado através de uma repercussão meramente económica, não é suportado apenas pelos que efetivamente utilizam a rede de estradas a cargo da Infraestruturas de Portugal S.A., mas também pelos que utilizam vias rodoviárias que não se incluem nessa rede.
Por conseguinte, conclui também este tribunal que a Contribuição de Serviço Rodoviário, apesar do seu nomen juris e de a sua receita se destinar a financiar uma atividade pública específica, não tem o caráter de comutatividade, bilateralidade ou sinalagmaticidade grupal ou coletiva que é necessária à contribuição financeira.”
No mesmo sentido, salienta a decisão arbitral 629/2021-T, de 3 de agosto de 2022, que “o nexo grupal – que faria das contribuições financeiras uma espécie de taxas coletivas – não se estabelece com os sujeitos passivos da CSR, mas sim com terceiros não participantes na relação tributária.”.
A qualificação da CSR como um imposto foi também a seguida pelo Tribunal de Contas, na Conta Geral do Estado de 2008, e resulta da análise da sua génese. Interessa a este respeito notar que a Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto, criou a CSR por desdobramento do ISP, em relação ao qual é indiscutível a sua qualificação como imposto. Esta relação umbilical merece destaque na decisão arbitral 332/2023-T: “A CSR, durante algum tempo legalmente autonomizada do ISP, a partir do qual nasceu e ao qual voltou, constituiu sempre um pseudónimo deste – e, portanto, sempre foi um imposto”.
Em síntese, a CSR é enquadrável como imposto, uma vez que não reúne as características de bilateralidade difusa e de responsabilidade de grupo inerente às contribuições, estando, deste modo, abrangida pela autovinculação da AT à jurisdição arbitral, nos termos da citada Portaria n.º 112-A/2011, sendo este Tribunal competente para proceder à sua apreciação.
Acresce que o pedido formulado pelas Requerentes é especificamente dirigido à anulação dos atos tributários e da decisão silente de segundo grau que os manteve, não tendo sido peticionada a ilegalidade ou ineficácia da Lei n.º 55/2007 ou de alguma(s) das suas normas. As Requerentes não pretendem, nem do seu articulado se infere, a “fiscalização da legalidade de normas em abstrato”. O que está em causa nos atos é a apreciação de atos individuais e concretos – de liquidação de CSR – em relação aos quais foi suscitada a questão da respetiva ilegalidade por erro de direito. A alegada ilegalidade do regime da CSR por violação do direito da União Europeia é causa de invalidade dos atos, mas não o objeto da pronúncia jurisdicional.
Nestes termos, por oposição ao que a Requerida preconiza, não estão em juízo matérias às quais a AT não se tenha vinculado, nem pedidos que o Tribunal Arbitral não possa conhecer, inexistindo qualquer alargamento do âmbito do artigo 2.º, n.º 1 do RJAT.
A Requerida invoca ainda a falta de competência material do Tribunal Arbitral para se pronunciar sobre a legalidade dos atos de repercussão de CSR.
Como descreve Sérgio Vasques “Os atos de repercussão materializam “um fenómeno que consiste na transferência do peso económico de um tributo para pessoa diferente do sujeito passivo e com quem este está em relação, através da sua integração no preço de um qualquer bem”[6].
Independentemente da posição que se adote sobre a natureza jurídica dos atos de repercussão, quanto a saber se são atos que integram uma relação jurídico-tributária complexa, ou se são um fenómeno económico de natureza estritamente privada, certo é que aqueles não são atos tributários em sentido lato, porque não envolvem o apuramento da matéria coletável/tributável através da aplicação de uma norma tributária substantiva a um caso concreto e muito menos atos tributários de liquidação stricto sensu, que tornam certa, líquida e exigível a obrigação tributária através da operação aritmética de aplicação da taxa legal à matéria tributável previamente determinada (v. neste sentido Serena Cabrita Neto e Carla Castelo Trindade, Contencioso Tributário, vol. I, Almedina, 2017, p. 278).
Efetivamente, os atos de repercussão não se subsumem a nenhuma das realidades visadas pelo artigo 2.º do RJAT, pelo que os Tribunais Arbitrais não são competentes para os apreciar.
Porém, as Requerentes não solicitam a apreciação da legalidade dos atos de repercussão. O pedido das Requerentes circunscreve-se aos atos de liquidação de CSR emanados da AT (e do ato de segundo grau que os tem por objeto), dos quais, como acima dito, o Tribunal pode conhecer.
À face do exposto, julga-se improcedente a exceção de incompetência material do Tribunal Arbitral, encontrando-se a AT ao mesmo vinculada, por estar em causa um pedido de anulação de atos de liquidação de imposto, a CSR (v. artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do RJAT).
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Da Ilegitimidade Ativa
O RJAT não contém a regulação do pressuposto processual da legitimidade, como possibilidade de intervenção num processo contencioso, cuja conformação jurídica tem, assim, de proceder do direito subsidiariamente aplicável, por via da aplicação do seu artigo 29.º, n.º 1, que remete para as disposições legais de natureza processual do CPPT, do CPTA e do CPC.
Da regra geral do direito processual, constante do artigo 30.º do CPC, resulta que é parte legítima quem tem “interesse direto” em demandar, sendo considerados titulares do interesse relevante, para este efeito, na falta de indicação da lei em contrário, “os sujeitos da relação controvertida”. A mesma regra é reproduzida no processo administrativo, que confere legitimidade ativa a quem “alegue ser parte na relação material controvertida” (v. artigo 9.º, n.º 1 do CPTA).
A legitimidade no processo é, pois, recortada pelo conceito central de “relação material” que, no âmbito fiscal, há de ser uma relação regida pelo direito tributário, à qual subjaz um ato tributário, cujo sujeito passivo é delimitado no artigo 18.º, n.º 3 da LGT, como “a pessoa singular ou coletiva, o património ou a organização de facto ou de direito que, nos termos da lei, está vinculado ao cumprimento da prestação tributária, seja como contribuinte direto, substituto ou responsável.”.
Neste domínio, a legitimidade não pode deixar de ser enquadrada no âmbito das relações jurídicas tributárias que se estabelecem entre a administração tributária, agindo como tal, e as pessoas singulares ou coletivas e entidades equiparadas (v. artigo 1.º, n.º 2 da LGT).
O CPPT consagra uma norma específica à legitimidade no processo judicial tributário, atribuindo-a aos “contribuintes, incluindo substitutos e responsáveis, outros obrigados tributários, as partes dos contratos fiscais e quaisquer outras pessoas que provem interesse legalmente protegido” (v. artigo 9.º, n.ºs 1 e 4 do CPPT).
No mesmo sentido, ainda que se refira somente à legitimidade no procedimento, a LGT determina no seu artigo 65.º que “têm legitimidade no procedimento os sujeitos passivos da relação tributária e quaisquer pessoas que provem interesse legalmente protegido.”. E o artigo 78.º da LGT, no âmbito da revisão dos atos tributários, assegura a mesma posição apelando aos conceitos de sujeito passivo e de contribuinte.
Em relação aos sujeitos passivos não originários, o legislador teve a preocupação de justificar, especificadamente, a razão pela qual lhes é concedida legitimidade processual. Assim, quanto aos responsáveis solidários, a legitimidade processual deriva “da exigência em relação a eles do cumprimento da obrigação tributária ou de quaisquer deveres tributários, ainda que em conjunto com o devedor principal” (v. artigo 9.º, n.º 2 do CPPT). Relativamente aos responsáveis subsidiários, está associada ao facto “de ter sido contra eles ordenada a reversão da execução fiscal ou requerida qualquer providência cautelar de garantia dos créditos tributários” (v. artigo 9.º, n.º 3 do CPPT). Em ambas as situações, constitui-se uma relação jurídico-tributária entre estas categorias de sujeitos passivos derivados e o credor tributário Estado, que encerra prestações – principais (de pagamento da obrigação tributária) e acessórias. O mesmo sucede com a outra categoria de sujeito passivo (não originário), o substituto tributário.
Compreende-se que o legislador não tenha adotado um conceito irrestrito de legitimidade ativa, rodeando-se de algumas cautelas, atentas as dificuldades práticas que uma tal abertura suscitaria, quer na ligação entre o ato de liquidação do imposto, a determinação da sua efetiva repercussão (económica) e a determinação do seu quantum; quer ainda no potencial desdobramento/duplicação de devoluções de imposto indevidas: simultaneamente ao sujeito passivo e ao(s) múltiplos repercutido(s) económicos da cadeia de valor. A ser assim, o mesmo imposto poderia ser restituído a diversos intervenientes, de forma dificilmente controlável, com manifesto prejuízo para o Estado, em colisão com os princípios da igualdade e da praticabilidade.
In casu, as Requerentes invocam a qualidade de repercutidas legais para deduzir a ação arbitral.
Efetivamente, apesar de o repercutido legal não ser sujeito passivo, a alínea a) do n.º 4 do artigo 18.º da LGT, determina que assiste o “direito de reclamação, recurso, impugnação ou de pedido de pronúncia arbitral nos termos das leis tributárias” a quem “suporte o encargo do imposto por repercussão legal”, estendendo a posição jurídica adjetiva ao repercutido (apesar de não o considerar sujeito passivo), na condição de estarmos perante um caso de “repercussão legal”. A lei implica (ou pressupõe) desta forma que o repercutido legal é titular de um interesse legalmente protegido, condição exigida para que possa intervir em juízo (v. artigo 9.º, n.ºs 1 e 4 do CPPT).
Nesse contexto, assinala Sérgio Vasques que “Se o repercutido estará à margem da relação tributária, não estará por isso à margem do direito”, referindo que a LGT lhe reconhece o direito “à reclamação, recurso, impugnação ou pronúncia arbitral”[7].
Todavia, a CSR não constitui um caso de repercussão legal. A Lei n.º 55/2007, que institui a CSR, não contém qualquer referência sobre quem deve recair o encargo do tributo. Basta atentar, para esta conclusão, no artigo 5.º, n.º 1 da citada lei: “A contribuição de serviço rodoviário é devida pelos sujeitos passivos do imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos, sendo aplicável à sua liquidação, cobrança e pagamento o disposto no Código dos Impostos Especiais de Consumo, na lei geral tributária e no Código de Procedimento e Processo Tributário, com as devidas adaptações.”.
Assim, o legislador limitou-se a identificar o sujeito passivo da CSR, nada acrescentando sobre a repercussão da mesma, pelo que o artigo 5.º, n.º 1 não remete para o artigo 2.º do CIEC (que prevê a repercussão legal nos impostos especiais sobre o consumo), mas apenas para as normas desse código que regulam a liquidação, cobrança e pagamento do imposto pelo sujeito passivo.
As Requerentes invocam a nova redação do artigo 2.º do Código dos IEC introduzida pela Lei n.º 24-E/2022, de 30 de dezembro[8], para demonstrar a repercussão, afirmando que o legislador veio esclarecer que a CSR é sempre repercutida nos consumidores.
No entanto, este raciocínio apresenta diversos problemas. Desde logo, porque a CSR tem um regime próprio, vertido na Lei n.º 55/2007, não sendo um dos tributos projetados no campo de incidência objetiva do Código dos IEC. A remissão do regime da CSR para o Código dos IEC que consta do artigo 5.º, n.º 1 da Lei n.º 55/2007, restringe-se à componente procedimental da “liquidação, cobrança e pagamento” da CSR, não podendo extrapolar-se uma aplicação generalizada dos princípios e regras dos IEC consagrados nesse compêndio a um tributo que no mesmo não está previsto. Acresce que no mencionado artigo 2.º do Código dos IEC não é feita qualquer referência à CSR que, aliás, foi extinta precisamente pela Lei n.º 24-E/2022 que alterou a sua redação.
Acresce que a alteração legislativa operada no Código dos IEC, cuja redação (do artigo 2.º) passou a conter a referência expressa à repercussão, é posterior à data dos factos sob apreciação, pelo que, se fosse de seguir a posição das Requerentes, estar-se-ia perante um caso flagrante de aplicação retroativa de normas fiscais. Esta conclusão não resulta afastada pela atribuição de natureza interpretativa pelo legislador[9], pois a retroatividade inerente às leis interpretativas “é necessariamente material e, caso esteja em causa a interpretação legal de normas fiscais, não pode deixar de estar abrangida pela proibição da retroatividade consagrada no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição.” (v. acórdão do Tribunal Constitucional n.º 751/2020, de 16 de dezembro de 2020. No mesmo sentido se pronuncia o recente acórdão do mesmo Tribunal, n.º 503/2024, de 25 de junho de 2024).
É, pois, errónea a qualificação de “repercussão legal” no caso da CSR. É que a ser “legal”, sempre teria de constar de uma norma com essa natureza, a qual, porém, não existe. Uma das características típicas da repercussão legal, como sucede no IVA e em algumas verbas do Imposto do Selo, é a evidenciação nos documentos de débito – faturas emitidas – do imposto repercutido, que permite o seu controlo por parte do repercutido (v. artigos 36.º, n.º 5, alíneas c) e d) do Código do IVA e 23.º, n.º 6 do Código do Imposto do Selo. Este último refere que “nos documentos e títulos sujeitos a imposto são mencionados o valor do imposto e a data da liquidação, com exceção dos contratos previstos na verba 2 da tabela geral [arrendamento e subarrendamento], cuja liquidação é efetuada nos termos do n.º 8.”). Não é o que sucede na situação vertente, em que os documentos que titulam as vendas de combustível não mencionam a CSR ou o seu quantitativo.
Em síntese, a Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto, que instituiu a CSR não contempla um mecanismo de repercussão legal, nem sequer, adiante-se, de repercussão meramente económica, isto, sem prejuízo de ser um dado que, em princípio, as empresas, em alguma medida, repassam ou tentam repassar nos preços praticados os gastos em que incorrem, independentemente da sua natureza (e, portanto, incluindo os gastos tributários), por forma a concretizarem o objetivo lucrativo que preside à sua criação e manutenção (vide artigos 22.º do Código das Sociedades Comerciais e 980.º do Código Civil).
E a alteração legislativa do Código dos IEC, ocorrida em dezembro de 2022, que passou a consagrar a repercussão nos IEC, além de não ser subsidiariamente aplicável à CSR, por falta de norma remissiva, mesmo que o fosse, não poderia reger a situação em análise porque é posterior à data dos factos.
Relembra-se que as Requerentes baseiam a sua intervenção processual na alegação de lhes ter sido repercutida a CSR pelas empresas fornecedoras de combustíveis, caracterizando-se como um consumidor de combustíveis que suporta (a final) o encargo daquele tributo. Posto que não se trata de uma repercussão legal, a mera repercussão económica não é, por si só, atributo de legitimidade processual. Requer, nos termos da lei, a demonstração de um interesse legalmente protegido, i.e., que mereça a tutela do direito substantivo. Ora, na situação em apreço, a repercussão de facto não foi evidenciada por factos concretos e circunstanciados, nem que tenha sido suportado o imposto em definitivo pelas Requerentes.
Na verdade, ao não revestirem a qualidade de sujeitos passivos de CSR (seja como contribuintes diretos, substitutos ou responsáveis), nos termos do citado artigo 18.º, n.º 3 da LGT, ou de repercutidos legais, nem sendo parte em contratos fiscais, as Requerentes só teriam legitimidade para demandar a Requerida e solicitar o reembolso do imposto [CSR] se comprovassem (ónus que recai sobre as Requerentes) que eram titulares de um interesse legalmente protegido, i.e., merecedor da tutela do direito substantivo (v. artigo 9.º, n.ºs 1 e 4 do CPPT), passível de justificar a faculdade de demandar a Requerida em juízo.
Sublinha-se que as Requerentes não têm a qualidade de consumidor final de combustíveis, no sentido de serem o último elo do circuito económico sobre o qual recai ou deve recair o encargo do tributo, na lógica da repercussão económica que subjaz nomeadamente aos Impostos Especiais de Consumo (“IEC”). Na verdade, o combustível adquirido é um fator de produção no circuito económico, pelo que, se a CSR se destina a ser suportada pelo consumidor, à partida, as Requerentes não fazem parte das entidades potencialmente lesadas, que são os consumidores e não os operadores económicos (v. neste sentido as decisões dos processos arbitrais n.ºs 408/2023-T, de 8 de janeiro de 2024, e 375/2023-T, de 15 de janeiro de 2024).
Conforme antes referido, as Requerentes não lograram atestar os concretos montantes de CSR de que alegam ter sido repercutidas e, menos ainda, que suportaram a CSR contra a qual reagem. Esta seria, segundo entendemos, a única forma de lhes poder ser reconhecida a legitimidade residual para a presente ação arbitral, tendo em conta que não são sujeitos passivos, nas diversas modalidades que o conceito acomoda, nem repercutidos legais da CSR ou consumidores finais.
Por outro lado, também não se afigura poder ser atribuída à Requerida a tarefa de indagação dos pressupostos da repercussão económica. Como descreve Sérgio Vasques “Os atos de repercussão materializam “um fenómeno que consiste na transferência do peso económico de um tributo para pessoa diferente do sujeito passivo e com quem este está em relação, através da sua integração no preço de um qualquer bem”[10]. Assim, a repercussão de facto resulta de decisões comerciais e políticas de preços que relevam da esfera de liberdade económica e autonomia dos operadores económicos, não competindo à AT desenvolver atividade instrutória em tal domínio.
Em síntese, como acima assinalado, as Requerentes não demonstraram os dois pressupostos essenciais ao reconhecimento de uma posição substantiva merecedora de tutela: a repercussão da CSR na sua esfera e o montante em que o foi, e ter suportado de forma efetiva (a final) o encargo deste imposto.
Por isso, em cumprimento do desiderato do direito nacional e da União Europeia, não se diga que as Requerentes ficaram desprovidas de tutela ou que não foi acautelada a observância do princípio fundamental da tutela jurisdicional efetiva (v. artigo 20.º da Constituição). Com efeito, não tendo ficado provada a repercussão da CSR pelos fornecedores de combustíveis, nem sido demonstrado que as Requerentes suportaram o encargo económico do imposto, falece-lhes legitimidade para pedir a anulação das respetivas liquidações e o reembolso do imposto, solução que se enquadra numa interpretação conforme à Constituição (v. artigo 268.º, n.º 4), porquanto o direito à impugnação dos atos lesivos não pode deixar de reportar-se aos sujeitos cuja esfera jurídico-patrimonial sofreu a lesão (os lesados) e não a outros.
A presente decisão não representa uma denegação do direito ao reembolso da CSR, mas o reconhecimento de que as demandantes, aqui Requerentes, não são a Parte com legitimidade para o solicitar ao Estado.
Este entendimento não é prejudicado pela circunstância de os factos que confeririam legitimidade às Requerentes serem, de igual modo, requeridos como condição de procedência da ação, porquanto a qualidade de repercutido de facto é essencial, quer para o juízo de lesividade que preside à titularidade de um direito legalmente protegido (condição de admissibilidade – v. artigo 9.º, n.º 1 do CPPT), quer para o reembolso do imposto a quem o suportou (questão de mérito).
De notar ainda que a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo já entendeu, em relação a um caso de liquidação de Imposto Automóvel (correspondente ao atual Imposto sobre Veículos), que o adquirente não tem legitimidade para impugnar a respetiva liquidação, precisamente por não se tratar de um caso de repercussão legal (v. Acórdão de 1 de outubro de 2003, processo n.º 0956/03).
A conclusão da ilegitimidade das Requerentes também se retira da exegese do Código dos IEC, aplicável à CSR na parte referente à liquidação, cobrança e pagamento do imposto (por remissão do artigo 5.º, n.º 1 da Lei n.º 55/2007). Conforme declara o acórdão do CAAD, de 1 de fevereiro de 2024, proferido no âmbito do processo 296/2023-T, “qualquer que seja, em tese geral, a possibilidade de o repercutido invocar a ilegalidade das liquidações que originam a repercussão, no âmbito dos impostos especiais de consumo há uma norma que o veda e que o legislador manteve incólume ao longo das 25 alterações que, em 24 anos, introduziu no CIEC: a do n.º 2 do artigo 15.º (epigrafado “Regras gerais do reembolso”).” (realce nosso)
A referida norma [artigo 15.º, n.º 2, do Código dos IEC] estabelece que “Podem solicitar o reembolso os sujeitos passivos referidos no n.º 1 e na alínea a) do n.º 2 do artigo 4.º que tenham procedido à introdução no consumo dos produtos em território nacional e provem o pagamento do respetivo imposto.”.
Desde a redação inicial destas normas, dada pelo Decreto-Lei n.º 73/2010, de 21 de junho, a única alteração substancial registada foi o aditamento (pela Lei n.º 24-D/2022, de 30 de dezembro) do “destinatário certificado” entre os sujeitos passivos identificados à cabeça da norma sobre “Incidência subjetiva”. Quer dizer que nenhum legislador – nem mesmo o que entendeu atribuir natureza interpretativa à alusão à tipicidade da repercussão dos impostos especiais de consumo – considerou necessário, para o que ora importa, alargar o círculo dos “sujeitos passivos” para lá do “destinatário certificado”.
Quer dizer que só os sujeitos passivos aí identificados (no artigo 4.º), e só quando preencham requisitos adicionais, podem suscitar questões sobre, tal como resulta do n.º 1 desse artigo 15.º, “o erro na liquidação”. Ora, esta solução apresenta total cabimento face à impraticabilidade que seria fazer a gestão de um sistema demasiadamente aberto a todo o género e tipo de reembolsos, com uma duvidosa forma de controlo. A esta mesma conclusão chegaram, entre outras, as decisões proferidas nos processos arbitrais n.ºs 296/2023-T, 408/2023-T, 375/2023-T e 633/2023-T.
À face do exposto julga-se verificada a exceção de ilegitimidade das Requerentes, constituindo uma exceção dilatória de conhecimento oficioso que obsta a que o Tribunal conheça as demais questões suscitadas e o mérito da causa, com a consequente absolvição da Requerida da instância, nos termos do disposto nos artigos 9.º do CPPT, 65.º da LGT, 55.º, n.º 1, alínea a) e 89.º, n.ºs 2 e 4, alínea e) do CPTA, ex vi artigo 29.º, n.º 1 do RJAT, ficando prejudicados todos os passos seguintes no iter cognoscitivo acima delineado (v. artigos 608.º e 130.º do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT).
Com referência ao indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa, dado tratar-se de uma mera ficção jurídica destinada a abrir a via contenciosa, servindo, no caso do processo arbitral tributário, para a fixação do dies a quo do prazo para apresentação do pedido arbitral, nos termos do art.º 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, não tem este Tribunal de se pronunciar sobre a respetiva anulação ou confirmação.
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Decisão
Atento o exposto, este Tribunal Arbitral Coletivo decide:
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Julgar improcedentes as exceções dilatórias de ineptidão do pedido de pronúncia arbitral e de incompetência material do Tribunal Arbitral para apreciar os atos de liquidação de CSR;
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Julgar procedente a exceção ilegitimidade ativa da Requerente para deduzir o pedido de declaração de ilegalidade de atos de liquidação de CSR e, em consequência, absolver a Requerida da instância;
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Condenar a Requerente no pagamento das custas do processo,
tudo com as legais consequências.
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Valor do Processo
Fixa-se ao processo o valor de 972.305,67€, que corresponde à importância de CSR cuja anulação as Requerentes pretendem e não contestado pela Requerida, de harmonia com o disposto nos artigos 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”), 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT e 306.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, este último ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.
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Taxa de Arbitragem
Fixam-se as custas no montante de € 13.464,00, a suportar pela Requerente por decaimento, de acordo com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4 do RJAT e 4.º do RCPAT e com a Tabela I anexa ao RCPAT.
Notifique-se.
7 de abril de 2025
Os árbitros,
Dra. Alexandra Coelho Martins (Presidente)
Rui Miguel Marrana (vogal)
Tomás Cantista Tavares (relator)
[1] Acrónimo de Impostos Especiais de Consumo.
[2] Dispõe o n.º 1 do artigo 4.º do RJAT o seguinte: “A vinculação da administração tributária à jurisdição dos tribunais constituídos nos termos da presente lei depende de portaria […]”.
[3] V. Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.
[4] De referir ainda, a título de exemplo, as decisões arbitrais dos processos 564/2020-T, 629/2021-T, 305/2022-T, 644/2022-T, 665/2022-T, 702/2022-T, 24/2023-T, 113/2023-T, 294/2023-T, 332/2023-T e 410/2023-T.
[5] V. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 7/2019.
[6] V. Manual de Direito Fiscal, 2.ª edição, Almedina, 2019, p. 399.
[7] V. Manual de Direito Fiscal, 2.ª ed., p. 401.
[8] O artigo 2.º do Código dos IEC passou a dizer o seguinte: “Os impostos especiais de consumo obedecem ao princípio da equivalência, procurando onerar os contribuintes na medida dos custos que estes provocam, designadamente nos domínios do ambiente e da saúde pública, sendo repercutidos nos mesmos, em concretização de uma regra geral de igualdade tributária”.
[9] V. artigo 6.º da Lei n.º 24-E/2022, de 30 de dezembro.
[10] V. Manual de Direito Fiscal, 2.ª edição, Almedina, 2019, p. 399.