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SUMÁRIO:
I - Tendo o Tribunal de Justiça da União Europeia decidido que o artigo 63.° do TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe à legislação nacional que determina que os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um Organismo de Investimento Colectivo em valores mobiliários (OIC) não residente são objecto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção, mesmo incidindo sobre estes outras formas de tributação, têm os tribunais nacionais de invalidar as liquidações correspondentes – ainda para mais depois de uniformizada a jurisprudência pelo STA (Acórdão n.º 7/2024).
II – Como o STA fixou no Acórdão de 29 de Junho de 2022, “em caso de retenção na fonte e havendo lugar a impugnação administrativa do acto tributário em causa (v.g. reclamação graciosa), o erro passa a ser imputável à A. Fiscal depois de operar o indeferimento do mesmo procedimento gracioso, efectivo ou presumido, funcionando tal data como termo inicial para cômputo dos juros indemnizatórios a pagar ao sujeito passivo, nos termos do artº.43, nºs.1 e 3, da L.G.T.”.
DECISÃO ARBITRAL
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RELATÓRIO
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No dia 20 de Agosto de 2024 A..., empresa de investimento constituída e a operar nos Estados Unidos da América (EUA), com sede em ..., ...-... EUA, em representação de B..., titular do número de contribuinte nos EUA ... e com número de identificação fiscal em Portugal ... (Requerente), apresentou, no CAAD, requerimento de constituição de Tribunal Arbitral, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e dos n.ºs 1 e 2 do artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011 de 20 de Janeiro, e dos artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011 de 22 Março, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT).
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No Pedido de Pronúncia Arbitral (PPA) pretendia a Requerente obter a declaração da ilegalidade dos actos de retenção na fonte de IRC, com natureza definitiva, referentes ao período de tributação de 2022, no montante alegadamente retido em excesso de € 221.849,62, na sequência do indeferimento do pedido de Reclamação Graciosa apresentado junto da Requerida em 26 de Dezembro de 2023.
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Nomeados os árbitros e não tendo o Requerente, nem a Requerida, suscitado qualquer objecção, o Tribunal Arbitral ficou constituído em 28 de Outubro de 2024.
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Seguindo-se os normais trâmites, em 4 de Dezembro de 2024, a AT apresentou resposta, juntando o processo administrativo.
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Tendo o Tribunal considerado que, não havendo testemunhas a inquirir nem excepções suscitadas, a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT era desnecessária, foi esta dispensada por despacho de 11 de Dezembro de 2024.
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PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
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O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído, é competente quanto à apreciação do pedido de pronúncia arbitral formulado pelo Requerente e o pedido que lhe foi dirigido foi tempestivamente interposto.
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Requerente e Requerida gozam de personalidade e de capacidade judiciárias, são legítimas e encontram-se regularmente representadas.
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Não foram invocadas excepções que pudessem obstar ao conhecimento do mérito.
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MATÉRIA DE FACTO
III.1. FACTOS PROVADOS
O Tribunal entende que resultaram provados os seguintes factos:
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A A..., empresa de investimento constituída e a operar, nos termos do..., nos Estados Unidos da América (EUA), com sede em ..., ...-... EUA, sujeita à supervisão da Securities and Exchange Commission (SEC), constituiu e gere o B..., titular do número de contribuinte nos EUA ... e com número de identificação fiscal em Portugal..., que é um dos seus compartimentos patrimoniais autónomos (denominados Séries) através dos quais obtém capitais junto de investidores com o objectivo de investir esses capitais em valores mobiliários e em outros activos financeiros em benefício desses investidores;
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Para tal a A... emitiu acções representativas do património do B... cujo valor é determinado, em cada momento, pela divisão do valor líquido global desse compartimento patrimonial autónomo pelo respectivo número de acções emitidas e em circulação;
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Entre os activos do B... em 2022 estavam acções da C... SGPS, SA, empresa residente, para efeitos fiscais, em território português;
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No decurso do período de tributação de 2022, foram colocados à disposição do B... lucros distribuídos por essa empresa nacional, no montante total de € 1.478.997,45;
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Sobre tais lucros distribuídos incidiu IRC, liquidado e cobrado a título definitivo, através do mecanismo de retenção na fonte, à taxa de 25%, nos termos do n.º 4 do artigo 87.º do Código do IRC, como evidenciado no quadro infra:
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As retenções na fonte de IRC, no valor total de € 369.749,35 foram efectuadas e entregues junto dos cofres da Fazenda Pública, através das guias n.ºs... (2022-05) e nº ... (2022-09), pelo D..., pessoa colectiva titular do número de identificação fiscal em Portugal ..., na qualidade de entidade registadora e depositária de valores mobiliários;
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Ao abrigo do n.º 2 do artigo 10.º da Convenção para Evitar a Dupla Tributação (CDT) celebrada entre Portugal e Estados Unidos da América, o B... solicitou o reembolso do montante de € 147.899,36 correspondente ao diferencial entre a taxa de retenção na fonte sofrida em Portugal (i.e. 25% = € 369.749,35) e a taxa reduzida de retenção na fonte prevista na CDT (i.e. 15% = € 221.849,62);
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Por outro lado, o B..., através da sua sociedade representante, A... apresentou em 26 de Dezembro de 2023 uma reclamação graciosa da retenção na fonte de IRC a título definitivo efectuada no ano de 2022, solicitando o reembolso desse remanescente – i.e., do montante de € 221.849,62;
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A AT emitiu projecto de indeferimento que, face ao não exercício do direito de audição prévia, foi convolado em definitivo por despacho de 21 de Maio de 2024;
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Em 20 de Agosto de 2024, a Requerente apresentou um Pedido de Pronúncia Arbitral no CAAD.
III.2. FUNDAMENTAÇÃO DOS FACTOS PROVADOS
Os factos dados como provados resultam dos documentos disponíveis nos autos e, ou, do acordo, expresso ou implícito (por não impugnação especificada), de Requerente e Requerida, livremente apreciados (nos termos do n.º 7 do artigo 110.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário) à luz das regras de racionalidade, lógica e experiência comum, segundo juízos de normalidade e razoabilidade.
III.3. FACTOS NÃO PROVADOS
Em razão das posições da Requerente e da Requerida e, consequentemente, da matéria relevante para a decisão da presente causa, não se consideraram relevantes outros factos.
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DIREITO
IV.1. Questões a decidir
A questão essencial que o Tribunal tem para resolver é a da admissibilidade da diferenciação de tratamento, face à lei nacional, dos Organismos de Investimento Colectivo em Valores Mobiliários (OICVM) residentes e não residentes, na medida em que, por aplicação do regime previsto no artigo 22.º, n.os 1, 3 e 10, do Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF), só os OICVM constituídos e a operar de acordo com a legislação nacional são dispensados de retenção na fonte:
“1 – São tributados em IRC, nos termos previstos neste artigo, os fundos de investimento mobiliário, fundos de investimento imobiliário, sociedades de investimento mobiliário e sociedades de investimento imobiliário que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional.
[…]
3 – Para efeitos do apuramento do lucro tributável, não são considerados os rendimentos referidos nos artigos 5.º, 8.º e 10.º do Código do IRS, exceto quando tais rendimentos provenham de entidades com residência ou domicílio em país, território ou região sujeito a um regime fiscal claramente mais favorável constante de lista aprovada em portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças, os gastos ligados àqueles rendimentos ou, previstos no artigo 23.º-A do Código do IRC, bem como os rendimentos, incluindo os descontos e gastos relativos a comissões de gestão e outras comissões que revertam para as entidades referidas no n.º 1.
[…]
10 – Não existe obrigação de efetuar a retenção na fonte de IRC relativamente aos rendimentos obtidos pelos sujeitos passivos referidos no n.º 1.”
A segunda questão suscitada perante o Tribunal Arbitral, directamente decorrente da solução dada à anterior, é a do pagamento de juros indemnizatórios.
IV.2.1. Posição da Requerente
A Requerente considera, basicamente, que a diferenciação de tratamento conferido a OICVM constituídos e a operar segundo a legislação nacional (Lei n.º 16/2015, de 24 de Fevereiro, Transpõe parcialmente as Diretivas n.os 2011/61/UE e 2013/14/UE, procedendo à revisão do regime jurídico dos organismos de investimento coletivo e à alteração ao Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras e ao Código dos Valores Mobiliário) e os OICVM constituídos e a operar segundo legislação estrangeira constitui uma restrição à livre circulação de capitais, e, portanto, uma violação do disposto no artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), cuja aplicação é imposta pelo primado do Direito Comunitário (e pelo artigo 8.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa - CRP).
Nesse sentido argumentou, em síntese (destaques do original):
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“a REQUERENTE é comparável a um OICVM, nos termos previstos na Diretiva n.º 2009/65/CE, de 13 de julho de 2009” e “o conceito de OICVM, tal como previsto na legislação europeia e na legislação nacional, integra-se no conceito de Organismo de Investimento Coletivo.”;
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“o artigo 22.º dos Estatutos dos Benefícios Fiscais (“EBF”), sob a epígrafe “Organismos de Investimento Coletivo”, determina o regime fiscal aplicável, em sede de IRC, aos rendimentos auferidos por aquele tipo de organismos que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional.”;
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“a REQUERENTE foi sujeito a tributação por retenção na fonte, em Portugal, à taxa final de 15%, com carácter definitivo, sobre os lucros auferidos, durante o período de tributação aqui em causa de 2022, de sociedades residentes em território português, não lhe tendo sido aplicada a referida exclusão de tributação em sede de IRC.”;
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“considera a REQUERENTE que se verifica um tratamento discriminatório face ao Direito da UE, em virtude do facto de o artigo 22.º do EBF impor imperativamente para a sua aplicação a necessidade de os Organismos de Investimento Coletivo se constituírem e operarem de acordo com a legislação nacional, sem, contudo, conceder que entidades da mesma natureza, que se constituam e operem nos mesmos termos mas ao abrigo da legislação de outro Estado-Membro da UE ou até de Estado Terceiro, possam comprovar que cumprem exigências equivalentes às contidas na lei interna para beneficiar igualmente daquele regime fiscal.”;
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“O pilar referente à liberdade de circulação de capitais encontra-se expressamente consagrado no artigo 63.º e seguintes do TFUE, enquanto princípio fundamental do Direito da UE.”;
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“Com efeito, o citado preceito estabelece que “(…) são proibidas todas as restrições aos movimentos de capitais entre Estados-Membros e entre Estados-Membros e países terceiros””;
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“Motivo pelo qual a REQUERENTE considera que a retenção na fonte sofrida viola grosseiramente o disposto no TFUE, nomeadamente no que se refere ao princípio da livre circulação de capitais, o qual, conforme resulta do teor do supra referido artigo, tem plena aplicação nas relações existentes entre uma entidade residente num Estado-Membro e uma entidade residente num outro Estado, como é o caso dos EUA.”;
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“importa ter presente as conclusões do Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia (“TJUE”), relativo ao caso Emerging Markets Series, proferido no âmbito do Processo C-190/12 (…), no qual aquele Tribunal se pronunciou sobre a (in)compatibilidade da legislação polaca (em face da atribuição exclusiva de uma isenção de imposto sobre as sociedades aos fundos de investimento na Polónia) com o artigo 63.º do TFUE (i.e. princípio da liberdade de circulação de capitais).”;
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“a REQUERENTE considera igualmente pertinente remeter para as conclusões do Acórdão do TJUE, relativo ao caso Fideliy Funds, proferido no âmbito do Processo C-480/16 (…), no qual aquele Tribunal vem, uma vez mais, pronunciar-se sobre a (in)compatibilidade da legislação de um Estado-Membro da UE (em face da atribuição exclusiva de uma isenção de imposto sobre OICVM residentes na Dinamarca) com o artigo 63.º do TFUE (i.e. princípio da livre circulação de capitais).”;
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“Sobre esta mesma matéria, i.e., a desconformidade do artigo 22.º do EBF com o Direito da União Europeia, mais concretamente com o artigo 63.º do TFUE, já se veio pronunciar o Supremo Tribunal Administrativo (“STA”) no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 7/2024, de 26 de fevereiro”, “chamando à colação o acórdão do TJUE proferido no âmbito do processo C-545/19, de 17 de Março de 2022”;
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“esta conclusão que aqui se vem discutindo é forçosamente aplicável, por força do artigo 63.º do TFUE, a entidades que se constituam e operem ao abrigo da legislação de um Estado Terceiro (tal como o caso da REQUERENTE), conforme decidiu o Tribunal Arbitral nos termos do Processo n.º 849/2023-T”;
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“Por fim, cumpre referir que sobre esta mesma matéria já se pronunciou variadas vezes o Tribunal Arbitral nomeadamente no Processo n.º 528/2019-T, de 27 de dezembro de 2019, e decisões arbitrais mais recentes no âmbito dos Processos n.ºs 438/2022-T, de 13 de março de 2023, n.º 501/2022-T, de 26 de junho de 2023, n.º 801/2022-T, de 3 de julho de 2023, n.º 474/2022-T, de 12 de dezembro de 2022 e n.º 595/2023-T, de 10 de janeiro de 2024”;
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“importa avaliar se a AT tem o poder de não aplicar uma norma interna incompatível com as exigências do Direito Europeu, ainda que a situação não tenha sido avaliada nas instâncias jurídicas”;
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“A este respeito, o artigo 266.º da CRP estabelece que a atividade da AT tem de ser levada a cabo em subordinação à Constituição e à Lei, devendo observar a prossecução do interesse público no respeito pelos direitos e interesses legítimos dos cidadãos (princípio da legalidade)”;
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“o artigo 3.º do Código do Procedimento Administrativo (“CPA”) concretiza aquele princípio especificando que “os órgãos da administração pública devem atuar em obediência à lei e ao direito, dentro dos limites dos poderes que lhe estejam atribuídos e em conformidade com os fins para que os mesmos poderes lhes foram conferidos”;
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“quando uma norma europeia aplicável a determinada situação se apresente perfeitamente clara, não levantando qualquer questão quanto à sua interpretação, deverá verificar-se a aplicação direta na ordem jurídica do Estado-Membro – tendo em consideração o princípio jurídico segundo o qual in claris non fit interpretado – em detrimento de eventual legislação nacional que disponha em sentido contrário à legislação da UE”;
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“o Acórdão proferido pelo STA, em 12 de dezembro de 2001, no âmbito do Processo n.º 026233, onde se entendeu que “(…) havendo um erro de direito na liquidação, por aplicação de normas nacionais que violem normas de direito comunitário, e sendo ela efetuada pelos serviços, é à administração tributária que é imputável esse erro (…)”;
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o “Acórdão proferido pelo STA em 22 de março de 2011, no âmbito do Processo n.º 1009/10, veio esclarecer que relativamente à interpretação do conceito de “erro imputável aos serviços” “(…) a jurisprudência deste Supremo Tribunal Administrativo tem também reiteradamente entendido que havendo erro de direito na liquidação, por aplicação de normas nacionais que violem o direito comunitário e sendo ela efetuada pelos serviços, é à administração tributária que é imputável esse erro, sempre que a errada aplicação da lei não tenha por base qualquer informação do contribuinte”.”
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No Acórdão Günter Fuß (C-429/09) “refere-se que “não sendo possível efetuar uma interpretação e na aplicação da regulamentação nacional conformes com as exigências do direito da União, os tribunais nacionais e os órgãos da Administração têm o dever de aplicar integralmente o direito da União e de proteger os direitos que este confere aos particulares, deixando de aplicar, se necessário, qualquer disposição contrária de direito interno”;
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“No mesmo sentido, um acórdão proferido pelo TJUE, referente ao processo Costanzo (C-103/88), considerou que “a administração, incluindo a comunal, tem o dever de aplicar as disposições do n,° 5 do artigo 29,° da Directiva 71/305 do Conselho, não aplicando as de direito nacional que com elas não estejam em conformidade”.”;
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Finalizava concluindo que “Assim, tendo em consideração as orientações do STA, é dever da AT aplicar o disposto no TFUE, obedecendo ao princípio da livre circulação de capitais previsto no seu artigo 63.º, o qual se encontra a ser violado pelo artigo 22.º do EBF.”.
Pediu ainda a Requerente que fosse “reembolsado o montante correspondente ao imposto retido em excesso, i.e., 15% dos lucros que lhe foram distribuídos no período de tributação aqui em causa de 2022”, bem como juros indemnizatórios, pedidos que serão considerados a final nos termos que fizeram maioria.
IV.2.2. Posição da Requerida
A AT mostrou, na sua Resposta – como, aliás, na Informação que fundamentou a rejeição da reclamação graciosa –, que está bem ciente de que a decisão do TJUE no processo n.º C - 545/19, de 17 de Março de 2022, fixou o entendimento de que o regime de diferenciação tributária entre OICVM residentes e não residentes não é compatível com o Direito da União.
E está igualmente bem ciente de que
“não cabe à AT. invalidar ou desaplicar o direito nacional em consequência de decisões do TJUE, substituindo-se ao legislador para além daquilo que possa considerar-se uma interpretação razoável.
7- Evidenciando-se que, a interpretação do direito europeu constante das decisões jurisprudenciais é vinculativa para os órgãos jurisdicionais, mas não afastam a vigência legal das normas consideradas pelo TJUE como contrárias ao direito europeu.
8- E, uma vez que, existe um modelo de tributação dos OIC residentes coerente, no que diz respeito aos OIC não residentes (que não disponham de um estabelecimento estável em território português), os mesmos não têm enquadramento na atual previsão do n.º 1 do art.º 22.º do EBF e, consequentemente, dos n.ºs 2, 3 e 10 da referida norma legal, sob pena de agravamento da tributação dos OIC residentes em relação aos não residentes”.
Entende porém que, como não lhe cabe revogar, ou deixar de aplicar as leis internas, porque um qualquer tribunal – seja ele o Supremo Tribunal Administrativo, o Tribunal Constitucional ou o TJUE – decidiu, bem ou mal, mas sem força obrigatória geral, que tais leis são desconformes com outras leis, com a Constituição ou com o Direito da União, não pode a AT deixar de as aplicar enquanto tais leis mantiverem a sua vigência. E no caso tanto mais assim quanto “a Reclamante é residente fiscal nos Estados Unidos da América e, não dispõe de estabelecimento estável em Portugal”, pelo que nem sequer o que a AT reputou ser “uma interpretação jurídica conforme ao direito europeu” lhe permitiria ir mais longe do que admitir que “no âmbito da dispensa de retenção, estarão incluídos os OIC constituídos nos demais Estados-Membros da EU e que operem em território português através de um estabelecimento estável aqui situado”.
IV.2.3. Decidindo
No histórico de decisões arbitrais sobre o tema da retenção na fonte de dividendos pagos a OIC não residentes antes da citada decisão do TJUE no processo n.º C - 545/19, de 17 de Março de 2022, tinha havido decisões favoráveis à posição do Requerente (como a do processo n.º 90/2019-T) e à da AT (como a do processo n.º 96/2019-T[1]).
No processo n.º 93/2019-T foram formuladas, em processo de reenvio para o TJUE, várias questões, sendo as duas primeiras as seguintes:
“1. O artigo 56.º [CE] (atual artigo 63.º TFUE), relativo à livre circulação de capitais, ou o artigo 49.º [CE] (atual artigo 56.º TFUE), relativo à livre prestação de serviços, opõem-se a um regime fiscal como o que está em causa no litígio no processo principal, constante do artigo 22.º do EBF, que prevê a retenção na fonte de imposto com caráter liberatório sobre os dividendos recebidos de sociedades portuguesas a favor de OIC não residentes em Portugal e estabelecidos noutros países da UE, ao mesmo tempo que os OIC constituídos ao abrigo da legislação fiscal portuguesa e residentes fiscais em Portugal podem beneficiar de uma isenção de retenção na fonte sobre tais rendimentos?
2. Ao prever uma retenção na fonte sobre os dividendos pagos aos OIC não residentes e reservar aos OIC residentes a possibilidade de obter a isenção de retenção na fonte, a regulamentação nacional em causa no processo principal procede a um tratamento desfavorável dos dividendos pagos aos OIC não residentes, uma vez que a estes últimos não lhes é dada qualquer possibilidade de aceder a semelhante isenção?”
A resposta que o TJUE deu a tais dúvidas, no seu Acórdão de 17 de Março de 2022 (processo n.º C - 545/19), consta dos números que a seguir se reproduzem:
“38 Ao proceder a uma retenção na fonte sobre os dividendos pagos aos OIC não residentes e ao reservar aos OIC residentes a possibilidade de obter a isenção dessa retenção na fonte, a legislação nacional em causa no processo principal procede a um tratamento desfavorável dos dividendos pagos aos OIC não residentes.
39 Esse tratamento desfavorável pode dissuadir, por um lado, os OIC não residentes de investirem em sociedades estabelecidas em Portugal e, por outro, os investidores residentes em Portugal de adquirirem participações sociais em OIC e constitui, por conseguinte, uma restrição à livre circulação de capitais proibida, em princípio, pelo artigo 63.o TFUE (v., por analogia, Acórdão de 21 de junho de 2018, Fidelity Funds e o., C‑480/16, EU:C:2018:480, n.os 44, 45 e jurisprudência referida).”.
Tendo o TJUE firmado esse entendimento, mesmo após ter sido confrontado com competente argumentação em contrário por parte da Advogada-Geral, não pode o presente Tribunal, mesmo não sendo o órgão de reenvio, aplicar o Direito nacional nos termos que o TJUE determinou que não pode ser aplicado[2].
Em consequência, como já outras instâncias de decisão o fizeram antes, tem de concluir que, nas palavras do Acórdão do TJUE no seu Acórdão de 7 de Março de 2022 (processo C-545/19),
“O artigo 63.° TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado‑Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um organismo de investimento coletivo (OIC) não residente são objeto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção.”
Ora, como o B... é equiparável a um Organismo de Investimento Colectivo em Valores Mobiliários (OICVM) abrangido pela Directiva n.º 2009/65/CE – não apenas por causa do que se considerou provado supra (alíneas A) e B) dos FACTOS PROVADOS), mas também porque, nunca tendo isso sido posto em causa pela AT, não se poderia agora concluir diferentemente –, deve ele ser considerado abrangido pelo juízo de incompatibilidade com o Direito da União formulado pelo TJUE sobre a restrição do regime do artigo 22.º do EBF aos OIC que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional.
Consequentemente, e por essa razão, são anuladas quer a decisão de indeferimento da reclamação graciosa apresentada pela Requerente (quanto às liquidações de IRC por retenção na fonte de 15% dos valores de dividendos distribuídos à Requerente por uma empresa nacional em 2022), quer as ditas liquidações.
IV.3. Devolução de montantes pagos e juros indemnizatórios
O Requerente pede ainda a condenação da AT na restituição da importância retida na fonte e no pagamento de juros indemnizatórios, à taxa legal, até ao reembolso integral da quantia devida.
Anulando-se, como se vai anular, o acto de retenção na fonte de IRC e a decisão de indeferimento da reclamação graciosa, o Requerente tem direito ao reembolso do valor indevidamente pago.
Nos termos da alínea b) do artigo 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a AT, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo, cabendo-lhe “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”. Isto está, pois, em perfeita sintonia com o preceituado no artigo 100.º da LGT, aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT.
O TJUE tem decidido que a cobrança de impostos em violação do direito da União Europeia tem como consequência não só direito ao reembolso do imposto pago, mas também o direito ao pagamento de juros (vide, o Acórdão Mariana Irimie, Proc. C-565/11):
“21. Há que lembrar ainda que, quando um Estado-Membro tenha cobrado impostos em violação do direito da União, os contribuintes têm direito ao reembolso não apenas do imposto indevidamente cobrado, mas igualmente das quantias pagas a esse Estado ou por este retidas em relação direta com esse imposto. Isso inclui igualmente o prejuízo decorrente da indisponibilidade de quantias de dinheiro, devido à exigibilidade prematura do imposto (v. acórdãos de 8 de março de 2001, Metallgeselischaft e o., C-397/98 e C-410/98, Colet., p. I-1727, n.ºs 87 a 89; de 12 de dezembro de 2006, Test Claimants in the FII Group Litigation, C-446/04, Colet., p. I-11753, n.º 205; Littlewoods Retail e o., já referido, n.º 25; e de 27 de setembro de 2012, Zuckerfabrik Jülich e o., C-113/10, C-147/10 e C-234/10, n.º 65).
22. Resulta daí que o princípio da obrigação de os Estados-Membros restituírem com juros os montantes dos impostos cobrados em violação do direito da União decorre desse mesmo direito da União (acórdãos, já referidos, Littlewoods Retail e o., n.º 26, e Zuckerfabrik Jülich e o., n.º 66).
23. A esse respeito, o Tribunal de Justiça já decidiu que, na falta de legislação da União, compete ao ordenamento jurídico interno de cada Estado-Membro prever as condições em que tais juros devem ser pagos, nomeadamente a respetiva taxa e o modo de cálculo. Essas condições devem respeitar os princípios da equivalência e da efetividade, isto é, não devem ser menos favoráveis do que as condições relativas a reclamações semelhantes baseadas em disposições de direito interno, nem organizadas de modo a, na prática, impossibilitar ou dificultar excessivamente o exercício dos direitos conferidos pelo ordenamento jurídico da União (v., neste sentido, acórdão Littlewoods Retail e o., já referido, n.ºs 27 e 28 e jurisprudência referida)”.
É certo, porém, que, como se refere neste n.º 23, cabe a cada Estado-Membro prever as condições em que tais juros devem ser pagos.
No caso Português o direito a juros indemnizatórios é regulado no artigo 43.º da LGT, que estabelece, no que aqui interessa, o seguinte:
“Artigo 43.º
Pagamento indevido da prestação tributária
1 – São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.
2 – Considera-se também haver erro imputável aos serviços nos casos em que, apesar da liquidação ser efectuada com base na declaração do contribuinte, este ter seguido, no seu preenchimento, as orientações genéricas da administração tributária, devidamente publicadas.
3. São também devidos juros indemnizatórios nas seguintes circunstâncias:
a) Quando não seja cumprido o prazo legal de restituição oficiosa dos tributos;
b) Em caso de anulação do acto tributário por iniciativa da administração tributária, a partir do 30.º dia posterior à decisão, sem que tenha sido processada a nota de crédito;
c) Quando a revisão do acto tributário por iniciativa do contribuinte se efectuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à administração tributária.
d) Em caso de decisão judicial transitada em julgado que declare ou julgue a inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma legislativa ou regulamentar em que se fundou a liquidação da prestação tributária e que determine a respetiva devolução.
4. A taxa dos juros indemnizatórios é igual à taxa dos juros compensatórios.
5. No período que decorre entre a data do termo do prazo de execução espontânea de decisão judicial transitada em julgado e a data da emissão da nota de crédito, relativamente ao imposto que deveria ter sido restituído por decisão judicial transitada em julgado, são devidos juros de mora a uma taxa equivalente ao dobro da taxa dos juros de mora definida na lei geral para as dívidas ao Estado e outras entidades públicas”.
É verdade que, in casu, estamos perante um acto de retenção na fonte e, como tal, não praticado directamente pela AT. No entanto, tal facto, de modo algum, afasta a imputabilidade do erro à AT, isto porque, conforme entendimento preconizado pelo Supremo Tribunal Administrativo (Acórdão proferido no Proc. n.º 93/21.7BALSB de 29-06-2022):
“Em caso de retenção na fonte e havendo lugar a impugnação administrativa do acto tributário em causa (v.g. reclamação graciosa), o erro passa a ser imputável à Administração Fiscal depois de operar o indeferimento do mesmo procedimento gracioso, efectivo ou presumido, funcionando tal data como termo inicial para cômputo dos juros indemnizatórios a pagar ao sujeito passivo, nos termos do artº. 43, nºs.1 e 3, da LGT “.
No caso em apreço, a impugnação administrativa (reclamação graciosa) foi apresentada em 26-12-2023, conforme consta do PA.
O prazo da reclamação graciosa de actos de retenção na fonte em sede de IRC é de «dois anos a contar do termo do prazo de entrega, pelo substituto, do imposto retido na fonte ou da data do pagamento ou colocação à disposição dos rendimentos, se posterior» (artigo 137º, n.º 3, do CIRC).
Os actos de retenção na fonte de IRC aqui em causa são de Maio de 2022 e de Setembro de 2022 pelo que é manifesto que decorreram menos de dois anos entre o termo do prazo para entrega à Fazenda Nacional, que decorreu até 20 de Junho de 2022 e 20 de Outubro de 2022, respectivamente, e a data em que foi apresentado pedido de reclamação graciosa, em 26-12-2023.
Muito embora a AT tenha emitido em 21-05-2024 a decisão de indeferimento há que atender ao prazo do nº 1 do artigo 57º da LGT que refere “O procedimento tributário deve ser concluído no prazo de quatro meses, devendo a administração tributária e os contribuintes abster-se da prática de actos inúteis ou dilatórios”.
No caso, o direito a juros indemnizatórios é regulado pelo nº 1 do artigo 43.º da LGT.
Assim, aplicando a jurisprudência seguida nestes casos, o Requerente tem direito a juros indemnizatórios a partir de 27 de Abril de 2024 que é o dia seguinte ao termo do prazo para decidir.
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Decisão
De harmonia com o supra exposto, o presente Tribunal Arbitral decide:
a) Julgar totalmente procedente o pedido arbitral formulado e, em consequência:
b) Julgar ilegais a decisão de indeferimento da reclamação graciosa n.º ...2023... e as retenções na fonte de IRC referentes a 2022, na parte impugnada, condenando a AT à restituição das importâncias indevidamente retidas na fonte a título de IRC, no montante total de € 221.849,62;
c) Condenar a Requerida no pagamento de juros indemnizatórios desde 27 de Abril de 2024;
d) Condenar a Requerida nas custas, nos termos infra.
VI. Valor do Processo
Fixa-se o valor do processo em € 221.849,62 (duzentos e vinte e um mil, oitocentos e quarenta e nove euros e sessenta e dois cêntimos), valor atribuído pela Requerente e não impugnado pela AT, correspondente à soma dos valores que indevidamente lhe foram retidos na fonte em 2022.
VII. Custas
Custas a cargo da Requerida, no montante de € 4.284,00 (quatro mil, duzentos e oitenta e quatro euros), nos termos da Tabela I do Regime de Custas nos Processos Arbitrais Tributários, dado que o presente pedido foi julgado procedente, e em cumprimento do disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT.
Notifique-se, incluindo ao Ministério Público.
Lisboa, 23 de Abril de 2024
A redacção da presente decisão segue a ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990 excepto em transcrições que o sigam.
O árbitro presidente e relator
(excepto no que diz respeito aos juros)
(Victor Calvete)
(com declaração de voto)
O árbitro adjunto
Augusto Vieira
A árbitro adjunta
Sílvia Oliveira
Declaração de voto
Vencido quanto à decisão de impor à AT o pagamento de juros que só poderiam ser da responsabilidade do legislador (nos termos do disposto no artigo 15.º da Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro) – porque me parece apodíctico que, como se escreveu noutro acórdão uniformizador do STA, proferido em 30 de Janeiro de 2019 (processo nº 0564/18.2BALSB), “não pode ser assacado aos serviços da AT qualquer erro que, por si, tenha determinado o pagamento de dívida tributária em montante superior ao legalmente devido, se não estava na disponibilidade da AT decidir de modo diferente daquele que decidiu por estar sujeita ao princípio da legalidade (cfr. art. 266.º, n.º 2, da CRP e art. 55.º da LGT)”.
Em conformidade com tal jurisprudência – que entendo especial em relação à geral que foi invocada pela maioria –, defendi que a atribuição de juros ao Requerente só se poderia sustentar na alínea d) do n.º 3 do artigo 43.º da LGT (por analogia) uma vez que o que a AT não podia fazer no momento da liquidação era exactamente o mesmo que a AT não podia fazer no momento da avaliação da decisão da reclamação graciosa: não podia (ainda para mais, necessariamente, sem due process, sem contraditório, sem imparcialidade, sem possibilidade de suscitar o reenvio e sem recurso obrigatório do MP) desaplicar a lei que está vinculada a cumprir. Tal como, aliás, tem sido decidido por outros colectivos arbitrais: por exemplo, as decisões dos processos n.ºs 90/2019-T, 215/2021-T, 368/2021-T, 808/2022T, 996/2023-T, 297/2024-T, 303/2024-T e 304/2024-T.
(Victor Calvete)
[1] Referimo-nos à primeira decisão nele proferida, em 29 de Outubro de 2019. Na sequência do provimento do recurso intentado para o STA, foi proferido nova decisão, favorável à Requerente, em 3 de Novembro de 2023.
[2] Como o TJUE escreveu no n.º 27 do seu Acórdão de 6 de Outubro de 2021 (ECLI:EU:C:2021:799, destaques aditado), “cabe recordar que o processo de reenvio prejudicial previsto no artigo 267.o TFUE, que constitui a pedra angular do sistema jurisdicional instituído pelos Tratados, institui um diálogo de juiz para juiz entre o Tribunal de Justiça e os órgãos jurisdicionais dos Estados‑Membros, tem por objetivo assegurar a unidade de interpretação do direito da União, permitindo assim assegurar a sua coerência, o seu pleno efeito e a sua autonomia, bem como, em última instância, o caráter adequado do direito instituído pelos Tratados [v., neste sentido, Parecer 2/13 (Adesão da União à CEDH), de 18 de dezembro de 2014, EU:C:2014:2454, n.o 176 e jurisprudência referida, e Acórdão de 6 de março de 2018, Achmea, C‑284/16, EU:C:2018:158, n.o 37].”