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SUMÁRIO
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O artigo 22.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF), na redação do Decreto-Lei n.º 7/2015, de 13 de Janeiro, viola o princípio da livre circulação de capitais previsto no artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, quando interpretado no sentido de que o regime aí previsto apenas é aplicável a entidades constituídas à luz da legislação portuguesa, excluindo as que o foram segundo as demais legislações dos Estados-Membros da União Europeia e países terceiros.
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São ilegais os atos de tributação em sede de IRC dos dividendos de fonte portuguesa auferidos por organismos de investimento coletivo (OIC) de direito Alemão e com sede na Alemanha, com desaplicação do regime previsto no n.º 1 do artigo 22.º do EBF.
DECISÃO ARBITRAL
Os árbitros Professora Doutora Rita Correia da Cunha (Presidente), Dr. Francisco Melo (árbitro-adjunto) e Dr. João Santos Pinto (árbitro-adjunto e relator), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formar Tribunal Arbitral Coletivo, constituído em 21 de outubro de 2024, decidem o seguinte:
I. RELATÓRIO
A..., com o número de contribuinte fiscal português ..., B..., com o número de contribuinte fiscal português ..., C..., com o número de contribuinte fiscal português..., D..., com o n.º de contribuinte português ... e E..., com o n.º de contribuinte português ..., Organismos de Investimento Coletivo (“OICs”) constituídos de acordo com o direito alemão (adiante também designados, em conjunto, por “Requerentes”), aqui representados pela sua sociedade gestora F... GmbH, com sede em ..., ... Frankfurt am Main, vieram, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e dos n.ºs 1 e 2 do artigo 10.º, ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), requerer a constituição de Tribunal Arbitral Coletivo e apresentar pedido de pronúncia arbitral (“PPA”), em que é requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante designada “Requerida” ou “AT”), com vista à declaração de ilegalidade e anulação (a) dos atos de retenção na fonte de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“IRC”) de 2018, quanto à A..., consubstanciado na guia n.º ..., do período de setembro de 2018, quanto à B..., consubstanciado na guia n.º ..., do período de setembro de 2018, quanto à C..., consubstanciado na guia n.º..., do período de setembro de 2018, e dos atos de retenção na fonte de IRC de 2019, quanto à D..., consubstanciado na guia n.º..., do período de maio de 2019, quanto à E..., consubstanciado na guia n.º..., do período de maio de 2019, e quanto à C..., consubstanciado na guia n.º..., do período de setembro de 2019, que incidiram sobre os dividendos auferidos em território nacional, de onde resultou o saldo apurado no montante global de € 105.730,88 (cento e cinco mil, setecentos e trinta euros e oitenta e oito cêntimos), e (b) do ato de indeferimento expresso dos pedidos de revisão oficiosa apresentados pelos Requerentes contra os referidos atos de retenção na fonte (autuados com o n.º ...2022...). Peticionam os Requerentes também a restituição do montante indevidamente pago (€ 105.730,88), acrescido de juros indemnizatórios.
Em suporte das suas pretensões alegam os Requerentes, em síntese, que a tributação que incidiu sobre as quantias retidas na fonte foram sujeitas a um tratamento discriminatório em território nacional e que colide com a livre circulação de capitais consagrada no artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (“TFUE”).
O pedido de constituição do Tribunal Arbitral Coletivo foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 12/08/2024.
Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do Tribunal Arbitral Coletivo os aqui signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
Em 01/10/2024 foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.
Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Tribunal Arbitral Coletivo foi constituído em 21/10/2024.
Em 25/11/2024, a AT apresentou resposta ao PPA, defendendo-se por impugnação, não tendo junto o processo administrativo.
Por despacho de 21/01/2024, dispensou-se a realização da reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT, ao abrigo dos princípios da autonomia do Tribunal Arbitral na condução do processo, da celeridade, simplificação e informalidade processuais previstos nos artigos 16.º, alínea c), 19.º e 29.º, n.º 2, todos do RJAT. Nesse mesmo despacho, na sequência da resposta da AT, considerando o artigo 24.º da resposta, notificou-se os Requerentes para, no prazo de 10 dias, exercerem o contraditório e juntarem os documentos que entendessem por convenientes.
Em 06/02/2025 vieram os Requerentes exercer o contraditório, não tendo junto documentos adicionais. Notificada para o efeito, a AT optou por não se pronunciar sobre o requerimento apresentado pelos Requerentes em 06/02/2025.
Notificados para o efeito, em 13/03/2025, os Requerentes procederam à junção do comprovativo do pagamento da taxa de justiça subsequente (realizado em 12/03/2025).
II. SANEAMENTO
O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído e é materialmente competente para conhecer do pedido (cf. artigo 2.º, n.º 1, alínea a), do RJAT).
As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão devidamente representadas (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT e 1.º da Portaria n.º 112- A/2011, de 22 de março).
O processo não enferma de nulidades. As partes não suscitaram exceções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
Dadas as posições das partes vertidas nos articulados, considerando a questão decidenda em apreço, o Tribunal Arbitral dispensa a apresentação de alegações de direito.
III. QUESTÃO DECIDENDA
Face à exposição das partes nos respetivos articulados e aos documentos apresentados, a questão controvertida nos presentes autos é a de saber se as retenções na fonte de IRC, a título definitivo, sobre dividendos pagos a OICs não residentes em Portugal são ilegais por violação da liberdade de circulação de capitais que decorre do artigo 63.º do TFUE, em resultado da aplicação do regime legal previsto no artigo 22.º do EBF.
IV. DA MATÉRIA DE FACTO
FACTOS PROVADOS
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Os ora Requerentes são Organismos de Investimento Coletivo em Valores Mobiliários, constituídos sob a forma contratual ao abrigo do direito alemão que transpõe a Diretiva 2009/65/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de julho de 2009. [cf. Docs. n.ºs 7 a 11 junto ao PPA - facto não controvertido]
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Todos os Requerentes são residentes para efeitos fiscais na Alemanha. [cf. Docs n.ºs 12 a 16 juntos ao PPA - facto não controvertido]
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A gestão do Requerente é levada a cabo pela mesma entidade gestora, a F... GmbH, com sede na Alemanha. [cf. alegado no artigo 14.º do PPA, e não contestado pela Requerida - facto não controvertido]
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No âmbito da atividade desenvolvida pelos Requerentes, os mesmos detiveram ações representativas do capital social de empresas nacionais e residentes em Portugal -G..., a H... e a I.... [cf. Docs. n.ºs 17 a 21 juntos ao PPA - facto não controvertido]
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A custódia de tais ações encontrava-se invariavelmente confiada à instituição financeira J..., residente para efeitos fiscais na Alemanha. [cf. alegado no artigo 16.º do PPA, e não contestado pela Requerida - facto não controvertido]
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Aquela entidade custodiante, por seu turno, subcontratou o exercício das funções de custódia a outras instituições, incluindo a entidade registadora ou depositária em Portugal com responsabilidades por efetuar a retenção na fonte em sede de IRC neste território – neste caso o K..., SA. [cf. alegado no artigo 17.º do PPA, e não contestado pela Requerida - facto não controvertido]
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Em 2018 e 2019 os Requerentes auferiram dividendos das suas participações no capital social dessas sociedades, conforme consta do seguinte quadro:
[cf. referido no artigo 2.º do PPA, no artigo 3.º da resposta ao PPA, e Docss n.ºs 17 a 21 juntos ao PPA - facto não controvertido]
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Os dividendos auferidos pelos Requerentes foram objeto de retenção na fonte a título definitivo, à taxa de 35%, e entregues nos cofres do Estado pelo substituto tributário, o K..., SA [cf. referido no artigo 19.º do PPA, artigo 1.º da resposta ao PPA, e Docs. n.ºs 17 a 21 juntos ao PPA - facto não controvertido]
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Em 27/06/2022, os Requerentes deduziram pedidos de revisão oficiosa contra os atos de retenção ora impugnados, tendo tais pedidos sido autuados com os n.ºs ...2022..., ...2022..., ...2022..., ...2022..., ...2022... . [cf. Docs n.ºs 1 a 5 juntos ao PA - facto não controvertido]
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Entre 03/05/2024 e 22/05/2024, os Requerentes foram notificados das decisões de indeferimento dos pedidos de revisão oficiosa, por não se encontrarem verificados os pressupostos legais para a revisão prevista no artigo 78.º, n.º 1, LGT, e por o artigo 22.º do EBF não se aplicar a pessoas coletivas constituídas de acordo com a legislação alemã [cf. referido no artigo 1.º do PPA, no artigo 1.º da resposta ao PPA, e Docs. n.ºs 1 a 5 juntos ao PPA - facto não controvertido]
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Em 09/08/2024, os Requerentes apresentaram o PPA que deu origem aos presentes autos. [facto não controvertido]
FACTOS NÃO PROVADOS
Com relevo para a decisão, não existem outros factos alegados que devam considerar-se não provados.
FUNDAMENTAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Relativamente à matéria de facto, o Tribunal Arbitral não tem de se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe sim o dever de selecionar os factos que importa, para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cf. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT). Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cf. artigo 596.º do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes à luz do artigo 110.º, n.º 7, do CPPT, bem como a prova documental, consideram-se provados, com relevo para a decisão, os factos supra elencados.
Na resposta ao PPA, a Requerida refere que o imposto retido ao Requerente poderá eventualmente dar lugar a um crédito de imposto por dupla tributação internacional tanto na esfera dos Requerentes, bem como na esfera dos investidores, ao alegar no artigo 24.º da Resposta que “ … ainda que o Fundo não consiga recuperar o imposto retido na fonte em Portugal no seu estado de residência, também não está demonstrado que o imposto não recuperado pelo Fundo não possa vir a ser recuperado pelos investidores.” Conclui a AT que os Requerentes não fizeram prova da discriminação proibida pelo TFUE.
Todavia, se é verdade que a tributação no Estado de Residência pode, em certas circunstâncias, ser relevante para aferir da compatibilidade de retenções na fonte com o TFUE, também é verdade que esta questão não foi suscitada na decisão de indeferimento dos pedidos de revisão oficiosa impugnados. Assim sendo, não cumpre ao Tribunal Arbitral apreciar a legalidade ou ilegalidade da decisão de indeferimento dos pedidos de revisão oficiosa e dos atos de retenção na fonte impugnados com este fundamento, à luz do princípio da proibição da fundamentação a posteriori, princípio este reconhecido consistentemente pelo Douto Supremo Tribunal Administrativo (“STA”) em vários Acórdãos, entre os quais:
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Acórdão de 28-10-2020, processo n.º 02887/13.8BEPRT: “o tribunal tem de quedar-se pela formulação do juízo sobre a legalidade do acto sindicado em face da fundamentação contextual integrante do próprio acto, estando impedido de valorar razões de facto e de direito que não constam dessa fundamentação, quer estas sejam por ele eleitas, quer sejam invocados a posteriori”.
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Acórdão de 15-05-2013, processo n.º 01429/12: “(...) não é de admitir a fundamentação à posteriori, apenas sendo de atender à fundamentação contextual, ou seja, aquela que se integra no próprio ato, pois que, praticado um ato com determinada fundamentação, a apreciação contenciosa da sua legalidade tem de se fazer em face dessa mesma fundamentação”.
V. MATÉRIA DE DIREITO
Da ilegalidade das liquidações de Irc impugnadas
Tal como resulta da matéria de facto assente, os Requerentes são pessoas coletivas constituídas como fundos de investimento mobiliário ao abrigo do direito Alemão, e residentes na Alemanha, sendo, para efeitos de IRC, sujeitos passivos não residentes e sem estabelecimento estável em território português. No período que medeia entre 20/09/2018 e 23/05/2019, foram pagos aos Requerentes dividendos no valor total bruto de € 302.088,25, sujeitos a retenção na fonte em Portugal, no montante de € 105.730,88 (à taxa de 35%), decorrente de diversas participações detidas em sociedades residentes em Portugal.
Os OIC são atualmente regulados pelo Regime Jurídico dos Organismos de Investimento Coletivo (“RJOIC”), aprovado pela Lei n.º 16/2015, de 24 de fevereiro, que transpôs parcialmente para a ordem jurídica portuguesa a Diretiva n.º 2011/61/UE, do Parlamento e do Conselho de 8 de junho de 2011, relativa aos gestores de fundo de investimento alternativo e a Diretiva n.º 2013/14/UE, do Parlamento e do Conselho de 21 de maio de 2013, relativa aos gestores de fundos de investimento alternativo no que diz respeito à dependência excessiva relativamente às notações de risco. E na sequência da entrada em vigor do RJOIC, foi igualmente alterado o regime fiscal pelo Decreto-Lei n.º 7/2015, de 13 janeiro.
Nessa medida, nos termos do n.º 3 do artigo 22.º do EBF, “Para efeitos do apuramento do lucro tributável, não são considerados os rendimentos referidos nos artigos 5.º, 8.º e 10.º do Código do IRS, exceto quando tais rendimentos provenham de entidades com residência ou domicílio em país, território ou região sujeito a um regime fiscal claramente mais favorável constante de lista aprovada em portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças, os gastos ligados àqueles rendimentos ou previstos no artigo 23.º-A do Código do IRC, bem como os rendimentos, incluindo os descontos, e gastos relativos a comissões de gestão e outras comissões que revertam para as entidades referidas no n.º 1”.
Tendo a AT através da Circular 6/2015, de 17 de Junho esclarecido quanto ao artigo 22.º do EBF que “Esta exclusão abrange todos os rendimentos, realizados ou potenciais, que tenham a natureza de rendimentos de capitais, prediais ou mais-valias, incluindo, nomeadamente, as menos-valias realizadas ou potenciais, os rendimentos vencidos e ainda não recebidos, os rendimentos e gastos decorrentes da aplicação do justo valor a instrumentos financeiros e imóveis que integram o património do fundo, bem como os gastos ou perdas associados a variações cambiais, os quais consubstanciam, por natureza, rendimentos daquelas categorias e, de acordo com o normativo contabilístico aplicável aos OIC, devem ser contabilizados conjuntamente com os ativos que lhes deram origem.”
Assim, em face do exposto, cumpre assim analisar se o artigo 22.º do EBF, ao excluir de tributação os OIC residentes em território nacional, e sujeitar a retenção na fonte os dividendos auferidos por entidades equivalentes não residentes, configura uma restrição à livre circulação de capitais, nos termos do artigo 63.º do TFUE.
Sem mais delongas, adiante-se desde já que entende este Tribunal Arbitral que assiste razão aos Requerentes quando defendem que o artigo 22.º, n.º 1, do EBF, na parte em que limita o regime nele previsto a OICs constituídos segundo a legislação nacional, excluindo OICs constituídos segundo a legislação de outro Estado Membro (como seja a Alemanha), viola o princípio da liberdade de circulação de capitais consagrado no artigo 63.º do TFUE, em linha com jurisprudência arbitral recente nesta matéria: Decisão Arbitral de 20-09-2023, processo n.º 12/2023-T; Decisão Arbitral de 28-03-2024, processo n.º 840/2023-T; Decisão Arbitral de 12-04-2024, processo n.º 577/2023-T; Decisão Arbitral de 12-04-2024, processo n.º 842/2023-T; Decisão Arbitral de 15-04-2024, processo n.º 849/2023-T; Decisão Arbitral de 21-05-2024, processo n.º 839/2023-T; Decisão Arbitral de 11-06-2024, processo n.º 60/2024-T; Decisão Arbitral de 24-06-2024, processo n.º 850/2023-T.
Relembre-se a jurisprudência do STA vertida no Acórdão de 13/09/2023, processo n.º 715/18.7BELRS (subscrita por vários Acórdãos subsequentes do mesmo Tribunal, designadamente nos processos: n.º 0802/21.4BELRS, de 08/05/2024; n.º 0806/21.7BELRS e n.º 0755/19.9BELRS, ambos de 29/05/2024, e n.º 0757/19.5BELRS de 05/06(2024). E mais recentemente também pelo STA no processo n.º 01676/20.8BELRS de 11/07/2024. E na mesma senda deste último Acórdão, por se aderir aos fundamentos expressos no citado no Acórdão do STA de 13/09/2023, remete-se para o mesmo (integralmente disponível para consulta em www.dgsi.pt), destacando o excerto que de seguida se transcreve:
“Como referimos, o Tribunal recorrido assentou a sua decisão no acórdão do TJUE, de 17 de março de 2022, proferido no processo C-545/19. Sobre este acórdão a AT não se pronuncia nas suas conclusões de recurso, designadamente não afasta a doutrina que dele emana ao caso em apreço.
Ora, no acórdão em referência estava em causa um reenvio prejudicial apresentado no âmbito de um litígio que opunha a AllianzGI-Fonds AEVN à Autoridade Tributária e Aduaneira (Portugal), a respeito da retenção na fonte do imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas relativo aos anos de 2015 e 2016. E discutia-se a compatibilidade do artigo 22.º do EBF com o artigo 63.º (livre circulação de capitais) do TFUE, tendo o TJUE concluído que:
O artigo 63.º TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado - Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um organismo de investimento coletivo (OIC) não residente são objeto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção.
Esta jurisprudência, proferida relativamente a uma OIC de um país Membro da União Europeia, aplica-se manifestamente a uma OIC de um País Terceiro, uma vez que por força do artigo 63.°, n.° 1, do TFUE, a livre circulação de capitais aplica-se tanto aos fluxos de capitais entre Estados-Membros como entre Estados-Membros e países terceiros, sem nenhuma condição de reciprocidade (Acórdão de 10 de fevereiro de 2011, Haribo Lakritzen Hans Riegel e Österreichische Salinen (C-436/08 e C-437/08). Esta característica distingue a livre circulação de capitais de todas as outras liberdades do mercado interno, uma vez que estas se aplicam exclusivamente no território dos Estados-Membros.” (negrito nosso)
Deste modo, resulta de forma clara que o artigo 22.º do EBF, na redação dada pelo Decreto-Lei n.º 7/2015, de 13 de janeiro, viola o princípio da livre circulação de capitais previsto no artigo 63.º do TFUE, quando torna aplicável o regime aí previsto apenas a sociedades constituídas à luz da legislação portuguesa, excluindo as que o foram segundo as demais legislações dos Estados Membros da EU ou de países terceiros. In casu, os dividendos distribuídos por sociedades residentes em Portugal a um OIC residente num Estado terceiro, são objeto de retenção na fonte, quando, ao invés, os dividendos distribuídos a um OIC que se constitua e opere de acordo com a legislação nacional não estaria sujeito a essa mesma retenção.
Ainda quanto à questão da comparabilidade, recorde-se que a AT veio alegar, na sua resposta, que tais situações não são comparáveis, defendendo que o tratamento fiscal diferenciado entre um OIC que se constitua e operem de acordo com a legislação nacional e um OIC não residente, porquanto o primeiro é tributado em sede de imposto do selo (verba 29 TGIS) e o último não. Porém, no Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia (“TJUE”) proferido no processo C-545/19, AllianzGI-Fonds AEVN, foi decidido que tal circunstância é irrelevante, na medida em que não colocam os fundos de investimentos residentes numa situação objetivamente diferente dos fundos de investimento não residentes, tal como resulta dos parágrafos 53 a 58 que se passam a transcrever:
“53 - A este propósito, importa salientar, por um lado, no que respeita ao imposto do selo, que resulta tanto das observações escritas apresentadas pelas partes como da resposta do órgão jurisdicional de reenvio ao pedido de informações do Tribunal de Justiça que, pelo facto de a sua matéria coletável ser constituída pelo valor líquido contabilístico dos OIC, esse imposto do selo é um imposto sobre o património, que não pode ser equiparado a um imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas.
54 Além disso, como salientou a advogada-geral no n.o 47 das suas conclusões, no processo principal, a legislação fiscal portuguesa distingue, no caso dos OIC residentes, entre o rendimento do capital acumulado e o que é imediatamente redistribuído, apenas o primeiro sendo englobado na matéria coletável do referido imposto do selo. Ora, este aspeto basta, por si só, para distinguir este processo do que deu origem ao Acórdão de 2 de junho de 2016, Pensioenfonds Metaal en Techniek (C-252/14, EU:C:2016:402).
55 Com efeito, mesmo considerando que esse mesmo imposto do selo possa ser equiparado a um imposto sobre os dividendos, um OIC residente pode escapar a tal tributação dos dividendos procedendo à sua distribuição imediata, ao passo que esta possibilidade não está aberta a um OIC não residente. 56 Por outro lado, no que se refere ao imposto específico previsto no artigo 88.o , n.o 11, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas, resulta das indicações da Autoridade Tributária, contidas na decisão de reenvio, que, por força desta disposição, este imposto só incide sobre os dividendos recebidos por OIC residentes quando as partes sociais a que respeitam os lucros não tenham permanecido na titularidade do mesmo sujeito passivo, de modo ininterrupto, durante o ano anterior à data da sua colocação à disposição e não venham a ser mantidas durante o tempo necessário para completar esse período. Assim, o imposto previsto pela referida disposição só incide sobre os dividendos de origem nacional recebidos por um OIC residente em casos limitados, pelo que não pode ser equiparado ao imposto geral de que são objeto os dividendos de origem nacional recebidos pelos OIC não residentes.
57 Por conseguinte, a circunstância de os OIC não residentes não estarem sujeitos ao imposto do selo e ao imposto específico previsto no artigo 88.o , n.o 11, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas não os coloca numa situação objetivamente diferente em relação aos OIC residentes no que se refere à tributação dos dividendos de origem portuguesa. 58 Em seguida, quanto ao argumento do Governo português que figura no n.o 48 do presente acórdão, há que salientar que, como alegou a Comissão em resposta às perguntas escritas do Tribunal de Justiça, no domínio da livre prestação de serviços, ao abrigo do artigo 56.o TFUE, os operadores económicos devem ser livres de escolher os meios adequados para exercer as suas atividades num Estado-Membro diferente do da sua residência, independentemente de se estabelecerem ou não de modo permanente nesse outro Estado-Membro, não devendo esta liberdade ser limitada por disposições fiscais discriminatórias.”
Nestes termos, também aqui não assiste razão à Requerida.
Quanto à questão da eventual neutralização, suscitada pela AT Requerida quando alega que o Requerente não demonstrou que não obteve um crédito de imposto no Estado de Residência, e ainda que não tenha sido referida nos indeferimentos dos pedidos de revisão oficiosa em apreço, sempre se poderá notar que o Estado português não neutralizou, através da CEDT Portugal/Alemanha, o tratamento discriminatório resultante da legislação interna, conforme exigido na jurisprudência do TJUE. Senão vejamos.
A questão da neutralização do tratamento discriminatório no Estado da Fonte (in casu, Portugal), através da atribuição de uma vantagem no Estado da Residência (in casu, Alemanha), levanta-se quando as partes discutem se as retenções na fonte relativas aos dividendos de fonte portuguesa percecionados pelos Requerentes deram lugar a um crédito de imposto, parcial ou total, no Estado de Residência (Alemanha). Esta questão tem sido discutida em vários Acórdãos do TJUE relativamente à tributação de dividendos pelo Estado da Fonte e, essencialmente, consiste em saber se o Estado da Fonte pode manter uma retenção na fonte sobre dividendos aparentemente discriminatória e não eliminar a dupla tributação económica nacional se a tributação do detentor das participações sociais pelo Estado de Residência for “neutralizada” através de um crédito de imposto atribuído por uma CEDT.
Note-se que o TJUE tem sido consistente em rejeitar a neutralização do tratamento discriminatório no Estado da Fonte através da atribuição unilateral de uma vantagem no Estado da Residência (i.e., uma vantagem conferida pela legislação nacional do Estado da Residência, por oposição a uma vantagem conferida ao abrigo de uma CEDT), rejeitando, assim, a noção de que o tratamento discriminatório no Estado da Fonte depende de uma análise integrada da situação global do contribuinte, ou seja, de uma análise que combine a tributação resultante da legislação nacional do Estado da Fonte e do Estado da Residência. Este entendimento radica no princípio de que os Estados-Membros não podem exercer a sua soberania fiscal de forma a introduzir uma discriminação contrária às regras do Direito da União Europeia.
Todavia, o TJUE tem vindo a reiterar que, para aferir o tratamento discriminatório no Estado da Fonte, é necessário analisar a situação do contribuinte à luz não só da legislação nacional do Estado da Fonte, mas também da CEDT celebrada entre o Estado da Fonte e o Estado da Residência, dado que os preceitos da dita CEDT integram o sistema fiscal do Estado da Fonte, e devem ser considerados para determinar se o Estado da Fonte exerceu a sua soberania fiscal de forma conforme às regras do Direito da União Europeia. Neste sentido, pode ler-se no Acórdão do TJUE de 7 de outubro de 2005, processo C-379/05 (Amurta v. Inspecteur van de Belastingdienst):
“78. Deste modo, o Reino dos Países Baixos não pode invocar a existência de um benefício concedido unilateralmente por outro Estado Membro, a fim de se eximir às obrigações que lhe incumbem por força do Tratado.
79. Em contrapartida, não se pode excluir que um Estado Membro consiga garantir o cumprimento das suas obrigações resultantes do Tratado, celebrando uma convenção destinada a evitar a dupla tributação com outro Estado Membro (v., neste sentido, acórdão Test Claimants in Class IV of the ACT Group Litigation, já referido, n.° 71).
80. Na medida em que o regime fiscal resultante de uma convenção destinada a evitar a dupla tributação faz parte do quadro jurídico aplicável ao processo principal e que foi apresentado como tal pelo órgão jurisdicional de reenvio, o Tribunal de Justiça deve tomá lo em consideração a fim de dar uma interpretação do direito comunitário que seja útil ao juiz nacional (v., neste sentido, acórdão de 19 de Janeiro de 2006, Bouanich, C 265/04, Colect., p. I 923, n.° 51; e acórdãos, já referidos, Test Claimants in Class IV of the ACT Group Litigation, n.° 71, Denkavit Internationaal e Denkavit France, n.° 45, assim como Test Claimants in the Thin Cap Group Litigation, n.° 54).
(…)
83. Assim, compete ao órgão jurisdicional nacional determinar se há que tomar em consideração a CDT no litígio no processo principal e, sendo caso disso, verificar se esta convenção permite neutralizar os efeitos da restrição à livre circulação de capitais salientada no n.° 28 do presente acórdão, no âmbito da resposta à primeira questão
84. Há assim que responder à segunda questão que um Estado Membro não pode invocar a existência de um crédito integral de imposto, concedido unilateralmente por outro Estado Membro a uma sociedade beneficiária estabelecida neste último Estado Membro, a fim de se eximir à obrigação de evitar a dupla tributação económica dos dividendos resultantes do exercício do seu poder de tributação, numa situação em que o primeiro Estado Membro evita a dupla tributação económica dos dividendos distribuídos às sociedades beneficiárias estabelecidas no seu território. Quando um Estado Membro invoca uma convenção celebrada com outro Estado Membro, destinada a evitar a dupla tributação, cabe ao órgão jurisdicional nacional determinar se há que tomar em consideração essa convenção no litígio no processo principal e, sendo caso disso, verificar se esta convenção permite neutralizar os efeitos da restrição à livre circulação de capitais”. (sublinhado nosso)
A questão da neutralização do tratamento discriminatório no Estado da Fonte através da atribuição de uma vantagem no Estado da Residência ao abrigo de uma CDT foi também especificamente discutida no Acórdão do TJUE de 14 de dezembro de 2006, processo C 170/05 (Denkavit Internationaal BV v. Ministre de l’Économie):
“42 Com as suas segunda e terceira questões, que importa examinar conjuntamente, o órgão jurisdicional de reenvio pretende, no essencial, saber se a resposta à primeira questão pode ser diferente por, ao abrigo da convenção franco neerlandesa, a sociedade mãe residente nos Países Baixos poder, em princípio, imputar no imposto por si devido neste Estado o imposto cobrado em França e, portanto, a retenção na fonte provir simplesmente da repartição das competências fiscais entre os referidos Estados Membros, a qual não pode ser criticada à luz dos artigos 43.° CE e 48.° CE, mesmo que a sociedade mãe residente nos Países Baixos esteja impossibilitada de proceder à imputação prevista pela referida convenção.
43 A este respeito, há que começar por recordar que, na falta de medidas de harmonização comunitária ou de convenções celebradas entre todos os Estados Membros nos termos do artigo 293.°, segundo travessão, CE, os Estados Membros continuam a ser competentes para determinar os critérios de tributação dos rendimentos, com vista a eliminar, eventualmente por via convencional, a dupla tributação. Neste contexto, os Estados Membros são livres de fixar, no âmbito de convenções bilaterais celebradas para prevenir a dupla tributação, os factores de conexão para efeitos da repartição da competência fiscal (v., neste sentido, acórdãos Saint-Gobain ZN, já referido, n.° 57, e de 19 de Janeiro de 2006, Bouanich, C 265/04, Colect., p. I 923, n.° 49).
44 Porém, há também que referir que, no que toca ao exercício do poder tributário assim repartido, os Estados-Membros não podem eximir-se ao respeito das regras comunitárias, tendo em conta o princípio recordado no n.° 19 do presente acórdão (acórdão Saint-Gobain ZN, já referido, n.° 58). Mais especificamente, esta repartição da competência fiscal não permite que os Estados Membros introduzam uma discriminação contrária às regras comunitárias (acórdão Bouanich, já referido, n.° 50).
45 No caso em apreço, uma vez que o regime fiscal resultante da convenção franco neerlandesa faz parte do quadro jurídico aplicável ao processo principal e que foi apresentado como tal pelo órgão jurisdicional de reenvio, o Tribunal de Justiça deve tê lo em consideração, de modo a dar uma interpretação do direito comunitário que seja útil ao órgão jurisdicional nacional (v., neste sentido, acórdãos de 7 de Setembro de 2004, Manninen, C 319/02, Colect., p. I 7477, n.° 21, Bouanich, já referido, n.° 51, e Test Claimants in Class IV of the ACT Group Litigation, já referido, n.° 71).
46 No que respeita ao tratamento fiscal resultante da convenção franco neerlandesa, há que recordar que uma sociedade não residente, como a Denkavit Internationaal, está em princípio autorizada, ao abrigo desta convenção, a imputar no imposto por si devido nos Países Baixos a retenção na fonte de 5% cobrada sobre os dividendos de origem francesa. Esta imputação não pode, todavia, exceder o montante do imposto neerlandês normalmente devido sobre estes dividendos. Ora, é pacífico que as sociedades mãe neerlandesas estão isentas pelo Reino dos Países Baixos do imposto sobre os dividendos de origem estrangeira, e portanto de origem francesa, pelo que não é concedida qualquer redução pela retenção na fonte francesa.
47 Assim, há que concluir que a aplicação conjugada da convenção franco neerlandesa e da legislação neerlandesa pertinente não permite neutralizar os efeitos da restrição à liberdade de estabelecimento referida no quadro da resposta à primeira questão.
48 Com efeito, em aplicação da convenção franco-neerlandesa e da legislação neerlandesa pertinente, uma sociedade-mãe estabelecida nos Países Baixos, que recebe dividendos de uma filial estabelecida em França, está sujeita a tributação através de retenção na fonte, limitada, é certo, pela referida convenção, a 5% do montante dos dividendos em questão, ao passo que uma sociedade-mãe estabelecida em França, como foi referido no n.° 4 do presente acórdão, está quase totalmente isenta dessa tributação.
49 Seja qual for a sua amplitude, a diferença de tratamento fiscal que resulta da aplicação desta convenção e desta legislação constitui uma discriminação em detrimento das sociedades mãe, em razão da localização da respectiva sede, incompatível com a liberdade de estabelecimento garantida pelo Tratado.
50 Com efeito, mesmo uma restrição à liberdade de estabelecimento, com pequeno impacto ou de menor importância, é proibida pelo artigo 43.° CE (v., neste sentido, acórdãos Comissão/França, já referido, n.° 21; de 15 de Fevereiro de 2000, Comissão/França, C 34/98, Colect., p. I 995, n.° 49; e de 11 de Março de 2004, De Lasteyrie du Saillant, C 9/02, Colect., p. I 2409, n.° 43).
51 A este respeito, o Governo francês alega que, segundo os princípios consagrados pelo direito fiscal internacional e como também decorre da convenção franco neerlandesa, é ao Estado de residência do contribuinte, e não ao da fonte dos rendimentos tributados, que incumbe corrigir os efeitos de uma dupla tributação.
52 Esta argumentação não pode ser acolhida, dado que não é pertinente no presente contexto.
53 Com efeito, a República Francesa não pode invocar a convenção franco neerlandesa, a fim de escapar às obrigações que lhe incumbem por força do Tratado (v., neste sentido, acórdão de 28 de Janeiro de 1986, Comissão/França, já referido, n.° 26).
54 Ora, a aplicação conjugada da convenção franco-neerlandesa e da legislação neerlandesa pertinente não permite evitar a tributação em cadeia a que está sujeita, diversamente de uma sociedade mãe residente, uma sociedade mãe não residente, nem, portanto, neutralizar os efeitos da restrição à liberdade de estabelecimento salientada no quadro da resposta à primeira questão submetida, como se concluiu nos n.os 46 a 48 do presente acórdão.
55 Com efeito, enquanto as sociedades mãe residentes beneficiam de um regime fiscal que lhes permite evitar uma tributação em cadeia, como foi recordado no n.° 37 do presente acórdão, as sociedades mãe não residentes estão, pelo contrário, sujeitas a este tipo de tributação dos dividendos distribuídos pelas suas filiais estabelecidas em França.” (sublinhado nosso)
Não obstante alguma inconsistência na aplicação do conceito de neutralização que se discute, vários Acórdãos demonstram que o TJUE tem decidido, de forma consistente, que as CEDTs devem ser consideradas para determinar a existência de um tratamento discriminatório: Acórdão do TJUE de 19 de novembro 2009, processo C-540/07 (Commission v. Italy), Acórdão do TJUE de 3 de junho 2010, processo C-487/08 (Commission v. Spain), Acórdão do TJUE de 17 de setembro de 2015, processos C-10/14, C-14/14 and C-17/14 (Miljoen).
Ora, no caso sub judice, é claro e evidente que a aplicação da CEDT entre Portugal e a Alemanha, nos termos da qual parte dos dividendos auferidos pelos Requerentes seria sujeita a uma taxa de retenção na fonte reduzida, não resultou na neutralização da diferença de tratamento, resultante da legislação nacional portuguesa, entre os dividendos auferidos por OICs com residência fiscal em Portugal e os dividendos auferidos pelos Requerentes (sujeitos a uma retenção na fonte à taxa de 35%). Note-se, ainda, que não é relevante para a questão em apreciação se os Requerentes solicitaram o reembolso de parte do valor retido na fonte, nos termos da CEDT entre Portugal e a Alemanha. O presente processo centra-se na compatibilidade das retenções na fonte em análise com o Direito da União Europeia.
Por último, importa também aqui recordar o Princípio do Primado do Direito da União Europeia sobre o Direito Nacional, bem como o relevo que assume a jurisprudência do TJUE na garantia de uma aplicação uniforme do Direito da União Europeia nos diversos Estados-Membros, por via do mecanismo de reenvio prejudicial previsto no artigo 267.º do TFUE.
Deste modo, estando em causa questões de Direito da União Europeia, a jurisprudência do TJUE tem carácter vinculativo para os tribunais nacionais (neste sentido, por todos, Acórdãos do STA de 26-03-2003, proferido no âmbito do processo n.º 01716/02, e de 27-11-2018, proferido no âmbito do processo n.º 46/13.9TBGLG.E1.S1).
O Princípio do Primado do Direito da União Europeia sobre o Direito Nacional tem suporte no n.º 4 do artigo 8.º da Constituição da República Portuguesa, em que se estabelece que “as disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respetivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático”.
Daqui se retira que os tribunais nacionais (incluindo os tribunais arbitrais) têm o poder-dever de desaplicar as normas de direito interno que se revelem contrárias a normas de Direito da União Europeia, desde que estas respeitem os princípios fundamentais do Estado de direito democrático (neste sentido, o Acórdão do STA de 03-02-2016, proferido no processo n.º 01172/14).
Pelo exposto, e considerando a incompatibilidade do artigo 22.º do EBF, ao excluir do seu âmbito de aplicação os OIC constituídos segundo a legislação de países terceiros, com o artigo 63.º do TFUE, o Tribunal Arbitral declara ilegais e anula as liquidações de IRC por retenção na fonte contestadas, e os atos de indeferimento expresso dos pedidos de revisão oficiosa apresentados pelos Requerentes, por vício de violação de lei, consubstanciado na violação do princípio da livre circulação de capitais previsto no artigo 63.º do TFUE e, consequentemente, do artigo 8.º, n.º 4, da CRP, em conformidade com o artigo 163.º do Código do Procedimento Administrativo, subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 2.º, alínea c), da LGT.
Dos juros indemnizatórios
Na sequência do pedido de anulação dos atos de retenção na fonte, os Requerentes requerem o reembolso do montante de imposto e respetivos juros pagos indevidamente, assim como a atribuição de juros indemnizatórios.
Posição dos Requerentes
Alegam os Requerentes que ao terem procedido ao pagamento do imposto indevidamente pago, na qualidade de substitutos tributários, assiste-lhes não só o direito ao reembolso do montante indevidamente pago, como também à atribuição de juros indemnizatórios, nos termos previstos nos artigos 43.º e 100.º da Lei Geral Tributária (LGT).
Salientam ainda que a jurisprudência do TJUE tem igualmente afirmado, de forma reiterada, que o reembolso de impostos cobrados em violação do direito da União deve incluir o pagamento de juros compensatórios (cfr. Acórdão de 18/04/2013, proc. C-565/11).
Nestes termos, os Requerentes peticionam o pagamento de juros indemnizatórios, calculados sobre o montante efetivamente pago, desde a data do pagamento indevido até ao reembolso integral, à taxa legal de 4% ao ano, nos termos conjugados dos artigos 35.º, n.º 10 e 43.º, n.º 4 da LGT, do artigo 559.º do Código Civil e da Portaria n.º 291/2003, de 8 de abril.
Posição da Requerida
Entende em primeira instância não se verificar qualquer ilegalidade nos atos tributários impugnados e, em consequência, não haver lugar ao pagamento de juros indemnizatórios.
Sublinha ainda que, conforme reiterado pelo STA, no Acórdão do Pleno da Secção de Contencioso Tributário de 30 de janeiro de 2019 (Proc. n.º 0564/18.2BALSB), os serviços da Administração Tributária não incorrem em erro imputável quando atuam em estrita obediência ao princípio da legalidade, não podendo deixar de aplicar normas legais que não tenham sido declaradas inconstitucionais com força obrigatória geral, salvo em casos de violação de direitos, liberdades e garantias constitucionalmente protegidos.
Sem prejuízo do exposto, admite-se, por mera cautela de patrocínio, que, nos termos do artigo 43.º, n.º 3, alínea c) da LGT, serão devidos juros indemnizatórios caso a revisão do ato tributário, promovida por iniciativa do contribuinte, ocorra mais de um ano após o respetivo pedido, exceto se o atraso não for imputável à Administração.
Apreciação do Tribunal Arbitral
De harmonia com o disposto na alínea b) do artigo 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a AT a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”.
Embora o artigo 2.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT utilize a expressão “declaração de ilegalidade” para definir a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, não fazendo referência a decisões condenatórias, deverá entender-se que se compreendem nas suas competências os poderes que, em processo de impugnação judicial, são atribuídos aos tribunais tributários, sendo essa a interpretação que se sintoniza com o sentido da autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, em que se proclama, como primeira diretriz, que “o processo arbitral tributário deve constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à ação para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária” (cf. Decisões Arbitrais proferidas nos processos n.ºs 277/2020-T e 220/2020-T).
Na sequência da anulação dos atos impugnados, os Requerentes terão direito a serem reembolsados do imposto indevidamente pago, o que é efeito da própria anulação parcial, por força dos artigos 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e 100.º da LGT.
O processo de impugnação judicial, apesar de ser essencialmente um processo de anulação de atos tributários, admite a condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios, como se depreende do artigo 43.º, n.º 1, da LGT, em que se estabelece que “são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”, e do artigo 61.º, n.º 4, do CPPT, que dispõe que “se a decisão que reconheceu o direito a juros indemnizatórios for judicial, o prazo de pagamento conta-se a partir do início do prazo da sua execução espontânea”. Já o n.º 5 do artigo 24.º do RJAT vem dizer que “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”.
Acresce ainda que, não colhe o argumento da Requerida quando alega que a AT não incorreu em erro imputável quando atuam em estrita obediência ao princípio da legalidade. Tal como explicitado supra, em face do Princípio do Primado do Direito da União Europeia sobre o Direito Nacional, o entendimento da AT é ilegal por contrário ao princípio da livre circulação de capitais previsto no artigo 63.º do TFUE e, consequentemente, do artigo 8.º, n.º 4, da CRP
Quanto ao momento a partir do qual devem ser contados os juros, os Requerentes vieram requerer o pagamento de juros indemnizatórios, calculados sobre o montante de imposto efetivamente pago, desde a data do pagamento indevido desse imposto, até ao seu integral pagamento. Por seu turno, a este propósito, a Requerida invoca a alínea c) do n.º 3 do artigo 43.º da LGT.
Vejamos.
Para os casos de revisão oficiosa, a lei contém a regra especial prevista no artigo 43.º, n.º 3, alínea c), da LGT, em que o direito a juros indemnizatórios apenas nasce quando “a revisão do ato tributário por iniciativa do contribuinte se efetuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à administração tributária”.
E relativamente ao momento a partir do qual são devidos os juros indemnizatórios, no caso de pedido de Revisão Oficiosa pronunciou-se o STA no Processo n.º 40/19.6BALSB - Pleno da 2.ª Secção em que uniformiza a Jurisprudência nos seguintes termos: “Só são devidos juros indemnizatórios decorrido um ano após o pedido de promoção da revisão oficiosa e até à data da emissão das respetivas notas de crédito a favor da Recorrida.”
No caso dos autos, os Requerentes apresentaram os pedidos de revisão oficiosa para apreciação da legalidade das retenções na fonte contestadas em 27/06/2022, tendo o indeferimento expresso ocorrido entre 03/05/2024 e 22/05/2024, ou seja, mais de 1 ano a contar do pedido. Nestas circunstâncias, nos termos da alínea c) do n.º 3 do artigo 43.º da LGT, a contagem dos juros não ocorre a contar do respetivo pagamento, mas a contar de um ano após a apresentação dos pedidos de revisão oficiosa (ou seja, desde 28/06/2023), até à data do processamento das respetivas notas de crédito.
Assim sendo, o Tribunal determina que os juros indemnizatórios sobre o montante de € 105.730,88 deverão contar desde o dia 28/06/2023 até ao integral reembolso dos referidos montante aos Requerentes.
VI. DECISÃO
De harmonia com o exposto acordam neste Tribunal Arbitral em julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral e consequentemente:
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Declarar ilegais e anular as retenções na fonte contestadas, no montante total de € 105.730,88 (cento e cinco mil, setecentos e trinta euros e oitenta e oito cêntimos), incluído nas guias de retenção na fonte n.ºs ..., n.º..., n.º ..., n.º ... e n.º ... e..., dos períodos de outubro de 2018, junho 2019 e Outubro de 2019;
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Declarar ilegais e anular os atos de indeferimento expresso dos pedidos de revisão oficiosa apresentados pelos Requerentes com referência às retenções na fonte em apreço;
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Condenar a AT no reembolso ao Requerente do montante de € 105.730,88 (cento e cinco mil, setecentos e trinta euros e oitenta e oito cêntimos);
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Condenar a AT no pagamento de juros indemnizatórios sobre o montante de € 105.730,88 (cento e cinco mil, setecentos e trinta euros e oitenta e oito cêntimos), contados desde 28/06/2023 até ao integral reembolso do referido montante aos Requerentes;
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Condenar a Requerida no pagamento das custas processuais, em razão do decaimento.
VII. VALOR DO PROCESSO
Fixa-se ao processo o valor de € 105.730,88 (cento e cinco mil, setecentos e trinta euros e oitenta e oito cêntimos), correspondente ao montante das retenções na fonte que os Requerentes impugnaram - v. artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT, aplicável por remissão do artigo 3.º do RCPAT.
VIII. CUSTAS
Custas no montante de € 3.060 (três mil e sessenta cêntimos), a cargo da Requerida, em razão do decaimento, em conformidade com a Tabela I anexa ao RCPAT e com os artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT, 4.º, n.º 5, do RCPAT, e 527.º do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.
Notifique-se.
CAAD, 21 de abril de 2025
Arbitro Presidente,
(Professora Doutora Rita Correia da Cunha)
Arbitro-Adjunto
(Dr Francisco Melo)
Arbitro-Adjunto (Relator)
(Dr. João Santos Pinto)