Sumário
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A actividade de transformação e comercialização de vinho, incluindo a vinificação, armazenagem e envelhecimento de vinho a granel, não está excluída do âmbito de aplicação do benefício RFAI pelas “Orientações relativas aos auxílios estatais com finalidade regional” vigentes à data, constantes da Comunicação da Comissão Europeia publicada no JOUE n.º C 153, de 29-04-2021 (OAR).
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Por força do disposto no artigo 1.º, n.º 3, alínea c), do RGIC, só não é permitida a concessão de auxílios estatais à actividade de transformação e de comercialização de produtos agrícolas se se verificar qualquer das situações indicadas nas suas subalíneas i) ou ii), isto é, «sempre que o montante dos auxílios for fixado com base no preço ou na quantidade dos produtos adquiridos junto de produtores primários ou colocados no mercado pelas empresas em causa» ou «sempre que o auxílio for subordinado à condição de ser total ou parcialmente repercutido nos produtores primários», o que não acontece na situação sub judice.
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A Portaria n.º 282/2014, não pode validamente afastar a aplicação de benefícios previstos em diplomas de natureza legislativa.
DECISÃO ARBITRAL
Os árbitros Dra. Alexandra Coelho Martins, presidente, e os Professor Doutor António Fernando Cardão Pito, relator, e Dra. Rita Guerra Alves, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formarem Tribunal Arbitral, constituído em 21 de Outubro de 2024, acordam o seguinte:
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Relatório
A..., S. A., sociedade comercial anónima matriculada na Conservatória do Registo Comercial com o número único de matrícula e de identificação de pessoa colectiva..., com sede social na..., n.º ..., a que corresponde o código postal ...–... ...., (doravante apenas A... ou Requerente), veio requerer a constituição de Tribunal Arbitral nos termos do Decreto–Lei n.º 10/2011 de 20 de Janeiro (doravante “RJAT”), tendo em vista que o Tribunal Arbitral se pronuncie sobre os actos de indeferimento tácito do pedido de Reclamação Oficiosa com o n.º...2024... e sobre o acto de autoliquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC) referente ao exercício de 2022–Declaração de Rendimentos modelo 22 com o número 2022–... (...), assim como sobre a informação da Autoridade Tributária e Aduaneira de não admissibilidade do acto de autoliquidação Modelo 22 de IRC com o n.º 2022–...–... (...).
É requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante AT ou Requerida).
A Requerente pretende que seja declarada a ilegalidade de todos os actos de autoliquidação modelo 22 de IRC do ano de 2022, na parte respeitante à não consideração do benefício fiscal RFAI no valor de € 761 836,82 (setecentos e sessenta e um mil, oitocentos e trinta e seis euros e oitenta e dois cêntimos), incluindo a da informação da AT de não admissibilidade deste acto de autoliquidação e a do acto de indeferimento tácito da reclamação graciosa com o n.º ...2024... .
A Requerente pede ainda o reembolso da quantia indevidamente paga com juros indemnizatórios.
O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT em 12-08-2024.
Os Árbitros designados pelo Conselho Deontológico do CAAD aceitaram as suas designações.
Nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 7 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do CAAD informou as Partes dessa designação em 01-10-2024.
Assim, conforme o preceituado no n.º 7 artigo 11.º do RJAT, decorrido o prazo previsto no n.º 1 do artigo 13.º do RJAT sem que as Partes se pronunciassem, o Tribunal Arbitral Colectivo ficou constituído em 21-10-2024, tendo a sua constituição sido comunicada às Partes nessa mesma data.
Também na mesma data, o Tribunal Arbitral notificou a Requerida para, no prazo de 30 dias, apresentar resposta, a efectivar por via do Sistema de Gestão Processual e, querendo, solicitar a produção de prova adicional.
A AT apresentou resposta em 25-11-2024 e entregou o processo administrativo em 26-11-2024.
Em 22-01-2025, teve lugar a reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT, na qual foram ouvidas as três testemunhas indicadas pela Requerente e relegado o conhecimento da matéria e exceção para a decisão final. As Partes foram notificadas para apresentarem alegações escritas e a Requerente para proceder ao pagamento da taxa arbitral subsequente até ao termo do prazo para alegações, tendo o Tribunal fixado o prazo para a decisão até 21 de abril de 2025 (v. ata e gravação áudio disponíveis no SGP do CAAD).
Cada uma das partes apresentou alegações em 06-02-2025.
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Posições das partes
Requerente
A Requerente sustenta que a actividade principal por si desenvolvida, de produção de vinhos comuns e licorosos, é abrangida pelo Regime Fiscal de Apoio ao Investimento (RFAI), constante do Código Fiscal do Investimento (CFI) aprovado pelo Decreto-Lei n.º 162/2014, de 31-10[1]. Desta forma, o investimento realizado no decurso do ano de 2022 no empreendimento industrial com adega destinado a vinificação e armazenamento de produtos vínicos (designado “Adega do Ataíde”), de duração plurianual (a decisão do investimento foi em 2018 e as obras concluídas em 2024), deve ser considerado elegível, para efeitos do referido benefício, com a consequente consideração do valor de € 761 836,82, conforme reportado na declaração de substituição apresentada em 19-09-2023, relativa ao período de tributação de 2022, cuja submissão não foi, porém, aceite pela AT.
Segundo a Requerente, é ilegal a não aceitação, pela Requerida, da mencionada declaração de substituição e a inerente desconsideração do benefício do RFAI, porquanto, no caso concreto, estão preenchidos todos os requisitos de elegibilidade do investimento, conforme resulta do disposto nos artigos 2.º, n.ºs 2 e 3, 22.º e 43.º do CFI, na Portaria n.º 282/2014, de 30-12, nas OAR, no Regulamento (UE) N.º 651/2014 da Comissão, de 16-06-2014 (RGIC[2]). Invoca em reforço deste entendimento, diversa jurisprudência arbitral que se tem pronunciado sobre a matéria.
Assinala que a mesma questão relativa à Requerente foi decidida favoravelmente em relação aos anos 2019 e 2020, no processo arbitral n.º 675/2022-T.
Por fim, manifesta-se no sentido de que o reenvio judicial é desnecessário, sendo clara a interpretação das normas de direito da União Europeia. Porém, se o Tribunal Arbitral assim não o entender, requer, a título subsidiário, o reenvio prejudicial.
Requerida
A Requerida começa por suscitar a excepção de incompetência material parcial do Tribunal Arbitral com o argumento de que a sua competência está limitada às pretensões relativas à declaração de ilegalidade dos actos de liquidação como resulta da Lei de autorização legislativa, do artigo 2.º do RJAT e da Portaria n.º 112-A/2011, de 22-03.
Nestes termos, não sendo a informação da AT relativa à decisão de não admissibilidade da declaração de substituição modelo 22 relativa ao período de tributação de 2022 um acto de liquidação, a mesma é inimpugnável, pelo que o Tribunal Arbitral não pode conhecer da (i)legalidade dessa informação, nem declarar a ilegalidade de actos de autoliquidação apurados na referida declaração de substituição modelo 22, que não foi validada pela AT, nem resultou na emissão de actos finais de liquidação.
Por impugnação a Requerida argui que as normas previstas no CFI têm de ser lidas à luz das regras do RGIC e das OAR e, embora as actividades económicas correspondentes a indústrias transformadoras possam beneficiar do RFAI (v. artigo 2.º, n.º 2, alínea a) do CFI), estão expressamente excepcionadas deste benefício as actividades excluídas do âmbito sectorial de aplicação das OAR e do RGIC (v. artigo 22.º, n.º 1 do CFI), como considera ser a de transformação de vinho, desenvolvida pela Requerente.
Para a Requerida, a actividade da Requerente não é elegível para a dedução à colecta do RFAI.
Invoca jurisprudência arbitral no sentido que preconiza e ainda o Acórdão do Tribunal de Justiça, de 15-12-2022, proferido no processo C-23/22 que afirma que o RGIC não é aplicável aos auxílios concedidos no sector da transformação e comercialização de produtos agrícolas.
Além de que a Requerente não cumpriu o ónus de provar o direito a usufruir desse benefício, como se lhe impunha nos termos do disposto no artigo 74.º, n.º 1 da Lei Geral Tributária (LGT), em concreto, que o investimento fosse estritamente afecto à produção de vinhos (i.e., à vinificação, armazenagem e envelhecimento de vinho a granel, e não se aplicasse também ao sector agrícola primário) e que fosse a única produtora da matéria-prima (uva) ao serviço da sua produção de vinhos.
Sobre a obrigatoriedade de manutenção dos investimentos durante o período de 5 anos, e uma vez que a obra não estava concluída em 2022, este requisito só pode ser verificado posteriormente, pelo que não será de considerar qualquer montante a título do benefício fiscal do RFAI na autoliquidação em causa.
Quanto à declaração da Segurança Social sobre a situação contributiva regularizada, aquela só comprova o ano 2024, não tendo sido junta prova de que em 2022 tal sucedia.
A Requerida suscita o reenvio prejudicial, ao abrigo do disposto no artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), caso o Tribunal Arbitral entenda que o Acórdão do Tribunal de Justiça proferido em 15-12-2022 no processo n.º C-23/22 não tem aplicação ao caso.
Por fim, entende que não há lugar a juros indemnizatórios e, ad cautelem, se os mesmos fossem devidos deviam contar-se nos termos do disposto no artigo 43.º, n.º 3, alínea c) da LGT
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Posição da Requerente sobre Matéria de Exceção e Questões Novas Suscitadas pela AT na Resposta
Para a Requerente, o que está em discussão nos autos é ilegalidade da autoliquidação de IRC relativa ao exercício de 2022 (de forma mediata) e do indeferimento da reclamação graciosa apresentada contra aquela (de forma imediata), para a qual o Tribunal Arbitral tem competência.
Quanto à alegação da Requerida de que não ocorreu o trânsito em julgado da decisão arbitral proferida no processo n.º 675/2022-T, com as mesmas Partes, referente à mesma situação nos anos 2019 e 2020, afirma que tal só não sucedeu em relação ao segmento que lhe foi desfavorável, de desconsideração de algumas despesas. No mais, afirma que até já foi promovida parcialmente a execução desta decisão pela Requerida. Acrescenta que, em relação ao ano 2021, também tomou conhecimento da procedência da sua pretensão no âmbito da decisão do processo arbitral n.º 772/2024-T.
Reitera ter cumprido os pressupostos legais para usufruir do RFAI, não estando o sector vinícola excluído do âmbito sectorial de aplicação da OAR e do RGIC, sendo que algumas das decisões em que se funda a Requerida respeitam ao sector da pesca, da agricultura e da fabricação de alimentos para animais de criação, sem paralelo no seu caso.
Acrescenta que não lhe compete demonstrar que os investimentos se destinam exclusivamente à actividade principal, embora o tenha feito, mas tão-só que os mesmos têm cabimento numa actividade elegível para efeitos do RFAI (v. artigo 22.º do CFI).
No tocante à manutenção dos activos por um período mínimo, destaca que essa condição é de verificação posterior e não afecta a aferição inicial da elegibilidade do benefício. O que sucede é que se tal condição for incumprida o imposto (dedução à colecta) tem de ser devolvido com juros.
Por fim, junta certidões de não dívida, emitidas em 2022 que, sublinha, são do conhecimento da Requerida, e rebate o argumento de que o processo de documentação fiscal do RFAI teria de estar organizado, no limite, a 31 de Maio de 2023, pois tal vedaria a possibilidade de apresentação de uma declaração de substituição, reclamação graciosa ou pedido de revisão oficiosa.
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Saneamento
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Incompetência Material Parcial
Em primeiro lugar, importa apreciar a excepção de incompetência material invocada pela Requerida, que é de ordem pública e cujo conhecimento precede o de qualquer outra matéria (v. artigos 16.º do CPPT e 13.º do CPTA, ex vi dos artigos 29.º, n.º 1, alíneas a) e c), do RJAT e 2.º, alínea c), do CPPT).
Os Tribunais Arbitrais estão previstos no artigo 209.º, n.º 2 da Constituição e, de acordo com a autorização legislativa em matéria de arbitragem tributária, constante do artigo 124.º, n.º 1, da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de abril, o processo arbitral tributário deve constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial, recortado nos termos do artigo 97.º, n.º 1, alíneas a) a f) do CPPT.
Neste contexto, o âmbito da jurisdição arbitral tributária é especificamente delimitado pelo disposto no artigo 2.º do RJAT, que enuncia, no seu n.º 1, os correspondentes critérios de repartição material[3]. Aí se determina competir a esta “espécie” de Tribunais a apreciação das seguintes pretensões:
“a) A declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta;
b) A declaração de ilegalidade de actos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de atos de determinação da matéria coletável e de actos de fixação de valores patrimoniais.”
Acresce salientar que a Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, determina a vinculação da AT à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD em relação a pretensões (dos contribuintes) relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida.
A Requerida argui a incompetência parcial deste Tribunal Arbitral em relação ao pedido de declaração de ilegalidade da informação da AT que não admitiu a declaração de substituição modelo 22 relativa ao período de tributação de 2022.
E efectivamente tal pretensão não tem por objeto um acto tributário, um acto de liquidação proprio sensu, mas uma decisão administrativa em matéria tributária, insindicável na jurisdicção arbitral[4].
Nestes termos, conforme invocado pela Requerida, verifica-se a excepção dilatória (parcial) de incompetência material, que obsta ao prosseguimento do processo sobre a referida questão (declaração de substituição) e conduz à absolvição da instância parcial, quanto ao pedido respectivo (v. artigos 576.º, n.º 2, 577.º, alínea a) e 278.º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi artigo 29.º, alínea e) do RJAT).
De notar que a referida incompetência parcial deste Tribunal Arbitral, não prejudica, porém, a apreciação do pedido principal, deduzido em primeiro lugar no petitório, que abrange a totalidade do valor da causa e visa a “declaração de ilegalidade de todos[5] os actos de autoliquidação Modelo 22 de IRC do ano de 2022 […]”, do qual o Tribunal pode conhecer, por ter pleno cabimento na previsão do artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do RJAT.
Deste modo, conclui-se que o Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria relativamente ao pedido de declaração de ilegalidade da (auto)liquidação de IRC, precedido de recurso à via administrativa (v. artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 5.º do RJAT e 2.º, alínea a) da Portaria de Vinculação). A competência do Tribunal abrange também a pretensão de juros indemnizatórios.
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Demais Pressupostos Processuais
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e encontram-se devidamente representadas (cf. art.os 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
O PPA apresentado em 8 de Agosto de 2024 é tempestivo, porque submetido no prazo de noventa dias previsto no artigo 10.º, n.º 1 alínea a) do RJAT, conjugado com o artigo 102.º, n.º 1, alínea d) do CPPT, contado desde a presunção de indeferimento da reclamação graciosa deduzida em 16 de Janeiro de 2024, que se formou em 16 de Maio de 2024, por a AT não ter proferido decisão expressa no prazo de quatro meses (cf. n. os 1 e 5 do art.º 57.º da LGT).
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Matéria de Facto
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Factos Provados
Com relevo para a decisão da causa, consideram-se provados os seguintes factos:
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A sociedade A..., S.A., aqui Requerente, desenvolve a actividade principal a produção de vinhos comuns e licorosos (CAE 11021) e, entre outras, as actividades secundárias de fabricação de aguardentes preparadas (CAE 11011), viticultura (CAE 01210), e outras actividades de embalagem (CAE 82922), sendo um dos maiores produtores de vinho do Porto ..., proprietária de vinhas no Alto Douro e um dos principais produtores de vinho em Portugal – cf. https://..., depoimentos das três testemunhas e provado por acordo.
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Entre 2017 e 2018, a Requerente decidiu realizar um investimento com vista à construção e edificação de um empreendimento industrial com adega destinada a vinificação, armazenamento e envelhecimento de produtos vínicos, incluindo edifícios de apoio, arruamentos e áreas de logradouros no concelho ..., designado de “...”, permitindo a centralização da produção das gamas DOC Douro..., ... e ...– cf. https://... , Documento 6 e depoimento da primeira testemunha.
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O referido investimento, que visou fazer face ao crescimento das vendas de vinho do Porto e Douro, teve início em 2019 e foi efectuado num imóvel propriedade da sociedade B..., S.A., que faz parte do grupo C..., que a Requerente tomou de arrendamento, tendo sido finalizado em 2024 – cf. https://..., e depoimentos das três testemunhas.
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Com o surgimento do Covid19, o projeto atrasou-se cerca de um ano e meio – cf. depoimentos das primeira e segunda testemunhas.
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A localização da adega, exclusivamente destinada à produção, armazenagem e envelhecimento do vinho, foi motivada pela proximidade da matéria-prima – as uvas – que são provenientes da ..., com incremento da qualidade do produto (as uvas apanhadas são, de imediato, processadas, sem perda de propriedades que o decurso do tempo acarretaria), e evitando-se o acréscimo de custos de transporte – cf. depoimentos das primeira e terceira testemunhas.
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No âmbito do investimento em causa, a Requerente realizou, em 2022, aplicações relevantes, no valor de € 3.047.347,29, relativas à execução da empreitada de construção da Adega do Ataíde e fiscalização da mesma, tendo junto aos autos as correspondentes faturas de aquisição – cf. Documentos 7, 8 e 9.
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Na Adega do Ataíde foi constituído um entreposto fiscal, estando as respectivas instalações sob monitorização da AT – cf. depoimento da terceira testemunha.
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A Requerente não é devedora de tributos à AT, nem de contribuições à Segurança Social, possuindo certidões de não dívida emitidas em 2022 e também em 2024, e detém uma posição financeira robusta – cf. Documentos 10, 11 e 12 e Certidões de não Dívida juntas pela Requerente com o articulado de pronúncia sobre a resposta da Requerida.
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A Requerente entregou a sua declaração modelo 22 de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC), respeitante ao período de tributação de 2022, em 5 de Junho de 2023, sem ter considerado o benefício fiscal respeitante ao RFAI – cf. Documento 13.
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Em 29 de Junho de 2023, a AT procedeu à liquidação do IRC da Requerente do exercício de 2022, sob o n.º 2023..., tendo apurado o valor de imposto a reembolsar à Requerente de € 1 164 111,69, com data de transferência bancária agendada para 25 de Agosto do mesmo ano – cf. Documento 13.
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Em 19 de Setembro de 2023, a Requerente submeteu uma Declaração de Substituição modelo 22 de IRC, para o período de tributação de 2022, a que foi atribuído o número 2022–... (...), na qual inscreveu no campo 355, do quadro 10 (Benefícios Fiscais), o benefício fiscal de RFAI (dedução à colecta) no valor de € 761 836,82, que não havia considerado na primeira declaração – cf. Documento 2.
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A AT, por via do sistema informático, recusou o processamento de tal Declaração de Substituição modelo 22 de IRC, com fundamento em “Erros da declaração”, “Erro D73 ANX D-CÓDIGO(S) CAE (10320,10395,11021,10201 E 46381) NÃO ELEGIVEIS PARA RFAI” – cf. Documento 4.
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Inconformada, em 16 de Janeiro de 2024, a Requerente deduziu Reclamação Graciosa, que foi autuada sob o número ...2024..., contra o acto de autoliquidação de IRC de 2022, bem como contra a informação da AT de não admissibilidade do acto de autoliquidação (declaração de substituição) com o número 2022–... (...), com o objectivo de que o benefício fiscal do RFAI, no montante de € 761 836,82, fosse considerado no apuramento do IRC desse período – cf. Documento 1.
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Até ao presente a Requerente não foi notificada da decisão da Reclamação Graciosa que deduziu – cf. provado por acordo.
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Em 8 de Agosto de 2024, a A... procedeu à entrega do seu pedido de pronúncia arbitral (PPA) – cf. registo de entrada no SGP do CAAD.
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Factos não Provados
Com relevância para a causa não existem factos que se tenham considerado não provados.
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Fundamentação da Decisão sobre a Matéria de Facto
Compete ao Tribunal Arbitral seleccionar os factos relevantes para a decisão e discriminar a matéria provada e não provada (cf. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e) do RJAT).
Os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos em função da sua relevância jurídica, considerando as várias soluções plausíveis das questões de Direito (cf. artigo 596.º, n.º 1, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT).
Para a sua apreciação, o Tribunal Arbitral baseia as suas decisões sobre os factos alegados pelas partes na sua íntima convicção formada a partir do exame e da avaliação dos meios de prova trazidos ao processo e conforme as regras da experiência (cf. artigo 16.º, alínea e), do RJAT, e artigo 607.º, n.º 5, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT). Somente quando a força probatória de certos meios se encontra pré-estabelecida na lei (e.g., força probatória plena dos documentos autênticos, cf. artigo 371.º do Código Civil) é que não domina o princípio da livre apreciação da prova produzida.
No que se refere aos factos provados, a convicção dos árbitros atendeu às posições assumidas por ambas as Partes e fundou-se na análise crítica da prova documental junta aos autos e na prova testemunhal produzida, conforme supra referenciado em relação a cada facto julgado assente.
De salientar que a inquirição das três testemunhas arroladas pela Requerente, todos funcionários desta há 14, 20 e 25 anos, com conhecimento directo dos factos relatados e depoimentos objetivos, detalhados e consistentes, reforçou o que resulta da prova documental, contribuiu para melhor contextualização da situação fáctica e permitiu a fixação de factos essenciais e instrumentais.
Não se deram como provadas nem como não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada, nem os factos incompatíveis ou contrários aos dados como provados.
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Matéria de Direito
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Questões a Decidir
Discutem-se nos presentes autos arbitrais essencialmente duas questões.
A primeira, prende-se com a elegibilidade, para efeitos de RFAI, da actividade desenvolvida pela Requerente, de produção de vinhos comuns e licorosos, que a Requerida rejeita. Neste âmbito, cumpre ao Tribunal Arbitral apreciar se a actividade da Requerente, enquanto actividade de transformação de produtos agrícolas, se inclui no âmbito do RFAI, ou se se encontra excluída do âmbito do RFAI pela aplicação das OAR.
Em segundo lugar, importa aferir se a Requerente cumpriu o ónus de provar os pressupostos do benefício fiscal do RFAI previstos no artigo 22.º do CFI, relativamente aos investimentos na Adega do Ataíde efetuados no ano 2022.
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Direito Aplicável
O RFAI foi criado em 2009, através da Lei n.º 10/2009, de 10 de Março, tendo como objectivo abarcar um conjunto de medidas de incentivos fiscais para promover o investimento produtivo, o crescimento económico e o emprego, assim contribuindo para o reforço da modernização e da competitividade do nosso país e para o desenvolvimento das regiões mais desfavorecidas.
Em 2014, o RFAI foi reformulado, com a entrada em vigor do CFI, aprovado pelo Decreto – Lei n.º 126/2014, de 31 de Outubro, mas manteve o mesmo propósito: aumentar o apoio ao investimento num contexto fiscal mais favorável para conduzir à criação de emprego e ao reforço dos capitais próprios das empresas que beneficiassem desses auxílios.
Em 2022 (período relevante), o benefício fiscal RFAI consubstanciava-se numa dedução à coleta de IRC, e até à concorrência de 50% da mesma, das seguintes importâncias: (1) 25% do investimento relevante, até ao montante € 15.000.000,00 e (2) 10% do investimento relevante, relativamente ao investimento de valor superior a € 15.000.000,00.
Nos termos do n.º 1 do art.º 22.º do CFI:
O RFAI é aplicável aos sujeitos passivos de IRC que exerçam uma actividade nos sectores especificamente previstos no n.º 2 do art.º 2.º, tendo em consideração os códigos de actividade definidos na portaria prevista no n.º 3 do referido artigo, com excepção das actividades excluídas do âmbito sectorial de aplicação das OAR e do RGIC.
A portaria prevista no n.º 3 do art.º 22.º do CFI viria a ser a Portaria n.º 282/2014, de 30 de Dezembro (portaria CAE).
Na legislação comunitária, o RFAI é um regime de auxílio com finalidade regional aprovado nos termos do RGIC o qual define os auxílios estatais excluídos da aplicação daquele Regulamento na alínea c) do n.º 3 do seu art.º 1.º.
Estes auxílios devem também obedecer às OAR, para além do RGIC e ambos, RGIC e OAR, disciplinam a concessão de auxílios estatais, impondo limitações à actuação dos Estados-Membros.
Em 2022, vigoravam, no direito da União Europeia, a versão das OAR publicada no Jornal Oficial da Comunidade Europeia em 29.04.2021, das OAR do sector agrícola, publicadas em 01.07.2014[6], e, quanto ao RGIC, o Regulamento (UE) N.º 651/2014 da Comissão, datado de 16 de Junho de 2014. No direito interno português, estas matérias eram reguladas pelo CFI e pelas portarias n.º 282/2014 (portaria CAE), de 30 de Dezembro, e n.º 297/2015, de 21 de Setembro (portaria RFAI).
No artigo 75 da sua Resposta, a própria Requerida manifesta a sua concordância com o facto de as normas do RGIC serem aplicáveis aos auxílios concedidos aos investimentos realizados no sector da transformação e comercialização de produtos agrícolas, em todos os casos cuja exclusão não esteja prevista na supramencionada alínea c) do n.º 3 do artigo 1.º do RGIC.
Das OAR do sector agrícola importam para uma boa decisão da nossa questão alguns dos seus números, nomeadamente o número 33 onde se lê:
Em virtude das especificidades do setor, não se aplicam aos auxílios à produção de produtos primários as Orientações relativas aos auxílios estatais com finalidade regional para 2014-2020. Aplicam-se, no entanto, à transformação de produtos agrícolas e à comercialização de produtos agrícolas, dentro dos limites fixados nas presentes orientações.
No número 168 pode-se ler:
Os Estados-Membros podem conceder auxílios a investimentos relacionados com a transformação de produtos agrícolas e a comercialização de produtos agrícolas, desde que satisfaçam as condições de um dos seguintes instrumentos de auxílio:
(a) Regulamento (UE) n.º 651/2014 da Comissão, de 17 de junho de 2014, que declara certas categorias de auxílios compatíveis com o mercado interno, em aplicação dos artigos 107.º e 108.º do Tratado (53);
(b) Orientações relativas aos auxílios estatais com finalidade regional para 2014-2020;
(c) As condições estabelecidas na presente secção.
Naquilo que diz respeito às OAR e para uma boa decisão sobre o nosso caso concreto, tem especial importância o n.º 12 da versão das OAR em vigor à data dos factos, que dispõe o seguinte:
A Comissão aplicará os princípios estabelecidos nas presentes orientações no que se refere à transformação e comercialização de produtos agrícolas em produtos não agrícolas […].
Também é importante para a decisão sobre o nosso caso a nota de rodapé n.º 18 referente ao n.º 11 das OAR a qual diz:
Os auxílios estatais à produção primária, transformação e comercialização de produtos agrícolas que deem origem a produtos agrícolas enumerados no anexo I do Tratado e à silvicultura estão sujeitos às regras estabelecidas nas Orientações relativas aos auxílios estatais no setor agrícola.
Por sua vez, o próprio n.º 11 das OAR diz que
A Comissão aplicará os princípios estabelecidos nas presentes orientações aos auxílios com finalidade regional em todos os outros setores da atividade económica, com exceção dos setores sujeitos a regras específicas em matéria de auxílios estatais, em especial o setor […] da agricultura [… ] a não ser que o auxílio estatal seja concedido nesses setores como parte de um regime horizontal de auxílios ao funcionamento com finalidade regional.
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Da Inclusão da Actividade de Produção de Vinhos Comuns e Licorosos no Âmbito do RFAI por Aplicação das OAR e do RGIC
A Requerida defende que o investimento realizado pela Requerente numa atividade económica enquadrada no setor da transformação de produtos agrícolas enumerados no anexo I do TFUE se encontra expressamente excluído do âmbito de aplicação das OAR não sendo, por isso, elegível para efeitos de benefício fiscal RFAI.
A actividade de transformação e comercialização de produtos agrícolas não é excluída do benefício fiscal RFAI pelo artigo 1.º, n.º 3, alínea c), do RGIC, na medida em que nem o montante do benefício fiscal RFAI é fixado com base no preço ou na quantidade dos produtos adquiridos junto de produtores primários ou colocados em empresas no mercado pelas empresas em causa, nem o benefício fiscal RFAI é subordinado à condição de ser total ou parcialmente repercutido nos produtores primários.
A Requerida nega que os investimentos realizados pela Requerente estejam sujeitos às regras das OAR argumentando que a nota de rodapé n.º 18, referente ao n.º 11 das OAR, afirma que os auxílios estatais à transformação e comercialização de produtos agrícolas que deem origem a produtos agrícolas enumerados no anexo I do Tratado, como é o caso dos produtos da Requerente, estão sujeitos às regras estabelecidas nas Orientações relativas aos auxílios estatais no sector agrícola.
A isto a Requerida acrescenta uma afirmação, para a qual não apresenta fundamentação alguma, a qual é a de que uma dada actividade, por exemplo, da Requerente, só pode estar sujeita a uma das duas regulamentações, isto é, ou à das OAR, ou à das OAR do sector agrícola, e nunca a ambas.
Contudo, não é isso que se pode ler no número 11 das OAR que estabelece que os princípios estabelecidos em tais orientações se aplicam aos auxílios estatais que forem concedidos, no sector da agricultura, como parte de um regime horizontal de auxílios ao funcionamento com finalidade regional, como é o caso do RFAI.
Além disso, o n.º 33 das OAR do sector agrícola reconhece que a regulamentação das OAR é aplicável à transformação e comercialização de produtos agrícolas.
Também o número 168 das mesmas OAR do sector agrícola permite que os Estados-Membros concedam auxílios a investimentos relacionados com a actividade de transformação e comercialização de produtos agrícolas, desde que satisfaçam as condições de um dos normativos do conjunto do das OAR, do do RGIC ou do das próprias OAR do sector agrícola, assim pressupondo a sujeição de tais actividades ao regime das OAR.
Assim sendo, resulta, tanto do texto das OAR como do das OAR do sector agrícola, que a atividade de transformação e comercialização de produtos agrícolas, está sujeita à regulamentação do RGIC, e também não é excluída do benefício fiscal RFAI pelas OAR.
Todavia, o art.º 1.º da portaria CAE afasta explicitamente
[…] não são elegíveis para a concessão de benefícios fiscais os projetos de investimento que tenham por objeto as atividades económicas […] da produção agrícola primária, da transformação e comercialização de produtos agrícolas enumerados no anexo i do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia […].
Esta disposição contraria as normas acabadas de referir, tanto das OAR como das OAR do sector agrícola, sendo certo que tais projectos de investimento também são regulamentados pelo RGIC, havendo assim um conflito entre uma norma regulamentar portuguesa e normas legais, desde logo o CFI (artigo 2.º), que não contém semelhante restrição, e bem assim o Direito da União Europeia (RGIC e OAR) acabado de referir, uma norma legal portuguesa e normas legais do direito comunitário que cai sob a alçada do n.º 4 do art.º 8.º da Constituição da República Portuguesa (CRP) que reconhece a primazia do direito comunitário sobre o direito interno português.
Por outro lado, a Portaria n.º 282/2014, não pode validamente afastar a aplicação de benefícios previstos em diplomas de natureza legislativa, in casu, o CFI. De facto, sendo patente que a intenção legislativa subjacente ao RFAI, na versão do CFI, foi a de “definir o âmbito regional e setorial de aplicação do benefício em conformidade com as regras europeias e o mapa nacional dos auxílios estatais com finalidade regional”, enunciada na alínea c) do n.º 3 do artigo da Lei de autorização legislativa n.º 44/2014, de 11 de Julho, a Portaria, como instrumento de execução dessas regras, sempre teria de ser interpretada de forma a concretizá-las e não a afastá-las, em face da aflorada supremacia do Direito da União sobre a legislação nacional (cf. n.º 4 do artigo 8.º da CRP).
Como se evidencia do teor do n.º 3 do artigo 2.º do CFI, o que nele se remeteu para portaria foi apenas a definição dos «códigos de atividade económica (CAE) correspondentes às atividades referidas no número anterior» e não a definição dessas actividades. Aliás, nem seria constitucionalmente admissível a definição do âmbito objectivo de benefícios fiscais por tal via, uma vez que se trata de matéria integrada na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, só podendo ser regulada por lei formal ou decreto-lei autorizado, como decorre do preceituado nos artigos 103.º, n.º 2, 165.º, n.º 1, alínea i), e 198.º, n.º 1, alínea b) da CRP.
Enquanto tal, e sendo que, por força do disposto no n.º 5 do artigo 112.º da CRP, “nenhuma lei pode criar outras categorias de actos legislativos ou conferir a actos de outra natureza o poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar qualquer dos seus preceitos”, o n.º 3 do artigo 2.º do CFI não deve ser interpretado como permitindo aos membros do Governo a definição do âmbito de aplicação dos benefícios através de diploma regulamentar. Na verdade, “é a Constituição e não a lei que estabelece a hierarquia normativa. São por isso inconstitucionais as normas legais que infrinjam a proibição de delegação, sendo consequentemente ilegais os regulamentos que porventura sejam emitidos ao abrigo dessa delegação” (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição RP anotada, 4ª edição, volume II, pág. 69).
Assim, e como se referiu já na Decisão Arbitral proferida no Proc. n.º 220/2020-T do CAAD, aquele n.º 3 do artigo 2.º do CFI deve ser interpretado com o alcance, que é o que resulta do seu teor literal, de permitir que fossem definidos por portaria os «códigos de atividade económica» que se reportam às actividades que nele se indicam poderem beneficiar do RFAI e não que pudessem ser alteradas, para menos, as actividades abrangidas.
Sendo assim, a Portaria n.º 282/2014 não encontra norma habilitante no n.º 3 do artigo 2.º do CFI para estabelecer, restringindo, o âmbito definido no n.º 2 do mesmo artigo.
É certo que os diplomas de Direito da União que são invocados no Preâmbulo da Portaria n.º 282/2014, e a “necessidade de observar as normas e demais actos emanados das instituições, órgãos e organismos da União Europeia em matéria de auxílios estatais» aí referida, poderiam constituir «um fundamento constitucional e uma habilitação legal prévia da emanação de regulamentos internos” (Gomes Canotilho e Vital Moreira, CRP anot., 4ª edição, volume II, pág. 78), mas tal habilitação não é admissível quando “seja incompatível com a ordem material de competências constitucionalmente estabelecida (excluem-se, pois, regulamentos de actuação de directivas em matérias de reserva de lei)”, o que sucede neste caso, pois a definição do âmbito dos benefícios é matéria que a lei constitucional portuguesa integra na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, nos termos dos citados artigos 103.º, n.º 2, e 165.º, n.º 1, alínea i), da CRP (vide a ante citada Decisão Arbitral).
Assim, não pode basear-se no artigo 1.º da Portaria n.º 282/2014, de 30 de Dezembro, o afastamento do benefício fiscal, por falta de habilitação legal e validade constitucional para restringir o âmbito do benefício fiscal definido no artigo 2.º, n.º 2, do CFI. Dito de outro modo, a portaria padece de desconformidade constitucional, quer orgânica, quer e formal.
Em síntese,
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Considerando que as OAR do setor agrícola e o ponto 12 da OAR, e respectivo rodapé 11, têm concluído que a atividade de transformação e comercialização de vinhos comuns e licorosos não se encontra excluída do âmbito de aplicação sectorial das OAR, sendo, pelo contrário, abrangida por este instrumento e, consequentemente, que a mesma atividade não é excluída do benefício RFAI pelas OAR;
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Considerando ainda que a jurisprudência arbitral prevalecente, tem vindo a sufragar que as OAR não excluem a atividade de transformação de produtos agrícolas do âmbito do RFAI e que sobre esta matéria viu a Requerente, através das decisões arbitrais proferidas nos processos 675/2022 e 772/2024, que acompanhamos, dar-lhe razão relativamente aos exercícios de 2019, 2020 e 2021;
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E que a Jurisprudência do TJUE considera que a atividade de transformação e comercialização de produtos agrícolas não é excluída do benefício fiscal RFAI pelo artigo 1.º, n.º 3, alínea c), do RGIC, na medida em que o montante do benefício fiscal RFAI não é fixado com base no preço ou na quantidade dos produtos adquiridos junto de produtores primários ou colocados em empresas no mercado pelas empresas em causa, e que o benefício fiscal RFAI não é subordinado à condição de ser total ou parcialmente repercutido nos produtores primários,
não se encontra fundamento legal para concluir com a Requerida que a atividade de transformação e comercialização de produtos agrícolas é excluída do benefício fiscal do RFAI. Pelo contrário, conclui este Tribunal Arbitral que esta actividade é abrangida por este benefício.
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Pressupostos do RFAI – Ónus da Prova
Resulta dos autos que, ao contrário do que alega a Requerida (diga-se, de forma genérica e sem substanciar), a Requerente satisfez o ónus da prova relativamente aos pressupostos constitutivos da dedução à colecta do RFAI do investimento, efectuado em 2022, associado à criação da Adega do Ataíde, unidade produtiva de transformação, armazenagem e envelhecimento de vinhos.
Com efeito, é inequívoco tratar-se de um investimento inicial, construído de raiz, para aumento da capacidade de produção de vinhos, no âmbito da actividade principal exercida pela Requerente e relativamente ao qual a Requerente juntou elementos documentais demonstrativos das aplicações relevantes, no valor de € 3.047.347,29, incluindo as faturas de aquisição dos bens e serviços (v. empreitada e fiscalização da obra) em causa. Elementos que, note-se, não foram infirmados pela Requerida, nem a sua afectação à “exploração da empresa”.
De igual modo, a Requerente fez prova dos requisitos passíveis de verificação à data do investimento, em concreto:
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Dispunha de contabilidade organizada;
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Foi tributada pelas declarações efectuadas e não por métodos indirectos;
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Não era devedora ao Estado e à segurança social de contribuições e impostos, conforme certidões emitidas pela Requerida e pela Segurança Social, quer em 2022, quer em 2024; e
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Não era uma empresa em dificuldade.
No tocante à manutenção dos activos por um período mínimo (no caso 5 anos), bem como à criação e manutenção de postos de trabalho, em linha com a posição da Requerente, estamos perante condições de verificação posterior que não afectam a aferição inicial da elegibilidade do benefício. O que sucede é que se tais condições forem incumpridas, o imposto deduzido à colecta terá de ser restituído com juros. No caso da criação de postos de trabalho, sendo um investimento plurianual que no ano em questão (2022) ainda estava em curso, a mesma só é exigível quando este terminar e entrar em funcionamento, o que ocorreu em ano posterior.
Também assiste razão à Requerente quando afirma que não lhe compete demonstrar que o investimento se destinou exclusivamente à actividade principal, embora o tenha feito, mas tão-só que o mesmo tem cabimento numa actividade elegível para efeitos do RFAI (v. artigo 22.º do CFI), como sucede com a transformação de uvas em vinho.
Bem como, quando afasta o argumento de que o processo de documentação fiscal do RFAI teria de estar organizado, no limite, a 31 de Maio de 2023, pois tal vedaria a possibilidade de apresentação de uma declaração de substituição, reclamação graciosa ou pedido de revisão oficiosa. Estamos perante direitos e garantias do contribuinte que, no entender deste Tribunal, são indeclináveis.
Assim, também quanto este ponto assiste razão à Requerente, concluindo-se pela ilegalidade da não consideração do RFAI na (auto)liquidação de IRC referente a 2022, ilegalidade que a omissão, pela AT, do dever de decidir a reclamação graciosa no prazo legal (de quatro meses) não removeu.
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Desnecessidade de Reenvio Prejudicial
A Requerida suscita o reenvio prejudicial, ao abrigo do disposto no artigo 267.º do TFUE, caso o Tribunal Arbitral entenda que o Acórdão do Tribunal de Justiça proferido em 15-12-2022 no processo n.º C-23/22 não tem aplicação ao caso. Fundamenta o pedido com a transcrição parcial do douto Acórdão desse mesmo tribunal no artigo 112 da sua Resposta.
Verifica-se, porém, que a Requerida decidiu realçar apenas uma parte do excerto que transcreve do douto Acórdão, imprimindo-a em negrito, não fazendo o mesmo ao restante texto transcrito. Isso conduz ao enviesamento da leitura que vai até à tresleitura que a Requerida dela faz, tanto nos artigos seguintes da sua Resposta como nas suas Alegações, para a considerar como a verdadeira decisão do TJUE e, por isso, interpreta-a concluindo que ela significa que
[…] a atividade de transformação e comercialização de produtos agrícolas enumerados no Anexo I do TFUE […] está excluída do âmbito de aplicação dos normativos comunitários.
Contudo, propriamente lida, a referida decisão do TJUE nada mais diz do que aquilo que a Requerida concluiu no segundo parágrafo do artigo 75 da sua Resposta, isto é, que o RGIC é aplicável a todos os auxílios concedidos ao sector da transformação e comercialização de produtos agrícolas apenas com excepção daqueles casos, dos quais não faz parte a actividade da Requerente, cuja exclusão esteja prevista na mencionada alínea c) do n.º 3 do seu artigo 1.º.
A Requerida requer o reenvio prejudicial «caso esse douto Tribunal arbitral entenda que o Acórdão do TJUE não tem aqui aplicação». Porém, tal como já se viu, a Requerida tresleu o texto da decisão do TJUE, pois, na realidade, aquilo que o excerto transcrito da decisão do TJUE diz é que deve ser respeitada a disciplina da alínea c) do n.º 3 do art.º 1.º do RGIC. Este Tribunal Arbitral considera que isso faz parte dos seus deveres, pelo que certamente não infringirá tal regra e, por isso, não vê razão para decidir o reenvio prejudicial que é requerido.
O reenvio prejudicial, previsto na alínea b) do n.º 3 do art.º 19.º do TFUE, é obrigatório, nos termos do art.º 267.º do mesmo tratado, «quando uma questão sobre a interpretação dos actos adotados pelas instituições, órgãos ou organismos da União Europeia seja suscitada em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno».
Todavia, o próprio TJUE decidiu no Acórdão de 06-10-1982, processo n.º 283/81 (caso Cilfit) que «não é necessário proceder a essa consulta quando existe um precedente na jurisprudência europeia, ou quando, não obstante as questões em apreço não serem estritamente idênticas a um precedente na jurisprudência europeia, a correta aplicação do Direito da União Europeia seja tão óbvia que não deixe campo para qualquer dúvida razoável no que toca à forma de resolver a questão de Direito da União Europeia suscitada (doutrina do acto claro)».
De facto, no número 6 das «Recomendações à atenção dos órgãos jurisdicionais nacionais, relativas à apresentação de processos prejudiciais» (C/2024/6008) diz-se que «Quando for suscitada uma questão num processo que se encontre pendente perante um órgão jurisdicional cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial no direito interno, esse órgão jurisdicional está, no entanto, obrigado a submeter um pedido de decisão prejudicial (v. artigo 267.°, terceiro parágrafo, TFUE), a menos que já exista uma jurisprudência bem assente na matéria ou que a forma correta de interpretar a norma de direito em causa não dê origem a nenhuma dúvida razoável».
Além disso, o TJUE decidiu, nos Acórdãos de 10-07-2018, no processo C-25/17, e de 02-10-2018, no processo C-207/16, que «compete exclusivamente ao juiz nacional, a quem foi submetido o litígio e que deve assumir a responsabilidade pela decisão jurisdicional a tomar, apreciar, tendo em conta as especificidades do processo, tanto a necessidade de uma decisão prejudicial para poder proferir a sua decisão como a pertinência das questões que submete ao Tribunal de Justiça»".
Assim, é entendimento deste Tribunal Arbitral que a interpretação que é necessário fazer das normas de Direito da União Europeia para apreciar a legalidade dos actos tributários que são objeto do PPA apresentado pela Requerente é clara, não havendo, por isso, necessidade de efectuar o reenvio prejudicial requerido pela AT.
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Juros Indemnizatórios
A Requerente peticiona o pagamento de juros indemnizatórios. De harmonia com o disposto na alínea b) do artigo 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a AT, nos exactos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo, cabendo-lhe restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito. O que está de acordo com o preceituado no artigo 100.º da LGT, aplicável ex vi alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT.
Sobre esta matéria, a Requerida vem dizer que a liquidação em causa não provém de qualquer erro dos Serviços, dado estarmos em presença de uma autoliquidação que a existir será da responsabilidade da Requerente, no que tem razão.
No entanto, tal não sucede quanto ao silêncio administrativo perante a reclamação graciosa (indeferimento tácito), o qual, em violação da lei, manteve uma situação de ilegalidade, sendo-lhe assim imputável erro de direito e de facto enquadrável no n.º 1 do artigo 43.º da LGT.
Neste sentido, v. o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo proferido no processo n.º 0360/11.8BELRS, de 07-04-2021:
«[…] julgamos, justo, adequado e seguro, assumir como marco, para identificar e fixar o disputado dies a quo, o prazo, fixado por lei, para a decisão do procedimento de reclamação graciosa (...), isto é, o período, atualmente, de 4 meses».
Tendo a reclamação graciosa sido apresentada em 16 de Janeiro de 2024, a AT deveria ter-se pronunciado sobre a mesma até 16 de Maio de 2024, conforme determina o artigo 57.º, n.º 1 da LGT. Não o tendo feito, e no pressuposto da ilegalidade da autoliquidação reclamada (na parte relativa ao RFAI), constituiu-se o direito a juros indemnizatórios na esfera da Requerente, que devem ser calculados a partir de 17 de Maio de 2024, até à emissão da respectiva nota de crédito, sobre o valor do reembolso de IRC que vier a ser apurado na execução do presente julgado (v. artigos 43.º, n.º 1 da LGT e 61.º, n.º 5 do CPPT), na sequência da consideração devida da dotação de RFAI de € 761 836,82.
Acresce referir ser inaplicável ao caso a norma do artigo 43.º, n.º 3, alínea c) da LGT invocada pela Requerida, uma vez que não estamos perante a situação específica nela prevista, de revisão do acto tributário por iniciativa do contribuinte, não havendo razão para a aplicar por analogia à reclamação graciosa.
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Por fim, com referência ao indeferimento tácito da reclamação graciosa autuada sob o número ...2024..., dado tratar-se de uma mera ficção jurídica destinada a abrir a via contenciosa, servindo, no caso do processo arbitral tributário, para a fixação do dies a quo do prazo para apresentação do pedido arbitral, nos termos do art.º 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, não tem este Tribunal de se pronunciar sobre a respectiva anulação ou confirmação.
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Decisão
De harmonia com o exposto, decide este Tribunal Arbitral:
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Julgar procedente a excepção de incompetência material parcial, relativamente ao pedido de declaração de ilegalidade da informação da AT que não admitiu a declaração de substituição modelo 22 de IRC para o período de tributação de 2022, com a consequente absolvição da Requerida da instância neste segmento;
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Declarar ilegal e anular parcialmente a autoliquidação de IRC referente ao exercício de 2022 na parte respeitante à não consideração da dotação de RFAI, no valor de € 761 836,82 (setecentos e sessenta e um mil, oitocentos e trinta e seis euros e oitenta e dois cêntimos). Em execução de julgado será apurado o montante a reembolsar à Requerente;
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Reconhecer o direito a juros indemnizatórios da Requerente, a calcular sobre aquele montante de € 761 836,82, contados desde o dia 17 de Maio de 2024 até à data do processamento da respectiva nota de crédito, nos termos dos artigos 43.º, n.º 1 da LGT e 61.º, n.º 5 do CPPT.
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Valor do Processo
De acordo com o disposto no n.º 2 do art.º 306.º do Código de Processo Civil (CPC), na alínea a) do n.º 1 do art.º 97.º-A do Código de Processo e Procedimento Tributário (CPPT) e no n.º 2 do art.º 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 761 836,82.
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Custas Arbitrais
De acordo com o n.º 4 do art.º 22.º do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 11 016,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, ficando o respectivo pagamento a cargo da Requerida, em razão do decaimento.
Notifique-se.
Lisboa, 17 de Abril de 2025
Os árbitros,
Alexandra Coelho Martins
António Fernando Cardão Pito, relator
Rita Guerra Alves
[1] E regulamentado na Portaria n.º 297/2015, de 21 de Setembro.
[2] Regulamento Geral de Isenção por Categoria.
[3] A competência dos Tribunais é a medida da sua jurisdição, o modo como entre eles se fraciona e reparte o poder jurisdicional. Em sentido concreto ou qualitativo, será a suscetibilidade de exercício pelo Tribunal da sua jurisdição para a apreciação de uma certa causa – v. Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1976, pp. 88 e 89.
[4] A impugnação judicial, da qual a acção arbitral é decalcada (ainda que com algumas restrições), não é o meio próprio para discutir pretensões desta natureza, que se enquadram no âmbito da acção administrativa, como resulta do disposto no artigo 97.º, n.º 1, alínea p) do CPPT, que remete para esta forma processual os litígios referentes a actos administrativos em matéria tributária que não comportem apreciação da legalidade do acto de liquidação.
[5] A Requerente usa o plural, mas, em rigor, existe apenas um acto de autoliquidação de IRC referente ao ano 2022, tendo em conta que a declaração de substituição não chegou a produzir efeitos.
[6] Orientações da União Europeia relativas aos auxílios estatais nos setores agrícola e florestal e nas zonas rurais para 2014-2020. Em 21.12.2022 foi publicada uma actualização, o Regulamento (UE) 2022/2472, da Comissão que entrou em vigor em 01.01.2023.