SUMÁRIO:
I - Deve reconhecer-se legítimo o procedimento de regularização do IVA adoptado pelas empresas da indústria farmacêutica associadas e aderentes ao designado “Acordo APIFARMA”, em cumprimento do qual oferecem uma redução do preço inicialmente praticado pelos medicamentos, daí resultando uma alteração do valor tributável e do valor do imposto devido ao Estado.
II - As notas de crédito emitidas por tais empresas, a favor das entidades do SNS a quem fornecem medicamentos, consubstanciam e têm de haver-se como verdadeiras reduções do preço, sob pena de ocorrer uma clara violação do Direito da União Europeia, atentando contra o princípio fundamental da neutralidade, o princípio da igualdade de tratamento consagrado no artigo 20.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e o princípio da contraprestação efectiva, constantes dos artigos 73.º e 90.º da Directiva IVA e do artigo 78.º do Código do IVA, como devem ser interpretados de acordo com a jurisprudência do TJUE.
DECISÃO ARBITRAL
Os árbitros Juiz José Poças Falcão (árbitro-presidente), Prof. Doutor Rui Miguel de Sousa Simões Fernandes Marrana e Dr. A. Sérgio de Matos (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 15-10-2024, acordam no seguinte:
I. RELATÓRIO
A... LDA, com sede na Rua ..., n.º ..., ..., ..., ...-... ..., titular do número de identificação fiscal ... (doravante Requerente), na sequência do indeferimento da Reclamação Graciosa por si apresentada, em 14.06.2024, que teve por objeto as liquidações adicionais de IVA n.º 2023..., relativa ao período 201901, n.º 2023..., relativa ao período 201912, as liquidações adicionais de juros n.º 2023..., relativa ao período 201906, n.º 2023..., relativa ao período 201909 e n.º 2023..., relativa ao período 201912, e as demonstrações de acerto de contas n.º 2023..., relativa ao período 201901, n.º 2023 ... e n.º 2023..., relativas ao período 201906, n.º 2023... e n.º 2023..., relativas ao período 201909, e n.º 2023... e n.º 2023..., relativas ao período 201912, que apuraram um valor a pagar de € 218.150,42, veio, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e nos artigo 10.º, 15.º e seguintes, todos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), deduzir pedido de pronúncia arbitral tendo em vista a anulação das correcções em sede de IVA indicadas no Relatório de Inspecção, no montante global € 334.857,45, bem como das liquidações antes identificadas e o reembolso da quantia indevidamente paga, no valor de € 218.150,42, acrescido de juros indemnizatórios, nos termos do art.º 43.º da LGT.
É demandada a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante referida por “AT” ou “Requerida”.
Em 07 de Agosto de 2024, o pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e, automaticamente, notificado à AT.
Em conformidade com o disposto nos artigos 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, e 11.º, n.º 1, alínea a), todos do RJAT, o Exmo. Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os árbitros deste Tribunal Arbitral Colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
As Partes, notificadas dessa designação, não manifestaram vontade de a recusar (artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e c), do RJAT e artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD).
O Tribunal Arbitral ficou constituído em 15 de Outubro de 2024.
Em 20-11-2024, a Requerente juntou aos autos os seguintes documentos:
1. Cópia da decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia (“TJUE”) no acórdão NOVO NORDISK A/S, C-248/23, de 12.09.2024;
2. Atualização do Parecer (documento n.º 14 junto ao PPA) emitido pelo Professor Sérgio
Vasques (“Parecer Atualizado”, que junta como documento n.º 16);
3. Adenda ao Parecer (documento n.º 15 junto ao PPA) emitido pela Professora Clotilde Celorico Palma (“Adenda ao Parecer”, que junta como documento n.º 17).
Em 20-11-2024, a Requerida apresentou Resposta e juntou o processo administrativo.
A Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) defendeu-se por excepção, invocando a caducidade do direito de acção quanto ao período de 2019-01, erro na forma do processo e incompetência do Tribunal relativamente a essa parte do pedido, e por impugnação, concluindo que o pedido de pronúncia arbitral deve ser julgado improcedente, com as legais consequências.
Por despacho de 26-11-2024, foi a Requerente notificada para exercer o direito ao contraditório relativamente à matéria das exceções suscitadas e para informar se mantinha ainda interesse na produção de prova testemunhal, indicando, se fosse o caso, quais os factos que considera essenciais e controvertidos e que pretende provar ou contraprovar com os depoimentos testemunhais requeridos.
Em 13-12-2024, a Requerente indicou os factos sobre os quais pretendia recaísse a prova testemunhal e requereu que a AT fosse notificada para juntar e fazer prova da notificação das liquidações adicionais de IVA referentes aos períodos de 2019/06 e 2019/09 (cuja omissão vinha referindo na Reclamação Graciosa e no PPA), alegando que relativamente a esses períodos apenas recebera, no serviço ViaCTT, as demonstrações de acertos de contas, em 28-04-2023. Reafirma que, como resulta do pedido e da causa de pedir formulados, a impugnação respeita a todos os atos de liquidação emitidos na sequência do procedimento de inspeção aqui em causa e destinados a materializar as correções naquela sede efetuadas pela Requerida.
Por despacho de 22-12-2024, determinou-se que deveria a Requerida comprovar documentalmente nos autos a notificação à Requerente das liquidações de IVA objeto dos autos (períodos 2019/06 e 2019/09), conforme termos e fundamentos do requerimento apresentado pela parte contrária, em 13-12-2024.
Por despacho de 23-01-2025, foi agendada para 24-02-2025 a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, mais se determinando que até ao início dessas diligências deveria a Requerida fazer a junção da prova documental referida no despacho de 22-12-2024, deferindo-se, deste modo, a prorrogação de prazo requerida em 14-1-2025.
Em 06-02-2025, a Requerente veio substituir uma testemunha e requerer a junção dos seguintes documentos:
1. sentença proferida em 07.01.2025, no processo n.º 376/23.1BESNT;
2. sentença proferida em 15.01.2025, no processo n.º 749/23.0BESNT e
3. documentos a si emitidos pelo IPO..., EPE e pelo Centro Hospitalar Universitário do..., EPE, que designa “documentos hospitais”, com o fundamento de que os mesmos se tornaram necessários em virtude do alegado pela Requerida nos artigos 86.º e 87.º da Resposta e de que são ainda idóneos e adequados para comprovar a factualidade alegada nos artigos 4.º, 5.º e 46.º a 57 da petição inicial, incluindo informação relevante para a descoberta da verdade material e para a boa decisão da causa.
Por despacho de 11-02-2024, concedeu-se o prazo de cinco dias para a AT se pronunciar sobre o requerido.
Na data agendada realizou-se a sobredita reunião, com a observância dos formalismos legais, na sede do CAAD, em Lisboa, tendo ambas as partes concordado com a utilização dos meios de comunicação à distância disponibilizados e com a gravação da audiência.
O Senhor Árbitro Presidente começou por determinar que relativamente aos documentos apresentados pela Requerente, em 20-11-2024, a Requerida poderia exercer o seu direito ao contraditório em sede de alegações escritas.
Finda a audição das testemunhas, o representante da AT requereu a concessão de um prazo de cinco dias para juntar aos autos a prova documental da notificação à Requerente das liquidações de IVA dos períodos de 2019/06 e 2019/09, bem assim declarou pretender requerer o reenvio prejudicial dos presentes autos.
O Tribunal concedeu às partes o prazo simultâneo de 15 dias para alegações escritas, tendo notificado a AT para, no decurso desse prazo, proceder à junção dos documentos referentes à notificação à Requerente das liquidações de IVA objecto dos autos e ao pedido de reenvio prejudicial, bem assim a Requerente para exercer o contraditório relativamente aos mesmos.
Em 12-03-2025, a Requerente apresentou alegações escritas, nelas tendo mantido e desenvolvido o entendimento já por si expresso anteriormente, e juntou cinco documentos, a saber: a Decisão Arbitral proferida no P. 644/2024-T, em 25-01-2025, as duas já mencionadas sentenças proferidas pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra e o por si designado “Documentos hospitais” (juntos com o requerimento de 06-02-2025), o Parecer actualizado do Professor Sérgio Vasques e a Adenda ao Parecer da Professora Clotilde Celorico Palma (ambos já mencionados e juntos com o requerimento de 20-11-2024, como docs. 16 e 17, respectivamente).
Em 14-03-2025, a Requerida apresentou as suas alegações escritas, nas quais manteve a posição por si defendida na Resposta e requereu o reenvio prejudicial ao TJUE para esclarecimento das questões por si suscitadas, designadamente quanto à eventual ofensa dos princípios da neutralidade e da igualdade na aplicação do imposto, bem assim da alegada falta de coincidência entre o facto gerador da contribuição e o facto gerador do IVA. Pretendeu ainda juntar-lhes oito documentos para comprovar as notificações das demontrações de liquidações de IVA e de acerto de contas, referentes aos períodos 2019/06 e 2019/09, cuja falta havia sido acusada pela Requerente. Verificando-se, porém, que os documentos 6 e 8 não constavam do elenco, e após despacho de 04-04-2025, no sentido da eventual correcção, a AT veio suprir tal lapso, em 09-04-2025, tendo então ficado a constar dos autos o seguinte conjunto de documentos:
1. Demonstração de liquidação 19-06;
2. Comprovativo Secin[1] demonstração liquidação 19-06;
3. Demonstração de acerto de contas 19-06;
4. Comprovativo Secin Demonstração de acerto de contas 19-06;
5. Demonstração de liquidação 19-09;
6. Comprovativo Secin demonstração liquidação 19-09;
7. Demonstração de acerto de contas 19-09;
8. Comprovativo Secin Demonstração de acerto de contas 19-09.
Exercendo o contraditório, em 28-03-2025, a Requerente manisfesta o seu desacordo quanto à necessidade de reenvio prejudicial ao TJUE, em face da Jurisprudência firmada sobre a matéria em discussão e, concretamente quanto aos documentos ora juntos pela AT, alega, em suma:
- reitera ter tomado conhecimento da alegada dívida tributária de IVA referente aos períodos de junho e setembro de 2019 através das correspondentes demonstrações de acerto de contas, que apuraram um montante total a pagar de € 65.850,04;
- lamenta que apenas nesta fase venha a Requerida juntar as liquidações adicionais de IVA referentes aos períodos de 2019/06 e 2019/09, não obstante a Requerente ter repetidamente assinalado que não tinha recebido as mencionadas liquidações;
- tendo agora sido juntas pela Requerida as liquidações adicionais de IVA relativas aos períodos de junho e setembro de 2019, é inequívoco que estas são também objeto de sindicância nos presentes autos (como foram desde o início, desde a apresentação da p.i.), não subsistindo dúvidas de que integraram o pedido, a causa de pedir e o valor económico da causa, o que, aliás, é aceite pela Requerida;
- Em face dos documentos agora juntos pela Requerida, vê-se a Requerente na necessidade de, ao abrigo do disposto no artigo 146.º do CPC, aplicável subsidiariamente, requerer aquilo que
entende ser um mero lapso de escrita no pedido formulado na p.i., para que, onde se lê “das liquidações de IVA n.º 2023..., relativa ao período 201901, n.º 2023..., relativa ao período 201912, e das liquidações adicionais de juros (…)” passe a ler-se “das liquidações de IVA n.º 2023..., relativa ao período 201901, n.º 2023..., relativa ao período 201906, n.º 2023..., relativa ao período 201909, n.º 2023..., relativa ao período 201912, e das liquidações adicionais de juros (…)”; ou
- admitir-se a alteração do pedido nos termos acima formulados, ao abrigo do disposto no artigo 265.º, n.º 2 do CPC, aplicável subsidiariamente, uma vez que o pedido nestes termos formulados mais não é do que o desenvolvimento do pedido primitivo e resulta manifesto da causa de pedir,...
Consequentemente, requer a final que no provimento do pedido seja considerada a anulação do ato de indeferimento da reclamação graciosa e das liquidações de IVA n.º 2023..., relativa ao período 2019/01, n.º 2023..., relativa ao período 201906, n.º 2023..., relativa ao período 201909, e n.º 2023..., relativa ao período 2019/12, as liquidações adicionais de juros n.º 2023..., relativa ao período 2019/06, n.º 2023..., relativa ao período 2019/09 e n.º 2023..., relativa ao período 2019/12, e as demonstrações de acerto de contas n.º 2023..., relativa ao período 2019/01, n.º 2023... e n.º 2023..., relativas ao período 2019/06, n.º 2023 ... e n.º 2023..., relativas ao período 2019/09, e n.º 2023 ... e n.º 2023..., relativas ao período 2019/12.
Em apoio à desnecessidade do reenvio prejudicial, requerido pela AT, a Requerente acrescenta à jurisprudência ante citada a Decisão Arbitral proferida, em 17-03-2025, pelo Tribunal Arbitral constituído no CAAD, para o P. 877/2024-T.
No mencionado requerimento de 09-04-2025, além de suprir o lapso cometido na junção de documentos aquando da apresentação das suas alegações, a Requerida exerceu o contraditório quanto à pretensa ampliação do pedido, alegando que “... a Requerente efectua tal requerimento, já após o encerramento da discussão...”, pronunciando-se “... pelo seu não acordo com tal ampliação, por entendê-la impraticável atentas as especificidades na tramitação dos processos arbitrais ...”, pugnando, em suma, pelo respectivo indeferimento.
Em 21-04-2025, a Requerente veio pedir a junção aos autos de cópia da decisão proferida pelo Tribunal Arbitral no âmbito do processo n.º 948/2024-T, de 7 de abril de 2025, por ser superveniente (art. 423.º do CPC) e alinhada com a jurisprudência já anteriormente autuada, pretensão que foi atendida, por havida como pertinente, em despacho do mesmo dia.
II. INCOMPETÊNCIA DO TRIBUNAL
A Requerida invoca a caducidade do direito de acção quanto ao período de 2019-01 a que conexiona erro na forma do processo e incompetência do Tribunal, exepções em abono das quais alega, em síntese:
- Conforme resulta do PAT, relativamente ao já referido primeiro período de 2019, a Requerida não apreciou a Reclamação Graciosa, não tendo feito qualquer análise do mérito da mesma, tendo-a pura e simplesmente rejeitado por extemporânea.
- Da rejeição da Reclamação Graciosa não cabe acção de impugnação, sendo a acção administrativa o meio de reacção ao Despacho de rejeição.
- O pedido de pronúncia arbitral tem necessariamente de ter por objeto atos tributários, não consubstanciando o meio processual próprio para a impugnação do Despacho de rejeição da Reclamação Graciosa, o que constitui exceção dilatória impeditiva do conhecimento do mérito da causa [artigo 577.º do CPC, ex vi artigo 2.º/-e) do RJAT], a qual dá lugar à absolvição da Requerida da instância [artigo 278.º/1 do CPC, ex vi artigo 2.º-e) do RJAT].
- Decorre diretamente do exposto que o Tribunal Arbitral Coletivo constituído é materialmente incompetente para apreciar e decidir, pois que aquela matéria não se subsume naquilo que prevê o artigo 2.º do RJAT e o artigo 2.º da Portaria 112-A/2011, de 22 de março, constituindo matéria reservada à jurisdição administrativa-fiscal.
- A incompetência do tribunal consubstancia uma exceção dilatória impeditiva do conhecimento do mérito da causa [artigo 576.º/1 e 2 e artigo 577.º/1-a) do CPC, ex vi artigo 2.º-e) do RJAT], a qual dá lugar à absolvição da Requerida da instância [artigo 278.º/1 do CPC, ex vi artigo 2.º-e) do RJAT].
A Requerente não se pronunciou sobre esta excepção.
A questão da competência é de ordem pública e o seu conhecimento precede o de qualquer outra matéria como emerge claramente do artigo 13.º do CPTA, ex vi art. 29.º, n.º 1, c) do RJAT.
No Proc. 0608/13.4BEALM 0245/18, de 18-11-2020, decidiu o Supremo Tribunal Administrativo (STA):
“I - Nos processos de impugnação judicial, apresentados na sequência de decisões, dos serviços competentes da autoridade tributária e aduaneira (AT) e equivalentes, como neste caso, dos serviços e responsáveis camarários, de indeferimento (mesmo que, por motivos formais) de reclamações graciosas, recursos hierárquicos e/ou pedidos de revisão oficiosa dos atos tributários, há muito, a jurisprudência, do STA, identificou (e vem afirmando) a existência de um objeto imediato (a decisão da reclamação….) e de um objeto mediato (os vícios, concretamente, imputados ao ato tributário de liquidação).
II - O meio processual tributário de impugnação judicial é de acionar em todas as situações onde se visem atos relativos a questões tributárias que impliquem, contendam com a apreciação (de qualquer ilegalidade) do ato de liquidação, ainda que, no mesmo processo se tenham de versar e dirimir questões relacionadas, em exclusivo, com um procedimento de cariz administrativo, quando este tenha tido, previamente, lugar.
III - Por contraposição, o meio processual da ação administrativa só pode utilizado, quando as questões tributárias levantadas (no procedimento administrativo e no tribunal) não impliquem apreciar-se da legalidade do ato de liquidação.”
Assim, a jurisprudência recente do Supremo Tribunal Administrativo é no sentido de que a Impugnação Judicial é o meio próprio de reacção processual desde que no seu âmbito seja pedida a apreciação quer da legalidade da decisão administrativa quer da liquidação, independentemente de a decisão administrativa que constitui o objecto imediato da Impugnação Judicial versar sobre questão meramente formal - designadamente o acto administrativo de indeferimento ter por fundamento a ilegitimidade ou intempestividade da Reclamação Graciosa - quer o indeferimento se funde no mérito ou não acolhimento dos vícios de mérito imputados à liquidação.[2]
Em consonância com o preceituado no artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, o artigo 2.º, n.º 1, do RJAT define a competência dos tribunais arbitrais em matéria tributária, para a apreciação das seguintes pretensões:
“a) A declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos e autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta;
b) A declaração de ilegalidade de actos de fixação da matéria colectável quando não dê origem a liquidação de imposto, de actos de determinação da matéria colectável e de actos de fixação de valores patrimoniais.”
Acresce a evidência de que nos presentes autos o Tribunal é convocado a pronunciar-se sobre a legalidade do acto de indeferimento da Reclamação Graciosa, que teve por objecto as liquidações identificadas no preâmbulo do PPA, e dos actos de liquidação apurados nas correcções que, em sede de IVA, emergiram do processo de inspecção tributária, conforme o pedido formulado. Enquanto tal, e independentemente de o despacho que recaiu sobre a da RG ser de mera rejeição por extemporaneidade, quanto ao período de tributação de 2019-01, a Impugnação Judicial é o meio próprio de reacção processual contra esse acto administrativo.
Em face do exposto, e à luz da subida Jurisprudência do STA, improcede a excepção da incompetência do Tribunal fundada na impropriedade do meio.
III – CADUCIDADE
Em linha com o que fora decidido no despacho de rejeição da Reclamação Graciosa, sobre este tema a Requerida alega que “Da conjugação do n.º 1 do art.º 70.º com a al. b) e e) do n.º 1 do art.º 102.º, ambos do CPPT, resulta que o prazo para a dedução da reclamação graciosa é o prazo geral de 120 dias, e deverá contar-se a partir da notificação da demonstração do acerto de contas referente ao período de 2019-01, o qual ocorreu a 16/05/2023, pelo que, a tendo a reclamação graciosa sido apresentada, a 11/10/2023, encontrava-se já decorrido aquele prazo.”.
Assim, conclui que a reclamação graciosa foi deduzida fora do prazo legal e que se verifica, quanto a esta parte do pedido, a caducidade do direito de acção.
A Requerente nada opôs a tal alegação.
Os factos relevantes para a decisão são os seguintes:
-
A Requerente foi notificada da demonstração do acerto de contas referente ao período de 2019-01, em 16-05-2023 (incontrovertido e Doc. nº 8, junto com o PPA, que se dá por reproduzido);
-
A Reclamação Graciosa foi apresentada pela Requerente em 11-10-2023, exibindo um carimbo de recepção em 12-10-2023 (incontrovertido e Doc. nº 11, junto com o PPA, que se dá por reproduzido).
Resulta destes factos que mediaram 148 dias entre a data em que a Requerente foi notificada da demonstração do acerto de contas referente ao período de 2019-01 e a data em que apresentou a Reclamação Graciosa, tendo claramente ultrapassado o prazo de 120 dias que a lei lhe concede para o efeito, designadamente nos termos do artigo 70.º do CPPT: “A reclamação graciosa pode ser deduzida com os mesmos fundamentos previstos para a impugnação judicial e será apresentada no prazo de 120 dias contados a partir dos factos previstos no n.º 1 do artigo 102.º”.
Enquanto tal, procede a excepção da caducidade invocada pela Requerida (e que sempre seria de conhecimento oficioso), tendo como consequência a absolvição parcial do pedido, na parte referente ao período de 2019-01, de harmonia com o preceituado nos artigos 332.º, n.º 1, do Código Civil e 576.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (ex vi art. 29.º, n.º 1, e), do RJAT).
IV. Saneamento
O Tribunal foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria para conhecer das liquidações aqui postas em crise, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 3, alíneas a) e b), 6.º, n.º 2, e 11.º, n.º 1, todos do RJAT.
As partes estão devidamente representadas, gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
A acção é tempestiva, tendo o pedido de pronúncia arbitral sido apresentado no prazo de 90 dias previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, de acordo com a remissão operada para o artigo 102.º, n.º 1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”).
Não foram identificadas outras questões que obstem ao conhecimento do mérito.
V. Fundamentação de Facto
1. Matéria de Facto Provada
Com relevo para a decisão, julgam-se provados os seguintes factos:
A. A Requerente é uma sociedade cujo objeto social consiste na produção, importação, exportação, armazenagem, distribuição por grosso de dispositivos médicos e de artigos elétricos e eletrónicos e, em geral, comercialização de produtos farmacêuticos e meios de diagnóstico, actividade comercial enquadrada no CAE 46460 (incontrovertido).
B. A Requerente encontra-se enquadrada no regime normal mensal de entrega de declarações periódicas de IVA, em conformidade com o disposto no artigo 41.º, n.º 1, alínea a) do Código do IVA (incontrovertido).
C. A Requerente é uma empresa da indústria farmacêutica associada da Associação Portuguesa da Indústria Farmacêutica, a APIFARMA (incontrovertido).
D. Enquanto titular da autorização de introdução no mercado de diversos produtos farmacêuticos, a Requerente vende estes produtos a entidades do SNS (incontrovertido).
E. Pelo fornecimento de produtos farmacêuticos (mormente medicamentos) às entidades do SNS, a Requerente emite faturas com IVA à taxa reduzida de 6%, nos termos da verba 2.5 da Lista I, anexa ao Código do IVA (incontrovertido).
F. No âmbito da sua atividade, e à semelhança do que sucedeu com a grande maioria das empresas da indústria farmacêutica, a Requerente aderiu ao Acordo celebrado em 2016 entre o Estado e a Indústria Farmacêutica (incontrovertido).
G. Desde 1997, o Estado e a APIFARMA (em representação da Indústria Farmacêutica) iniciaram um processo de colaboração com vista à celebração de protocolos que permitam garantir:
(i) a sustentabilidade orçamental e financeira do SNS; e
(ii) o acesso dos cidadãos aos medicamentos (incontrovertido).
H. O objetivo principal daqueles protocolos passou a ser a redução da despesa do SNS com medicamentos, conforme resulta do Considerando do acordo celebrado entre o Ministério da Saúde, da Economia e do Emprego e das Finanças e a Indústria Farmacêutica, em Maio de 2012 (disponível em https://apifarma.pt/wp-content/uploads/2021/04/Acordo-2012), nos termos do qual as empresas aderentes se comprometiam a colaborar numa redução da despesa com medicamentos no valor de 300 milhões de euros e a prestar uma contribuição correspondente à parte que excedesse os objetivos de despesa pública com medicamentos, fixado em 2038 milhões de euros (incontrovertido).
I. Em 2013, foi celebrado um aditamento ao Acordo de 2012 (“Aditamento de 2013”), passando a prever-se que as empresas aderentes se comprometiam a efetuar uma contribuição de 122 milhões de euros para a redução da despesa pública com medicamentos, mediante o pagamento de uma contribuição em valor proporcional à sua quota de mercado, calculada por referência ao mercado hospitalar total, sendo o pagamento da contribuição realizado mediante a emissão de notas de crédito aos hospitais (incontrovertido).
J. Em 24.06.2014, foi celebrado entre os Ministérios das Finanças e da Saúde e a APIFARMA, em representação da Indústria Farmacêutica, um novo Acordo (“Acordo de 2014”), através do qual as empresas aderentes se vinculavam a efetuar uma contribuição no valor de 160 milhões de euros para a redução da despesa pública com medicamentos, mediante o pagamento de uma contribuição em valor proporcional à sua quota de mercado, calculada por referência aos encargos totais do SNS. O pagamento da contribuição era realizado mediante a emissão de notas de crédito aos hospitais e/ou pagamento à Administração Central do Sistema de Saúde, I.P. - “ACSS, I.P.” (incontrovertido).
K. Em 21.11.2014, foi celebrado, pelas mesmas partes, novo Acordo para 2015 (“Acordo de 2015”), que revia o Acordo de 2014, através do qual as empresas farmacêuticas aderentes se vinculavam a uma contribuição no valor de 180 milhões de euros, nos termos do qual a contribuição era calculada considerando o total de vendas por tipo de medicamento, com a possibilidade de acréscimo na medida da respetiva proporção, caso a empresa aderente fosse representativa de uma quota superior a 75% dos encargos totais do SNS (incontrovertido).
L. Ainda nos termos do Acordo para 2015, caso o valor da despesa pública fosse ultrapassado, as empresas aderentes pagariam ainda o montante que excedesse o objetivo máximo, durante o primeiro trimestre de 2016, sendo o pagamento da contribuição realizado mediante a emissão de notas de crédito aos hospitais e/ou pagamento à ACSS, I.P. (incontrovertido).
M. Em março de 2016, foi celebrado entre os Ministérios das Finanças, da Economia e da Saúde e a APIFARMA, em representação da Indústria Farmacêutica, um novo Acordo referente ao triénio 2016-2018 (“Acordo APIFARMA”), aditado em 2017, através do qual as empresas aderentes se vincularam a uma contribuição financeira no valor de 200 milhões de euros, com a possibilidade de acréscimo na medida da respetiva proporção, caso a empresa aderente fosse representativa de uma quota superior a 75% dos encargos totais do SNS (incontrovertido).
N. Nos termos deste novo “Acordo APIFARMA”, caso o valor da despesa pública fosse ultrapassado, as empresas aderentes pagariam ainda o montante que excedesse o objetivo máximo, durante o primeiro trimestre de 2017, na proporção da sua responsabilidade pelo aumento da despesa pública, e com limites máximos expressamente previstos, continuando o pagamento da contribuição a ser realizado mediante a emissão de notas de crédito aos hospitais e/ou pagamento à ACSS, I.P. (Doc. n.º 1 junto com o PPA, que se dá por reproduzido e incontrovertido).
O. Em fevereiro de 2017, foi assinado um aditamento ao Acordo APIFARMA (“Aditamento ao Acordo APIFARMA”) que, apesar de ter introduzido algumas alterações relativamente aos prazos e medidas para controlo da despesa pública, manteve, no essencial, inalteradas as disposições previstas naquele Acordo, celebrado em 15-03-2026, prorrogado desde 2019 e mantido em vigor até aos dias de hoje (incontrovertido).
P. Para além dos Acordos acima mencionados, um outro instrumento de angariação de receita pública com o propósito de garantir a sustentabilidade ao SNS, na vertente dos gastos com medicamentos, foi introduzido pelo artigo 168.º da Lei n.º 82-B/2014, de 31 de dezembro, que aprovou o Orçamento do Estado para 2015 (“LOE 2015”): a Contribuição Extraordinária sobre a Indústria Farmacêutica (“CEIF”).
Q. As empresas do sector farmacêutico que aderem ao Acordo APIFARMA estão isentas do pagamento da Contribuição Extraordinária sobre a Indústria Farmacêutica (“CEIF”), nos termos do artigo 5.º , n.º 2, do Regime que cria a Contribuição sobre a Indústria Farmacêutica (artigo 168.º da “LOE 2015”).
R. As empresas do setor que não assumam o compromisso voluntário de colaborar na sustentabilidade do SNS no quadro de acordos celebrados com o Estado (“Acordos APIFARMA”), estão sujeitas à “CEIF” (incontrovertido).
S. Em 02.05.2019, foi assinada e começou a produzir efeitos na esfera da Requerente a sua própria declaração de adesão ao Acordo APIFARMA, comprometendo-se a ser parte do esforço que visa assegurar a sustentabilidade do SNS e o acesso aos medicamentos e, nesse sentido, a pagar um montante proporcional à despesa que o SNS tem com os medicamentos vendidos pela Requerente (Doc. n.º 2 junto com o PPA, que se dá por reproduzido e incontrovertido).
T. As contribuições decorrentes do Acordo APIFARMA podem ser realizadas:
(i) através da emissão de notas de crédito às entidades do SNS – estas notas de crédito compensam as faturas mais antigas anteriormente emitidas a estas entidades (no pressuposto de existirem faturas vencidas e não pagas); ou
(ii) através de transferência bancária a favor da ACSS, I.P., um instituto público tutelado pelo Ministério da Saúde (cit. Docs. n.º 1 e n.º 2, depoimento da testemunha. B...).
U. O cálculo do montante destas contribuições é definido por uma fórmula fornecida pela APIFARMA e que corresponde à aplicação de uma percentagem ao valor da despesa pública com medicamentos, com base em indicadores fornecidos pelo Infarmed – Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde, I.P. (“INFARMED”) relativamente a compras de medicamentos efetuadas por hospitais (cit. Docs n.º 1 e n.º 2 e depoimento de testemunha B...).
V. Esta fórmula determina que cada empresa associada e aderente ao Acordo APIFARMA deve contribuir com um montante proporcional à despesa que o SNS teve com os seus medicamentos, seja através do consumo hospitalar destes medicamentos ou da comparticipação dos mesmos aos pacientes (cit. Docs n.º 1 e n.º 2 e depoimento de testemunha B...).
W. Ao montante apurado são depois aplicadas as taxas (percentagens) previstas no Regime da CEIF (cit. Docs. n.º 1 e n.º 2 e depoimento de testemunha B...).
X. Os valores apurados são comunicados, numa base trimestral, às entidades associadas da APIFARMA, sendo efetuados quatro pagamentos trimestrais durante o ano e um pagamento de acerto no final (Anexo 2 ao Relatório de Inspeção, Doc n.º 7 junto com o PPA, que se dá por reproduzido e depoimento da testemunha B...).
Y. Esta contribuição voluntária de base contratual, em que o pagamento é efetuado pela entidade aderente uma vez transmitidos os dados relevantes, não carece de qualquer intervenção da AT ou modelo declarativo oficial próprio (incontrovertido).
Z. Através deste mecanismo, as entidades do SNS diminuem a sua dívida às empresas farmacêuticas fornecedoras dos medicamentos, bem como diminuem dos prazos médios de pagamento (incontrovertido e depoimento da testemunha B...).
AA. Ao incumprimento dos compromissos assumidos com o Estado mediante a adesão ao Acordo APIFARMA não corresponde outra consequência senão a resolução do Acordo (cit. Doc. n.º 1).
BB. A Requerente concretiza a sua contribuição mediante a emissão de notas de crédito em benefício das entidades do SNS, em função de comunicações trimestrais que recebe da APIFARMA com indicação do montante da sua contribuição (cit. Docs n.º 1 e n.º 2, e notas de crédito / Doc. n.º 3 junto com o PPA, que se dá por reproduzido).
CC. Aplica-se a lógica first in first out, ou seja, a Requerente concretiza a sua contribuição, trimestralmente, mediante a emissão de notas de crédito em benefício das entidades do SNS que compensam as faturas mais antigas anteriormente emitidas a estas entidades (cit. Docs. n.º 1 e n.º 2, “Documentos hospitais” junto em 06.02.2025 e repetido com as alegações da Requerente, que se dá por reproduzido, e depoimentos das testemunhas B... e C... ).
DD. As notas de crédito emitidas pela Requerente fazem referência ao Acordo APIFARMA, configuram documentos retificativos de faturas anteriormente emitidas às entidades do SNS e são emitidas em concretização do objetivo de redução da despesa pública com a aquisição de medicamentos, ou seja, destinam-se a reduzir o preço (cit. Docs n.º 1, n.º 2 e n.º 3 e depoimentos das testemunhas B... e C...).
EE. Através do extracto das notas de crédito emitidas para o Acordo APIFARMA e do documento intitulado por “Documentos hospitais”, emitido à Requente pelo IPO ..., EPE e pelo Centro Hospitalar Universitário ..., EPE, é possível estabelecer uma relação direta entre o valor da contribuição que é devido pela Requerente, concretizado mediante a emissão das notas de crédito, e a parte que cada entidade deixa de pagar à Requerente por efeito do Acordo APIFARMA, dado que o montante de cada uma das notas de crédito é subtraído ao valor que as entidades do SNS devem à Requerente pela aquisição de medicamentos titulado pelas faturas mais antigas em aberto (cit. Doc. n.º 3 e Doc n.º 4 e depoimentos das testemunhas B... e C...).
FF. Ao aderir ao Acordo APIFARMA, a Requerente renuncia a uma fração da contrapartida que deveria ser paga pelas entidades do SNS, na medida em que há efetivamente uma parte da contrapartida das vendas de medicamentos às entidades do SNS que não chega a ser recebida pela Requerente (cit. Doc. n.º 3 e Doc n.º 4 e depoimentos das testemunhas B... e C...).
GG. Por considerar que se está perante a redução de um preço inicialmente praticado e que se verifica uma alteração do valor tributável e do valor do imposto devido ao Estado, a Requerente considerou as notas de crédito por si emitidas às entidades do SNS nas suas declarações periódicas de IVA, tendo regularizado, a seu favor, o IVA liquidado nas faturas inicialmente emitidas às entidades do SNS pelo fornecimento de medicamentos – imposto que a Requerente entregou nos cofres do Estado, mas que nunca chegou a receber das entidades do SNS (incontrovertido).
HH. Em cumprimento da Ordem de Serviço n.º OI2021..., de 21.12.2021, a Requerente foi objeto de uma inspeção tributária externa, ao exercício de 2019, com âmbito parcial ao Imposto de IRC e IVA (PA).
II. No âmbito deste procedimento inspetivo, a Requerente foi notificada pelos SIT do Projeto de Relatório de Inspeção Tributária (“Projeto de Relatório”), no qual os SIT propunham correções no montante total de € 334.857,45, relativas a IVA indevidamente regularizado pela Requerente, a seu favor, contido em notas de crédito emitidas às entidades do SNS ao abrigo do Acordo APIFARMA, correções que, não obstante os argumentos aduzidos pela Requerente em sede de direito de audição, se mantiveram no Relatório Final de Inspeção (Docs. ns.º 5, 6 e 7 juntos com o PPA, que aqui se dão por reproduzidos e PA).
JJ. Na sequência destas correções em sede de IVA, foram entregues na caixa electrónica do via ctt da Requerente, em 28-04-2023, as demonstrações de liquidação adicional de IVA, de juros compensatórios e de acerto de contas referentes aos meses de janeiro, junho, setembro e dezembro de 2019 aqui impugnadas, conforme a reformulação do pedido constante do requerimento por si apresentado, em 28-03-2025 (Doc. n.º 8, junto com o PPA e Docs. 1 a 8, juntos com as Alegações da Requerida, que se dão por reproduzidos).
KK. A Requerente pagou a quantia de € 218.150,42, apurada nas demonstrações de acerto de contas, em 15-06-2023 (Docs. n.ºs n.ºs 9 e 10 juntos com o PPA, e PA – Doc. 11 junto com a RG, que se dão por reproduzidos).
LL. Em 11-10-2023, a Requerente apresentou reclamação graciosa contra os mencionados atos de liquidação (Doc. n.º 11 junto com o PPA e PA).
MM. Em 14.06.2024, a Requerente foi notificada do despacho de rejeição e indeferimento da reclamação graciosa por si apresentada (Doc. n.º 13 junto com o PPA, que se dá por reproduzido).
NN. São fundamentos Relatório da Inspeção Tributária (RIT), que se dão integralmente por reproduzidos, nomeadamente os seguintes:
(…)
Regularização indevida do IVA na contribuição sobre a Indústria Farmacêutica
A contribuição extraordinária sobre a indústria farmacêutica criada, como já referido, pelo artigo 168.º da Lei n.º 82-B/2014, de 31 de dezembro, bem como a contribuição financeira relativa ao ACORDO, previsto no artigo 5.º da CEIF, cujo pagamento opera mediante submissão da Declaração Modelo 28, através de emissão de notas de crédito aos hospitais do SNS, ou através de pagamento em numerário por transferência bancária para a ACSS, I.P., respetivamente, configura efetivamente um custo da atividade da A... PT.
(…)
Dado que a contribuição prevista quer na CEIF, quer no ACORDO não configura a contrapartida de um valor individualizável prestado pela ACSS por intermédio das entidades do SNS às empresas da Indústria Farmacêutica em relação às quais se possa considerar as importâncias entregues como a respetiva contraprestação ou sinalagma, está obviamente ausente o elemento objetivo que compõe o âmbito de incidência do IVA.
Tanto a CEIF como o ACORDO, têm como objetivo contribuir para a sustentabilidade do SNS, com a diminuição da dívida do SNS com as empresas da Indústria farmacêutica. Dado que as duas contribuições, são apuradas de forma idêntica é expectável e indispensável que ambas as contribuições sejam equivalentes nos resultados e assim respeitem o princípio da igualdade dos tributos.
O sujeito passivo ao emitir as notas de crédito efetuando a regularização do IVA nas declarações periódicas (por dedução ao IVA liquidado nas restantes operações tributáveis no campo 2), não está a suportar como custo o valor da contribuição a que está legalmente obrigado quer por via da CEIF, quer por via do ACORDO, cujo custo para a sua atividade tem de ser sempre o mesmo (princípio da igualdade previsto no artigo 13.º da CRP), não podendo o contribuinte através da sua operacionalização obter qualquer vantagem.
Isto é, não importa se paga a contribuição ao abrigo da CEIF ou do ACORDO, nem se a paga por encontro de contas (emissão de notas de crédito aos hospitais do SNS) ou em numerário - o custo tem de ser semelhante para toda a Indústria Farmacêutica.
Por outro lado, um tributo, seja ele fiscal, parafiscal, um imposto, taxa ou contribuição especial, não dá lugar a uma redução do valor tributável das operações efetuadas ou a um qualquer direito de crédito aos sujeitos passivos que a ele se encontrem sujeitos.
Ora, tendo em atenção a análise aos conceitos supra e estando em causa um tributo que incide sobre o total de vendas de medicamentos realizadas em cada trimestre, nos termos do artigo 3.º do regime da CEIF, e calculado com base no preço de venda ao público, líquido de IVA, não se afigura, tal como já reiterado, como tal contribuição possa configurar um desconto conferido pelo sujeito passivo aos seus clientes.
Em termos práticos, a operação de pagamento da contribuição não se consubstancia num abatimento ou desconto sobre o valor das suas vendas (afasta a aplicação do disposto no artigo 16.º, n.º 6, alínea b) do Código do IVA) uma vez que não se verifica uma diminuição do valor tributável das operações ativas anteriormente realizadas conforme previsto no artigo 16.º do Código do IVA. Pelo que esta situação não se enquadra nas situações previstas no n.º 7 do artigo 29.º do Código do IVA, em conjugação com o n.º 2 do artigo 78.º do mesmo diploma.
Conclui-se que quer a CEIF, quer o ACORDO, configuram um tributo de natureza fiscal ou parafiscal (imposto, taxa ou contribuição especial), não qualificáveis como “desconto” pelo que não dão lugar à redução do valor tributável das operações efetuadas ou a qualquer direito de crédito aos sujeitos passivos que a ele se encontrem sujeitos.
Deste modo, propõe-se a correção do IVA declarado pelo sujeito passivo no campo 2 das declarações periódicas de IVA de janeiro, junho, setembro, outubro e dezembro de 2019, nos montantes de 53.019,58€, 89.637,23€, 64.945,77€, -1.943,10€, 64.072,16€ e 65.125,92€ respetivamente, ou seja, um total de 334.857,45€. (…)”.
OO. A “Decisão Final” incidente no procedimento da Reclamação Graciosa, que se dá aqui por integrada, sustenta-se designadamente nos seguintes argumentos:
(…)
V – ANÁLISE DO PEDIDO E PARECER
20. Com referência ao período 2019-01, em face da manifesta intempestividade do pedido, dado que foi ultrapassado o prazo para apresentação da reclamação graciosa, nos termos do n.º 1 do art.º 70.º, conjugado com as al.s b) e e), do n.º 1 do art.º 102.º, ambos do CPPT, tal facto constitui uma questão que impede o conhecimento do objeto.
21. No que diz respeito aos restantes períodos, 2019-06, 2019-09 e 2019-12, iremos proceder à sua análise.
22. Começando pela falta das notificações das demonstrações das liquidações n.º 2023 ... e n.º 2023..., referentes aos períodos 2019-06 e 2019-09, respetivamente, verifica-se que as mesmas foram emitidas pelo VIA CTT, a 28/04/2023, e que a reclamante foi considerada notificada a 16/05/2023, nos termos do n.º 10 do art.º 39.º do CPPT.
23. Analisada a petição, bem como o relatório do procedimento de inspeção (RIT) constatou-se que a reclamante foi objeto de um procedimento de inspeção a coberto da Ordem de Serviço n.º OI2021..., realizado pela Direção de Finanças de Lisboa, de âmbito parcial a IVA e IRC do ano de 2019.
24. Com referência ao período 2019-06, a correção efetuada foi de € 89.637,23, para o período de 2019-09, foi de € 64.945,77, e para o período 2019-12, foi de € 127.254,98, no campo 2 das DP’s de IVA, respetivas, referente a imposto liquidado à taxa reduzida de 6%, que estava em falta.
25. Da leitura do RIT, retira-se que:
(…)
26. Do exposto, verifica-se que os argumentos apresentados pela reclamante são os mesmos que foram apresentados, no procedimento inspetivo, acresce ao facto de que, não foi apresentada prova documental, “novos elementos”, nos termos do art.º 74.º da LGT, que possam por em causa o analisado e o efetuado pela IT.
27. Nos termos do art.º 78.º do n.º 2 do CIVA, “Se, depois de efectuado o registo referido no artigo 45.º, for anulada a operação ou reduzido o seu valor tributável em consequência de invalidade, resolução, rescisão ou redução do contrato, pela devolução de mercadorias ou pela concessão de abatimentos ou descontos, o fornecedor do bem ou prestador do serviço pode efectuar a dedução do correspondente imposto até ao final do período de imposto seguinte àquele em que se verificarem as circunstâncias que determinaram a anulação da liquidação ou a redução do seu valor tributável”.
28. Pelo que, acresce que o requerido pela reclamante não se enquadra no referido normativo, uma vez que não estamos perante uma invalidade, resolução ou redução do contrato, devolução de mercadorias, concessão de abatimentos ou descontos.
29. De referir que o referido normativo, é um procedimento que resulta apenas de uma possibilidade concedida ao sujeito passivo, e este só poderá optar por tal regularização quando puder fazer prova de que o adquirente é conhecedor da mesma ou de que foi reembolsado do imposto n.º 2 e n.º 5, do art.º 78.º do CIVA.
30. Esta prova deverá consistir em qualquer confirmação escrita recebida dos seus clientes acusando a receção da comunicação que refira o montante do IVA regularizado ou de que estes foram reembolsados do imposto.
31. Por sua vez, o adquirente deve regularizar o imposto até ao termo do período de imposto seguinte ao da receção do documento retificativo emitido pelo seu fornecedor, n.º 4, do art.º 78.º do CIVA.
32. Face ao exposto, somos da opinião que o efetuado pela IT, não merece qualquer reparo, e que se encontra de acordo com a legislação aplicável ao caso em apreço.
[…]”
PP. O presente PPA foi apresentado em 05-08-2024 (SGP do CAAD).
2. Factos não Provados
Não foram notificadas à Requerente as liquidações de IVA referentes aos períodos de junho e setembro de 2019.
3. Motivação da Decisão de Facto
Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, em face das soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2 do CPPT, 596.º, n.º 1 e 607.º, n.º 3 do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e) do RJAT, não tendo o Tribunal de se pronunciar sobre todas as alegações das Partes.
A convicção do Tribunal fundou-se nos factos alegados que não mereceram controvérsia, na análise dos documentos juntos aos autos com as peças principais e nos que foram sendo juntos ao longo da tramitação processual, bem como nos depoimentos das testemunhas B..., Engenheira Química, Coordenadora do Núcleo de Estudos e de Análise da Apifarma, que exerce funções de interação com o Infarmed, apuramento dos valores das contribuições e respetiva comunicação às empresas da indústria farmacêutica, e C..., Economista, tendo ambas aparentado isenção e respeito pela verdade, conforme está refectido em relação a cada facto considerado provado.
Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas Partes e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja validade terá de ser aferida em relação à concreta matéria de facto consolidada.
VI. FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
1. QUESTÃO A DECIDIR
A questão a sub judicio consiste, essencialmente, em decidir sobre se deve ou não reconhecer-se à Requerente o direito de regularizar o IVA contido nas referenciadas “Notas de Crédito” emitidas ao abrigo do “Acordo Apifarma”, considerando que, por intermédio das mesmas, se verifica uma diminuição do valor da operação tributável, bem assim uma redução do montante em dívida pelas entidades do SNS adquirentes dos fármacos.
O entendimento da Requerente resume-se do modo seguinte:
- A Requerente concretiza a sua contribuição (CEIF) mediante a emissão de notas de crédito em benefício das entidades do SNS, em função comunicações trimestrais que recebe da APIFARMA com indicação do montante da sua contribuição, numa lógica first in first out, em que são compensadas as faturas mais antigas anteriormente emitidas a estas entidades.
- As notas de crédito emitidas pela Requerente fazem referência ao Acordo APIFARMA, configurando documentos retificativos de faturas emitidas às entidades do SNS e concretizam o objetivo de redução da despesa pública com a aquisição de medicamentos, pois que se destinam e reduzem efectivamente o preço dos mesmos.
- Através do extrato das notas de crédito emitidas para o Acordo APIFARMA e do documento intitulado “Documentos hospitais”, emitido à Requente pelo IPO..., EPE e pelo Centro Hospitalar Universitário..., EPE, é possível estabelecer uma relação direta entre o valor da contribuição que é devido pela Requerente, concretizado mediante a emissão das notas de crédito, e a parte que cada entidade deixa de pagar à Requerente por efeito do Acordo APIFARMA, dado que o montante de cada uma das notas de crédito é subtraído ao valor que as entidades do SNS devem à Requerente, pela aquisição de medicamentos, nas faturas mais antigas ainda sem pagamento.
- Ao aderir ao Acordo APIFARMA, a Requerente renuncia a uma fração da contrapartida que deveria ser paga pelas entidades do SNS, na medida em que há efetivamente uma parte da contrapartida das vendas de medicamentos às entidades do SNS que não chega a ser recebida.
- Entendendo existir uma redução do preço inicialmente praticado e ocorrendo, portanto, uma diminuição do valor tributável e, logo, do valor do imposto devido ao Estado, a Requerente considerou as notas de crédito por si emitidas às entidades do SNS nas suas declarações periódicas de IVA, tendo regularizado, a seu favor, o IVA liquidado nas faturas inicialmente emitidas àquelas entidades, pelo fornecimento de medicamentos, na medida em que entregou nos cofres do Estado imposto (IVA) que nunca chegou a receber.
- As empresas do setor que não assumam o compromisso voluntário de colaborar na sustentabilidade do SNS no quadro de acordos celebrados com o Estado (“Acordos APIFARMA”), estão sujeitas à “CEIF”.
Por seu turno, a Requerida defende, em síntese:
- O sujeito passivo ao emitir as notas de crédito efetuando a regularização do IVA nas declarações periódicas (por dedução ao IVA liquidado nas restantes operações tributáveis no campo 2), não está a suportar como custo o valor da contribuição a que está legalmente obrigado quer por via da CEIF, quer por via do ACORDO, cujo custo para a sua atividade tem de ser sempre o mesmo (princípio da igualdade previsto no artigo 13.º da CRP), não podendo o contribuinte através da sua operacionalização obter qualquer vantagem.
- Não importa se paga a contribuição ao abrigo da CEIF ou do ACORDO, nem se a paga por encontro de contas (emissão de notas de crédito aos hospitais do SNS) ou em numerário - o custo tem de ser semelhante para toda a Indústria Farmacêutica.
- Um tributo, seja ele fiscal, parafiscal, um imposto, taxa ou contribuição especial, não dá lugar a uma redução do valor tributável das operações efetuadas ou a um qualquer direito de crédito aos sujeitos passivos que a ele se encontrem sujeitos.
- Estando em causa um tributo que incide sobre o total de vendas de medicamentos realizadas em cada trimestre, nos termos do artigo 3.º do regime da CEIF, e calculado com base no preço de venda ao público, líquido de IVA, não se afigura como tal contribuição possa configurar um desconto conferido pelo sujeito passivo aos seus clientes.
- Em termos práticos, a operação de pagamento da contribuição não se consubstancia num abatimento ou desconto sobre o valor das suas vendas, uma vez que não se verifica uma diminuição do valor tributável das operações ativas anteriormente realizadas conforme previsto no artigo 16.º do Código do IVA, pelo que esta situação não se enquadra nas situações previstas no n.º 7 do artigo 29.º do Código do IVA, em conjugação com o n.º 2 do artigo 78.º do mesmo diploma, trata-se de uma operação fora do âmbito de aplicação do imposto.
- Conclui que quer a CEIF, quer o ACORDO, configuram um tributo de natureza fiscal ou parafiscal (imposto, taxa ou contribuição especial), não qualificáveis como “desconto” pelo que não dão lugar à redução do valor tributável das operações efetuadas ou a qualquer direito de crédito aos sujeitos passivos que a ele se encontrem sujeitos.
2 – APRECIAÇÃO
Emerge da prova que, desde 1997, o Estado e a APIFARMA (em representação da Indústria Farmacêutica) iniciaram um processo de colaboração com vista à celebração de protocolos que permitam garantir a sustentabilidade orçamental e financeira do SNS e o acesso dos cidadãos aos medicamentos, com o objetivo principal de reduzir da despesa do SNS com medicamentos, conforme resulta do Considerando do acordo celebrado entre o Ministério da Saúde, da Economia e do Emprego e das Finanças e a Indústria Farmacêutica, em Maio de 2012 - factos G e H.
O Acordo de 2012 foi sendo actualizado, por via de sucessivos aditamentos ou reformulações, tendo a partir de Março de 2016 passado a designar-se “Acordo APIFARMA” (Associação representativa da Indústria Farmacêutica), mas sempre reafirmando a obrigação de as empresas do sector pagarem uma contribuição, cujo montante e/ou percentagem foi variando de ano para ano, realizada mediante a emissão de notas de crédito aos hospitais e/ou pagamento à Administração Central do Sistema de Saúde, I.P. - “ACSS, I.P.”, na prossecução do mencionado objectivo de reduzir a despesa do SNS com medicamentos, acordo esse mantido em vigor até aos dias de hoje – factos I, J, K, L, M), N) e O).
Para além dos Acordos acima mencionados, um outro instrumento de angariação de receita pública com o propósito de garantir a sustentabilidade ao SNS, na vertente dos gastos com medicamentos, foi introduzido pelo artigo 168.º da Lei n.º 82-B/2014, de 31 de dezembro, que aprovou o Orçamento do Estado para 2015 (“LOE 2015”), concretamente a designada Contribuição Extraordinária sobre a Indústria Farmacêutica (“CEIF”) – facto P.
Do Regime que cria “CEIF”, destaca-se o artigo 5.º, em cujo n,º 2 se estabelece uma isenção para as empresas do setor farmacêutico que aderem ao Acordo APIFARMA, nos seguintes termos:
“1- Pode ser celebrado acordo entre o Estado Português, representado pelos Ministros das Finanças e da Saúde, e a indústria farmacêutica visando a sustentabilidade do SNS através da fixação de objetivos de valores máximos de despesa pública com medicamentos e de contribuição de acordo com o volume de vendas das empresas da indústria farmacêutica para atingir aqueles objetivos.
2 - Ficam isentas da contribuição as entidades que venham a aderir, individualmente e sem reservas, ao acordo a que se refere o n.º 1 nos termos do número seguinte, mediante declaração do INFARMED - Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde, I. P.
3 - A isenção prevista no presente artigo produz efeitos a partir da data em que as entidades subscrevam a adesão ao acordo acima referido e durante período em que este se aplicar em função do seu cumprimento, nos termos e condições nele previstos.
(...)” – facto Q.
As empresas do setor que não assumam o compromisso voluntário de colaborar na sustentabilidade do SNS no quadro de acordos celebrados com o Estado (“Acordos APIFARMA”), estão sujeitas à “CEIF” – facto R.
Impõe-se notar que regime da CEIF criou uma verdadeira obrigação tributária, podendo a AT promover a cobrança coerciva da dívida e sendo o incumprimento da obrigação sancionado nos termos do RGIT, enquanto que os Acordos APIFARMA configuram contratos administrativos aos quais voluntariamente se vincularam as empresas da indústria farmacêutica.
Entre outras diferenças, importa ainda evidenciar a que advem das respectivas regras de liquidação: A CEIF é autoliquidada pelos sujeitos passivos através da submissão da Declaração Modelo 28, devendo o pagamento fazer-se no mesmo período da entrega da declaração, através da referência de pagamento gerada após a submissão da mesma (artigo 6.º do regime da CEIF), enquanto que as contribuições voluntárias previstas nos Acordos APIFARMA são pagas mediante a emissão de notas de crédito às entidades do SNS ou por transferência bancária realizada a favor da ACSS, I.P., sem qualquer intervenção da AT na liquidação, como resulta do Acordo APIFARMA e declaração de adesão da Requerente (Docs. 1 e 2 juntos com o PPA) – factos S e T.
Donde, se conclui que os dois regimes são substantivamente distintos, não podendo o pagamento realizado ao abrigo dos Acordos APIFARMA ser equiparado ao pagamento de um tributo, como pretende Requerida.
Desde 02.05.2019, data em que aderiu ao Acordo APIFARMA, a Requerente realizou as suas contribuições para a sustentabilidade do SNS e o acesso aos medicamentos através da emissão de notas de crédito às entidades do SNS, também podendo fazê-lo através de transferência bancária a favor da ACSS, I.P., sendo o cálculo do montante destas contribuições definido por uma fórmula fornecida pela APIFARMA e que corresponde à aplicação de uma percentagem ao valor da despesa pública com medicamentos, com base em indicadores fornecidos pelo Infarmed – Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde, I.P., pela aplicação das taxas (percentagens) previstas no Regime da CEIF - factos S, T, U, V, e W.
Os valores apurados são comunicados, trimestralmente, às entidades associadas da APIFARMA, sendo efetuados quatro pagamentos trimestrais durante o ano e um pagamento de acerto no final, sem qualquer intervenção da AT ou modelo declarativo oficial próprio, assim se alcançando a diminuição da dívida do SNS às empresas farmacêuticas fornecedoras dos medicamentos, sem que ao incumprimento dos compromissos assumidos com o Estado mediante a adesão ao Acordo APIFARMA corresponda outra consequência senão a resolução do Acordo – factos X, Y, Z e AA.
Apesar do que se evidencia, considerara a Requerida que a possibilidade de regularização do IVA ao abrigo dos artigos 90.º, n.º 1 da Diretiva IVA e do artigo 78.º, n. º2 do Código do IVA em casos de redução do preço concedida ao adquirente não se aplica ao IVA contido nas notas de crédito emitidas pela Requerente às entidades do SNS, no âmbito do Acordo APIFARMA. Com efeito, a Requerida persiste no entendimento de que está em causa o pagamento de um tributo, que consubstancia o cumprimento de uma obrigação no âmbito de relação jurídico-tributária e não no âmbito de relação jurídica de direito privado sobre que incide o IVA.
Porém, resulta da prova que a Requerente concretiza a sua contribuição mediante a emissão de notas de crédito em benefício das entidades do SNS, em função de comunicações trimestrais que recebe da APIFARMA, numa lógica de “first in first out”, em que se compensam as faturas mais antigas anteriormente emitidas, assim se concretizando o objetivo de redução da despesa pública com a aquisição de medicamentos, mediante uma redução do preço inicialmente facturado - Factos BB, CC e DD.
De facto, através do extrato das notas de crédito emitidas para o Acordo APIFARMA e do documento intitulado “Documentos hospitais”, emitido à Requente pelo IPO ..., EPE e pelo Centro Hospitalar Universitário ..., EPE, é possível estabelecer uma relação direta entre o valor da contribuição que é devido pela Requerente, concretizado mediante a emissão das notas de crédito, e a parte que cada entidade deixa de pagar à Requerente por efeito do Acordo APIFARMA, dado que o montante de cada uma das notas de crédito é subtraído ao valor que as entidades do SNS devem à Requerente pela aquisição de medicamentos titulado nas faturas mais antigas em aberto – facto EE.
Na verdade, pela adesão ao Acordo APIFARMA, a Requerente renuncia a uma fração da contrapartida que deveria ser paga pelas entidades do SNS, na medida em que há efetivamente uma parte do montante das vendas de medicamentos às entidades do SNS que não chega a ser recebida pela Requerente - facto FF. Razão pela qual considerou as notas de crédito por si emitidas às entidades do SNS nas suas declarações periódicas de IVA e regularizou a seu favor o IVA liquidado nas faturas inicialmente emitidas àquelas entidades pelo fornecimento de medicamentos, dado ser imposto que a Requerente entregou nos cofres do Estado, mas que nunca chegou a receber – GG.
Decorre do exposto, incontornavelmente, que há uma efetiva diminuição do valor tributável da operação e uma redução do montante em dívida pelas entidades do SNS adquirentes dos medicamentos.
O IVA é um imposto plurifásico que incide sobre as operações realizadas por todos os operadores económicos do circuito económico, em que o montante a pagar por cada um é calculado de acordo com a diferença entre o imposto liquidado e o imposto deduzido e é a dedução do imposto suportado que permite que o IVA onere apenas o valor acrescentado por cada operador da cadeia, garantindo, assim, o respectivo alicerce da neutralidade. Ora, como é evidente, o princípio da neutralidade sai violado quando a contraprestação de uma operação tributável não é entregue ao fornecedor (casos de preços faturados e não recebidos), porquanto este vai sempre ter que entregar o IVA nos cofres do Estado, como se configura na situação em apreço.
Por tal motivo, e em obediência ao princípio da neutralidade, a Diretiva IVA prevê no seu artigo 90.º, n.º 1 que “[e]m caso de anulação, rescisão, resolução, não pagamento total ou parcial ou redução do preço depois de efectuada a operação, o valor tributável é reduzido em conformidade, nas condições fixadas pelos Estados-Membros”, o que só pode significar que o Estado não poderá receber e manter, a título definitivo, um montante de IVA que seja superior ao efetivamente recebido pelo fornecedor por parte do adquirente. A este propósito, afirma SÉRGIO VASQUES, “(…) o princípio da neutralidade em que assenta o sistema do IVA proíbe que se exija do sujeito passivo imposto superior ao que é pago pelo consumidor.” (pág. 14 do Parecer Atualizado, de novembro de 2024, relativo ao direito de regularização do IVA contido em notas de crédito emitidas pelas associadas da APIFARMA, ao abrigo do Acordo celebrado entre o Estado e a Indústria Farmacêutica - Doc. n.º 16 junto aos autos com o requerimento de 20.11.2024).
Por sua vez, numa expressão do princípio da contraprestação efetiva, consagra o artigo 73.º da Diretiva IVA que “[n]as entregas de bens e às prestações de serviços, que não sejam as referidas nos artigos 74.o a 77.o, o valor tributável compreende tudo o que constitui a contraprestação que o fornecedor ou o prestador tenha recebido ou deva receber em relação a essas operações, do adquirente, do destinatário ou de um terceiro, incluindo as subvenções directamente relacionadas com o preço de tais operações.”
Acrescenta o artigo 79.º da Diretiva IVA que “[o] valor tributável não inclui os seguintes elementos: a) As reduções de preço (...)”, o que significa que o IVA incide apenas sobre o gasto real feito com a aquisição de bens e serviços, logo o montante correspondente à contribuição da Requerente, resultando numa redução de preço, não constitui um gasto efetivo e determina uma redução do valor tributável das operações realizadas que tinham em conta esse mesmo valor.
Inspirado no artigo 90.º da Diretiva IVA, o artigo 78.º, n.º 2 do Código do IVA, consagra que “se ... for anulada a operação ou reduzido o seu valor tributável em consequência de invalidade, resolução, rescisão ou redução do contrato, pela devolução de mercadorias ou pela concessão de abatimentos ou descontos, o fornecedor do bem ou prestador do serviço pode efectuar a dedução do correspondente imposto até ao final do período de imposto seguinte àquele em que se verificarem as circunstâncias que determinaram a anulação da liquidação ou a redução do seu valor tributável.”
Em consonância, decidiu o TJUE no acórdão BOEHRINGER INGELHEIM RCV, C-717/19, de 06-10-2021, que “41 Resulta do artigo 90.°, n.º 1, da Diretiva IVA, que visa os casos de anulação, rescisão, resolução, não pagamento total ou parcial ou redução do preço depois de efetuada a operação, que os Estados‑Membros estão obrigados a reduzir o valor tributável e, por conseguinte, o montante do IVA devido pelo sujeito passivo sempre que este não receba, depois de efetuada uma transação, uma parte ou a totalidade da contrapartida. Esta disposição constitui a expressão de um princípio fundamental da Diretiva IVA, segundo o qual o valor tributável é constituído pela contrapartida efetivamente recebida e que tem por corolário que a autoridade tributária não pode cobrar a título de IVA um montante superior ao montante que o sujeito passivo recebeu (…)”.
Tratando-se de um caso análogo ao presente, acrescentou o TJUE que “44 Como o órgão jurisdicional de reenvio salientou, ao celebrar esses contratos, a Boehringer Ingelheim renuncia a uma fração da contrapartida paga pelo grossista. Não seria assim conforme com a Diretiva IVA que a matéria coletável com base na qual é calculado o IVA devido pela empresa farmacêutica, enquanto sujeito passivo, fosse mais elevada do que o montante que esta acaba por receber. Se assim fosse, o princípio da neutralidade do IVA em relação aos sujeitos passivos, de que a empresa farmacêutica faz parte, não seria respeitado (Acórdão de 20 de dezembro de 2017, Boehringer Ingelheim Pharma, C‑462/16, EU:C:2017:1006, n.o 35).
Densificando a argumentação, exarou ainda: “47. Não tendo uma parte da contrapartida obtida na sequência da venda dos medicamentos pela empresa farmacêutica sido recebida por esta devido à contribuição que envia ao organismo estatal de seguro de saúde, que paga às farmácias uma parte do preço desses medicamentos, há que considerar que o preço destes últimos foi reduzido depois de efetuada a operação, na aceção do artigo 90.o, n.o 1, da Diretiva IVA.”.
“51 ... importa unicamente que o sujeito passivo não tenha recebido a totalidade ou parte da contrapartida dos seus produtos. Ora, no caso vertente, a Boehringer Ingelheim não dispôs da totalidade da contrapartida dos medicamentos vendidos, mas apenas de uma parte do montante final pago pelos grossistas aos quais vendeu os seus medicamentos, após dedução das somas pagas ao organismo estatal do seguro de saúde.”
Ora, transpondo esta jurisprudência para o caso em análise, ao pagar a sua contribuição mediante a emissão de notas de crédito, em benefício das entidades do SNS, no âmbito do acordo APIFARMA, a Requerente nunca chega a receber uma parte da contrapartida dos medicamentos que vende às entidades do SNS, tornando-se óbvia a conclusão de que há uma redução do valor tributável e evidente a sua legitimidade para regularizar a seu favor o IVA contido nas notas de crédito.
Contra o que tem sido o entendimento da AT, colhe-se da doutrina de SÉRGIO VASQUES, que “[t]ributo público é com certeza a contribuição extraordinária sobre a indústria farmacêutica criada por meio da Lei do Orçamento do Estado para 2015. Quanto a essa, é certo estarmos perante obrigação ex lege, cuja formação decorre do preenchimento de pressuposto fixado em lei, como é característico de todos os tributos públicos. As contribuições do Acordo APIFARMA, pelo contrário, são obrigações ex voluntate, que resultam do acordo das vontades do estado e das empresas que a ele adiram, e que por isso têm conteúdo que as partes podem modelar como bem entendam”, concluindo que tal não se altera pelo facto de as partes modelarem certos elementos das mesmas em função da contribuição extraordinária estabelecida por lei, ou por qualquer disposição legal que isente o seu pagamento às empresas que optem por realizar contribuições voluntárias (pág. 26 do citado Parecer – Doc. n.º 16).
Noutro caso envolvente da indústria farmacêutica, já em 20-12-2017, o TJUE havia esclarecido, no acórdão BOEHRINGER INGELHEIM PHARMA, C-462/16:
“34 (…) por força da legislação nacional, a empresa farmacêutica tem de conceder descontos às empresas de seguros de saúde privados, relativamente aos produtos farmacêuticos sujeitos a prescrição médica cujo preço estas reembolsaram total ou parcialmente aos seus segurados em função da percentagem de reembolso, nas mesmas proporções que as previstas para as empresas de seguro de saúde obrigatório (…)”.
“42 Por conseguinte, há que concluir que, no processo principal, uma vez que uma parte da contraprestação não é recebida pelo sujeito passivo devido ao desconto que este concede às empresas de seguros de saúde privados, houve efetivamente uma redução de preço depois de efetuada a operação, em conformidade com o disposto no artigo 90.o, n.o 1, da Diretiva IVA.”
E a concluir:
“46 Atendendo às considerações que precedem, há que responder à questão submetida que, à luz dos princípios definidos pelo Tribunal de Justiça no acórdão de 24 de outubro de 1996, Elida Gibbs (C‑317/94, EU:C:1996:400, n.os 28 e 31), respeitantes à determinação do valor tributável do IVA, e atendendo ao princípio da igualdade de tratamento do direito da União, o artigo 90.o, n.o 1, da Diretiva IVA deve ser interpretado no sentido de que o desconto concedido, por força de uma lei nacional, por uma empresa farmacêutica a uma empresa de seguros de saúde privados implica, na aceção do referido artigo, uma redução do valor tributável a favor desta empresa farmacêutica, quando sejam efetuadas entregas de produtos farmacêuticos por intermédio de grossistas a farmácias que efetuam essas entregas a pessoas cobertas por um seguro de saúde privado que reembolsa aos seus segurados o preço de compra dos produtos farmacêuticos.”
Como que respondendo à questão, colocada pela Requerida, de que, pela via propugnada pela Requerente, estaria criada uma discriminação entre empresas que suportam a contribuição com adesão ao acordo APIFARMA e empresas que a suportam sem adesão ao mesmo, permitindo a dedução em sede de IVA às primeiras e vedando-a às segundas, em derrogação dos princípios da neutralidade e da igualdade que regem este imposto, em acórdão mais recente prolatado no caso NOVO NORDISK A/S, C-248/23, de 12-09-2024, o TJUE elimina qualquer hipotética dúvida sumariando que
“O artigo 90.o, n.o 1, da Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de novembro de 2006, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional nos termos da qual uma empresa farmacêutica que está obrigada a entregar, ao organismo estatal de seguro de saúde, uma parte do seu volume de negócios resultante da venda dos seus produtos farmacêuticos que beneficiam de um financiamento público, não tem direito de reduzir a posteriori o valor tributável a título dos montantes entregues, tendo em conta que estes são efetuados ex lege, que a sua base tributável pode ser reduzida através de dedução dos pagamentos efetuados ao abrigo de um contrato relativo ao volume da comparticipação e das despesas efetuadas pela empresa para efeitos de investigação e de desenvolvimento no setor da saúde, e que o montante devido é cobrado pela autoridade tributária, que o transfere imediatamente para o organismo estatal de seguro de saúde.”
No enfiamento da citada jurisprudência do TJUE, têm decidido igualmente os Tribunais Arbitrais constituídos sob a égide do CAAD, nomeadamente no P. 216/2023-T, em “colectivo” presidido, como no presente, pelo Senhor Juiz José Poças Falcão, em cuja DA, de 20-03-2024, se exarou:
“(…) qualquer redução de preço ocorrida após a realização de uma operação tributável deve dar lugar à redução do respetivo valor, não permitindo o princípio da neutralidade o princípio da igualdade de tratamento consagrado na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia que o sujeito passivo seja obrigado a pagar imposto sobre preço superior ao que é efetivamente exigido do adquirente, independentemente do mecanismo ou da razão pela qual a redução do preço se efetive, seja esta de fonte legal ou contratual”.[3]
Com o mesmo propósito e retomando o ensinamento de Sérgio Vasques “(…) o que o princípio da igualdade e a jurisprudência do TJUE nos mostram é que as razões que obrigam a admitir a recuperação do IVA quanto às contribuições voluntárias do Acordo APIFARMA, obrigam também a admiti-la quanto à contribuição extraordinária” (pág. 27 do citado Parecer – Doc. n.º 16).
Afinando pelo mesmo diapasão, e apontando ao voto de vencido deixado na decisão do citado P. n.º 216/2023-T, CLOTILDE CELORICO PALMA é de parecer que carecem de fundamento as razões aí então enunciadas, tendo em vista precisamente a jurisprudência recente do TJUE no processo NOVO NORDISK A/S: “Ora, se “dúvidas” se invocavam à data, o que nem sequer concebemos, tais “dúvidas” foram cabalmente esclarecidas através do Acórdão exarado no Caso Nordisk, que, como vimos, conclui clara e inequivocamente numa situação semelhante à das associadas da APIFARMA que, ainda que estejamos perante o pagamento de um imposto a uma autoridade pública, o sujeito passivo tem direito de reduzir a posteriori o valor tributável a título dos montantes entregues.
(…) importa notar que é hoje jurisprudência assente do Supremo Tribunal Administrativo que a jurisprudência do TJUE tem carácter vinculativo para os tribunais nacionais, em matéria de Direito da União Europeia, como tem vindo a ser pacificamente aceite e é corolário da obrigatoriedade de reenvio imposta pelo artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia. Ora, como é sabido, o Acórdão interpretativo do TJUE obriga não só o juiz nacional que suscitou a questão bem como todos os juízes nacionais dos diversos Estados membros. Tendo um alcance geral, a interpretação incorpora-se na norma interpretada com o sentido e alcance que lhe foram dados”
(…) não nos resta senão concluir que o recente Caso Novo Nordisk vem militar no sentido sufragado pela Consulente e já acolhido pelo TJUE e pelo Tribunal Arbitral na mencionada jurisprudência anterior do TJUE, reforçando-o, de que estamos no caso vertente perante uma redução de um preço inicialmente praticado tendo-se verificado uma alteração do valor tributável e do valor do imposto devido ao Estado. Destarte, tal como adequadamente as associadas da APIFARMA aderentes ao Acordo têm considerado, é nosso entendimento que as notas de crédito consubstanciam verdadeiras reduções do preço, sendo totalmente legítimo o procedimento de regularização do imposto adoptado em observância do disposto no artigo 78.º do Código do IVA, conforme o previsto no artigo 90.º da Directiva IVA.
(…) como já antes salientámos no nosso Parecer, as regras da Directiva IVA constantes do respectivo artigo 90.º têm por objectivo que o IVA, como imposto geral sobre o consumo que respeita o princípio fundamental da neutralidade, incida exclusivamente sobre o gasto efectivo feito com a aquisição de bens e serviços, como o TJUE tem vindo sucessivamente a afirmar na sua vasta e clara jurisprudência, nomeadamente no Caso Boehringer Ingelheim RCV GMBH& CO. KG, no qual, como então verificámos, foi proferida jurisprudência suficientemente clara com factualidade similar à controvertida. No Caso Novo Nordisk, como vimos, o Tribunal veio reiterar esta jurisprudência clarificando que, ainda que estejamos perante o pagamento de um imposto a uma autoridade pública, o sujeito passivo tem o direito de reduzir a posteriori o valor tributável a título dos montantes entregues.
A assim não suceder desvirtua-se a característica básica da neutralidade deste tributo e são onerados consumos não verificados, arrecadando o Estado um montante a que não tem, naturalmente, direito.
Em todos estes Casos, está precisamente em análise factualidade idêntica à controvertida - mecanismos de compensação vigentes na Alemanha e na Hungria em que, à semelhança da situação em apreço, empresas farmacêuticas são chamadas a ser parte do esforço que visa assegurar o acesso a medicamentos e a terapias novas e modernas, garantindo simultaneamente a sustentabilidade orçamental.
(…)
Dúvidas pois não podem restar que, estando nós perante jurisprudência clara com factualidade similar à controvertida, não poderão os aplicadores da lei decidir emsentido distinto
Termos em que se conclui uma vez mais a final ser totalmente legítimo o procedimento de regularização do imposto adoptado pelas associadas da APIFARMA aderentes ao Acordo, dado estarmos perante uma redução de um preço inicialmente praticado tendo-se verificado uma alteração do valor tributável e do valor do imposto devido ao Estado, pelo que tais notas de crédito consubstanciam verdadeiras reduções do preço, sob pena de, em caso contrário, estarmos perante uma clara violação do Direito da União Europeia, atentando contra o princípio fundamental da neutralidade, o princípio da igualdade de tratamento consagrado no artigo 20.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, e o princípio da contraprestação efectiva, constante dos artigos 73.º e 90.º da Directiva IVA e do artigo 78.º do Código do IVA, como devem ser interpretados de acordo com a jurisprudência clara do TJUE, maxime, nos CasosBoehringer e Novo Nordisk (págs. 19 a 22 da Adenda, de 11-11-2024, ao Parecer relativo ao direito de regularização do IVA contido em notas de crédito emitidas pelas associadas da APIFARMA, ao abrigo do Acordo celebrado entre o Estado e a Indústria Farmacêutica - Doc. n.º 17 junto com o requerimento da Requerente de 20.11.2024).
De quanto vem exposto, não pode deixar de reconhecer-se o direito da Requerente a regularizar a seu favor o IVA constante das notas de crédito que emite às entidades do SNS, em compensação de faturas anteriormente emitidas àquelas entidades, por consubstanciarem verdadeiras reduções do preço dos medicamentos por si fornecidos, no âmbito da sua contribuição para a sustentabilidade do SNS e o acesso aos medicamentos, ao abrigo do Acordo APIFARMA.
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ALTERAÇÃO DO PEDIDO
Na sequência da junção dos documentos que a AT juntou com as suas Alegações e completou em requerimento posterior, com o objectivo, consumado, de provar a notificação das demonstrações de liquidação de IVA referentes ao períodos de 2019-06 e de 2019-09, veio a Requerente, em 28-03-2025, além de lamentar a junção tardia (pois que a já tinha solicitado anteriormente e por mais que uma vez), requerer que se considerasse um mero lapso de escrita no pedido formulado no PPA, de molde a passar a abranger as liquidações de IVA n.º 2023..., relativa ao período 2019-06, n.º 2023..., relativa ao período 2019-09 ou, em alternativa, considerar-se que o pedido assim formulado mais não é do que o desenvolvimento do pedido primitivo, ao abrigo dos artigos 146.º e /ou 265.º, nº 2, do CPC.
Em contraditório, a Requerida manifestou-se contra esta “ampliação do pedido”, por ser feita já depois de encerrada a discussão e por entendê-la impraticável atentas as especificidades na tramitação dos processos arbitrais.
A Requerida teve que recorrer ao Sistema Electrónico de Citações e Notificações (“SECIN”), para evidenciar que os documentos aí identificados como FFCC 2023... e FFCC 2023... correspondem, respectivamente, às demonstrações de liquidação de IVA e acerto de contas relativas ao período 2019/06 e que os FFCC 2023... e FFCC 2023.. correspondem, respectivamente, às demonstrações de liquidação de IVA e acerto de contas relativas ao período 2019/09.
Só assim foi possível verificar que tais documentos constam do printscreen que a Requerente exibe no artigo 66 das suas Alegações, e no requerimento por si apresentado em 13-12-2024, com base no qual reclamava a falta de notificação daquelas liquidações de IVA.
Assim, o facto provado JJ resulta desta constatação e da compaginação do Doc. n.º 8, junto com o PPA com os Docs. 1 a 8, juntos com as Alegações da Requerida. Aliás, constata-se também que as partes se referem às mesmas liquidações embora identificando-as por números diferentes constantes dos mesmos documentos, isto é, ora se referem ao “número da liquidação”, ora ao “número do documento”, ora ainda ao “número da compensação”, todos eles mencionados no mesmo documento e potencialmente geradores de alguma confusão, como alerta a Requerente para justificar o seu lapso de escrita.
De qualquer modo, também se verifica que a Requerente assinalou as mencionadas liquidações de IVA - n.º 2023..., relativa ao período 2019/06 e n.º 2023...,
relativa ao período 2019/09 – no preâmbulo e no pedido original do PPA, embora aí as apelidando de “liquidações adicionais de juros”, dado que são coincidentes os números das liquidações de imposto e de juros, admitindo-se como razoável que o tenha feito por mero lapso.
Em todo o caso, não restam dúvidas de que a Requerente visou a anulação das correcções em sede da IVA indicadas no RIT, como consta expressamente do pedido inicial, portanto, sem excepcionar aquelas, das quais dizia não ter sido notificada. Aliás, a própria AT reconhece isso mesmo no artigo 27.º da Resposta, pelo que não faz qualquer sentido vir, a posteriori, manifestar-se contra uma pretensa ampliação do pedido que, em verdade, não existe.
Consequentemente, o Tribunal admite a reformulação do pedido pela Requerente, consentindo na mesma como resultante de um mero lapso de escrita.
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DO REENVIO PREJUDICIAL
A AT veio requerer o reenvio prejudicial quando apresentou as suas alegações.
Nos termos do Artigo 267.º (ex-artigo 234.º TCE) do Tratado Sobre
O Funcionamento Da União Europeia (TFUE)
“O Tribunal de Justiça da União Europeia é competente para decidir, a título prejudicial:
a) Sobre a interpretação dos Tratados;
b) Sobre a validade e a interpretação dos atos adotados pelas instituições, órgãos ou organismos da União.
Sempre que uma questão desta natureza seja suscitada perante qualquer órgão jurisdicional de um dos Estados-Membros, esse órgão pode, se considerar que uma decisão sobre essa questão é necessária ao julgamento da causa, pedir ao Tribunal que sobre ela se pronuncie.
(…)”
No caso em apreço, entende este Tribunal que a questão a decidir está já suficientemente discutida e esclarecida na Jurisprudência do TJUE, que se mostra consistente e unânime, bem como na jurisprudência nacional e na Doutrina antes citadas, pelo que, não se suscitando qualquer dúvida sobre a interpretação das normas a aplicar ao caso, não se justifica o reenvio prejudicial.
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PEDIDO DE REEMBOLSO DAS QUANTIAS PAGAS E JUROS INDEMNIZATÓRIOS
A Requerente pede a devolução da quantia indevidamente paga, no caso os € 218.150,42 que pagou em 15-06-2023 (facto KK), acrescida de juros indemnizatórios.
Na sequência da anulação das liquidações, a Requerente tem direito a ser reembolsada das quantias indevidamente pagas, o que é consequência da anulação.
O regime substantivo do direito a juros indemnizatórios é regulado no artigo 43.º da LGT, que estabelece, no que aqui interessa, o seguinte:
“1 – São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.
(...)
4. A taxa dos juros indemnizatórios é igual à taxa dos juros compensatórios.
(...)”
As liquidações impugnadas foram emitidas pela Autoridade Tributária e Aduaneira por sua iniciativa, sem que a Requerente tivesse influenciado a sua prática, pelo que os erros que as afectam são exclusivamente imputáveis a Autoridade Tributária e Aduaneira.
Assim, a Requerente tem direito a juros indemnizatórios, nos termos dos artigos 43.º, n.º 1, e 35.º, n.º 10, e 100.º da LGT, 61.º, n.º 5, do CPPT, 559.º do Código Civil e Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril, à taxa legal supletiva, contados desde 15-06-2023, sobre a quantia de € 218.150,42, até à data do processamento da respectiva nota de crédito.
VII. Decisão
De harmonia com o supra exposto, acordam neste Tribunal Arbitral em:
a) Julgar improcedente a excepção de incompetência do Tribunal;
b) Julgar procedente a excepção da caducidade quanto à impugnação da liquidação de IVA n.º 2023..., relativa ao período 2019/01, cujo valor apurado é zero;
c) Julgar procedente o pedido de anulação do acto de indeferimento da reclamação graciosa e das liquidações de IVA n.º 2023..., relativa ao período 2019/06, n.º 2023..., relativa ao período 2019/09, e n.º 2023..., relativa ao período 2019/12, as liquidações adicionais de juros n.º 2023..., relativa ao período 2019/06, n.º 2023..., relativa ao período 2019/09 e n.º 2023..., relativa ao período 2019/12, e as demonstrações de acerto de contas n.º 2023..., relativa ao período 2019/01, n.º 2023... e n.º 2023..., relativas ao período 2019/06, n.º 2023... e n.º 2023 ..., relativas ao período 2019/09, e n.º 2023 ... e n.º 2023..., relativas ao período 2019/12;
d) Julgar procedente o pedido de reembolso e condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira a pagar à Requerente a quantia de € 218.150,42, acrescida de juros indemnizatórios, nos termos acima referidos;
e) Condenar a Requerida nas custas do processo arbitral, uma vez que não há decaimento da Requerente quanto à utilidade económica do pedido, pela razão expressa na al. b) supra.
VIII. Valor do Processo
Fixa-se o valor do processo em € 334.857,45 (trezentos e trinta e quatro mil, oitocentos e cinquenta e sete euros e quarenta e cinco cêntimos), valor indicado pela Requerente e que a Requerida não contestou, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT, e dos artigos 296.º e 306.º, n.º 2, do CPC, ex vi artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”).
IX. Custas
Custas no montante de € 5.814,00, a cargo da Requerida, de acordo com a Tabela I anexa ao RCPAT e com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT, 4.º, n.º 5, do RCPAT e 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.
Notifique-se.
Lisboa, 06 de Maio de 2025
Os Árbitros,
(Juiz José Poças Falcão)
(Rui M. Marrana)
(A. Sérgio de Matos - relator)
[1] Sistema Electrónico de citações e de notificações
[2] Neste sentido, podem ver-se também os acórdãos do STA de 13-10-2021, processo n.º 0129/18.9BEAVR; de 02-02-2022, processo n.º 0848/14.9BEAVR; de 13-09-2023, processo n.º 0294/12.9BEPRT 0326/18; de 06-03-2024, processo n.º 0946/18.0BELRA.
[3] No mesmo sentido podem ver-se as Decisões Arbitrais proferidas no P. 644/2025, de 21-01-2025, no P. 877/2025, de 17-03-2025 e no P. 948/2025, de 07-04-2025. Bem assim, as sentenças do Tribunal Administrativo e Fiscal (“TAF”) de Sintra, no P. n.º 376/23.1BESNT, de 31.12.2024, e no P. n.º 749/23.0BESNT, de 15.01.2025.