SUMÁRIO:
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Atento os princípios da diligência, da celeridade, da cooperação e boa-fé processual, a não revogação dos atos impugnados no prazo previsto no n.º 1 do artigo 13.º do RJAT não preclude o direito da AT de proceder à sua revogação em momento posterior, desde que tal revogação seja notificada ao Tribunal em momento prévio à prolação da decisão arbitral, e a revogação tenha por base a apreciação de mérito da pretensão deduzida no ppa, e, consequentemente, permita obter uma decisão definitiva sobre o ato tributário impugnado.
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A revogação do ato tributário de liquidação por vício formal do procedimento de inspeção tributária após a constituição do Tribunal Arbitral, não constitui causa de extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, nos termos do artigo 277.º, alínea e), do Código de Processo Civil (CPC), subsidiariamente aplicável ao processo arbitral tributário, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT, sempre que o ato de revogação não satisfaça integralmente a pretensão da Requerente e que se preveja que os seus efeitos irão subsistir após correção do vício formal.
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Nos termos do disposto nos artigos 19.º e 20.º do Código do IVA, o direito à dedução do IVA abrange o imposto suportado com a prática de atos preparatórios de uma atividade económica.
DECISÃO ARBITRAL
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RELATÓRIO
I.1 Enquadramento
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A sociedade A..., LD.ª, com o NIPC..., com sede social em Rua ..., ... ...-... ..., (doravante designada por Requerente), apresentou junto do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD), pedido de constituição de Tribunal Arbitral singular, ao abrigo das disposições conjugadas nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 3.º, n.º 1, 5.º, n.º 2, alínea a), e 10.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), sendo Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), (de ora em diante designada por Requerida).
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No pedido de pronúncia arbitral (ppa), apresentado em 03.04.2024, a Requerente peticiona que seja anulado o ato de indeferimento tácito da Reclamação Graciosa interposta contra a liquidação adicional de Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA), relativo ao período de tributação do 1.º trimestre do ano de 2022, no valor de 25.581,17.
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A Requerente pede, ainda, que seja anulada a liquidação adicional de IVA relativa ao 1.º trimestre do ano de 2022, emitida com fundamento no relatório de inspeção tributária de 19 de abril de 2023, cuja ação de inspeção foi realizada ao abrigo da Ordem de Serviço n.º OI2023... .
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Em 05.04.2024, o pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e foi de imediato notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira. A Requerente optou por não designar árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no n.º 1, do artigo 6.º do RJAT, em 27.05.2024 foi designado, pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa, o ora signatário como Árbitro para integrar o tribunal arbitral singular, o qual, no prazo legal, comunicou a aceitação do encargo.
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Tendo sido notificadas desta designação, as Partes não manifestaram vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD e, em conformidade com o preceituado na alínea c), do n.º 1, do artigo 11.º, do RJAT, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, em 18.06.2024, verificou-se a constituição do Tribunal arbitral.
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Em 21.06.2024 foi proferido despacho arbitral para a Exm.ª Diretora-geral da Autoridade Tributária e Aduaneira apresentar resposta no prazo legal, nos termos e para os efeitos previstos nas normas do artigo 17.º do RJAT.
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Em 10.07.2024, a Requerida veio juntar aos autos a sua resposta, com a qual juntou dois documentos, um dos quais consubstancia a Informação n.º 13/SDG, de 05.07.2024, e outro relativo ao processo n.º ...2024..., no âmbito do qual foi em 05.07.2024 proferido o despacho do Subdiretor-geral do IVA que revogou o ato impugnado traduzido na liquidação adicional de IVA n.º 2023..., relativa ao 1.º trimestre do ano de 2022, no valor de €25.581,17.
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Em face da revogação do ato de liquidação de IVA impugnado, a Requerida requereu que fosse julgada verificada a inutilidade superveniente da lide, com todas as consequências legais, nomeadamente, por lhe ter dado azo, a condenação da Requerida nas custas do processo arbitral.
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Em 22.08.2024, a Requerente apresentou um Requerimento em que elencou os vícios suscitados na sua petição de pedido de constituição do tribunal arbitral e, em síntese, concluiu que
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A informação n.º 13/SDG, da Administração Tributária, permite inverter a ordem de conhecimento dos vícios invocados pela Requerente, relegando os vícios de fundo e privilegiando os vícios de forma;
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A Administração Tributária confessa como inequívoco que o procedimento inspetivo padece de vício de forma por incompetência da entidade que o realizou, e por essa via declara prejudicada a análise do invocado direito à dedução do IVA suportado em atos preparatórios;
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A Administração Tributária verdadeiramente o que pretende é repetir o procedimento inspetivo e renovar o ato impugnado, expurgado do vício de forma que conduziu à revogação, mas com idêntica configuração jurídica, como de resto a informação n.º 13/SDG deixa adivinhar;
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O despacho de revogação é manifestamente extemporâneo à face do respetivo prazo de 30 dias, comum à jurisdição arbitral e estadual, que para o efeito a lei consagrou nos artigos 13.º do RJAT e 112.º do CPPT;
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Ao deixar precludir o prazo legal previsto no n.º 1 do artigo 13.º do RJAT, a Autoridade Tributária e Aduaneira perdeu a oportunidade de redefinir a situação jurídica-tributária cuja legalidade a impugnante acionou em juízo.
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A redefinição extemporânea emergente do despacho da AT não satisfaz minimamente a pretensão da impugnante, posto que, em substância, constitui um prenúncio de repetição do procedimento inspetivo e de renovação do ato impugnado, com prejuízo grave para a segurança jurídica e a estabilidade e eficácia da tutela dos seus direitos;
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Não deve ser considerada a inutilidade superveniente da lide, devendo o Tribunal arbitral apreciar as pretensões da Requerente, porquanto, esgotado o prazo de 30 dias previsto no RJAT, o despacho de revogação de 05.07.2024 é ilegal;
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Deve o processo avançar com a sua regular tramitação para apreciação prioritária dos vícios de fundo, sem prejuízo de, na eventualidade da improcedência destes, conhecer o tribunal do vício de forma já confessado pela administração.
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Em requerimento de 10.09.2024 e de 12.11.2024, a Requerente veio, respetivamente, solicitar a junção aos presentes autos de arbitragem tributária dos Acórdãos arbitrais proferidos nos processos de arbitragem tributária n.ºs 933/20232-T e 489/2024-T.
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Em 12.09.2024, a Requerida veio apresentar um requerimento, o qual aqui se dá por integralmente reproduzido, que apelidou de resposta ao abrigo do artigo 17.º do RJAT, mas que atenta a sua extemporaneidade não pode ser considerado como resposta à petição, mas sim como resposta ao Requerimento apresentado pela Requerida em 22.08.2024.
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Considerando que a Requerente não aceitou a revogação do ato impugnado efetuada através do despacho de 05.07.2024 do Subdiretor-geral da área do IVA, em despacho arbitral proferido em 16 de dezembro de 2024, no qual, para além de equacionar a posição das Partes sobre a revogação do ato impugnado, ao abrigo dos princípios da autonomia do Tribunal Arbitral na condução do processo, da celeridade, da simplificação e informalidade processuais (artigos 19.º, n.º 2, e 29.º, n.º 2, do RJAT), e porque o que está causa é apenas matéria de direito, porquanto, os factos relevantes para a decisão já se encontram provados, em ordem a fazer a correta aplicação do direito, o Tribunal decidiu que:
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dispensar a realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT;
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dispensar a produção da prova não documental requerida pela Requerente;
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determinar que, não obstante todas as peças processuais já produzidas pelas partes, o processo prosseguisse com alegações escritas facultativas, a apresentar no prazo de 15 dias, cumulativo, por aplicação conjunta do previsto no artigo 91.º, n.º 5, do CPTA, e no artigo 120.º do CPPT, aplicáveis por força do disposto no artigo 29.º do RJAT.
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Em 16.01.2025, a Requerente veio apresentar as suas alegações finais, os quais se dão aqui por integralmente reproduzidas, sendo que a Requerente veio, no essencial, reafirmar as razões expressas na petição inicial e nos requerimentos apresentados subsequentemente.
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Considerando que, por razões de prioridade de gestão processual, o Tribunal não teve oportunidade de proferir a decisão arbitral no prazo decorrente do despacho de 16 de dezembro de 2024, o Tribunal teve de, ao abrigo do n.º 2 do artigo 21.º do RJAT, prorrogar o prazo para prolação da decisão arbitral através de despachos de 17.02.2025 e de 15.04.2025.
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A Requerida optou por não apresentar alegações finais.
I.2 Da posição do Requerente
16. A Requerente pede a anulação do despacho de indeferimento tácito da reclamação graciosa apresentada, em 11.09.2023, para sindicar a legalidade do ato de liquidação adicional de IVA, referente ao 1.º trimestre do ano de 2022, no valor de € 25.581,17, emergente do procedimento de inspeção tributária realizado pela Direção de Finanças de Lisboa, ao abrigo da Ordem de Serviço n.º OI2023..., e cujo relatório final de inspeção foi notificado em 19 de abril de 2023, e, mediatamente, a Requerente pede a anulação do referido ato tributário de liquidação adicional de IVA – cfr. Doc. n.º 1-B anexo ao ppa.
17. A Requerente alega que no relatório do procedimento de inspeção tributária é considerado que a sua atividade se desdobrava, e se esgotava, na prestação de serviços médicos e no arrendamento de bens imobiliários, sem que ambas atividades beneficiam de isenção incompleta de IVA e que, consequentemente, a inspeção tributária corrigiu a totalidade do IVA deduzido pela Requerente, incluindo o que por ela foi suportado em operações passivas de 2021 e do 1.º trimestre de 2022.
18. Todavia, a inspeção tributária ao desconsiderar o exercício do direito à dedução do IVA atuou de forma errada, na medida em que o IVA respeita à prática de operações ativas tributáveis que conferem o direito à dedução.
19. Desde 2011 que a Requerente é uma sociedade cujo objeto social é “A prestação de Serviços Médicos e seus afins, assim como a cedência de espaços a várias entidades” – cfr. Doc. n.º 3 anexo ao ppa.
20. O objetivo último dos sócios da Requerente era o de edificar e equipar uma clínica de hemodiálise no concelho do ..., para o que adquiriram, logo em 2011, um lote de terreno com uma área de implantação de 700m2 e de construção de 1.200m2 na freguesia de ... - cf. docs. n.º 4A a 4D anexos ao ppa.
21. Os rendimentos obtidos pela Requerente, desde outubro de 2014 a março de 2021, resultaram essencialmente da atividade exercida por seus sócios, na prática de atos médicos em ambulatório, pelo que, em face da declaração de início de atividade, em sede de IVA, a sociedade foi enquadrada no artigo 9.º do CIVA.
22. Com vista à edificação da clínica de hemodiálise, o procedimento de licenciamento prosseguiu os seus termos e, depois de vicissitudes várias – parte das quais registou para memória futura – cfr. Doc. n.º 6 anexo ao ppa – foi, por despacho de 22 de dezembro de 2021, finalmente aprovado o projeto pela Câmara Municipal do ... - cfr. docs n.ºs 7 e 8 anexos ao ppa.
23. Em 20.04.2022, a Requerente apresentou, com efeitos a 1 de outubro de 2021, com o seu enquadramento no regime de IVA normal, tendo retirado do quadro de “atividades efetivamente exercidas” toda a atividade declarada relativa à prática de atos médicos, e indicado que passaria a desenvolver operações económicas que conferem o direito à dedução do IVA - cfr. doc. n.º 9 anexo ao ppa.
24. Em março de 2021, a Requerente cessou, total e definitivamente a prática efetiva de operações isentas de IVA (atividade médica) a que até então se dedicava (cfr. mapas anuais de faturação extraídos do sistema e-fatura, referentes aos períodos de 2018 a 2023 – cfr. docs n.ºs 11A a 11F anexos ao ppa.
25. O projeto de edificação da clínica de hemodiálise não se esgotará na edificação de “paredes nuas”, sem mais, mas que pelo contrário contemplará elementos específicos que absorvem valor acrescentado significativo, implicando a aquisição de diversos equipamentos.
26. Com base na experiência acumulada dos seus sócios, do capital disponível e do ativo imobiliário em carteira, a impugnante está em condições de oferecer um serviço integrado, que possibilita, em condições de muito maior eficiência económica, o exercício exclusivamente focado na atividade clínica por quem com a impugnante vier a contratar.
27. Para além da mera cedência do gozo do imóvel, os serviços associados que a impugnante assim fornecerá serão preponderantes tendo em conta as especificidades inerentes à atividade em causa.
28. Da atividade efetivamente exercida, da sua modificação e evolução, a Requerente deu conta aos serviços de inspeção tributária no contexto de um segundo procedimento inspetivo entretanto iniciado em 21.03.2023 a coberto da Ordem de Serviço n.º OI2023..., relativo ao 4.º trimestre de 2022 (cfr. doc. n.º 20 anexo ao ppa.
29. O contrato de sociedade foi alterado para que a firma e o seu objeto social passassem a refletir a realidade atual, tendo deste passado a constar a “Gestão e Administração de imóveis para serviços, centros de negócios e complexos de escritórios. Atividades combinadas de apoio aos edifícios” sob o CAE principal 68321 e secundário 81100 - cfr. docs n.ºs 3 e 21 anexos ao ppa.
30. Em síntese factual conclusiva, importa sublinhar que
a) Em março de 2021, tendo sido confrontada com a proposta de deferimento do projeto de construção constante do parecer de 1 de março de 2021, a Requerente deixou definitivamente de prestar quaisquer serviços médicos (isentos de IVA);
b) Em outubro de 2021 a sua situação cadastral (registo de contribuinte) deixou de incluir a atividade médica isenta de imposto, e passou a refletir o enquadramento relativo ao regime normal do IVA, com direito à dedução;
c) A Requerente cessou a atividade médica isenta e passou a concentrar-se apenas no seu projeto imobiliário – edificação de uma clínica de hemodiálise;
d) A intenção objetiva radica na locação de espaço especialmente equipado para a prática de clínica na especialidade médica de nefrologia, que será outrossim acompanhada de múltiplas prestações de serviços estritamente ligados à locação propriamente dita, formando uma única operação económica indivisível e remunerada através de uma única contrapartida global.
31. Nesta conformidade, a desconsideração do exercício do direito à dedução do IVA e o correlativo ato de liquidação adicional de IVA, no valor de € 25.581,17, relativo ao 1.º trimestre de 2022, são ilegais.
32. O que está em causa é o direito à dedução do IVA suportado pela impugnante com a construção de uma clínica de hemodiálise que está a edificar no lote de terreno de que é proprietária na freguesia de ..., ... .
33. O referido ato de liquidação adicional de IVA suscita problemas de harmonização com o quadro jurídico da União Europeia, na medida em que contraria a Diretiva IVA e jurisprudência já proferida pelo Tribunal de Justiça da União Europeia, bem como toda a doutrina do Fisco que a esse propósito há muito se estabilizou, porquanto, o direito a deduzir o imposto suportado nos bens e serviços instrumentais à atividade do sujeito passivo constitui a peça fundamental do sistema do IVA.
34. O sistema comum do IVA garante, assim, a perfeita neutralidade quanto à carga fiscal de todas as atividades económicas, e resulta do próprio proémio do artigo 168.º da Diretiva IVA, que “Quando os bens e os serviços sejam utilizados para os fins das suas operações tributadas, o sujeito passivo tem direito, no Estado-Membro em que efetua essas operações, a deduzir (…)”.
35. Esta disposição foi transposta para o direito interno, que confere o direito pleno a deduzir o imposto “pago pela aquisição de bens e serviços a outros sujeitos passivos” bastando que tais aquisições contribuam “para a realização (…) de transmissões de bens e prestações de serviços sujeitas a imposto e dele não isentas” - cfr. os artigos 19.º, n.º 1, a) e 20.º, n.º 1, a) do CIVA.
36. Em relação à disciplina dos atos preparatórios em sede de IVA têm os tribunais sistematicamente entendido que as despesas de investimento realizadas para as necessidades e objetivos de uma empresa são, por si, consideradas atividades económicas que dão lugar ao direito a dedução imediata do IVA.
37. É pacífico que, quando o sujeito passivo realize operações passivas (inputs) que possam ser consideradas despesas que estão conexionadas com a atividade e que vão originar operações tributáveis projetadas, os atos preparatórios deverão ser enquadrados na sua atividade económica e como tal o IVA suportado pode ser deduzido a título imediato – cfr. Acórdão do TCAS de 30.09.2021, processo 5716/12.6BCLSB.
38. Há que concluir que o IVA não foi indevidamente deduzido, já que se enquadra plenamente na previsão do disposto nos artigos 19.º, n.º 1, a) e 20.º, n.º 1, a) do Código do IVA, pelo que a liquidação adicional relativa ao 1.º trimestre do ano de 2022 não se poderá manter na ordem jurídica.
39. Qualquer outra interpretação das referidas disposições oneraria a Requerente (operador económico) com o encargo do IVA incorrido no âmbito da sua atividade económica, sem lhe dar a possibilidade de o deduzir, operando uma distinção arbitrária entre despesas de investimento efetuadas antes e durante a exploração efetiva do seu bem imóvel, tratando assim a Requerente como consumidor – cfr. Acórdão do TCAS de 29.04.2021, processo 372/10.9BELLE.
40. É consensual na doutrina e na jurisprudência, e mesmo no seio da AT, que a atividade de locação de bens imóveis beneficia necessariamente da isenção de IVA a que alude o 29 do artigo 9.º do CIVA, se o serviço for apenas a locação.
41. No entanto, sempre que a locação for uma entre várias prestações de serviços tributadas, indiferenciadas no preço, a operação é necessariamente tributável (sem possibilidade de isenção).
42. Os bens e os serviços que a Requerente está a adquirir serão assim claramente empregues na realização de atividades económicas futuras que se distinguem da mera locação passiva de um bem imóvel visada pelo âmbito da isenção prevista no 29 do artigo 9.º do CIVA.
43. Isto é, a operação económica futura que a ora impugnante levará a cabo configura uma prestação de serviços única, composta e economicamente indissociável, subsumível no conceito residual de prestação de serviços previsto no n.º 1 do artigo 4.º, tributada nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 1.º e alínea c) do n.º 1 do artigo 18.º e não isenta ao abrigo do artigo 9.º todos do CIVA.
44. Na informação n.º 16664, sancionada por despacho de 24.01.2020 da DSIVA, concluiu a AT, estribando-se para o efeito na jurisprudência do TJUE, nomeadamente a que dimana do processo Stockholm Lindöpark (C-150/99), que não pode beneficiar de isenção uma atividade que implique “não apenas a colocação à disposição passiva um bem imóvel mas também um certo número de atividades comerciais, como a supervisão, a gestão e a manutenção constante por parte do proprietário, bem como a colocação à disposição de outras instalações”.
45. Acresce que, na informação n.º 13774, sancionada por despacho de 14.06.2018 da DSIVA, concluiu a AT, por sua vez, que “Nas operações em que a locação dos imóveis coexiste com outras prestações de serviços que implicam uma exploração ativa desses bens imóveis por parte do locador, não pode ser aplicada a isenção” - cfr. no doc. n.º 23 anexo ao ppa.
46. Importa, ainda, sublinhar que na informação n.º 21611, sancionada por despacho de 27.12.2022 da DSIVA, a AT salientou que o seu entendimento “segue no mesmo sentido que a Jurisprudência Comunitária, a qual tem considerado que toda e qualquer prestação de serviços que esteja para além deste âmbito não deverá beneficiar da isenção. Assim, se no contrato estiverem contempladas outras prestações de serviços indissociáveis da utilização dos espaços pelos utilizadores, nomeadamente, serviços de limpeza e outras prestações de serviços de apoio (lavandaria, telefone, internet, entre outros), a operação deve ser excluída da isenção prevista na alínea 29 do artigo 9.º do CIVA e consequentemente sujeita a IVA” - cfr. doc. n.º 27 anexo ao ppa.
47. A liquidação adicional de IVA n.º 2023..., no valor de € 25.581,17, relativa ao 1.º trimestre de 2023, que constitui o objeto mediato destes autos, é manifestamente ilegal, devendo por isso ser anulada, por violação do disposto nos artigos 19.º, n.º 1, a) e 20.º, n.º 1, a) do CIVA.
48. A referida liquidação adicional de IVA é, ainda, ilegal, por erro nos pressupostos de facto e de direito, porquanto, parte do princípio de que a Requerente se dedicaria à atividade médica isenta, o que não se verifica, visto que tal atividade foi definitivamente abandonada pela Requerente em março de 2022, conforme resulta da sua faturação, da sua declaração de alterações submetida 20.04.2021, bem como da deliberação dos seus sócios.
49. A requerente considera que a referida liquidação adicional de IVA enferma do vício de violação de lei, por incompatibilidade com os artigos 68.º, n.º 4, alínea b), e 68.º-A, n.º 1 da LGT.
50. A Requerente salienta, ainda, que se verifica uma violação da norma do n.º 2 do artigo 15.º do RCPITA, porquanto, a Requerente foi notificada, através do ofício assinado pelo respetivo Chefe de Divisão em 09.02.2023, do início do procedimento de inspeção tributária, cujo âmbito e extensão, conforme credenciado pela Ordem de Serviço n.º OI2023..., se exauria no IVA do 3.º trimestre de 2022 - cfr. doc. n.º 2-B anexo ao ppa – sem que o mesmo tenha sido alvo de alteração, pelo que a Requerente não podia ter sido confrontada com quaisquer atos tributários que excedessem a extensão do procedimento, como é o caso da liquidação adicional aqui em causa, relativa a operações do 1º trimestre de 2022.
51. A lei impunha, de modo claro e unívoco, que a Requerente tivesse sido previamente notificada através de despacho fundamentado, da alteração da extensão do procedimento inspetivo proferido pela entidade que o ordenou.
52. A Requerente considera que os Serviços de Inspeção Tributária se precipitaram ao corrigir operações relativas a períodos de tributação não credenciados pela Ordem de Serviço n.º OI2023..., sem cuidarem de obter a autorização fundamentada de alargamento da extensão do procedimento inspetivo, e sem, por maioria de razão, que dessa autorização fundamentada notificassem previamente a ora Requerente.
53. E conclui que a alteração da extensão da inspeção tributária só podia ser efetuada com observância do disposto no artigo 15.º do RCPITA, ou seja, «mediante despacho fundamentado da entidade que o tiver ordenado, devendo ser notificado à entidade inspecionada» – cfr. Acórdão do CAAD de 05/06/2019, processo n.º 611/2018-T, Rel. Jorge Lopes de Sousa – pelo que, não tendo sido, não pode deixar de se concluir que foi ilegal a ação inspetiva, o que constitui vício com repercussão no ato de liquidação praticado com base no procedimento de inspeção tributária.
54. Acresce que, em 10.02.2023, data do início do procedimento de inspeção tributária, a Requerente tinha, como hoje ainda tem, a sua sede na freguesia de..., concelho do ... - cfr. doc. n.º 3, o certificado de matrícula e a inscrição n.º 3, por apresentação de 02.09.2022.
55. E, assim sendo, em face das normas legais que estabelecem a competência territorial para a realização do procedimento de inspeção tributária e a prática dos atos de inspeção, importa concluir que a Direção de Finanças de Lisboa era incompetente para levar a cabo a ação inspetiva cujas conclusões dão suporte à liquidação adicional de IVA impugnada, posto que a competência para o efeito pertencia à Direção de Finanças de Setúbal.
56. Em consequência, a presente ação arbitral deve ser julgada inteiramente provada e procedente, e anulada a liquidação adicional de IVA, relativa ao 1.º trimestre de 2022 e emitida com base no relatório de inspeção de 19 de abril de 2023, emitido sob a Ordem de Serviço n.º OI2023... da Direção de Finanças de Lisboa.
I.3 Da posição da Requerida
57.Na sequência da notificação que lhe foi efetuada, nos termos e para os efeitos do artigo 17.º do RJAT, em 10.07.2024, a Requerida veio comunicar ao Tribunal que, por despacho de 05.07.2024 do Subdiretor-geral da área do IVA, foi revogado o ato tributário de liquidação adicional de IVA, no valor de € 25.581,17, relativo ao 1.º trimestre do ano de 2022.
58.Para fundamentar o ato de revogação, a Requerida remeteu ao Tribunal a Informação n.º 13/SGD, elaborada no âmbito do processo n.º ...2024..., na qual é feita uma descrição sumária das razões que motivaram a revogação do ato de liquidação adicional de IVA impugnado, as quais, ainda que em síntese, importa conhecer:
a) Estão em causa as correções efetuadas em procedimento inspetivo levado a efeito pelos Serviços de Inspeção Tributária da Direção de Finanças de Lisboa, no relatório de inspeção tributária (RIT) de 19.04.2023, ao abrigo da Ordem de Serviço n.º OI2023..., de âmbito parcial de IVA ao exercício de 2022 (extensível a 2021 por força de reporte de crédito de imposto);
b) No referido RIT estão identificadas as correções de natureza meramente aritmética efetuadas em sede de IVA ao exercício de 2022, períodos 2022-03T, 2022-06T e 2022-09T, no valor total de € 122.486,24, referentes a dedução indevida de imposto nos termos dos artigos 19.º e 20.º ambos do Código do IVA;
c) O procedimento de inspeção, de âmbito interno, foi motivado pelo facto de terem sido detetadas irregularidades no decurso do procedimento inspetivo credenciado pelo Despacho n.º DI2022... referente à análise do pedido de reembolso na declaração periódica de IVA de 2022-09T, no montante de € 26.881,99;
d) As correções efetuadas no montante de € 122.486,24 originaram o indeferimento do reembolso de IVA. Foi preenchido o Documento de Correção (DC) - Anexo IVA para os períodos de 2022-03T (€ 25 581,17), 2022-06T (€ 36 892,87) e 2022-09T (€ 60 012,20);
e) Aquando da elaboração da informação n.º 13/SGD, de 05.07.2024, foi levado em consideração a circunstância da Requerente ter apresentado outros pedidos de pronúncia arbitral para sindicar a legalidade dos atos de liquidação adicional de IVA, relativos aos períodos de tributação de 2.º, 3.º e 4.º trimestre do ano de 2022, a que se referem os processos Arbitragem Tributária n.ºs 933/2023-T e 489/2024-T, tendo sido, em relação aos mesmos, elaborada, respetivamente a Informação n.º 3/SGD, de 11.03.2024 e a Informação n.º 14/SDG, de 05.07.2024;
f) A Requerida acolheu o argumento invocado pela Requerente quanto à incompetência territorial da Direção de Finanças de Lisboa para a realização do procedimento de inspeção tributária, porquanto, em 10.02.2023, data em que, à luz da norma do n.º 5 do artigo 10.º do CPPT, é fixado o serviço competente para a realização do procedimento, a Requerente já tinha mudado a sua sede da área de Lisboa para a área de Setúbal, [cfr., doc. n.º 3 anexo ao ppa, certificado de matrícula e a inscrição n.º 3, por apresentação de 02-09-2022]. E que, nos termos artigo 32.º n.º 3 do CIVA, os factos sujeitos a registo comercial, como é o caso da alteração da sede social, dispensam a entrega de declaração de alterações enquanto condição de eficácia;
g) Foi considerado que a matéria relativa à competência territorial configurava uma questão prévia, a qual importa apreciar prioritariamente;
i) Foi confirmado que a Requerente tinha efetuado a alteração da sede no IRN, em 02.09.2022, da área de Lisboa (... ...-... ..., concelho de Cascais) para a área de Setúbal (Rua..., Lote..., ..., ...-... ..., concelho do ...). Porém essa morada não tinha passado, como deveria, para a base de dados da AT;
j) Foi considerado que, ainda que a sede tenha sido alterada nessa data no IRN, a sua alteração na base dados da AT só tinha ocorrido em 26.09.2023, por iniciativa da Requerente que, para o efeito, tinha apresentado no Serviço de Finanças uma declaração de alterações de atividade, da qual estava dispensada de entrega nos termos dos artigos 32.º n.º 3 do CIVA e 118.º n.º 7 do CIRC;
l) Foi ponderada a circunstância de, na sequência do Despacho SDG de 11.03.2024 proferido sobre a Informação n.º 3/SDG, relativa ao Proc.º CAAD n.º 933/2023-T, a alteração da referida sede da área de Lisboa para a área de Setúbal, na base dados da AT, retroagiu à data de 02.09.2022.
m) E que, sendo certo que que o procedimento de inspeção tributária em causa, no presente Proc.º CAAD n.º 488/2024-T, realizado ao abrigo da Ordem de Serviço n.º OI2023..., de âmbito parcial de IVA do exercício de 2022 (extensível a 2021 por força de reporte de crédito de imposto), foi notificado ao sujeito passivo em 10.02.2023, pelos Serviços de Inspeção Tributária da Direção de Finanças de Lisboa sem a devida autorização dos Serviços de Inspeção Tributária da Direção de Finanças de Setúbal (entidade competente), de acordo as normas do artigo 16.º do RCPITA e n.º 5 do artigo 10.º do CPPT, torna-se inequívoco que o procedimento inspetivo padece de vício de forma por incompetência da entidade que o realizou;
n) Quanto às correções de IVA com fundamento em que a atividade exercida não confere direito a dedução, a Requerente alega erro nos pressupostos de facto e de direito, posto que os Serviços de Inspeção Tributária da Direção de Finanças de Lisboa partem do princípio de que se dedicaria à atividade médica isenta nos termos do artigo 9.º n.ºs 1) e 2) do CIVA, a qual abandonou definitivamente em março de 2021, conforme resulta da sua faturação, da sua declaração de alterações então submetida, bem como da deliberação dos seus sócios, sendo o imposto dedutível resultante de atos preparatórios da sua futura atividade de arrendamento com diversos serviços incluídos, não abrangida pela isenção prevista no artigo 9.º n.º 29 do CIVA, o que justifica, desde logo, que a partir de 01.10.2021 tenha passado ao enquadramento no regime normal do IVA com direito à dedução nos termos dos artigos 19.º e 20.º do CIVA;
o) Quanto a este último aspeto foi considerado que, na base de dados da AT, no que respeita ao cadastro da Requerente, a partir de 01.10.2021, decorrente de uma declaração de alterações de atividade apresentada, a Requerente passou a enquadrar-se no regime normal do IVA com direito à dedução parcial do imposto suportado (e não com direito à dedução total como alega), pela prática de operações que conferem direito à dedução e operações que não conferem esse direito, usando o método de afetação real, nos termos artigo 23.º do CIVA.
p) No âmbito da elaboração da Informação n.º 13/SGD, de 05.07.2024, foi considerado que, face à incompetência do procedimento inspetivo dos Serviços de Inspeção Tributária da Direção de Finanças de Lisboa, ficava prejudicada, no âmbito do presente processo arbitral, a análise do invocado direito à dedução do IVA suportado em atos preparatórios da atividade que confere esse direito.
q) Tendo sido considerado que, uma vez que alteração da sede da área de Lisboa para a área de Setúbal, na base dados da AT, retroagiu à data de 02.09.2022 e que o procedimento inspetivo realizado ao abrigo da Ordem de Serviço n.º OI2023..., de âmbito parcial de IVA, padece de vício de forma por incompetência da entidade que o realizou, conforme apreciação da exceção suscitada, no âmbito da Informação n.º 13/SGD, de 05.07.2024, e sancionado por despacho da mesma data do Subdiretor-geral da área do IVA, foi proposto o seguinte:
i) Anulação do procedimento inspetivo e dos atos subsequentes, culminando no presente processo arbitral com a anulação da liquidação adicional de IVA do período de 2022-03T no valor de € 25.581,17;
ii) Que, caso da referida liquidação tivesse resultado valor a pagar, não haveria lugar a juros indemnizatórios, com os mesmos fundamentos da jurisprudência emanada do Acórdão do STA de 21.06.2023, Processo n.º 11/23.8BALSB - Pleno da 2.ª Secção, que uniformiza a jurisprudência nos seguintes termos: «sedimentar o entendimento de que, quando os atos tributários são anulados por vícios de forma (incompetência do autor do ato, vício procedimental, falta de fundamentação, ou equivalente), não são devidos juros indemnizatórios, nos termos e para os efeitos do art.º 43.º n.º 1 da LGT».
iii) A anulação do procedimento inspetivo e dos atos subsequentes, por vício de forma de incompetência da entidade que o realizou (Direção de Finanças de Lisboa), origina a possibilidade e o dever de realização de um novo procedimento inspetivo relativo aos mesmos períodos e imposto pelos serviços competentes da Direção de Finanças de Setúbal.
r) O ato de liquidação adicional de IVA, no valor de € 25.581,17, relativo ao 1.º trimestre do ano de 2022, foi revogado com fundamento em incompetência territorial da DF de Lisboa para a realização do procedimento de inspeção tributária, realizado ao abrigo da Ordem de Serviço n.º OI2023..., e deu lugar ao relatório de inspeção tributária de 19.04.2023.
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SANEAMENTO
59. O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído e é materialmente competente, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro.
60. O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, uma vez que foi apresentado no prazo previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º do RJAT.
61. As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e encontram-se legalmente representadas (cfr. art.º 4.º e n.º 2 do art.º 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011 e art.º 1.º da Portaria n.º 112/2011, de 22 de março).
62. O processo não enferma de nulidades. Assim, passa-se à apreciação e decisão do mérito da causa.
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FUNDAMENTAÇÃO
III.1. MATÉRIA DE FACTO
III.1.1. Factos provados
63. Em relação à matéria de facto, o Tribunal não tem de se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas Partes, cabendo-lhe, nos termos do n.º 2 do artigo 123.º do CPPT e do n.º 3 do artigo 607.º do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis por força do artigo 29.º do RJAT, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar os factos considerados provados e os não provados. O tribunal considera provados e relevantes para a decisão arbitral os factos seguintes:
63.1 A liquidação adicional de IVA n.º 2023..., no valor de € 25.581,17, impugnada no âmbito do presente ppa tem por fundamento as conclusões do relatório do procedimento de inspeção tributária de 19 de abril de 2023, emitido sob a Ordem de Serviço n.º OI2023... da Direção de Finanças de Lisboa – cfr. Doc. n.º 2-A anexo ao ppa;
63.2 A Requerente é uma sociedade por quotas constituída em 15 de junho de 2011, com um capital social de € 1.000.000,00 que se mantém até à data e tem como objeto social “A prestação de Serviços Médicos e seus afins, assim como a cedência de espaços a várias entidades” – cfr. Docs. n.ºs 2-A e 3 anexos ao ppa;
63.3 O objetivo último dos sócios da Requerente é o de edificar e equipar uma clínica de hemodiálise no Concelho do ..., visando a respetiva cedência onerosa a quem melhor se achasse habilitado e vocacionado a explorá-la, para o que adquiriram, logo em 2011, um lote de terreno com uma área de implantação de 700m2 e de construção de 1.200m2 na freguesia de ..., concelho do ... - (cfr. Docs. n.ºs 4-A a 4-D anexos ao ppa;
63.4 No dia 2 de dezembro de 2014, a Requerente apresentou uma declaração de reinício de atividade, com efeitos a 1 de outubro de 2014, com o enquadramento de isenção em sede de IVA com base no artigo 9.º do respetivo Código - cfr. Doc. n.º 5 anexo ao ppa;
63.5 Desde 01.04.2021 que a Requerente não presta quaisquer serviços médicos, tendo, por esse motivo, alterado o respetivo objeto social para “Gestão e Administração de imóveis para serviços, centros de negócios e complexos de escritórios. Atividades combinadas de apoio aos edifícios”, com o CAE principal 68321 e o CAE secundário 81100 – cfr. Doc. n.º 21 anexo ao ppa.
63.6 O procedimento de licenciamento da construção da clínica foi aprovado por despacho de 22 de dezembro de 2021 (Câmara Municipal do ...) – cfr. Doc. n.º 8 anexo ao ppa;
63.7 No dia 20 de abril de 2022, a Requerente apresentou uma declaração de alterações com efeitos a 1 de outubro de 2021, com o seu enquadramento no regime de IVA normal, indicando que passava a desenvolver operações tributáveis que conferem o direito à dedução do IVA - Doc. n.º 9 anexo ao ppa;
63.8 Em 12 de julho de 2022, foi emitido o respetivo alvará de licença de construção, com um prazo de validade de 24 meses, com início a 12.07.2022 e fim a 15.07.2024 - cfr. Doc. n.º 12 anexo ao ppa;
63.9 Em 22 de julho de 2022, a Requerente procedeu à consignação da obra à empresa de construção adjudicatária, a B..., Ld.ª, tendo dado conhecimento do início dos trabalhos de construção à Câmara Municipal do ... - cfr. Docs. n.ºs 13 e 14 anexos ao ppa;
63.10 A empreitada de construção da clínica de hemodiálise da Requerente foi adjudicada à empresa B..., Ld.ª, por contrato celebrado em 5 de maio de 2022 - cfr. Doc. n.º 15 anexo ao ppa;
63.11 A empreitada obedece ao projeto de arquitetura, o qual descreve como serão distribuídos os espaços na clínica que a Requerente está a edificar - cfr. Doc. n.º 16 anexo ao ppa;
63.12 A Requerente propõe-se edificar e equipar uma clínica de prevenção e tratamento de doenças renais, sendo os espaços já preparados e adaptados à prossecução da atividade em questão - cfr. Docs.n.ºs 17 a 19-A anexos ao ppa;
63.13 O ato de liquidação adicional de IVA, n.º 2023 ..., no valor de € 25.581,17, relativo 1.º trimestre de 2022, foi notificado à Requerente através da notificação n.º..., de 27 de abril de 2023 – cfr. Doc. n.º 1-A anexo ao ppa;
63.14 Em 11.09.2023, a Requerente apresentou no Serviço de Finanças de Cascais ... uma Reclamação Graciosa para sindicar a legalidade do ato de liquidação adicional de IVA, identificado no ponto anterior – cfr. Doc. 1-B anexo ao ppa;
63.15 – O pedido de pronúncia arbitral foi apresentado em 03.04.2024.
III.1.2. Motivação e Factos não provados
64. Os factos provados baseiam-se nos documentos apresentados pelas Partes e juntos ao processo arbitral, não existindo, com relevo para a decisão, factos que devam considerar-se como não provados.
III.2. MATÉRIA DE DIREITO
65. A matéria controvertida no presente pedido de pronúncia arbitral é relativa ao exercício do direito à dedução do IVA em atos preparatórios no âmbito da execução de atos de desenvolvimento necessários à prática da sua futura atividade económica, cuja desconsideração motivou a realização do procedimento de inspeção tributária que justificou a realização do ato de liquidação adicional n.º 2023..., no valor de € 25.581,17, relativo ao período de tributação do 1.º trimestre do ano de 2022.
66. Previamente, importa considerar que, após a notificação efetuada nos termos e para os efeitos previstos no artigo 17.º do RJAT, a Requerida veio apresentar Resposta referindo que, por despacho datado de 05.07.2024, a Autoridade Tributária e Aduaneira, por despacho do Subdiretor-geral da área do IVA, revogou o ato impugnado no âmbito do presente pedido de pronúncia arbitral, por entender que o procedimento de inspeção tributária enfermava de vício de forma, por violação da norma de atribuição de competência territorial – art.ºs 16.º do RCPITA e do n.º 5 do artigo 10.º do CPPT.
67. A Requerida pugnou pela extinção da instância por inutilidade superveniente da lide, com todas as consequências legais, uma vez que, no seu entender, a pretensão da Requerente foi cabalmente satisfeita por via da revogação do ato.
68. Em sede de exercício do direito ao contraditório, a Requerente referiu que o despacho de revogação é extemporâneo e ilegal, em virtude de ter sido praticado depois do prazo de 30 dias que, para o efeito, a lei consagrou nos artigos 13.º do RJAT e 112.º do CPPT.
69. A Requerente entende, outrossim, que a revogação do ato tributário com base no invocado vício de forma não satisfaz de forma cabal a sua pretensão, uma vez que “constitui um prenúncio de repetição do procedimento inspetivo e de renovação do ato impugnado, com prejuízo grave para a segurança jurídica e a estabilidade e eficácia da tutela dos seus direitos”.
70. Neste contexto, há que considerar os normativos dos n.ºs 1 a 3 do artigo 13.º do RJAT, que estabelecem o seguinte:
“1. Nos pedidos de pronúncia arbitral que tenham por objeto a apreciação da legalidade dos atos tributários previstos no artigo 2.º, o dirigente máximo do serviço da administração tributária pode, no prazo de 30 dias a contar do conhecimento do pedido de constituição do tribunal arbitral, proceder à revogação, ratificação, reforma ou conversão do ato tributário cuja ilegalidade foi suscitada, praticando, quando necessário, ato tributário substitutivo, devendo notificar o presidente do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) da sua decisão, iniciando-se então a contagem do prazo referido na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º.
2. Quando o acto tributário objecto do pedido de pronúncia arbitral seja, nos termos do número anterior, total ou parcialmente, alterado ou substituído por outro, o dirigente máximo do serviço da administração tributária procede à notificação do sujeito passivo para, no prazo de 10 dias, se pronunciar, prosseguindo o procedimento relativamente a esse último acto se o sujeito passivo nada disser ou declarar que mantém o seu interesse.
3. Findo o prazo previsto no n.º 1, a administração tributária fica impossibilitada de praticar novo acto tributário relativamente ao mesmo sujeito passivo ou obrigado tributário, imposto e período de tributação, a não ser com fundamento em factos novos. (…)”.
71. Importa sublinhar que a norma do n.º 3 do artigo 13 do RJAT estabelece que, após o decurso do prazo de 30 dias a contar do conhecimento do pedido de constituição do tribunal arbitral, a Autoridade Tributária e Aduaneira fica impedida de praticar novo ato tributário relativamente ao mesmo sujeito passivo.
72. Com esta norma, foi intenção do legislador impedir que, após o decurso daquele prazo, a Autoridade Tributária e Aduaneira procedesse à prática de novo ato tributário com conteúdo positivo suscetível de afetar a situação tributária do contribuinte, não se nos afigurando razoável que tivesse sido intenção do legislador impedir a prática de um ato tributário favorável ao sujeito passivo da relação jurídica tributária, como é o caso do ato de revogação que expurga da ordem jurídica com efeitos ex tunc ato tributário prejudicial aos interesses do contribuinte, o qual, inclusive, tenha sido alvo de ação impugnatória por parte do interessado.
73. In casu, importa considerar que na revogação do ato tributário impugnado, a Requerida não teve em consideração todos os fundamentos invocados pelo sujeito passivo, de modo a satisfazer in totum a pretensão da Requerente, cuja substância se prende com o exercício do direito à dedução do IVA, em função dos atos tributáveis praticados e do seu enquadrado em sede de IVA.
74. Com efeito na Informação n.º 13/SDG, de 05.07.204, que fundamentou o despacho de revogação do ato tributário impugnado proferido pelo Subdiretor-geral da área do IVA é, em concreto, referido no seu ponto 2.3, alínea c) que a “A anulação do procedimento inspetivo e dos atos subsequentes, por vício de forma de incompetência da entidade que o realizou (Direção de Finanças de Lisboa), origina a possibilidade e o dever de realização de um novo procedimento inspetivo relativo aos mesmos períodos e imposto pelos serviços competentes da Direção de Finanças de Setúbal”.
75. Considerando que o procedimento de inspeção tributária realizado ao abrigo da Ordem de Serviço n.º OI2023..., quanto ao lugar da prática dos atos de inspeção, foi de natureza interna, na verdade, em face da norma do n.º 1 do artigo 36.º do RCPITA, será possível à AT realizar outro procedimento de inspeção tributária com o mesmo objeto, uma vez que o princípio da irrepetibilidade do procedimento de inspeção tributária, previsto no n.º 4 do artigo 63.º da LGT, não ficou exaurido, sendo que o mesmo não se aplica à ação de inspeção interna.
76. Importa considerar que a Requerida, através do seu Requerimento apresentado em 12.09.2024, veio invocar que “o efeito revogatório conhece natureza “ex nunc”, para o futuro, e, por assim ter sido, a partir do momento em que a Requerida revogou os atos em questão, deixou pura e simplesmente de existir objecto do processo tributário” e que “a Requerente deixou de ter interesse em agir, dado que, com o desaparecimento dos actos de liquidação da ordem jurídica, deixou de ter interesse na obtenção de tutela jurídica para o seu direito, deixando de ter necessidade de obter desse tribunal uma decisão arbitral de anulação dos atos contestados”.
77. E, em consequência, a Requerida considera que o Tribunal deve julgar procedentes as exceções dilatórias evocadas e absolver a Requerida da instância.
78. Desde já, o Tribunal não considera procedente exceção invocada pela Requerida fundamentada em inutilidade superveniente do pedido de pronúncia arbitral, configurada como a perda do interesse da Requerente em prosseguir o processo.
79. A perda de interesse da Requerente em agir somente se teria verificado, caso a revogação do ato impugnado não tivesse tido por fundamento apenas o vício de forma – incompetência da DF de Lisboa para a realização do procedimento de inspeção tributária – por violação das regras de atribuição de competência territorial, mas, ao invés do ocorrido, a revogação do ato tributário se tivesse fundado na apreciação de mérito de todos os vícios invocados pela Requerente no ppa.
80.Com efeito, apesar do ato de revogação do ato tributário ter sido praticado já fora do referido prazo de 30 dias previsto no artigo 13.º do RJAT, a verdade é que esta extemporaneidade do ato de revogação poderia ser relevada caso a Requerente tivesse obtido integral satisfação da sua pretensão. Não havendo, nessa hipótese, qualquer motivo que justificasse a prossecução do litígio, com todas as consequências daí inerentes.
81. A revogação do ato tributário por vício de forma não permite à Requerente obter os efeitos jurídicos pretendidos com o PPA. Como a Requerente refere, a ausência de pronúncia quanto ao mérito, isto é, quanto ao direito à dedução do IVA suportado com a construção da clínica de hemodialise, coloca a Requerente numa situação de fragilidade face à possibilidade de a Autoridade Tributária vir, no futuro, a realizar um novo procedimento inspetivo, relativo ao mesmo período e imposto, desta feita promovido pela entidade com competência territorial para o efeito, obrigando a Requerente a lançar mão de novo pedido arbitral/impugnação para contestar a legalidade das liquidações que viessem a ser emitidas.
82. É fundamental considerar que em face do pedido de pronúncia arbitral apresentado em 03.04.2024, o Requerente tem direito a obter uma decisão que determine com caracter de definitividade a sua situação tributária em relação ao ato tributário de liquidação adicional de IVA, relativo ao 1.º trimestre do ano de 2022, e não apenas uma decisão que crie incerteza e insegurança sobre a eventual prática de um novo ato tributário de liquidação com conteúdo igual ou idêntico ao ato impugnado.
83.Nesta medida, torna-se necessário proceder à análise do mérito da pretensão colocada à apreciação do Tribunal arbitral, ou seja, a matéria relativa ao direito à dedução do IVA suportado pela Requerente com a construção de uma clínica de hemodiálise, a qual, à data da realização do procedimento inspetivo, ainda se encontrava em fase de construção.
84. Nesta temática tivemos em consideração a decisão arbitral proferida no processo n.º 933/2023-TT, dando-se a mesma aqui por reproduzida em relação aos pontos 40 a 86, com as necessárias adaptações, e a decisão arbitral proferida no processo n.º 489/2024-T, a qual se cita na parte relativa ao “(…) direito à dedução do IVA[1]
Assente que o edifício em causa será dado em exploração a um terceiro e que tal cessão envolverá a prestação de um conjunto alargado de serviços pelo cedente, direta ou indiretamente, pelos quais será remunerado, temos por pacífico que os montantes a serem pagos pelo cessionário estarão sujeitos à incidência do IVA.
Este é entendimento, pacífico, quer da administração[2] quer da jurisprudência[3].
Em termos simples, diremos é usual distinguir-se entre a cessão temporária do uso de uma realidade predial “paredes nuas”, o que consubstancia um arrendamento, sendo as rendas isentas de IVA (n.º 29 do artigo 9.º do CIVA] e a cedência temporária do uso de uma realidade predial que envolva, enquanto parte integrante do contrato, a prestação de um conjunto de serviços pelo cedente, caso em que a remuneração por este auferida não estará isenta de IVA (será subsumível no n.º 1 do artigo 4.º do CIVA, tributada nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 1.º e alínea c) do n.º 1 do artigo 18.º e não isenta ao abrigo do artigo 9.º do mesmo Código).
Havendo lugar a sujeição a IVA da remuneração obtida pelo cedente com a disponibilização do imóvel este terá direito a deduzir o IVA suportado na aquisição dos respetivos inputs. Como muitas vezes é referido, o direito à dedução é a “trave-mestra” do sistema IVA, consagrada nos artigos 19.º e 20.º do CIVA.
O que aqui temos de particular é o facto de a Requerente ainda não se encontrar a exercer a atividade tributável no momento em que adquiriu os inputs em causa, o que, aliás, motivou o pedido de reembolso.
Ora, é também entendimento pacífico que o conceito de atividade económica abrange todas as ações que sejam realizadas por uma pessoa, podendo consistir numa pluralidade de atos consecutivos, vinculados entre si pela sua realização pelo mesmo sujeito e por se destinarem ao mesmo fim de organização e de exploração. A atividade económica inclui não só os atos que tenham lugar durante o exercício de uma atividade económica, mas também os atos realizados antes do exercício efetivo desta, tais como mandar construir um imóvel, adquirir maquinaria e mobiliário, contratar trabalhadores.
Esta é a posição adotada pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), a qual é vinculativa para os tribunais nacionais, incluindo este tribunal arbitral.
Fazemos nossas as palavras do acórdão do TCAS no processo 372/10 “Refira-se que, para efeitos de IVA, o exercício de uma atividade económica é interpretado em sentido amplo, sendo que a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), a esse respeito, tem incluído em tal conceito os chamados atos preparatórios de uma atividade económica.
Assim, no seu Acórdão de 14.02.1985, Rompelman/Minister van Financiën, C-268/83, EU:C:1985:74, o TJUE considerou ser dedutível o IVA suportado em atos preparatórios do exercício de uma atividade, mesmo que ela ainda não se tivesse iniciado”.
Poderíamos citar outros arestos dos nossos tribunais superiores, todos no mesmo sentido. Tal seria, a nosso ver, tarefa inútil porquanto, em última análise, não está em causa a jurisprudência (a ”opinião”) dos nossos tribunais mas sim o cumprimento do seu dever de obediência ao entendimento propugnado pelo TJUE o qual, como resulta dos acórdãos que deixámos referidos (e de outros) é perfeitamente claro.
Em resumo, estando em causa a aquisição de inputs diretamente conexos com o exercício de uma atividade sujeita e não isenta de IVA, o IVA liquidado em tais aquisições é dedutível, não obstante a atividade económica em causa, não se tendo ainda iniciado, estar ainda, no momento de aquisição dos inputs em causa, num estádio preparatório.
Procedendo a causa de pedir invocada a título principal, resulta inútil a apreciação das demais”.
85. Nesta conformidade, o Tribunal considera procedente o presente pedido de pronúncia arbitral.
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DECISÃO
Nestes termos, o Tribunal Arbitral decide:
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Declarar totalmente procedente o pedido de pronúncia arbitral;
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Anular o ato de indeferimento tácito da reclamação graciosa apresentada em 11.09.2023 no SF de Cascais ...;
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Anular o ato de liquidação adicional de IVA n.º 2023..., no valor de € 25.581,17, relativo ao 1.º trimestre do ano de 2022;
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Condenar a Requerida no pagamento das custas processuais.
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VALOR DO PROCESSO
De harmonia com o disposto nos artigos 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT), artigo 97.º-A, n.º 1, al. a) do CPPT e artigo 306.º do Código de Processo Civil (CPC), fixa-se o valor do processo em € 25.581,17 (Vinte e cinco mil quinhentos e oitenta e um euros e dezassete cêntimos) valor que corresponde ao ato de liquidação de IVA impugnado.
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CUSTAS
O valor das custas é fixado em € 1.530.00 (mil quinhentos e trinta euros) ao abrigo do artigo 22.º, n.º 4 do RJAT e da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT), a cargo da Requerida, de acordo com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2 do RJAT e 4.º, n.º 5 do RCPAT.
Notifique-se.
Lisboa, 24 de abril de 2025
O Árbitro
Jesuíno Alcântara Martins
[1] A mesma situação, ainda que relativamente a outro período do imposto, foi objeto do acórdão arbitral que pôs termo ao processo n.º 933/2023-T. Não só coincidimos na decisão como usámos, com a devida vénia, alguma da sua fundamentação.
[2] P. ex., na informação n.º 16664, sancionada por despacho de 24.01.2020 da DSIVA na informação n.º 13774, sancionada por despacho de 14.06.2018 da DSIVA, na informação n.º 15050, sancionada por despacho de 02.09.2019 da DSIVA, e na informação n.º 15479, sancionada por despacho de 06.06.2019 da DSIVA, todas citadas pela Requerente.
[3] Acórdão do TCA Sul de 12.01.2017, proc.º 09227/15, também referido pela Requerente.