SUMÁRIO:
1. O momento juridicamente relevante para a determinação da competência territorial para o procedimento de inspecção tributária afere-se pela data em que o sujeito passivo se considera notificado da carta-aviso, prevista no artigo 49.º, nrs. 1 e 2, do RCPITA.
2. Sendo a extensão do procedimento de inspecção tributária o ano de 2021 e na ausência de decisão de alteração daquela extensão, os actos de inspecção que abrangeram outros períodos de tributação foram praticados num verdadeiro vazio procedimental, o que invalida, por anulabilidade, o procedimento e contamina necessariamente a validade da liquidação impugnada.
DECISÃO ARBITRAL
Os árbitros, Jorge Lopes de Sousa (Presidente), Filipa Barros e Martins Alfaro, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formarem o presente Tribunal Arbitral Colectivo, constituído em 28-01-2025, acordam no seguinte:
A - RELATÓRIO:
A.1 - Requerente da constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, ambos do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAMT): A..., S.A., com o NIF ... e sede social na..., n.º ... e B, ...-... Lisboa.
A.2 - Requerida: Autoridade Tributária e Aduaneira.
A.3 - Objecto do pedido de pronúncia arbitral:
Acto de liquidação adicional de IVA, com o n.º ..., no valor de € 108.391,95, relativo ao ano de 2021.
A.4 - Pedido: A Requerente formulou o seguinte pedido:
Deve a impugnação judicial ser julgada procedente, por provada, e decretada a anulação do acto de liquidação impugnada, ou, subsidiariamente, ser julgada parcialmente procedente, com todas as consequências legais.
A.5 - Fundamentação do pedido:
Em 08-04-2024, data do início da inspecção, a Requerente tinha a sua sede social na ..., nº ..., ..., ...-... Lisboa, pelo que a conclusão só pode ser a de que o procedimento de inspecção tributária foi levado a cabo por uma entidade - a Direcção de Finanças de Coimbra - material e territorialmente incompetente,
Uma vez que as regras da competência territorial procedimental são regras de cumprimento obrigatório, sendo que o seu desrespeito inquina de ilegalidade o acto praticado, precisamente por o mesmo ter sido praticado por órgão sem jurisdição na área territorial, conduzindo a que o mesmo fique sujeito a ser anulado na totalidade com tal fundamento.
Dado que as fracções B, C e D foram arrendadas em 1.8.2017 e a fracção A em 10.7.2019, a correcção do IVA que resultou na liquidação impugnada teria de ser feita nos exercícios de 2017 e 2019, e não no exercício de 2021, sendo por tal facto a liquidação parcialmente ilegal.
A.6 - Resposta da Requerida, Autoridade Tributária e Aduaneira:
No que toca à incompetência do órgão que realizou a inspecção, verifica-se que antes de se iniciar o procedimento inspectivo externo ao período de 2021 foi remetida uma notificação prévia, definida como carta-aviso, prevista no artigo 49.º do RCPITA, a qual foi enviada, por via electrónica no dia 29-02-2024, considerando-se o sujeito passivo notificado em 05-03-2024.
Nesta data a sede da entidade inspeccionada situava-se na ... (Hotel ...), ..., .,...-... ..., distrito de Coimbra, sendo que, com a entrada em vigor da Lei n.º 71/2018, de 31 de Dezembro, ficou definido que a carta-aviso fixa a competência territorial da unidade orgânica responsável pelo procedimento - n.º 4 ao artigo 49.º do RCPITA.
No que respeita à liquidação propriamente dita, para apreciar se se verificam todos os pressupostos do direito à dedução, a Administração Tributária não está limitada pelo prazo de caducidade do direito à liquidação, podendo efectuar correcções às declarações dos contribuintes relativas ao período em relação ao qual foi exercido o direito à dedução, mesmo que anteriores àquele prazo de caducidade - artigo 45.º, n.º 3 da LGT -, o que significa que, em bom rigor, o prazo para emitir liquidações relativas a regularizações indevidamente omitidas é o de, in casu, 20 anos.
Face ao que, nos termos do artigo 45.º, n.º 3 da LGT, apesar de ter analisado o exercício de 2021, a Requerida não estava condicionada ao referido ano para emitir liquidações de regularizações de IVA, o qual não havia sido regularizado no período devido.
Termina, concluindo pela improcedência total do pedido arbitral e pela absolvição do pedido.
B - SANEAMENTO:
O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira nos termos regulamentares.
Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAMT, o Conselho Deontológico do CAAD designou como árbitros do Tribunal Arbitral os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
As partes foram oportuna e devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAMT e dos artigos 6.° e 7.º, do Código Deontológico do CAAD.
Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAMT, o tribunal arbitral colectivo foi regularmente constituído em 28-01-2025.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas.
O Tribunal decidiu dispensar a realização da reunião a que alude o artigo 18.º, do RJAMT e a produção de alegações, sem que as partes se tivessem oposto.
O Tribunal Arbitral é materialmente competente, atenta a conformação do objecto do processo e de acordo com o preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, ambos do RJAMT.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas.
O pedido de constituição do Tribunal Arbitral é tempestivo e o processo não enferma de nulidades, nem existem excepções de que cumpra conhecer.
C - MATÉRIA DE FACTO:
C.1 - Factos provados: Os factos pertinentes para a decisão da causa que são tidos como assentes são os seguintes:
A Requerente foi objecto de procedimento de inspecção tributária externa, a coberto da ordem de serviço n.º OI2023..., com data de 28-02-2024 - Processo administrativo.
O âmbito do procedimento foi geral e a extensão do procedimento abrangeu o exercício de 2021 - Processo administrativo.
O procedimento foi determinado e instruído pela Direcção de Finanças de Coimbra - Processo administrativo.
A carta-aviso, prevista nos artigos 59.º, n.º 3, alínea l), da LGT, e 49.º, do RCPITA, foi entregue na caixa de correio electrónico da Requerente (Via CTT) em 29-02-2024 - Processo administrativo -, considerando-se deste modo a Requerente notificada em 15-03-2024, nos termos do artigo 39.º, n.º 10, do CPPT, ex vi o artigo 43.º, n.º 5, do RCPITA.
Em 15-03-2024, a sede social da Requerente situava-se na ...(Hotel A...), ..., ...-... ..., área da Direcção de Finanças de Coimbra - Resposta da AT, facto não impugnado.
A Requerente alterou a sua sede social para a ..., n.º..., ...-... Lisboa, mediante apresentação realizada no Registo Comercial, no dia 22-03-2024 - certidão permanente do Registo Comercial, com o código de acesso ... .
O procedimento teve início em 08-04-2024, com a assinatura da ordem de serviço por B..., contabilista certificada - Processo administrativo.
O fim dos actos de inspecção ocorreu com o envio da nota de diligência e notificação do relatório final do procedimento de inspecção tributária, em 24-10-2024 - Processo administrativo.
A fundamentação das liquidações objecto do pedido de pronúncia arbitral resulta do relatório final do procedimento de inspecção tributária e é a seguinte:
Conclui-se assim, que desde junho de 2014, a A..., utilizou o imóvel, na parte afeta ao Hotel (fração H) em atividades sujeitas que conferiam direito a dedução (prestação de serviços de exploração hoteleira, atividade esta, sujeita e não isenta nos termos do art.° 4° do CIVA). Nesta fração existe ainda uma loja, dentro do Hotel, que se encontra arrendada desde novembro de 2021 • à sociedade C... Unipessoal, Lda. (NIPC...), tendo a A... emitido três faturas, uma relativa a dois meses de caução e outras duas correspondentes aos meses de arrendamento do ano de 2021.
As três faturas foram emitidas com isenção de IVA ao abrigo do artigo 9°, n° 29 do CIVA.
No que se refere às restantes frações, constatámos que em 2021, cinco das sete frações tinham vigente contratos de arrendamento como de seguida se especifica:
As prestações de serviços decorrentes do arrendamento das frações acima evidenciadas, foram faturadas aos locatários (anexo 2) e foram enquadradas na isenção do artigo 9.°, n.° 29 do CIVA, Velo que todas as faturas relativas a arrendamento foram emitidas pela A..., sem liquidação de IVA, invocando aquele normativo.
A isenção na locação de bens imóveis, bem como as demais consignadas no artigo 9.° CIVA são designadas de simples ou incompletas, uma vez que a al. a) do n.°1 do art.° 20.°, do referido código exclui tais operações do direito à dedução, assim, traduzem-se, para os sujeitos passivos que praticam tais operações no facto de não haver liquidação de imposto nas operações que efetuam, mas em contrapartida, não permitem a dedução do imposto suportado nas aquisições de bens e serviços destinados à sua realização, ficando deste modo, obrigados, para efeitos do direito à dedução, ao cumprimento do disposto no artigo 23.° do CIVA.
Do que antecede resulta que estamos perante um sujeito passivo misto, que pratica, em simultâneo. operações isentas sem direito à dedução e operações tributadas que conferem esse direito, encontrando se, assim, obrigado à disciplina do art.° 23° do CIVA. Constatamos, contudo, que à data dos factos relatados o enquadramento do sujeito passivo, para efeitos de IVA, era o regime normal com dedução integral de IVA.
As fracções autónomas designadas pelas letras B, C e D foram arrendadas em 01-08-2017 e a fracção A foi arrendada em 10-07-2019 - Processo administrativo.
Conforme decorre do relatório final do procedimento de inspecção tributária:
No que se refere às áreas comerciais, constatou-se que, em 2021, cinco das sete fracções autónomas tinham vigentes contratos de arrendamento e as prestações de serviços decorrentes foram facturadas aos locatários, com enquadramento na isenção do artigo 9.º, n.º 29 do CIVA.
A partir do momento em que a Requerente celebrou contratos de arrendamento relativos às fracções A, B, C, D e E, deixou de utilizar estes prédios em actividades que conferem direito à dedução, uma vez que os mesmos passaram a ser objecto de locações isentas nos termos do n.º 29 do artigo 9.º do CIVA - Facto admitido por ambas as partes.
Deste modo, atento o disposto nos n.ºs 5, 6 e 8 do art.º 24º do CIVA, deveria a Requerente ter procedido à regularização do imposto que onerou a aquisição e construção do imóvel, em função da permilagem, que tais frações representam no total do empreendimento.
A Requerente foi notificada do acto de liquidação adicional de IVA, com o n.º..., no valor de € 108.391,95, com data de 14-11-2024 e relativo ao período «2112M» - Doc. 01, junto à p.i.
A liquidação impugnada resultou do seguinte:[1]
Na sua Resposta, a Requerida reconheceu que «[…] de facto, a regularização deveria ter sido efectuada nos períodos indicados, de uma só vez na declaração do último período do ano, conforme dispõe o n.º 8 do art.º 24º do CIVA e pelo n.º de anos restante para completar o período de regularização, ou seja, haveria que regularizar IVA referente a 17 anos para as frações B, C e D em 2017 e a 15 anos para a fração A em 2019».
A Requerente apresentou o pedido de constituição do Tribunal Arbitral em 15-11-2024 - Sistema de Gestão Processual do CAAD.
C.2 - Factos dados como não provados;
Inexistem outros factos relevantes para a decisão que não devam considerar-se provados.
C.3 - Motivação quanto à matéria de facto:
Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram seleccionados em função da sua relevância jurídica, face às soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2, do CPPT, 596.º, n.º 1 e 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi o artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAMT.
Com efeito, o Tribunal não está obrigado a pronunciar-se sobre toda a matéria alegada, tendo antes o dever de seleccionar apenas a que interessa para a decisão, tomando em consideração a causa (ou causas) de pedir que fundamentam o pedido formulado pelo autor (cfr. artigos 596.º, n.º 1 e 607.º, n.ºs 2 a 4, do Código do Processo Civil) e consignar se a considera provada ou não provada (cf. ainda o artigo 123.º, n.º 2, do Código do Processo e Procedimento Tributário, ex vi o artigo 29º, do RJAMT).
Segundo o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal baseia a sua decisão, em relação à prova produzida, na sua convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com a sua experiência de vida e de conhecimento das pessoas - artigo 607.º, n.º 5 do CPC.
Somente quando a força probatória de certos meios se encontra pré-estabelecida na lei (v.g. força probatória plena dos documentos autênticos - artigo 371.º, do CPC), é que não prevalece, na apreciação da prova produzida, o princípio da livre apreciação.
Por outro lado, nos termos do artigo 16.º, alínea e), do RJAMT, vigora no processo arbitral tributário o princípio da livre apreciação dos factos, de acordo com as regras da experiência e a livre convicção dos árbitros.
A matéria de facto dada como provada tem génese no processo administrativo e nos documentos juntos pela Requerente e pela Requerida, nenhuns dele impugnados e os quais, analisados de forma crítica, constituíram a base da convicção do Tribunal, quanto à realidade dos factos descrita supra.
A convicção do Tribunal fundou-se igualmente nos factos articulados pelas partes; o acervo probatório carreado para os autos foi objecto de uma análise crítica e de adequada ponderação, à luz das regras da racionalidade, da lógica e da experiência comum e segundo juízos de normalidade e de razoabilidade.
D - O DIREITO:
São as seguintes as questões a decidir:
1.ª - Verifica-se a ilegalidade total da liquidação objecto do pedido de pronúncia arbitral, com fundamento na incompetência territorial da Direcção de Finanças de Coimbra, para o procedimento de inspecção tributária que procedeu às correcções que originaram o imposto aqui em causa?
2.ª - Verifica-se a ilegalidade parcial da liquidação objecto do pedido de pronúncia arbitral, com fundamento em as correcções relativas a imposto que havia de ser regularizado pelo sujeito passivo em 2017 e 2019, terem sido realizadas no âmbito de um procedimento de inspecção tributária relativo ao ano de 2021?
Vejamos:
D.1 - 1.ª questão a decidir: Verifica-se a ilegalidade total da liquidação objecto do pedido de pronúncia arbitral, com fundamento na incompetência territorial da Direcção de Finanças de Coimbra, para o procedimento de inspecção tributária que procedeu às correcções que originaram o imposto aqui em causa?
A Requerente invoca a ilegalidade da liquidação, com fundamento em que, tendo a sua sede social localizada em Lisboa, à data do início dos actos de inspecção - 08-04-2024 -, a Direcção de Finanças de Coimbra seria territorialmente incompetente para o procedimento de inspecção tributária, visto o órgão territorialmente competente ser a Direcção de Finanças de Lisboa.
O RCPITA, no seu artigo 16.º, estabelece o seguinte:
1 - São competentes para o procedimento de inspeção tributária, nos termos da lei, os seguintes serviços da Autoridade Tributária e Aduaneira:
[…]
c) As unidades orgânicas desconcentradas, relativamente aos sujeitos passivos e demais obrigados tributários com domicílio ou sede fiscal na sua área territorial.
Por sua vez, o artigo 49.º, do RCPITA, prevê que:
1 - O procedimento externo de inspecção deve ser notificado ao sujeito passivo ou obrigado tributário com uma antecedência mínima de cinco dias relativamente ao seu início.
2 - A notificação prevista no número anterior efetua-se por carta-aviso elaborada de acordo com o modelo aprovado pelo diretor-geral da Autoridade Tributária e Aduaneira […]
4 - A notificação prevista no n.º 1 fixa a competência territorial determinada nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 16.º
Descendo ao caso dos autos, resulta da matéria de facto provada que o procedimento teve início em 08-04-2024, com a assinatura da ordem de serviço por B..., contabilista certificada.
E que a Requerente alterara a sua sede social para a ..., n.º..., ...-... Lisboa, mediante apresentação realizada no Registo Comercial, no dia 22-03-2024.
Em face destes factos, entende a Requerente que a competência territorial do órgão inspectivo se fixou no momento da assinatura da ordem de serviço.
Porém, a carta-aviso, prevista nos artigos 59.º, n.º 3, alínea l), da LGT, e 49.º, do RCPITA, foi entregue na caixa de correio electrónica da Requerente (Via CTT) em 29-02-2024, considerando-se a Requerente notificada em 15-03-2024, nos termos do artigo 39.º, n.º 10, do CPPT, ex vi o artigo 43.º, n.º 5, do RCPITA.
Em 15-03-2024, a sede social da Requerente situava-se na ... (Hotel A...), ..., ...-... ..., área da Direcção de Finanças de Coimbra.
Nos termos do artigo 49.º, n.º 4, do RCPITA, «a notificação prevista no n.º 1 fixa a competência territorial determinada nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 16.º».
Significa isto que, diversamente do alegado pela Requerente, o momento juridicamente relevante para a determinação da competência territorial para o procedimento de inspecção tributária se afere pela data em que o sujeito passivo se considera notificado da carta-aviso prevista no artigo 49.º, nrs. 1 e 2, do RCPITA.
Tal como resulta dos factos dados por provados, a Requerente considera-se notificada da referida carta-aviso no dia 15-03-2024.
E, em tal data, a sede social da Requerente situava-se na área territorial da Direcção de Finanças de Coimbra.
Daí que, nos termos do artigo 49.º, n.º 4, do RCPITA, a competência territorial para o procedimento de inspecção tributária em causa pertence à Direcção de Finanças de Coimbra,
Pelo que improcede o vício alegado pela Requerente.
D.2 - 2.ª questão a decidir: Verifica-se a ilegalidade parcial da liquidação objecto do pedido de pronúncia arbitral, com fundamento em as correcções relativas a imposto que havia de ser regularizado pelo sujeito passivo em 2017 e 2019, terem sido realizadas no âmbito de um procedimento de inspecção tributária relativo ao ano de 2021?
Nenhuma das partes questiona que, em face da argumentação expendida na fundamentação do relatório final do procedimento de inspecção tributária, havia lugar à regularização do IVA deduzido, quanto às fracções autónomas correspondentes às letras A, B, C e D, do prédio com a identificação ...- U-....
Onde as partes dissentem é no que respeita à possibilidade de a AT poder proceder a correcções do IVA não regularizado pelo sujeito passivo em 2017 e 2019, no âmbito de um procedimento de inspecção tributária exclusivamente relativo a 2021.
Como vimos já, a Requerida sustentou que para apreciar se se verificam todos os pressupostos do direito à dedução, a Administração Tributária não está limitada pelo prazo de caducidade do direito à liquidação, podendo efectuar correcções às declarações dos contribuintes relativas ao período em relação ao qual foi exercido o direito à dedução, mesmo que anteriores àquele prazo de caducidade - artigo 45.º, n.º 3 da LGT -, o que, para a Requerida, significa que, em bom rigor, o prazo para emitir liquidações relativas a regularizações indevidamente omitidas é o de, in casu, 20 anos.
Isto é, a Requerida entendeu que a Requerente suscitou, nesta parte, uma questão atinente à caducidade do direito à liquidação, por parte do Estado.
Na verdade, a questão suscitada pela Requerente é diversa.
Com efeito, no pedido de pronúncia arbitral, a Requerente não põe em causa qualquer prazo de caducidade do direito à liquidação, antes questiona que, num procedimento de inspecção tributária relativo a um determinado período de tributação - no caso, 2021 -, a AT possa proceder a correcções e subsequentes liquidações de IVA relativas a outros períodos de tributação - no caso, 2017 e 2019.
Tal como resulta dos factos provados, o imposto a que se refere a liquidação impugnada nesta parte do pedido de pronúncia arbitral, refere-se às fracções autónomas correspondentes às letras A, B, C e D, do prédio com a identificação ...- U-..., sendo que as fracções autónomas designadas pelas letras B, C e D, foram arrendadas em 01-08-2017 e a fracção A, foi arrendada em 10-07-2019.
Ambas as partes reconhecem que, no caso, havia lugar à regularização de imposto, o qual deveria ter sido regularizado, respectivamente, no ano de 2017 e no ano de 2019.
Em face da falta de regularização atempada pela Requerente, a AT procedeu à correcção das regularizações daqueles dois anos no procedimento de inspecção tributária relativo ao ano de 2021.
Isto é, no âmbito de um procedimento cuja extensão se encontrava restringida a 2021, a AT procedeu a actos inspectivos relativos ao incumprimento de obrigações relativas aos anos de 2017 e 2019.
Ora, nos termos do artigo 14.º, n.º 3, do RPITA:
Quanto à extensão, o procedimento pode englobar um ou mais períodos de tributação.
E o artigo 15.º, n.º 1, do RCPITA, dispõe que:
Os fins, o âmbito e a extensão do procedimento de inspecção podem ser alterados durante a sua execução mediante despacho fundamentado da entidade que o tiver ordenado, devendo ser notificado à entidade inspeccionada.
No caso dos presentes autos, inexistiu qualquer alteração da extensão do procedimento, que acobertasse actos de inspecção relativos a outros anos que não o de 2021.
Isto é, quanto aos anos de 2017 e de 2019, os actos de inspecção foram praticados num verdadeiro vazio procedimental.
Com efeito, o artigo 15.º, n.º 1, do RCPITA, ao dispor expressamente que - no que ao caso interessa - a extensão do procedimento de inspecção pode ser alterada durante a sua execução mediante despacho fundamentado da entidade que o tiver ordenado, devendo ser notificado à entidade inspeccionada, deve ser interpretado no sentido de que a falta de tal acto de alteração torna ilegais os actos de inspecção praticados quanto aos períodos de tributação não abrangidos por aquele procedimento.
Não tendo sido alterada a extensão temporal do procedimento de inspecção tributária, nos termos dos artigos 14.º, n.º 3, e 15.º, ambos do RCPITA, no referido procedimento apenas poderiam ser efectuadas correcções relativas ao período de tributação indicado na ordem de serviço, isto é, 2021.
E que as correcções quanto às regularizações relativas a 2017 e 2019 respeitam a esses anos e não a outros, designadamente ao ano de 2021, decorre do artigo 24.º, nrs. 5, 6 e 8, do Código do IVA, que estipula o seguinte:
5 - Nos casos de transmissões de bens do activo imobilizado durante o período de regularização, esta é efectuada de uma só vez, pelo período ainda não decorrido, considerando-se que tais bens estão afectos a uma actividade totalmente tributada no ano em que se verifica a transmissão e nos restantes até ao esgotamento do prazo de regularização. Se, porém, a transmissão for isenta de imposto, nos termos dos n.os 30) ou 32) do artigo 9.º, considera-se que os bens estão afectos a uma actividade não tributada, devendo no primeiro caso efectuar-se a regularização respectiva.
6 - A regularização prevista no número anterior é também aplicável, considerando-se que os bens estão afectos a uma actividade não tributada, no caso de bens imóveis relativamente aos quais houve inicialmente lugar à dedução total ou parcial do imposto que onerou a respectiva construção, aquisição ou outras despesas de investimento com eles relacionadas, quando:
a) O sujeito passivo, devido a alteração da actividade exercida ou por imposição legal, passe a realizar exclusivamente operações isentas sem direito à dedução;
b) O sujeito passivo passe a realizar exclusivamente operações isentas sem direito à dedução, em virtude do disposto no n.º 3 do artigo 12.º ou nos n.os 3 e 5 do artigo 55.º; (Redação do Decreto-Lei n.º 35/2025, de 24 de março)
c) O imóvel passe a ser objecto de uma locação isenta nos termos do n.º 29) do artigo 9.º.
[…]
8 - As regularizações previstas nos números anteriores devem constar da declaração do último período do ano a que respeitam.
Daqui decorre que as regularizações relativas às fracções B, C e D, arrendadas em 2017, deveriam ter sido efectuadas nesse ano, de uma só vez, pelo período ainda não decorrido, considerando-se que os bens estão afectos a uma actividade não tributada no ano do arrendamento e nos restantes até ao esgotamento do prazo de regularização.
E a regularização devia ser feita na declaração periódica relativa ao último período de 2017 (artigo 24.º, n.º 8, do Código do IVA).
Da mesma forma, a regularização relativa à fracção A, arrendada em 2019 deveria ter sido efectuada de uma só vez nesse ano, na declaração periódica relativa ao último período de 2019.
Ou seja, as regularizações em causa não poderiam ser feitas em qualquer ano até ao limite de 20 anos, como parece resultar da resposta da Requerida, mas tinha, cada uma delas, um momento exacto para ser efectuada - a última declaração periódica do ano a que respeitam -, assim constituindo factos tributários dos períodos de 2017 e 2019.
Daí que, constituindo factos tributários de 2017 e 2019, não podiam ser objecto de inspecção tributária ao abrigo de um procedimento restringido a 2021.
Trata-se aqui de formalidade prevista na lei como formalidade essencial, na ausência de disposição legal em contrário, estruturante do procedimento de inspecção, que uma vez não observada será invalidante dos posteriores termos procedimentais, designadamente da liquidação posterior que nele se suportar.
Nos termos do disposto no artigo 163.º, do CPA, aplicável ex vi o artigo 4.º, do RCPITA, são anuláveis os actos administrativos praticados com ofensa dos princípios ou outras normas jurídicas aplicáveis, para cuja violação se não preveja outra sanção.
Ora, é precisamente a situação que aqui ocorre, pelo que a omissão do acto procedimental invalida, por anulabilidade, todo o procedimento, contaminando necessariamente a validade da liquidação impugnada.
E nem vale dizer-se que, não obstante, deveria aproveitar-se os actos de inspecção aqui em crise.
A este respeito, entende o Tribunal que não é possível concluir-se, face à prova produzida, com um grau de certeza razoável, que o resultado a atingir sempre seria o mesmo, caso a formalidade tivesse sido cumprida.
De resto, como resulta dos factos provados, a própria Requerida reconheceu que «[…] de facto, a regularização deveria ter sido efectuada nos períodos indicados, de uma só vez na declaração do último período do ano, conforme dispõe o n.º 8 do art.º 24º do CIVA e pelo n.º de anos restante para completar o período de regularização, ou seja, haveria que regularizar IVA referente a 17 anos para as frações B, C e D em 2017 e a 15 anos para a fração A em 2019» e não em 2021.
Deste modo, irá decidir-se, na parte dispositiva, pela anulação parcial da liquidação objecto do pedido de pronúncia arbitral.
E - DECISÃO:
De harmonia com o exposto, acordam neste Tribunal Arbitral em dar provimento ao pedido arbitral deduzido subsidiariamente e, consequentemente, determinar a anulação parcial do acto de liquidação de IVA aqui impugnado, quanto ao imposto apurado relativamente às fracções autónomas correspondentes às letras A, B, C e D, do prédio com a identificação ...- U-..., ou seja:
€ 9.705,96, quanto à fracção autónoma designada pela letra A;
€ 8.341,88, quanto à fracção autónoma designada pela letra B;
€ 10.388,00, quanto à fracção autónoma designada pela letra C e
€ 16.683,76, quanto à fracção autónoma designada pela letra D;
no total de € 45.111,60, mantendo-se na ordem jurídica o restante valor de imposto liquidado, € 63.272,36.
F - VALOR DA CAUSA:
A Requerente indicou como valor da causa o montante de € 108.391,95, correspondente à liquidação impugnada, objecto do pedido de pronúncia arbitral.
O valor indicado pela Requerente não foi impugnado e não considera o Tribunal existir fundamento para o alterar, pelo que se fixa à presente causa o valor de € 108.391,95.
G - CUSTAS:
Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAMT, e da Tabela I, anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o montante das custas em € 3.060,00, indo Requerente e Requerida condenadas nas custas do processo na proporção do decaimento, o qual se determina, em 58% para a Requerente e em 42% para a Requerida.
Notifique.
Lisboa, em 07-04-2025.
Os Árbitros,
Jorge Lopes de Sousa (Presidente)
Filipa Barros
(Martins Alfaro)
[1] A soma das diversas parcelas é de € 108.391,96. Contudo, o Tribunal considera esta discrepância não relevante.