Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 1208/2024-T
Data da decisão: 2025-04-02  IRS  
Valor do pedido: € 31.106,54
Tema: IRS; mais-valias; quinhão hereditário; alienação de imóvel.
Versão em PDF

SUMÁRIO:

I –Na análise contextual das transações em presença, a partir dos elementos constantes dos autos, os tribunais tributários devem privilegiar a substância económica sobre a forma jurídica, desde que isso seja permitido por uma interpretação teleológica e sistemática das disposições fiscais relevantes, metodologia inteiramente compatível com os princípios da legalidade tributária, da separação de poderes, do combate à elisão fiscal e da preservação da base tributável.

II – O negócio jurídico em presença não se reconduziu à alienação de um quinhão hereditário, enquanto universalidade de bens, direitos ou encargos indeterminados e indiferenciados, procedendo antes à alienação de um bem imóvel deliberadamente individualizado, especificado e determinado, como consta, expressa e formalmente, da escritura pública.

 

DECISÃO ARBITRAL

O árbitro Jónatas Machado, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para constituir o presente Tribunal Arbitral, profere a seguinte decisão

 

1. RELATÓRIO

 

1. A..., titular do cartão de cidadão n.o ..., válido até 03/08/2031, titular do NIF..., casado com B... no regime da comunhão geral de bens, residentes na ...,  ..., Africa do Sul, notificado do ato tributário de liquidação em sede de Imposto Sobre o Rendimento das Pessoas Singulares do exercício do ano fiscal de 2023, formalizado pela notificação da nota de liquidação n.o 2024..., no valor de 31.106.54 € (Trinta e um mil cento e seis ponto cinquenta e quatro cêntimos), veio, em 12.11.2024, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 1e 2 do artigo 95.° e da alínea a), do artigo 101.º, da Lei Geral Tributária (LGT), do artigo 140.º, do CIRS e da alínea a), do n.º 1, do artigo 97.° e da alínea a),  do artigo 99.° e da alínea a) do n.º 1 do artigo 102.° do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), impugnar o ato tributário de liquidação de 2023 acima identificado, o que fez nos termos e com os seguintes fundamentos de facto e de direito, solicitando ao CAAD, ao abrigo dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 10.º, n.º 1, alínea a), do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (D.L. n.° 10/2011, de 20 de Janeiro, doravante "RJAT"), a constituição de tribunal arbitral. 

 

2. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD, em 14.11.2024.

 

3. Em conformidade com os artigos 5.º, n.º 2, alínea a), 6.º, n.º 1 e 11.º, n.º 1 do RJAT, o Conselho Deontológico deste Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) designou o signatário como árbitro singular, em 03.01.2025.

 

4. As partes foram devidamente notificadas dessa designação, à qual não opuseram recusa, nos termos conjugados dos artigos 11.º, n.º 1, alíneas b) e c) e 8.º do RJAT e 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.

 

5. Por força do preceituado na alínea c) do n.º 1 e do n.º 8 do artigo 11.º do RJAT, conforme comunicação do Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, o Tribunal Arbitral ficou constituído em 21.01.2025.

 

6.A AT, tendo para o efeito sido devidamente notificada, ao abrigo do disposto no artigo 17.º do RJAT, apresentou a sua resposta, em 19.02.2025, onde, por impugnação, sustentou a improcedência do pedido, por não provado, e a absolvição da Requerida.

 

7. Por não ter sido requerida e não ter sido considerada necessária, a audiência prevista no artigo 18.º do RJAT foi dispensada por despacho proferido em 26.02.2025, tendo sido concedida a faculdade de produção de alegações simultâneas no prazo de 20 dias que as partes se abstiveram de utilizar.

 

1.1Dos factos alegados pelo Requerente

 

8. O Requerente é, juntamente com mais dois irmãos, descendente e os três únicos herdeiros de C..., falecido em 19.07.2012, conforme resulta da escritura de habilitação de herdeiros datada de 26.12.2012. O Seu Pai C..., juntamente com mais 7 irmãos e 2 irmãs, é um dos 10 herdeiros da herança de D... e de E..., conforme resulta da escritura de habilitação de herdeiros datada de 17.11.1986, relativa ao falecimento do seu Avô Paterno em 20.03.1986 e da habilitação de herdeiros datada de 12.03.2003, relativa ao falecimento da sua Avó Paterna, em 26.03.2002.

9. Por força destas heranças foi-lhe atribuído uma quota, ou quinhão hereditário, do prédio rústico, composto de terra a cultura, pastagem, pinhal, eucalipto e mato, sito no Lugar ..., limites do lugar de ..., da união das freguesias de ... (...), ... e..., concelho de Gondomar, inscrito na respetiva matriz rústica sob o artigo ..., descrito na conservatória do registo predial de Gondomar sob o número ... (...) - ..., prédio registado definitivamente em comum e sem determinação de parte ou direito, conforme  resulta da escritura de compra e venda, outorgada em 05.12.2023.

10. Por outras palavras, por força destas heranças adquiriu o direito à aquisição por via sucessória de parte do imóvel, ou seja, um direito a uma quota ou quinhão hereditário, mas nunca chegou a ser proprietário/titular de direito real sobre o imóvel. Nunca existiu partilha da herança, pelo que a quota ou quinhão hereditário equivale idealmente a uma terça parte de uma décima parte do terreno supra melhor identificado, o qual foi vendido pelo valor  de 4.100.000,00 €, cabendo ao requerente o valor equivalente a um terço do décimo do total, num total de 136.666,66 €, tendo este sido o valor declarado para efeitos de mais valia equivalente a um terço de uma décima parte do 4.100.000,00 €.

 

 

1.2Argumentos das partes

11. Os Requerentes sustentam a ilegalidade das liquidações acima mencionadas com os argumentos de facto e de direito que a seguir se sintetizam:

  1. É entendimento pacífico da doutrina e da jurisprudência, que enquanto a herança se mantiver indivisa, cada herdeiro é titular de um direito a uma quota de uma massa de bens, que constitui um património autónomo e não um direito individual sobre cada um dos bens que a integram;
  2. Só com a partilha é que o herdeiro é considerado sucessor único dos bens que lhe foram atribuídos, nos termos do artigo 2119.º do Código Civil; 
  3. Não obstante cada um dos herdeiros tenha desde a abertura da sucessão direito a uma parte ideal da herança, é apenas com a partilha que esse direito se concretiza tornando certos e determinados os bens que couberem ao herdeiro, só após a partilha é que o herdeiro se torna pleno titular dos direitos que por ela lhe couberem. Mesmo nos casos em que a herança seja constituída por bens imóveis, só com a partilha passa a ser titular do direito de propriedade sobre eles e nessa qualidade a poder exercer os direitos correspondentes;
  4. No caso dos autos, não obstante a escritura ser denominada de compra e venda, o que foi alienado foi o direito ao quinhão hereditário pelo que o que se transmitiu foi, um direito abstratamente considerado e idealmente definido, como expressão patrimonial ainda incerta e cujas demarcação e abrangência também se patenteiam inseguras;
  5. Não ocorreu, portanto, uma alienação de imóvel concretamente identificado, até porque só com a realização da partilha é possível estabelecer a titularidade do direito de propriedade sobre tal imóvel;
  6. Assumindo o cessionário a posição do herdeiro cedente a sua situação jurídica não é igual à do proprietário, o qual dispõe de direito pleno sobre o bem que pretende alienar, pelo que não estamos perante a alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis, a que se refere o artigo 10.º do CIRS;
  7. O direito do herdeiro à herança indivisa nada tem a ver com o direito de propriedade, ou qualquer outro direito real;
  8. Enquanto a herança se mantiver indivisa, cada herdeiro é titular de um direito a uma quota de uma massa de bens, que constitui um património autónomo e não um direito individual sobre cada um dos bens que a integram;
  9. No caso dos autos, como se referiu, sob o título de compra e venda, com a cessão foi transmitido o direito ao quinhão hereditário pelo que o que se  transmite é um direito abstratamente considerado e idealmente definido, como expressão patrimonial ainda incerta e cujas demarcação e abrangência também se patenteiam inseguras;
  10. Não existiu qualquer alienação de imóveis concretamente identificados porque só com a realização da escritura partilha seria possível estabelecer a titularidade do direito de propriedade sobre tais imóveis;
  11. O artigo. 10.º, n.º1, alínea a), CIRS, não se aplica a negócio jurídico de alienação do direito a quinhão hereditário constituído por imóvel, pois não integra o conceito de alienação onerosa do direito real sobre bens imóveis, pelo que a liquidação de IRS sobre os ganhos obtidos com a permuta era ilegal por erro nos pressupostos de facto e de direito.

 

 

12. A AT sustenta a manutenção do ato impugnado com base nos fundamentos sinteticamente elencados:

  1. A quota que um sucessível detém numa herança (já aceite mas ainda não partilhada) constitui uma universalidade de bens que pode comportar bens móveis, imóveis, direitos e encargos, e que traduz o direito a herdar, sem que ainda esteja determinado o respetivo preenchimento, sendo que quem aliena a herança (ou o quinhão hereditário) aliena a sua posição de herdeiro, mas não especifica valores ou bens determinados e quem os adquire sucede nos encargos respetivos, conforme estipulado no artigo 2128.º do CC;
  2. Diferente é a alienação dos bens compreendidos em herança indivisa, a qual se encontra abrangida pelo n.º 1 do artigo 2091.º do CC, segundo o qual os direitos relativos à herança, incluindo a alienação dos bens que a integram, podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros, aplicando-se a essa alienação, nos termos do artigo 2124º do CC, as disposições reguladoras do negócio jurídico utilizado para o efeito;
  3. O negócio em causa não se reconduz à alienação de um quinhão hereditário, mas antes de um bem individualizado, especificado e determinado, a saber, como consta da escritura pública, um “prédio rústico, composto de terra e cultura, pastagem, pinhal, eucalipto e mato, sito no Lugar ..., limites do lugar..., da união de freguesias de ... (...), ... e ..., concelho de Gondomar, inscrito na respetiva matriz rústica sob o artigo..., com o valor patrimonial tributário de € 3.984,64, descrito na Conservatória do Registo Predial de Gondomar sob o número ... (...) –...”, alienação titulada por documento autêntico, nos termos e para os efeitos dos nºs 1 e 2 do artigo 363.º e n.º 1 do artigo 371.º, ambos do CC;
  4. Na escritura pública, mais de duas dezenas de sucessíveis, únicos titulares do prédio visado, conforme aí consignado, pessoalmente ou através de representantes - (e também porque nada aí consta quanto ao exercício do direito de preferência) declararam vender um prédio, devidamente identificado e individualizado, mediante um preço, à sociedade G... Lda.;
  5. A notária que lavrou a escritura não teve dúvidas em identificar como objeto do negócio, um prédio, individual e concreto, aí se lendo “Que o prédio objeto do presente contrato é vendido no estado de conservação em que atualmente se encontra (…)” e sem qualquer declaração ou garantia dos Primeiros Outorgantes, seja de natureza expressa ou tácita, oral ou escrita, relativamente à natureza, características e situação física, construtiva e urbanística do mesmo”;
  6. De acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 413.º do CC, apenas a contratos promessa cujo objeto sejam bens imóveis ou móveis sujeitos a registo pode ser atribuída a dita eficácia real, sendo que da escritura atesta a celebração de um “contrato promessa de compra e venda com eficácia real, sem ter havido tradição”;
  7. Os promitentes vendedores, entre eles o Requerente, registaram uma promessa de transmissão de um prédio (cfr. al. f) do nº 1 do art. 2º do C.R.Predial) e não uma qualquer universalidade, englobando móveis, direitos e – no limite – encargos, não passível de inscrição registal;
  8. Do teor da escritura consta igualmente que os representantes da segunda outorgante disseram que “a F..., UNIPESSOAL, LDA” nunca teve intenção de adquirir para si o imóvel objeto desse contrato”, assim assumindo os representantes da sociedade/promitente compradora, expressa e inequivocamente, que a promessa de compra e venda incidiu sobre um bem imóvel (e não sobre um quinhão hereditário);
  9. Conforme estipulado no n.º 1 do artigo 238.º do CC, “[n]os negócios formais não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respetivo documento, ainda que imperfeitamente expresso”, pelo que a liquidação controvertida, tributou as mais-valias geradas pela alienação declarada pelo Requerente no Anexo G, da sua declaração modelo 3 de IRS, referente ao ano de 2023.

1.3. Saneamento  

 

 

13. O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, nos termos n.º 1 do artigo 10.º do RJAT e as partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e mostram-se devidamente representadas.

 

14. O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído (artigos 5.º, n.º 2, 6.º, n.º 1, e 11.º do RJAT), e é materialmente competente (artigos 2.º, n.º 1, alínea a) do RJAT). 

 

15. O processo não padece de nulidades podendo prosseguir-se para a decisão sobre o mérito da causa.

 

2FUNDAMENTAÇÃO

2.1Factos dados como provados

16. Com base nos documentos trazidos aos autos são dados como provados os seguintes factos relevantes para a decisão do caso sub judice:

  1. O Requerente é descendente e um dos três únicos herdeiros de C...; (doc. 4)
  2. Seu Pai C..., juntamente com mais 7 irmãos e 2 irmãs, é um dos 10 herdeiros da herança de D... e de E...; (docs. 5 e 6)
  3. Foi-lhe atribuída uma quota, ou quinhão hereditário, do prédio rústico, composto de terra a cultura, pastagem, pinhal, eucalipto e mato, sito no Lugar ..., limites do lugar ..., da união das freguesias de ... (...), ... e ..., concelho de Gondomar, inscrito na respetiva matriz rústica sob o artigo ..., descrito na conservatória do registo predial de Gondomar sob o número ... (...) - ..., prédio registado definitivamente em comum e sem determinação de parte ou direito, conforme resulta da escritura de compra e venda, outorgada em 5 de dezembro de 2023; (doc. 7).
  4. Em 05.12.2023, o Requerente, representado no ato, conjuntamente com mais 22 outorgantes, foi um dos Primeiros Outorgantes, numa escritura pública de compra e venda, na qual declararam vender à sociedade “G... Lda.”, livre de ónus e encargos, um prédio rústico, pelo preço de 4.100.000,00€ (doc. nº 7, junto ao PPA);
  5. Na qualidade de Segundos Outorgantes, intervieram no negócio as sociedades “F..., Unipessoal, Lda” e “G..., Lda.”, tendo os mesmos, nessa qualidade, manifestado, inequívoca e expressamente que, com a venda a realizar à “G..., Lda”, a “F..., Unipessoal, Lda”, se cumpre o prometido no contrato promessa; (cfr. Doc. 7, junto ao PPA)
  6. Da escritura consta a alienação de “prédio rústico, composto de terra e cultura, pastagem, pinhal, eucalipto e mato, sito no Lugar..., limites do lugar..., da união de freguesias de ...(...), ... e..., concelho de Gondomar, inscrito na respetiva matriz rústica sob o artigo..., com o valor patrimonial tributário de € 3.984,64, descrito na Conservatória do Registo Predial de Gondomar sob o número ... (...) –...” e que “o prédio objeto do presente contrato é vendido no estado de conservação em que atualmente se encontra (…)”;
  7. Em parte alguma da escritura pública, de 05.12.2023, é feita qualquer menção à alienação de quinhões hereditários; (cfr. Doc. 7, junto ao PPA);
  8. Em 02.05.2024, o Requerente e a sua mulher, B..., entregaram uma declaração modelo 3 de IRS, referente ao ano de 2023, a qual foi acompanhada pelos anexos F e G, declarando optar pela tributação conjunta dos rendimentos; (Docs. 1 a 3, PPA)
  9. No quadro 4 do referido anexo G foi declarada a alienação, durante o ano de 2023, de uma quota-parte do prédio inscrito na matriz predial rústica da União de freguesias de ... (...), ... e ... pelo montante de 136.666,66€ (3.333,33€+133.333,33€), que haviam adquirido em 19.07.2012 pela quantia de 265,64€ (132,82€+132,82€)., tendo declarado ainda haver suportado despesas e encargos com as respetivas aquisição e/ou alienação ou valorização no valor de 1.431,52€ (125,00€+1306,52€); (Docs. 1 a 3, PPA)
  10. O valor declarado na Declaração de IRS para efeitos de mais-valia foi 136.666,66 € de que resultou o ato de liquidação de IRS do ano fiscal de 2023, no montante de 31.106,54 €, pago em 21.08.2024, e impugnado no presente processo; (Docs. 1 a 3)

 

 

 

2.2Factos não provados

 

17. Com relevo para a decisão sobre o mérito não há factos que devam ser dados como não provados.

 

 

2.3Motivação

 

18. Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da matéria não provada (cf. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

 

19. Os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis das questões objeto do litígio (v. 596.º, n.º 1, do CPC, ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

 

2.4Questão decidenda

 

20. A questão controvertida prende-se com saber se a alienação de um prédio rústico, inscrito na matriz rústica sob o artigo ..., da União das freguesias de..., ..., ... e  ...titulada por escritura publica de 5/12/2023, configura uma “alienação de direitos reais sobre bens imóveis” para efeitos da alínea a), do n.º 1, do artigo 10.º do CIRS.

 

21. Do ponto de vista do direito civil, enquanto a herança se mantiver indivisa, cada herdeiro é titular de um direito a uma quota de uma massa de bens, que constitui um património autónomo e não um direito individual sobre cada um dos bens que a integram. Ainda que a herança seja constituída por bens imóveis, só com a partilha se passa a ser titular do direito de propriedade (singular ou em compropriedade) sobre eles e nessa qualidade a poder exercer os direitos correspondentes.

 

22. Também não se pode confundir a comunhão hereditária (2031.º ss e 2050.º ss. do Código Civil) com a compropriedade (1403.º. ss. do Código Civil). Um domínio em que a jurisprudência e a doutrina têm entendido a conjugação dos elementos de interpretação determinam que os termos empregues na lei fiscal devem conservar o seu sentido jurídico-civilístico diz respeito à questão da tributação das mais valias resultantes da alienação onerosa do quinhão hereditário composto por bens imóveis em sede de IRS.

23. No entanto, o direito fiscal não pretende responder às questões de saber em que consiste o direito de propriedade, quem o adquire, quando, como e em que condições, visando antes, nos termos do artigo 103.º, n.º1, da CRP, a satisfação das necessidades financeiras do Estado e outras entidades públicas e uma repartição justa dos rendimentos e da riqueza, razão pela qual o mesmo impõe ao juiz tributário uma atenção especial à substância económica das transações efetivamente efetuadas, orientação que alguma doutrina designa por realismo fiscal

 

24.Na análise contextual das transações em presença, os tribunais tributários devem privilegiar a substância sobre a forma (substance over form), desde que isso seja permitido por uma interpretação teleológica e sistemática das disposições fiscais relevantes, metodologia inteiramente compatível com os princípios da legalidade tributária, da separação de poderes, do combate à elisão fiscal e da preservação da base tributável.

 

25. O realismo fiscal requer que se considere todos os factos e circunstâncias da transação em presença, que permitam discernir a vontade real das partes ou, dito de outro modo, a causa final da transação. No caso, isso implica que se distinga a alienação de quinhão hereditário da alienação dos bens compreendidos em herança indivisa. Esta encontra-se abrangida pelo n.º 1 do artigo 2091.º do CC, segundo o qual os direitos relativos à herança, incluindo a alienação dos bens que a integram, podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros, aplicando-se a essa alienação, nos termos do artigo 2124º do CC, as disposições reguladoras do negócio jurídico utilizado para o efeito.

 

26. Dos elementos trazidos aos autos afigura-se legítimo concluir que o negócio em presença não se reconduziu à alienação de um quinhão hereditário, enquanto universalidade de bens, direitos ou encargos indeterminados, mas antes de um bem deliberadamente individualizado, especificado e determinado, a saber, como consta da escritura pública, um “prédio rústico, composto de terra e cultura, pastagem, pinhal, eucalipto e mato, sito no Lugar ..., limites do lugar ..., da união de freguesias de ... (...),... e ..., concelho de Gondomar, inscrito na respetiva matriz rústica sob o artigo ..., com o valor patrimonial tributário de € 3.984,64, descrito na Conservatória do Registo Predial de Gondomar sob o número ... (...) –...”, alienação titulada por documento autêntico dotado de força probatória plena, nos termos e para os efeitos dos nºs 1 e 2 do artigo 363.º e n.º 1 do artigo 371.º, ambos do CC.

 

27. Na escritura pública, mais de duas dezenas de sucessíveis, únicos titulares do prédio visado, conforme aí consignado, pessoalmente ou através de representantes - (e também porque nada aí consta quanto ao exercício do direito de preferência) declararam vender um prédio, devidamente identificado e individualizado, mediante um preço, à sociedade G... Lda., não tendo a notária que lavrou a escritura quaisquer dúvidas em identificar como objeto do negócio, um prédio, individual e concreto, aí se lendo “Que o prédio objeto do presente contrato é vendido no estado de conservação em que atualmente se encontra (…)” e sem qualquer declaração ou garantia dos Primeiros Outorgantes, seja de natureza expressa ou tácita, oral ou escrita, relativamente à natureza, características e situação física, construtiva e urbanística do mesmo”. 

 

28. Acresce que, de acordo com o disposto no n.º 1, do artigo 413.º, do CC, apenas a contratos promessa cujo objeto sejam bens imóveis ou móveis sujeitos a registo pode ser atribuída a dita eficácia real, sendo que a escritura atesta a celebração de um “contrato promessa de compra e venda com eficácia real, sem ter havido tradição”. Os promitentes vendedores, entre eles o Requerente, registaram uma promessa de transmissão de um prédio (cfr. al. f) do nº 1 do art. 2º do C.R.Predial) e não uma qualquer universalidade, englobando móveis, direitos e – no limite – encargos, não passível de inscrição registal. 

 

29. Finalmente, cabe salientar que do teor da escritura consta igualmente que os representantes da segunda outorgante disseram que “A  F... Unipessoal, Lda” nunca teve intenção de adquirir para si o imóvel objeto desse contrato”, assim assumindo os representantes da sociedade/promitente compradora, expressa e inequivocamente, que a promessa de compra e venda incidiu sobre um bem imóvel (e não sobre um quinhão hereditário).

 

30. Ora, conforme estipulado no n.º 1, do artigo 238.º, do CC, “[n]os negócios formais não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respetivo documento, ainda que imperfeitamente expresso”, pelo que procedeu bem a AT ao liquidar, para efeitos da alínea a), do n.º 1, do artigo 10.º, do CIRS, as mais-valias geradas pela alienação de um imóvel declarada pelo Requerente no Anexo G, da sua declaração modelo 3 de IRS, referente ao ano de 2023.

 

3DECISÃO

 

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:

  1. Julgar improcedente o presente pedido de pronúncia arbitral por não provado;
  2. Absolver a Requerida de todos os pedidos, com as devidas e legais consequências.

 

 

 

4VALOR DO PROCESSO

 

Fixa-se o valor do processo em  31.106,54€, nos termos do artigo 306.º, n.º 1 do CPC e do 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, interpretados em conformidade com o artigo 10.º, n.º 2, alínea e), do RJAT.

 

5CUSTAS

 

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em 1 836.00 €, a cargo da Requerente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e do artigo 4.º, n.º 4, do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária e da Tabela I anexa ao mesmo.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 2 de abril de 2025

 

O Árbitro

 

Jónatas Machado