Sumário:
As mais-valias resultantes da alienação do direito ao quinhão hereditário constituído por imóveis não se encontram abrangidas pela norma de incidência do artigo 10º, nº 1, alínea a), do CIRS, por não integrar o conceito de alienação onerosa do direito real sobre bens imóveis.
DECISÃO ARBITRAL
Acordam em tribunal arbitral
I – Relatório
1. A..., NIF..., residente na Rua ..., ..., ...-... Lisboa, veio requerer a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, para apreciar a legalidade do ato de liquidação oficiosa de IRS nº 2024..., no valor € 121.655,41 de imposto e € 10.132,39 de juros compensatórios, no total de € 131.787,58.
Fundamenta o pedido nos seguintes termos.
O Requerente foi notificado pela Autoridade Tributária da liquidação oficiosa do IRS n.º 2024..., no valor total de € 131.787,80, respeitante a ganhos em mais-valias decorrentes da transmissão de bens imóveis, com referência ao ano de 2021.
Sucede que o Requerente não vendeu qualquer bem imóvel e procedeu antes à venda de um quinhão hereditário, isto é, vendeu o direito e ações a uma herança indivisa ou a um património autónomo, sendo este constituído por bens imóveis, móveis ou direitos.
Só após a partilha é que serão definidos os bens que concretamente lhe pertencerão ou que preencherão o seu quinhão, pois o direito à herança indivisa é um direito abstratamente considerado e idealmente definido (uma universalidade), e, como tal, não incide sobre qualquer bem em concreto.
A alienação do quinhão hereditário é distinta da alienação de bem imóvel por parte do seu do titular, e, como tal, não é enquadrável na previsão do artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do CIRS.
Acresce que o Requerente não foi expressamente notificado para se pronunciar sobre a intenção da Autoridade Tributária de proceder à liquidação oficiosa, o que constitui violação do artigo 60.º da LGT, e, por outro lado, não existe qualquer fundamento de facto ou de direito que sustente a liquidação, concretamente qual o valor que foi tomado por base para o cálculo de mais-valias.
A Autoridade Tributária, na sua resposta, sustenta, em síntese, que o Requerente, sendo um dos herdeiros da herança aberta por óbito de B..., conjuntamente com os demais herdeiros, por escritura pública de compra e venda, procedeu à venda da totalidade do acervo hereditário que, quase integralmente, era constituído por bens imóveis, tendo cada um dos alienantes recebido o preço correspondente à sua quota-parte na herança e pago o IMT correspondente à quota-parte da alienação.
O Requerente não apresentou declaração modelo 3 de IRS, referente ao ano de 2021, e face à existência de uma situação passível de tributação (alienação de quinhão hereditário/pagamento de IMT), em 23 de outubro de 2022, foi desencadeado automaticamente um procedimento de “controlo de faltosos de IRS”, que foi notificado ao interessado por ofício do dia seguinte.
Em 17 de novembro de 2022, através do Portal das Finanças, o Requerente veio informar que não foi vendido qualquer imóvel, mas apenas vendido um quinhão hereditário, conjuntamente com outros herdeiros, da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de B..., que integrava um conjunto de direitos sobre bens móveis e imóveis.
Por ofício de 8 de julho de 2024, o Requerente foi informado pela Autoridade Tributária que os ganhos resultantes da alienação do quinhão hereditário de que era titular estão sujeitos a tributação em sede de IRS, na parte respeitante à transmissão dos bens imóveis, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º do Código do IRS, e, assim, seria elaborada declaração oficiosa e apurado o imposto que se mostre em falta.
Entende a Autoridade Tributária que as mais-valias geradas com a alienação do quinhão hereditário, por parte do Requerente, estão sujeitas a tributação, em sede de IRS, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º do CIRS, pelo qual constituem mais-valias os ganhos obtidos que, não sendo considerados rendimentos empresariais e profissionais, de capitais ou prediais, resultem da alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis, considerando-se como incrementos patrimoniais os ganhos resultantes da diferença positiva entre o valor de aquisição e o valor de realização ou alienação.
A herança traduz-se no conjunto de bens, direitos e dívidas da titularidade do de cujus, sendo que esta universalidade assume natureza jurídica autónoma até à sua transferência para os herdeiros, e, até à partilha, os herdeiros podem promover a alienação do acervo indiviso, no seu todo ou apenas em parte, o que corresponde a um negócio relativo aos bens envolvidos.
É o que resulta da disciplina do artigo 2124.º do Código Civil, interpretado conjugadamente com o artigo 2091.º, n.º 1, segundo a qual é possível a alienação do quinhão hereditário sem que exista uma partilha ou especificação de bens, desde que realizada conjuntamente por todos os herdeiros aplicando-se a essa alienação as disposições reguladoras do negócio jurídico utilizado para o efeito.
No caso concreto, como decorre da escritura pública de compra e venda, a alienação do quinhão hereditário foi outorgada com o consentimento de todos os herdeiros, que igualmente alienaram os seus quinhões, pagando individualmente o IMT que lhes correspondia.
E, desse modo, o quinhão hereditário do Requerente traduz-se no direito de propriedade sobre uma quota dos imóveis da herança, a que foi atribuído o valor de € 524.305,43, e à sua alienação aplicam-se as regras do contrato de compra e venda.
Também não se verifica a preterição da formalidade de audição prévia.
O Requerente foi notificado da abertura do procedimento de “faltoso”, e, na sequência, veio apresentar a sua argumentação, alegando que não tinha vendido qualquer imóvel, mas apenas um quinhão hereditário, o que levou a Autoridade Tributária, por entendimento divergente, a proceder à declaração oficiosa.
Conclui pela improcedência do pedido.
2. Por despacho arbitral de 3 de fevereiro de 2025, foi dispensada a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT e determinado o prosseguimento do processo para alegações, por prazo sucessivo.
As partes apresentaram alegações em 18 de fevereiro e 5 de março de 2025, mantendo as suas anteriores posições.
O Requerente juntou, com as alegações, a sentença do Tribunal Judicial de Beja, de 21 de julho de 2019, proferida no processo de execução n.º.../13...TBCUB.1, tendo por objecto o reconhecimento do crédito do Autor sobre a herança aberta por óbito de B..., no valor de € 211.480,58, o incidente de habilitação de adquirente, no referido processo, apresentado pela C..., Lda., e a sentença do Tribunal Judicial de Beja, de 26 de outubro de 2021, que declarou a Requerente C..., Lda. habilitada a prosseguir, em substituição dos Exequentes, nos autos de execução.
Tendo podido fazê-lo, a Autoridade Tributária não se pronunciou sobre os documentos juntos.
3. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira nos termos regulamentares.
Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral coletivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
As partes foram oportuna e devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.° e 7.º do Código Deontológico.
Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral coletivo foi constituído em 2 de janeiro de 2025.
O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
O processo não enferma de nulidades e não foram invocadas exceções.
Cabe apreciar e decidir.
II – Fundamentação
Matéria de facto
4. A matéria de facto relevante para a decisão da causa é a seguinte.
A) Por escritura pública de compra e venda de quinhões hereditários, celebrada em 28 de julho de 2021, o Requerente conjuntamente com os demais herdeiros da herança aberta e indivisa por óbito de B..., transmitiram os seus quinhões hereditários à sociedade C..., LDA. pelo valor global de € 7.580.000,00 (documento n.º 4 junto ao pedido arbitral).
B) O valor correspondente aos bens imóveis que constituam a herança era de € 7.549.998,05, correspondendo ao Requerente o quinhão hereditário de € 524.305,43, o qual integrava exclusivamente bens imóveis (documento n.º 4 junto ao pedido arbitral).
C) A Autoridade Tributária desencadeou um procedimento de divergências por falta de entrega, por parte do Requerente, da declaração modelo 3 de IRS, referente ao ano de 2021, tendo por base uma situação passível de tributação por alienação de quinhão hereditário (processo administrativo PD.1).
D) Tendo tido conhecimento do procedimento de divergências, em 17 de novembro de 2022, o Requerente justificou a sua posição, através do Portal das Finanças, nos seguintes termos:
Não foi vendido qualquer imóvel. Apenas foi vendido um quinhão hereditário, conjuntamente com outros herdeiros, de que eu era titular na herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de B... .
Herança essa que integrava um conjunto de direitos sobre bens móveis e imóveis (processo administrativo PD.1).
E) Como comprovativo, anexou cópia da escritura de compra e venda (processo administrativo PD.1).
F) Na sequência, por ofício 8 de julho de 2024, a Autoridade Tributária prestou ao Requerente a seguinte informação:
“Em resposta à interação efetuada via portal das finanças no dia 17/11/2022, em resposta ao procedimento do "Controle Entrega MOD3 "referente ao IRS do ano 2021, informa-se que os ganhos resultantes da alienação do quinhão hereditário de que era titular, estão sujeitos a tributação em sede de IRS, na parte respeitante à transmissão dos bens imoveis, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º do Código do IRS, conforme comunicação da Direção de Serviços do IRS (DSIRS).
Assim, será elaborada declaração oficiosa com base no conhecimento da AT e apurado o imposto que se mostrar em falta, sendo de acrescer juros compensatórios devidos e instaurado procedimento contraordenacional para exigência da coima devida.
Da liquidação subsequente pode ser apresentada reclamação ou impugnação nos termos e fundamentos estabelecidos no Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), conforme previsto no artigo 140.º do CIRS.” (processo administrativo PD.3).
G) A referida informação baseou-se num parecer solicitado à Direção de Finanças de Lisboa que é do seguinte teor:
Senhora Chefe de Finanças,
Através da comunicação n.º ...2023..., de 2023-06-28, esse Serviço de Finanças solicitou apoio na análise da situação tributária do sujeito passivo A..., titular do NIF ..., relativamente ao qual foi criado um procedimento de divergências (id...) motivado pela
falta de entrega da declaração de rendimentos de IRS (modelo 3), apesar de constar numa declaração para liquidação de IMT como titular de um quinhão hereditário que foi alienado e integrava vários bens imóveis.
No âmbito do referido procedimento o sujeito passivo alegou o seguinte: «Não foi vendido qualquer imóvel. Apenas foi vendido um quinhão hereditário conjuntamente com outros de que eu era titular na herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de B... . Herança essa que integrava um conjunto de direitos sobre bens móveis e imóveis».
De acordo com a informação disponível, designadamente a que decorre da cópia da escritura de compra de quinhões hereditários junta ao procedimento de divergências e da Declaração Modelo I de IMT, a que corresponde o registo n.º ..., do ano de 2021, o sujeito passivo cedeu à sociedade C..., Lda", NIF ... o quinhão hereditário, correspondente a uma quota-parte de 5/72, que possuía na herança aberta e indivisa por óbito de B... NF..., falecida em 2002-11-20, tendo sido atribuído a esse quinhão hereditário, em relação aos imóveis, o valor de € 524.305,43.
Com os fundamentos vertidos na nossa comunicação n.º ...2023..., de 2023-07-05, que se anexa e cujo conteúdo aqui se dá por integralmente reproduzido, é entendimento deste serviço que a herança em causa foi transmitida pelo sujeito passivo e pelos restantes herdeiros como um todo, pelo que os ganhos obtidos com essa transmissão, na parte respeitante aos bens imóveis cabem no âmbito da alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º do Código do IRS, pelo que estão sujeitos a tributação em sede de IRS.
Através da mesma comunicação, por não se conhecer qualquer entendimento sancionado superiormente versando a matéria em causa e considerando que o negócio envolve contribuintes com domicilio fiscal em áreas cuja competência territorial cabe a diferentes órgãos regionais por forma a assegurar uma uniformidade de entendimentos, foi solicitada a colaboração da Direção de Serviços do IRS (DSIRS), no sentido de esclarecer se os ganhos obtidos pelos alienantes dos quinhões hereditários, identificados na escritura outorgada em 2021-07-28 estão sujeitos a tributação em sede de IRS na parte respeitante aos bens imóveis.
A DSIRS deu resposta ao solicitado em 2024-07-03 (comunicação GPS n.º ...2024...), informando que o respetivo entendimento «é no sentido de que a transmissão de quinhões hereditários que, na sua substância, corresponda a uma transmissão de direitos reais sobre bens imóveis cai no âmbito da sujeição prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 109.º do Código do IRS, por isso sujeita a tributação, como foi recentemente decidido no Pedido de Informação Vinculativa n.º 26186 com despacho da Subdiretora Geral do de
21-06-2024, que pode ser consultada nas aplicações da AT (SIGIV) e que brevemente, será objeto de divulgação através de ficha doutrinária»
Por se desconhecer se esse Serviço de Finanças tem acesso à aplicação SIGIV, anexa-se à presente comunicação a informação vinculativa referida pela DSIRS.
Em conclusão, dando resposta ao solicitado por esse Serviço de Finanças, informa-se que os ganhos resultantes da alienação do quinhão hereditário de que era titular o sujeito passivo A..., titular do NIF..., estão sujeitos a tributação em sede de IRS, na parte respeitante à transmissão dos bens imóveis ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º do Código do IRS.
Para determinação dos ganhos, devem ser considerados como valores de realização os valores considerados para efeitos de liquidação de IMT (documento n.º 1 junto à resposta).
H) Sobre a questão da tributação, em sede de IRS, da alienação de quinhões tributários, a Autoridade Tributária emitiu a Informação Vinculativa n.º 26186, de que consta o seguinte:
1. Dispõe o artigo 10.º do Código do IRS, sob o título mais-valias:
Constituem mais-valias os ganhos obtidos que, não sendo considerados rendimentos empresariais e profissionais, de capitais ou prediais, resultem de:
a) Alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis.
2. Associada a esta sujeição, prevista logo na primeira alínea do artigo, existe uma completa omissão quanto ao tipo de transmissão a considerar, depreendendo-se, assim, que o legislador terá pretendido tributar todas as formas de transmissão de direitos reais sobre bens imóveis, desde que onerosas, independentemente da forma utilizada para a sua concretização.
[…]
4. Na herança, cada um dos herdeiros tem direito a uma quota parte na universalidade dos bens, designada quinhão hereditário, até que se faça a partilha (artigo 2101º do Código Civil).
5. Então, é por via da partilha que se define, por acordo ou judicialmente (artigo 2102.º do Código Civil), qual é a parte certa e determinada que cabe a cada um dos herdeiros, podendo, inclusivamente, cada um dos herdeiros ficar como titular de todos os bens, desde que façam as devidas compensações financeiras (pagamento de tornas).
6. Todavia, o artigo 2124º do Código Civil permite a alienação de herança ou de quinhão hereditário. Isso significa que podem os herdeiros, todos em conjunto, alienar bens da herança (o que inclui a possibilidade de alienar a totalidade dos bens que constituem a herança), ou individualmente, disporem do seu quinhão hereditário (a quota parte a que têm direito na herança).
7. Ora, nos casos em que todos os herdeiros, em conjunto, vendem um bem imóvel pertencente à herança, é pacífica a inclusão dessa transmissão no âmbito da incidência do artigo 10.º do Código do IRS.
[…]
9. E quem adquirir esses quinhões hereditários obtém, para todos os efeitos, a titularidade dos três bens imóveis, ou seja, adquire o direito real sobre esses bens, e fá-lo onerosamente.
10. Assim, atento o disposto no n.º 3 do artigo 11.º da Lei Geral Tributária, em termos substantivos o negócio realizado configurará uma transmissão onerosa de direitos reais sobre bens imóveis, estando até sujeito à exigência da forma prevista para esse tipo de negócio, tal como previsto no artigo 2126.º do Código Civil.
[…]
12. Ora, a possibilidade legal de se proceder quer à alienação da herança, quer à alienação dos quinhões hereditários, sem necessidade prévia de efetuar partilha, não deve permitir a não tributação de um negócio jurídico que, face à sua substância, deve ser tributado.
[…]
Conclusão
A transmissão de quinhões hereditários que, na sua substância, corresponda a uma transmissão de direitos reais sobre bens imóveis, cai no âmbito da sujeição prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º do Código do IRS, por isso sujeita a mais-valias” (documento n.º 2 junto à resposta).
I) A sociedade C..., LDA. procedeu à entrega da declaração Modelo 1 relativa ao pagamento do Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis, com referência à transmissão dos quinhões hereditários por parte dos herdeiros da herança aberta por óbito de B... (processo administrativo PD 2).
J) Na sequência do procedimento de divergências, a Autoridade Tributária procedeu à declaração oficiosa de mais-valias, por efeito da alienação onerosa de direitos sobre bens imóveis, por parte do Requerente (processo administrativo PD 4.).
L) A declaração oficiosa deu origem à liquidação de IRS n.º 2024 ..., em que se apurou imposto, no montante de € 121.655,41, e juros compensatórios, no montante de € 10.132, 39, no valor total de € 131.787,80, com data limite para o pagamento em 2 de fevereiro de 2024 (documentos n.ºs 2 e 3 juntos ao pedido arbitral).
M) O pedido arbitral deu entrada em 18 de outubro de 2024.
Factos não provados
Não há factos não provados que revelem para a decisão da causa.
Motivação da matéria de facto
O Tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada com base nos documentos juntos à petição e os constantes do processo administrativo e ainda os documentos juntos com a resposta.
Matéria de direito
5. A questão em debate está em saber se a transmissão do direito ao quinhão hereditário constituído por bens imóveis corresponde à alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis, para efeito da incidência de mais-valias nos termos do artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do CIRS.
O Requerente sustenta que não vendeu qualquer bem imóvel, mas antes procedeu à venda de um quinhão hereditário, que corresponde ao direito a uma herança indivisa, ainda que seja constituída por bens imóveis, e só após a partilha é que serão definidos os bens que concretamente preencherão o seu quinhão, pois o direito à herança indivisa é um direito abstratamente considerado e idealmente definido, e, como tal, não incide sobre qualquer bem em concreto.
A Autoridade Tributária contrapõe que a herança se traduz no conjunto de bens, direitos e dívidas da titularidade do de cujus, sendo que esta universalidade assume natureza jurídica autónoma até à sua transferência para os herdeiros, e, até à partilha, os herdeiros podem promover a alienação do acervo indiviso, no seu todo ou apenas em parte, o que corresponde a um negócio relativo aos bens envolvidos, na medida em resultam da alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis, pelo que a transmissão do quinhão hereditário está sujeita a incidência de mais valias, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º do CIRS.
Para apreciar a questão em análise, interessa ter presente a redação do artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do CIRS, que é do seguinte teor:
1 - Constituem mais-valias os ganhos obtidos que, não sendo considerados rendimentos empresariais e profissionais, de capitais ou prediais, resultem de:
a) Alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis e afetação de quaisquer bens do património particular a atividade empresarial e profissional exercida em nome individual pelo seu proprietário.
Para efetuar o enquadramento do que se entende por transmissão do quinhão hereditário, no âmbito do direito civil, convém recordar ainda o que estabelecem os artigos 2030.º, 2074.º e 2119.º do Código Civil.
A primeira dessas disposições, sob a epígrafe “Espécies de sucessores”, no seu n.º 2, consigna que se diz herdeiro “o que sucede na totalidade ou numa quota do património do falecido”.
O artigo 2074.º, epigrafado “Direitos e obrigações do herdeiro em relação à herança”, no n.º 1, acrescenta que “o herdeiro conserva, em relação à herança, até à sua integral
liquidação e partilha, todos os direitos e obrigações que tinha para com o falecido, à exceção dos que se extinguem por efeito da morte deste”.
Por seu turno, o artigo 2119.º estipula o princípio da retroatividade da partilha, consignando o seguinte: “[f]eita a partilha, cada um dos herdeiros é considerado, desde a abertura da herança, sucessor único dos bens que lhe foram atribuídos, sem prejuízo do disposto quanto a frutos”.
Com base neste último preceito, entende-se que “[a] partilha é um negócio certificativo, um negócio que se destina a tornar certa uma situação anterior. Cada um dos herdeiros já tinha direito a uma parte ideal da herança antes da partilha; através da herança, esse direito vai determinar-se em bens certos e determinados. Mas no fundo, o direito a bens determinados que existe depois da partilha, é o mesmo direito a bens indeterminados que existia antes da partilha; é o mesmo direito, apenas modificado no seu objeto” (cfr. Abílio Neto/Herlânder Martins, Código Civil Anotado, 1980, Lisboa, anotação ao artigo 2119.º).
Importa ainda reter o que dispõem os artigos 2124.º e 2126.º do Código Civil.
O primeiro desses preceitos torna aplicável à alienação de herança ou de quinhão hereditário “as disposições reguladoras do negócio jurídico que lhe der causa, salvo o preceituado nos artigos seguintes”.
Nesse contexto, o artigo 2126.º prescreve que “[s]em prejuízo do disposto em lei especial, a alienação de herança ou de quinhão hereditário é feita por escritura pública ou por documento particular autenticado se existirem bens cuja alienação deva ser feita por uma dessas formas”.
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Em aplicação destes princípios gerais, o acórdão do STJ, de 9 de fevereiro de 2012 (Processo n.º 2752/07), seguindo um entendimento pacífico e uniforme, e considerando apenas o que mais releva para apreciação do caso, concluiu nos seguintes termos:
1. A transmissão do direito ao quinhão hereditário faz operar a passagem para a esfera jurídica dos compradores do conteúdo de um direito abstratamente considerado e idealmente definido, como expressão patrimonial ainda incerta.
2. O que aos adquirentes destes direitos fica atribuída é a possibilidade de poderem exercer naquela universalidade jurídica um seu direito próprio perante os restantes interessados no “quinhão hereditário”, legitimando-os a, com vista a concretizar esta sua prerrogativa, a darem os passos necessários tendentes a haver para si a quota-parte dos bens determinados que integram tal herança.
3. Enquanto se não constatar a efetiva titularidade de algum ou alguns bens concretos que constitui tal universalidade jurídica, o adquirente do quinhão hereditário não desfruta do atinente direito sobre certo e determinado bem.
Ainda que analisado na perspetiva do adquirente do quinhão hereditário, os mesmos princípios são necessariamente aplicáveis ao herdeiro que transmite a terceiro, ainda antes da partilha, uma quota do património do de cujus, que corresponde ao seu quinhão hereditário.
Neste mesmo sentido se pronunciaram os acórdãos do STA de 25 de novembro de 2009 (Processo n.º 0975/09), de 28 de janeiro de 2015 (Processo n.º 0450/13) e de 15 de junho de 2016 (Processo n.º 01863/13).
No primeiro desses arestos, entendeu-se que “enquanto a herança se mantiver indivisa, cada herdeiro é titular de um direito a uma quota de uma massa de bens, que constitui um património autónomo e não um direito individual sobre cada um dos bens que a integram. E, assim, porque a alienação […] de quinhão hereditário, mesmo que a herança seja apenas constituída por bens imóveis, não pode considerar-se alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis, não estão sujeitos a IRS os eventuais ganhos resultantes dessa alienação”.
No acórdão tirado no Processo n.º 0450/13, invocando-se o disposto no artigo 2119.º do Código Civil, afirmou-se que “embora cada um dos herdeiros tenha desde a abertura da sucessão direito a uma parte ideal da herança, é apenas com a partilha que esse direito se concretiza tornando certos e determinados os bens que couberem ao herdeiro”. E “só após a partilha é que o herdeiro se torna pleno titular dos direitos que por ela lhe couberem, e, ainda que a herança seja constituída por bens imóveis, só com a partilha passa a ser titular do direito de propriedade sobre eles e nessa qualidade a poder exercer os direitos correspondentes”.
Ainda no acórdão do STA referente ao Processo n.º 01863/13, declarou-se que “constituindo a herança indivisa uma universalidade relativamente à qual não houve ainda partilha de bens (artigo 2119.º do Código Civil), estamos em presença de um «património autónomo» partilhado, em regime de comunhão (e não em compropriedade), pelos co-herdeiros, os quais não detêm qualquer direito próprio sobre cada bem individualizado que compõe a herança indivisa, sendo apenas seus titulares em comunhão”.
Resta fazer notar que esta jurisprudência tem igualmente sido seguida pelo CAAD através das decisões arbitrais proferidas nos Processos n.ºs 627/2017 e 247/2022, dizendo-se no sumário desta última decisão que “as mais-valias resultantes da alienação do direito ao quinhão hereditário constituído por imóveis não se encontram abrangidas pela norma de incidência do artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do CIRS, por não integrar o conceito de alienação onerosa do direito real sobre bens imóveis, uma vez que não é transmitido um direito real sobre os bens da herança, mas ´um direito abstratamente considerado e idealmente definido´ de uma quota-parte na herança ilíquida e indivisa.
No mesmo sentido se pronuncia a doutrina.
Segundo Inocêncio Galvão Telles, baseando-se no disposto no artigo 2030.º do Código Civil, a cada herdeiro releva uma parte do conjunto abstrato que é o património como “universitas”. Existindo uma pluralidade de herdeiros, divide-se o património em tantas partes quantos os herdeiros. Cada quota é proporcional ao número de herdeiro (Direito das Sucessões, 6.ª edição, Coimbra Editora, 1991, pág. 187). O herdeiro sucede no património do falecido e legatário enquanto sucessor universal. Na qualidade de sucessor universal, o que recebe é, sempre, uma universalidade, seja a totalidade do património do de cujus, seja uma quota do património do falecido (idem, pág. 189).
Em idênticos termos, Rabindranath Capelo de Sousa considera que “sendo vários os herdeiros e antes de se efetuar a partilha, cada um deles, embora não tenha um direito real sobre os bens em concreto da herança, nem sequer sobre uma quota-parte em cada um deles, detém, todavia, um direito de quinhão hereditário, ou seja, à respetiva quota-parte ideal da herança global em si mesma” (Lições de Direito das Sucessões”, vol. II, 2.ª edição, Coimbra Editora, 1997, págs. 89 e segs.). “Pela alienação de quinhão hereditário indiviso transfere-se para o adquirente o direito de quinhão em causa, que abrange, v. g., direitos de gestão (artigo 2091.º do Código Civil), direitos à receção de rendimentos (artigo 2092.º do Código Civil) e direitos de exigir a partilha e de composição da quota (artigo 2101.º do Código Civil (idem, pág. 98).
6. Revertendo à situação do caso, o que se constata é que a Autoridade Tributária considera que a transmissão de quinhões hereditários se encontra sujeita a mais-valias, nos termos do disposto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do Código do IRS, na medida em que, em substância, essa transmissão corresponde à alienação de direitos reais sobre bens imóveis.
Embora a Administração entenda, citando os artigos 2101.º e 2102.º do Código Civil, que, na herança, cada um dos herdeiros tem direito a uma quota parte na universalidade dos bens, designada quinhão hereditário, até que se faça a partilha, e, por conseguinte, é por via da partilha que se define, por acordo ou judicialmente, qual é a parte certa e determinada que cabe a cada um dos herdeiros, conclui, todavia, que o artigo 2124.º permite a alienação de herança ou de quinhão hereditário, o que significa que podem os herdeiros, em conjunto, alienar bens da herança, ou individualmente, disporem do seu quinhão hereditário. E, nos casos em que todos os herdeiros vendem os bens imóveis pertencentes à herança, a transmissão recai no âmbito da incidência do artigo 10.º do Código do IRS (cfr. alíneas G) e H) da matéria de facto).
Ora, o artigo 2124.º do Código Civil limita-se a tornar aplicável à alienação de herança ou de quinhão hereditário as disposições reguladoras do negócio jurídico que lhe der causa, ressalvando o preceituado nos artigos seguintes. O artigo 2126.º vem dizer que, existindo bens imóveis, a alienação de herança ou de quinhão hereditário é feita por escritura pública.
A forma estabelecida para a alienação de herança ou de quinhão hereditário está em consonância com o disposto no artigo 875.º do Código Civil, que estabelece que o contrato de compra e venda de bens imóveis só é válido se for celebrado por escritura pública.
A possibilidade de os herdeiros procederem à alienação de herança ou de quinhão hereditário e a sujeição do negócio a escritura pública, sendo um princípio comum à transação de imóveis, em vista a assegurar a eficácia inter partes, não permite dissipar a posição jurídica do herdeiro, enquanto titular de uma parte ideal dos bens da herança, e só com a partilha essa
parte ideal passa a corresponder a bens determinados de que o herdeiro fica a dispor do direito de propriedade. Sendo que esse é o regime que provém das transcritas disposições dos artigos 2030.º, 2074.º e 2119.º do Código Civil.
Limitando-se o herdeiro a alienar uma quota-parte ideal dos bens que integram a herança, não tem qualquer cabimento considerar que se trata de alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis, sujeita à incidência do artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do CIRS, já que não é por via da transmissão do quinhão hereditário que o herdeiro se torna titular do direito de propriedade de qualquer determinado bem que integre a herança, o que apenas poderia ocorrer com a partilha.
O pedido arbitral mostra-se, por conseguinte, ser procedente.
Vícios de conhecimento prejudicado
7. Face à solução a que se chega, fica prejudicado o conhecimento dos restantes vícios invocados.
Litigância de má-fé
8. O Requerente requer a condenação da Autoridade Tributária como litigante de má-fé por considerar que, na resposta, imputa ao Requerente a prática de factos que não correspondem à verdade, mormente quanto ao pagamento do IMT devido pela transmissão do quinhão hereditário, produz afirmações contraditórias quanto à composição do quinhão hereditário e invoca uma decisão arbitral que não é aplicável ao caso.
O artigo 542.º do CPC, sob a epígrafe “Responsabilidade no caso de má fé. Noção de má fé”, no seu n.º 2, dispõe nos seguintes termos:
2 Diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave:
a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.
Litiga de má fé a parte que alega factos que sabe serem contrários a verdade ou que omite factos relevantes para a decisão da causa com intenção de obter uma decisão do litígio que lhe seja favorável (acórdão do STJ de 26 de janeiro de 2017, Processo n.º 402/10).
Nas alegações, a Autoridade Tributária reconhece que houve manifesto lapso, na resposta ao pedido arbitral, quando se afirma que o Requerente e cada um dos herdeiros pagou o IMT correspondente à quota-parte da alienação, e o que se pretendia dizer é que o quinhão hereditário, alienado pelo Requerente e os demais alienantes, é apenas constituído por bens imóveis, ao qual foi atribuído um preço concreto em função da sua quota ideal, e que constituiu também o valor tributável em sede de IMT (pontos 1. e 2.).
Quanto composição do quinhão hereditário, a Autoridade Tributária alega, na resposta, que a questão controvertida se prende com a alienação pelo Requerente e demais herdeiros dos quinhões hereditários que integram o acervo hereditário de bens imóveis da herança (artigo 2.º), e que o Requerente, por escritura pública de compra e venda, transmitiu o seu quinhão à sociedade C... LDA. pelo valor de € 524.305,43, o qual integrava exclusivamente bens imóveis (artigo 5.º).
Nas alegações, a Requerida esclarece que da escritura pública que titula o negócio se extrai que todos os titulares desse acervo imobiliário o alienaram, tendo ali ficado identificado o valor que corresponde a cada um deles (ponto 8.) e o que foi alienado e sujeito a tributação em sede mais-valias foram os bens imóveis (ponto 9.).
Não parece, neste condicionalismo, que a conduta processual da Requerida integre a litigância de má fé, mormente por alteração da verdade dos factos, nem as referências feitas poderiam impedir o tribunal de proferir uma decisão conforme o direito.
Finalmente, quanto à indicação pela Requerida de decisão arbitral que não tem relação com a matéria em discussão, cabe referir que não se trata, no caso, de alegação de facto, e, por outro lado, não tem o tribunal de considerar a jurisprudência citada pelas partes, pelo que a menção da referida decisão arbitral, ainda que errónea, nunca poderia conduzir a uma decisão do litígio que lhe fosse favorável.
III – Decisão
Termos em que se decide:
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Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral e anular a liquidação oficiosa de IRS impugnada, no valor total de € 131.787,80;
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Absolver a Autoridade Tributária do pedido de condenação como litigante de má fé.
Valor da causa
Os Requerentes indicaram como valor da causa o montante de € 131.787,80, que não foi contestado pela Requerida e corresponde ao valor da liquidação a que se pretendia obstar, pelo que se fixa nesse montante o valor da causa.
Custas
Nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 24.º, n.º 4, do RJAT, e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e Tabela I anexa a esse Regulamento, fixa-se o montante das custas em € 3.060,00, que fica a cargo da Requerida.
Notifique.
Lisboa, 9 de abril de 2025
O Presidente do Tribunal Arbitral
Carlos Fernandes Cadilha
O Árbitro vogal
Ricardo Marques Candeias
A Árbitro vogal
Raquel Franco