SUMÁRIO:
-
A Contribuição de Serviço Rodoviário (CSR) é um tributo que se qualifica como “imposto” e não como “contribuição”, pelo que os Tribunais Arbitrais são competentes para apreciar matérias a ela respeitantes.
-
A falta de identificação dos actos de liquidação de CSR contestados, cuja declaração de ilegalidade e anulação se requer, implica a ineptidão do pedido de pronúncia arbitral e a consequente absolvição da Requerida da instância.
DECISÃO ARBITRAL
Os Árbitros Carla Castelo Trindade, António Manuel Melo Gonçalves e Sílvia Oliveira, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formar o Tribunal Arbitral, decidem no seguinte:
I. RELATÓRIO
1. A... S.A., pessoa colectiva com o n.º ..., com sede em ..., ... e ..., ...-..., ..., Viseu (“Requerente”), apresentou, em 25 de Setembro de 2024, pedido de constituição de Tribunal Arbitral ao abrigo do disposto nos artigos 2.º e 10.º, n.ºs 1 e 2 do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), tendo em vista a declaração de ilegalidade da decisão de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa apresentado contra os actos de liquidação de Imposto Sobre Produtos Petrolíferos (“ISP”) e Contribuição de Serviço Rodoviário (“CSR”), referentes ao período compreendido entre Fevereiro de 2020 e Dezembro de 2022, que quantifica em € 203.611,07.
2. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD em 26 de Setembro de 2024 e automaticamente notificado à Requerida.
3. No pedido arbitral a Requerente invocou, em síntese, o seguinte:
-
A CSR constitui um tributo ou imposição que incide sobre o gasóleo rodoviário sujeito ao ISP e dele não isento e que é devido pelos sujeitos passivos deste;
-
A CSR é suportada pelos contribuintes e consumidores finais aquando da aquisição dos combustíveis, pelo que, em última análise, a Requerente é sujeito passivo no sentido que lhe viu ser repercutido o pagamento de tal tributo;
-
A Requerente é sujeito passivo de ISP, na qualidade de consumidora final e contribuinte de facto nos termos do artigo 18.º da Lei Geral Tributária (“LGT”) e é nessa qualidade que solicitou o reembolso dos montantes pagos a título de CSR;
-
Tendo em conta que a CSR adere em parte ao regime dos Impostos Especiais de Consumo (“IEC”), que o financiamento da rede rodoviária nacional deve ser assegurado pelos seus próprios utilizadores e que resulta de uma interpretação conjunta e sistemática do regime da CSR que esta contribuição pretende onerar os utilizadores da rede rodoviária na medida do seu consumo de combustíveis, conclui‑se no sentido da CSR ser também objecto do fenómeno da repercussão legal;
-
Desta forma, os consumidores finais – os repercutidos – têm legitimidade para contestar as liquidações da CSR, de forma a obter a sua anulação e respectivo reembolso;
-
Portanto, a Requerente tinha legitimidade e estava em prazo para efectuar o pedido de revisão do acto tributário (artigo 78.º da LGT) bem como o presente pedido de pronúncia arbitral;
-
A Alfândega de Aveiro procedeu a actos de liquidação de ISP, CSR e outros tributos, relativos aos meses de Fevereiro de 2020 a Dezembro de 2022, que foram repercutidos pelas gasolineiras na aqui Requerente, no valor total de € 203.611,07;
-
Ora, tendo presente a Lei n.º 55/2007, de 31 de Agosto, os artigos 103.º, 104.º e 266.º da Constituição da República Portuguesa (“CRP”), os artigos 4.º e 5.º da LGT e os artigos 2.º e 88.º do Código dos Impostos Especiais de Consumo (“CIEC”), conclui-se que a CSR não tem suporte legal, face à CRP e à Lei;
-
As liquidações aqui em causa são, portanto, ilegais, o que já foi reconhecido expressamente em jurisprudência nacional, designadamente nas decisões arbitrais proferidas no processo n.º 702/2022-T, em 31.07.2023, no processo n.º 113/2023-T, em 15.07.2023, no processo n.º 24/2023-T, em 14.06.2023, no processo n.º 665/2022-T, em 31.05.2023, no processo n.º 305/2022-T, em 16.01.2023, no processo n.º 304/22-T, em 05.01.2023;
-
Por essa razão, o legislador terá alterado e revogado a CSR prevista na Lei n.º 55/2007, de 31 de Agosto, nos termos da Lei n.º 24- E/2022, de 30 de Dezembro, consignando parcialmente a receita do imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos ao serviço Rodoviário;
-
A Directiva n.º 2008/118/CE do Conselho de 16 de Dezembro de 2008 veio implementar o regime geral dos IEC e revogar a Directiva 92/12/CEE;
-
Do artigo 1.º, n.º 2 da aludida Directiva resulta que os Estados-Membros podem cobrar, por motivos específicos, outros impostos indirectos sobre os produtos sujeitos a IEC, desde que esses impostos sejam conformes com as normas fiscais da Comunidade aplicáveis ao imposto especial de consumo e ao imposto sobre o valor acrescentado no que diz respeito à determinação da base tributável, à liquidação, à exigibilidade e controlo do imposto;
-
A CSR não prossegue “motivos específicos”, na acepção do artigo 1.º, n.º 2, da Directiva 2008/118/CE, na medida em que as suas receitas têm essencialmente como fim assegurar o financiamento da rede rodoviária nacional;
-
O Tribunal de Justiça da União Europeia (“TJUE”), a respeito da Lei n.º 55/2007 de 31 de Agosto, entendeu que a CSR viola o artigo 1.º, n.º 2 da Directiva 2008/11, dada a ausência de “motivo específico”, o que torna aquele tributo ilegal, padecendo por isso as liquidações feitas em razão da CSR do vício de ilegalidade abstracta;
-
Defende por fim a Requerente que tais liquidações são ilegais por erro imputável aos serviços da Requerida, sendo devido o reembolso da CSR indevidamente liquidada acrescido do pagamento de juros indemnizatórios.
4. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a) e do artigo 11.º, n.º 1, alínea a), ambos do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do Tribunal Arbitral colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável. As partes foram notificadas dessa designação em 13 de Novembro de 2024, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.
5. Em conformidade com o disposto no artigo 11.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo ficou constituído em 3 de Dezembro de 2024.
6. A Requerida, tendo sido devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta e juntou aos autos o processo administrativo em 19 de Janeiro de 2025, defendendo-se por excepção e por impugnação, em síntese, nos seguintes termos:
-
A AT está vinculada à jurisdição dos Tribunais arbitrais nos termos definidos no artigo 2.º do RJAT e no artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, de onde decorre que foi intenção do legislador restringir a vinculação dos serviços e organismos ao CAAD no âmbito de pretensões que dizem respeito, especificamente, a impostos, aqui não se incluindo tributos de outra natureza, tais como as contribuições;
-
Independentemente do nomen iuris ou da natureza jurídica, a verdade é que a CSR não é, por definição, um imposto, mas sim uma contribuição, pelo que as matérias a ela respeitantes encontram-se excluídas do âmbito material da arbitragem tributária;
-
Ainda que se considerasse o Tribunal Arbitral competente para apreciar a ilegalidade dos actos de liquidação de ISP/CSR, nunca poderia este pronunciar-se sobre actos de repercussão da CSR, subsequentes e autónomos dos actos de liquidação de ISP/CSR, que não são actos tributários e que não correspondem a uma repercussão legal, mas a uma repercussão meramente económica ou de facto;
-
Verifica-se assim a incompetência do Tribunal em razão da matéria, o que consubstancia uma excepção dilatória nos termos dos artigos 576.º, n.º 1 e n.º 2 e 577.º, alínea a) do CPC, aplicáveis por via do artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT;
-
Acresce ainda que a Requerente pede que o Tribunal condene a AT a deferir o pedido de revisão oficiosa apresentado junto da Alfândega de Aveiro, de onde se conclui que o pedido arbitral da Requerente extravasa e excede a competência do Tribunal em razão da matéria, o que consubstancia uma excepção dilatória nos termos do vertido nos n.ºs 1 e 2 do artigo 576.º e alínea a) do artigo 577.º, ambos do CPC, aplicáveis por via da alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT;
-
Será parte legítima o sujeito passivo de ISP/CSR, de acordo com o disposto nos artigos 15.º e 16.º do CIEC, segundo os quais está restringida ao sujeito passivo a possibilidade de realizar o pedido de revisão do acto tributário e consequente pedido de reembolso do imposto;
-
Incorre a Requerente em erro, quando diz ser sujeito passivo de ISP, pois não sendo detentora do estatuto fiscal de Depositário Autorizado e/ou Destinatário Registado (artigo 4.º, n.º 1 do CIEC), não processou qualquer Declaração de Introdução no Consumo (“DIC”) de produtos sujeitos a ISP (artigo 10.º do CIEC), nem é sujeito passivo das liquidações de ISP/CSR objecto do pedido arbitral;
-
Diga-se, aliás, que aludindo a Requerente a “declarações”, quando se quer referir a “facturas”, estas não são DIC, as quais são processadas pelos sujeitos passivos de ISP, não podendo existir qualquer confusão jurídica e fiscal quanto à caracterização e fins de tais documentos;
-
A Requerente vem alegar a sua condição de parte legítima defendendo que suportou o encargo económico por repercussão do ISP/CSR liquidado a montante, desconhecendo‑se, porém, quem é(são) o(s) efectivo(s) sujeito(s) passivo(s), uma vez que a sua fornecedora actuou como mera intermediária na cadeia de comercialização de combustíveis;
-
Ora, atendendo ao disposto no artigo 18.º, n.º 3, da LGT, o repercutido legal não será considerado sujeito passivo;
-
No entanto, a condição de repercutido legal pode ser relevante face ao disposto na alínea a) do n.º 4 do artigo 18.º da LGT, segundo a qual, é conferido o direito de reclamação, recurso, impugnação ou de pedido de pronúncia arbitral a quem, não sendo sujeito passivo, suporte o encargo do imposto por repercussão legal;
-
Porém, a Lei n.º 55/2007, de 31 de Agosto que instituiu a CSR não contempla qualquer mecanismo de repercussão legal associado à CSR;
-
Aqui chegados, visto que a Requerente não suportou o encargo da CSR por repercussão legal, a sua legitimidade só poderá ser aferida pela qualidade de mera repercutida de facto;
-
Sendo a repercussão meramente económica esta depende, em exclusivo, da decisão dos sujeitos passivos, que, no âmbito das suas relações comerciais, regidas pelo direito civil, podem decidir transferir, ou não, e de forma total ou parcial, a carga fiscal para os seus clientes;
-
A repercussão da CSR não poderá assentar em meros juízos presuntivos, carecendo de ser provada através da demonstração objectiva da realidade dos factos através de factores inerentes às transacções comerciais;
-
Para a Requerida não resulta provado, de qualquer elemento junto aos autos, que a Requerente tenha sido consumidora final dos combustíveis adquiridos à sua fornecedora;
-
Assim, é de concluir que a Requerente não é sujeito passivo de ISP/CSR e não integra a relação tributária subjacente às liquidações contestadas, não sendo o devedor, nem quem estava obrigado ao seu pagamento ao Estado, nem um terceiro substituído que suporte a contribuição por repercussão legal, nem tão pouco corresponde ao consumidor final, pelo que não tem legitimidade nem para apresentar o pedido de revisão oficiosa nem, consequentemente, o pedido arbitral, nos termos do n.º 2, do artigo 15.º do CIEC e dos n.º 3 e 4, alínea a), do artigo 18.º da LGT;
-
Inexistindo efectiva titularidade do direito a que se arroga, carece a Requerente de legitimidade processual, o que consubstancia uma excepção dilatória nos termos do vertido nos artigos 576.º, n.º 1 e n.º 2, 577.º, alínea e) e 578.º do CPC, aplicáveis por via do artigo 29.º, n.º 1 alínea e) do RJAT;
-
Caso assim não se entenda, deve concluir-se que a Requerente carece de legitimidade substantiva, o que consubstancia uma excepção peremptória nos termos e para o efeito do disposto nos artigos 576.º n.º 1 e n.º 3 e 579.º do CPC, aplicáveis ex vi do artigo 29.º, n.º 1 alínea e) do RJAT, devendo a Requerida ser absolvida do pedido;
-
A ineptidão da petição inicial ocorre quando, como no presente caso, esta contém deficiências que comprometem irremediavelmente a sua finalidade, determinando a nulidade de todo o processo e a absolvição da instância, conforme n.º 1 do artigo 186.º, n.ºs 1 e 2 do artigo 576.º, alínea b) do artigo 577.º e alínea b) do n.º 1 do artigo 278.º, todos do CPC, aplicáveis ex vi da alínea e), do n.º 1, do artigo 29.º do RJAT;
-
O presente pedido arbitral não respeita os pressupostos legais de aceitação do requerimento/petição inicial, por violação da alínea b) do n.º 2 do artigo 10.º do RJAT, requisito essencial à aceitação do pedido;
-
Conforme dispõe expressamente a alínea b) do n.º 2 do artigo 10.º do RJAT, do pedido de constituição de tribunal arbitral deve constar a identificação do acto ou actos tributários objecto do pedido de pronúncia arbitral, sendo esta uma condição essencial para a aceitação daquele pedido;
-
Sendo aceite o pedido sem a identificação dos actos tributários cuja ilegalidade a Requerente pretende ver sindicada, não pode a Requerida exercer em toda a plenitude o contraditório nem pode o douto tribunal apreciar o pedido;
-
A Requerente faz alusão a actos tributários, sem que, em momento algum, identifique quaisquer actos de liquidação de ISP/CSR, nem as DIC submetidas pelo(s) efectivo(s) sujeito(s) passivo(s);
-
A Requerente limita-se a juntar ao pedido de revisão oficiosa e ao pedido arbitral facturas de aquisição de combustíveis à sua fornecedora, facturas estas que, no entanto, não comprovam qualquer acto tributário (e de onde também não resulta qualquer prova de repercussão da CSR, nem de pagamento de qualquer montante a título de CSR);
-
Pelo exposto, o pedido arbitral não preenche nem satisfaz os pressupostos legais de aceitação, uma vez que viola a alínea b), do n.º 2, do artigo 10.º do RJAT, devendo, consequentemente, ser declarado inepto;
-
Apenas o sujeito passivo que declarou os produtos para consumo a quem foi liquidado o imposto e que efectuou o correspondente pagamento, reúne condições para identificar os actos de liquidação, não sendo possível à AT identificar os actos de liquidação subjacentes à declaração dos produtos para o consumo, que vão sendo transaccionados ao longo da cadeia de comercialização;
-
A não identificação dos actos tributários objecto do pedido arbitral por parte da Requerente, afasta a aplicabilidade do n.º 2 do artigo 74.º da LGT e compromete, irremediavelmente, a finalidade do referido pedido;
-
Por todo o exposto, verifica-se a excepção de ineptidão da petição inicial, na medida em que o pedido arbitral não identifica qualquer acto tributário, violando o requisito da alínea b) do n.º 2 do artigo 10.º do RJAT, o que determina a nulidade de todo o processo, e, obstando a que o tribunal conheça do mérito da causa, dá lugar à absolvição da instância, por força do n.º 1 do artigo 186.º, n.ºs 1 e 2 do artigo 576.º, alínea b) do artigo 577.º e alínea b) n.º 1 do artigo 278.º, todos do CPC, aplicáveis ex vi da alínea e), do n. 1, do artigo 29.º do RJAT, devendo, consequentemente, determinar-se a nulidade de todo o processo e a absolvição da Requerida da instância;
-
Prosseguiu a Requerida para afirmar que a Requerente apresenta como causa de pedir a ilegalidade dos actos de liquidação de CSR, designadamente por via da alegada violação do direito da União Europeia pelo regime jurídico da CSR;
-
A Requerente não pede a declaração de ilegalidade dos actos de liquidação de CSR, nem a avaliação dos actos de repercussão da CSR, que teriam, necessariamente, que se verificar desde a introdução no consumo até à aquisição do combustível pela Requerente (à sua fornecedora, a qual, não sendo sujeito passivo de ISP/CSR, actuou como mera intermediária na cadeia de abastecimento de combustível);
-
O que a Requerente pede ao tribunal arbitral é que seja julgada procedente a pretensão de decisão e pronúncia arbitral do seu pedido de revisão oficiosa do acto tributário de liquidação de ISP/CSR e condenada a AT ao reembolso da CSR indevidamente liquidada, com assento na ideia errada de que vigora para a CSR um regime de repercussão legal e sem identificar qualquer nexo entre a alegada repercussão e as declarações e liquidação de Fevereiro de 2020 até Dezembro de 2022;
-
Neste sentido, verifica-se quer uma margem de ininteligibilidade na indicação do pedido, quer uma contradição entre o pedido e a causa de pedir;
-
Não podendo o tribunal arbitral satisfazer o pedido da Requerente (o de mandar deferir o seu pedido de revisão oficiosa), há uma clara contradição entre pedido e causa de pedir que torna procedente a excepção de ineptidão;
-
Ainda que a excepção dilatória de ineptidão da petição inicial seja de conhecimento oficioso, nos termos do artigo 196.º do CPC (aplicável ex vi a alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT), invoca-se a mesma na presente sede por uma dupla razão: a não identificação do acto ou actos tributários objecto do pedido de pronúncia arbitral, o que compromete irremediavelmente, nos termos da alínea b) do n.º 2 do artigo 10.º, a finalidade da petição inicial, e a contradição entre o pedido e a causa de pedir, nos termos da alínea b) do artigo 577.º do CPC, levando à nulidade de todo o processo nos termos do n.º 1 do artigo 186.º do CPC;
-
Por impugnação, defendeu que a Requerente não logrou fazer prova do que alega, designadamente que pagou e suportou integralmente o encargo do pagamento da CSR liquidado pelo(s) efectivo(s) sujeito(s) passivo(s) de ISP/CSR, não identificado(s), nem identificável(eis), por repercussão;
-
A prova de pagamento da CSR é um facto positivo e não é prova suficiente justificar a ocorrência de uma efectiva repercussão desse tributo, assente em meros juízos presuntivos, sem efectuar a demonstração objectiva da realidade dos factos através de elementos de prova que se relacionem com os factores inerentes às transacções comerciais que foram realizadas;
-
Sendo relevante frisar que não é admissível, a posteriori, que se confundam as regras do ónus da prova e respectivas consequências legais no que concerne aos factos a dar (ou não) como provados com quaisquer construções de raciocínio que eventualmente equacionem e se baseiem em “presunções” sem qualquer sustento fáctico ou legal, sob pena de subversão inconstitucional do sistema do ónus da prova e de princípios que merecem tutela constitucional, designadamente segurança jurídica, proporcionalidade, tutela jurisdicional efectiva e processo equitativo, preceituados nos artigos 2.º e 20.º da CRP, e do direito ao contraditório e à ampla defesa;
-
Não se podendo, igualmente, presumir a existência de repercussão quando se está perante uma repercussão que não é legal, mas meramente económica ou de facto;
-
Por outro lado, em momento algum o TJUE considera ilegal a CSR, pelo que não pode a AT deixar de considerar que, caso o Requerente não seja sujeito passivo, mas um alegado repercutido que não comprove que lhe foi repassado o valor da CSR, aquando da aquisição do produto combustível, bem como que não o repercutiu na esfera jurídica dos seus clientes – consumidores finais –, poderá igualmente ser-lhe recusado o reembolso, sob pena de enriquecimento sem causa do alegado repercutido;
-
Inexistindo também e qualquer decisão judicial nacional transitada em julgado que declare expressamente a ilegalidade da CSR e não estando o ordenamento jurídico português em contradição ou antinomia com o Direito da União Europeia, conclui-se que a Requerida agiu em conformidade com a legislação nacional e europeia em vigor, uma vez que está sujeita ao Princípio da Legalidade previsto no artigo 266.º, n.º 2 da CRP e artigo 55.º da LGT, não podendo esta recusar-se a aplicar normas de direito interno, em vigor, com fundamento na inconstitucionalidade ou ilegalidade, já que isso equivaleria a uma interferência nos poderes judiciais, violando o princípio da separação de poderes plasmado no artigo 2.º da CRP;
-
Tudo sem contar que, tal como entende o TJUE, um Estado-Membro pode recusar/opor‑se a um pedido de reembolso, apresentado pelo comprador repercutido, com o fundamento de não ter sido esse comprador que o pagou às autoridades fiscais, desde que, nos termos do direito interno, esse comprador possa exercer uma acção civil de repetição do indevido contra o sujeito passivo, tal como ocorre no direito nacional;
-
Assim, sempre deverá ser julgado improcedente o pedido de pronúncia arbitral, por infundado e não provado.
7. Em 22 de Janeiro de 2025, foi proferido despacho arbitral a notificar a Requerente para exercer o direito ao contraditório quanto à matéria de excepção invocada pela AT, o que aquela veio a fazer através de requerimento apresentado em 30 de Janeiro de 2025, no qual também requereu a junção ao processo de declaração emitida pela sociedade B... Lda (“B...” ou “fornecedora de combustível”). Em síntese, alegou a Requerente o seguinte:
-
De acordo com os artigos 16.º e 17.º do RJAT, em conjugação com o artigo 110.º, n.ºs 4 e 5, do CPPT, deve a Requerida ser notificada para juntar aos autos o processo administrativo completo, com as declarações da repercussão da CSR, a que a Requerente não tem acesso;
-
Quanto à competência, não pode senão concluir-se que a CSR é, não uma contribuição financeira, mas um verdadeiro imposto, dado o seu carácter inequivocamente unilateral, confirmado pela jurisprudência constante do TJUE, de tal modo que, sem prejuízo do seu nomen juris, a CSR configura um verdadeiro imposto e não poderá deixar de ser sindicado pelo Tribunal Arbitral, conforme resulta do RJAT e da Portaria n.º 112‑A/2011, de 22 de Março;
-
Todos os actos em matéria tributária que lesem direitos ou interesses legalmente protegidos são impugnáveis ou recorríveis nos termos da lei, em decorrência do princípio fundamental do acesso ao Direito e à tutela jurisdicional efectiva;
-
Têm legitimidade para intervir no processo tributário todos aqueles que demonstrem ter um interesse legalmente protegido cuja tutela dependa desse processo, ainda que não sejam legalmente responsáveis pelo cumprimento de quaisquer obrigações tributárias;
-
A ratio subjacente à atribuição de legitimidade ao repercutido prende-se com o facto de recair sobre si o sacrifício patrimonial inerente ao pagamento da prestação tributária, circunstância que o torna naturalmente lesado caso o montante liquidado não se mostre legalmente devido;
-
Não se descortina qualquer razão que justifique distinguir a repercussão legal de outras situações de repercussão de facto para efeitos de aferição da legitimidade processual do repercutido, contanto que a transmissão do encargo do imposto seja efectivamente demonstrável;
-
Interpretação essa que encontra respaldo em outros Acórdãos Arbitrais, bem como no despacho proferido pelo TJUE em 7 de Fevereiro de 2022 no âmbito do Caso Vapo Atlantic (Processo C-460/21);
-
No caso em apreço, ocorreu efectivamente repercussão sendo a Requerente a titular do direito ao reembolso da CSR repercutida no combustível que adquiriu;
-
Tendo havido repercussão do tributo, são os repercutidos quem tem legitimidade para impugnar os actos que afectaram as suas esferas jurídicas, no exercício do direito de impugnação de todos os actos lesivos que lhes é constitucionalmente garantido (artigos 20.º e 268.º, n.º 4, da CRP);
-
Essa legitimidade é assegurada, a nível do direito ordinário, tanto a nível procedimental como processual, pelos artigos 18.º, n.º 4, al. a), 54.º, n.º 2, 65.º e 95.º, n.º 1, da LGT, conjugados com os n.ºs 1 e 4 do artigo 9.º do CPPT, aplicáveis aos processos arbitrais tributários por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, na medida em que reconhecem legitimidade procedimental e processual a quem for titular de um interesse legalmente protegido;
-
Relativamente à ineptidão do requerimento inicial, não corresponde à verdade que a Requerente não tenha expressa e cabalmente identificado no seu pedido de pronúncia arbitral os actos tributários sob contenda cuja ilegalidade pretende ver apreciada porquanto a Requerente juntou aos autos a totalidade dos documentos que, enquanto entidade que suportou o encargo final do tributo, tinha em seu poder, os quais inelutavelmente atestam ter o referido tributo sido liquidado e, concomitantemente, suportado pela Requerente, enquanto consumidora final, no momento da venda do combustível pela fornecedora;
-
A eventual dificuldade que a Requerida possa ter para identificar as liquidações que ela própria emitiu aos fornecedores de combustíveis, relacionadas com as facturas em causa, é e será um problema de organização dos seus serviços, pelo que é ela própria quem deve suportar os seus hipotéticos inconvenientes;
-
Para além disso, a falta de indicação das liquidações pela Requerente está perfeitamente justificada, pois elas foram emitidas pela Requerida à empresa que apresentou as DICs e não foram notificadas à Requerente;
-
Neste contexto, não era exigível à Requerente que identificasse as liquidações que a Requerida emitiu com base nas vendas de combustíveis em causa, nem essa identificação é necessária para apurar a legalidade da cobrança de CSR ínsita nas facturas em causa;
-
A exigência de identificação das liquidações, numa situação deste tipo, em que o repercutido não tem possibilidade de as identificar e a identificação não é imprescindível para apurar a legalidade da cobrança de CSR ínsita nas facturas, seria incompatível com o princípio constitucional da proporcionalidade e o direito à tutela judicial efectiva (garantido pelos artigos 20.º e 268.º, n.º 4, da CRP), pois inviabilizaria a possibilidade prática de a Requerente impugnar contenciosamente actos que lhe aplicam tributação e lesam a sua esfera jurídica;
-
O pedido da Requerente consiste na pretensão de decisão e pronúncia arbitral do seu pedido de revisão oficiosa do acto tributário e, consequentemente, na sequência da ilegalidade dos actos de liquidação e declarações de CSR de Fevereiro de 2020 até Dezembro de 2022 e, na sequência da ilegalidade da liquidação, o direito a ser reembolsada das quantias que pagou indevidamente e juros indemnizatórios;
-
Contrariamente ao entendimento da Requerida, os pedidos da Requerente subsumem‑se ao artigo 2.º do RJAT que prevê a apreciação de pretensões que visem a declaração de ilegalidade de actos de liquidação;
-
Em consequência, entende a Requerente que não se verificam as invocadas excepções, devendo as mesmas ser decididas improcedentes.
8. Em 24 de Fevereiro de 2025, a Requerida exerceu o direito ao contraditório quanto ao documento junto aos autos pela Requerente em 30 de Janeiro de 2025, referindo, em síntese, o seguinte:
-
A Requerida mantem o já expendido em sede de Resposta, por excepção e por impugnação, designadamente que nenhum dos elementos de prova apresentados pela Requerente, sustentam o alegado facto de esta ter suportado/pago, na íntegra, os valores correspondentes à CSR liquidada a montante pelos sujeitos passivos de ISP/CSR, não identificados, nem identificáveis, por via da repercussão da mesma, no preço dos combustíveis adquiridos à sua fornecedora;
-
A B... não é, nem nunca foi titular de estatuto fiscal no âmbito do ISP e como tal nunca poderia ter sido o efectivo sujeito passivo que introduziu no consumo e liquidou o ISP e a CSR, relativamente ao combustível que veio a vender à Requerente;
-
Ou seja, a B..., LDA. não é, nem era à data dos factos, sujeito passivo de ISP e CSR, não tendo, por isso, processado as DICs ou Documentos Administrativos Únicos (DUC)/Declarações Aduaneiras de Importação (DAU/DAI), nos termos do artigo 10.º do Código dos IEC e, consequentemente, não pode ter “entregue, na qualidade de sujeito passivo” qualquer quantia a título de CSR “juntos dos cofres do Estado”, conforme afirma na sua declaração;
-
Nestes termos, entende-se que declaração da fornecedora da Requerente não apresenta relevância para a questão decidenda dos presentes autos;
-
Acresce referir que, ainda que aquela fornecedora detivesse a qualidade de sujeito passivo de liquidações de ISP/CSR, que não detinha, a declaração em causa, sem a identificação das liquidações e dos montantes alegadamente repercutidos, nunca poderia ser considerada como prova bastante, quer para efeitos de identificação das liquidações, quer para comprovar o montante que a Requerente alega ter suportado a título de CSR, não contendo a mesma qualquer informação que possa permitir estabelecer uma relação entre o combustível adquirido pela Requerente, com quaisquer liquidações de CSR.
9. Em 26 de Fevereiro de 2025, foi proferido despacho arbitral a dispensar a realização da reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT e a apresentação de alegações, pelos fundamentos aí expendidos, remetendo-se para a decisão final a apreciação da matéria de excepção, ao abrigo dos princípios da autonomia do Tribunal Arbitral na condução do processo, da celeridade, simplificação e informalidade processuais previstos nos artigos 16.º, alínea c), 19.º e 29.º, n.º 2, todos do RJAT.
II. SANEAMENTO
10. O Tribunal Arbitral colectivo foi regularmente constituído, as partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e estão regularmente representadas.
11. Para efeitos de saneamento do processo cumpre apreciar as excepções de (i) incompetência do Tribunal Arbitral, (ii) ineptidão do pedido de pronúncia arbitral e (iii) ilegitimidade da Requerente, o que será feito por esta ordem lógica, a título prévio, no âmbito da análise da matéria de direito, logo após a fixação da matéria de facto provada e não provada.
II. MATÉRIA DE FACTO
§1 – Factos provados
12. Analisada a prova produzida nos presentes autos, com relevo para a decisão da causa consideram-se provados os seguintes factos:
-
A Requerente dedica-se essencialmente à exploração de pedreiras de granito, fabricação de artefactos de cimento, fabrico de betão pronto e construção, bem como à extracção, transformação e comercialização de granitos e outras rochas ornamentais;
-
Entre os meses de Fevereiro de 2020 e Dezembro de 2022, a Requerente adquiriu gasóleo à B..., nas quantidades e qualidades constantes nas facturas por esta emitidas;
-
A Requerente apresentou pedido de revisão dos actos de liquidação de CSR emitidos por referência às facturas mencionadas na alínea anterior, que não foi objecto de decisão expressa por parte da AT;
-
Em 25 de Setembro de 2024, a Requerente apresentou o pedido arbitral que deu origem aos presentes autos;
-
Em 28 de Janeiro de 2025, a B... emitiu uma declaração com o seguinte teor: “B... Ltda, pessoa coletiva n.º ,,, com sede na ..., ...-... Viseu, pela presente declara, para os devidos efeitos, que a Contribuição de Serviço Rodoviário por si entregue, na qualidade de sujeito passivo, junto dos cofres do Estado, por referência ao combustível fornecido à empresa A..., S.A., pessoa coletiva n.º ..., relativo a 1 877 794,00 litros de gasóleo, entre o período de 01.01.2020 e 31.12.2022, foi por si integralmente repercutida na esfera da referida empresa.”.
§2 – Factos não provados
13. Analisada a prova produzida nos presentes autos, com relevo para a decisão da causa, não se consideram provados os seguintes factos:
-
Que a B... era, à data dos factos, sujeito passivo de ISP e CSR, tendo processado as DIC ou Documentos Administrativos Únicos (DUC)/Declarações Aduaneiras de Importação (DAU/DAI), nos termos do artigo 10.º do Código dos IEC e, consequentemente, entregue, na qualidade de sujeito passivo, qualquer montante a título de CSR;
-
Que a B..., no período compreendido entre Fevereiro de 2020 e Dezembro de 2022, repercutiu nas facturas emitidas à Requerente a CSR correspondente a cada um desses consumos, tendo a Requerente, por conseguinte, suportado a título de CSR, a quantia global de € 203.611,07.
-
A Requerente é a consumidora final do gasóleo adquirido à B..., não tendo repercutido o encargo económico da CSR que alegou ter suportado no preço dos bens e serviços prestados aos seus clientes.
§3 – Fundamentação da fixação da matéria de facto
14. O Tribunal Arbitral tem o dever de seleccionar os factos pertinentes para a decisão da causa, com base na sua relevância jurídica e tendo em consideração as várias soluções plausíveis das questões de Direito suscitadas pelas partes, bem como o dever de discriminar os factos provados e não provados. Porém, o Tribunal Arbitral não tem um dever de pronúncia quanto a toda a matéria de facto alegada pelas partes, em conformidade com o disposto no artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e nos artigos 596.º, n.º 1 do CPC e 607.º, n.º 3, ambos do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.
15. O Tribunal formou a sua íntima e prudente convicção quanto aos factos provados e não provados através do exame de todos os elementos probatórios carreados aos autos, que foram apreciados e avaliados com base no princípio da livre apreciação dos factos e nas regras da experiência, normalidade e racionalidade, em conformidade com os ditames fixados nos artigos 16.º, alínea e) do RJAT e 607.º, n.ºs 4 e 5 do CPC aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.
16. Os factos assentes nas alíneas a) a c), foram invocados pela Requerente e não impugnados quanto ao respectivo teor e/ou veracidade pela Requerida, sendo conformes com a prova documental carreada aos autos, razão pela que se deram como provados. O facto assente na alínea d) encontra-se certificado pelo sistema de gestão processual do CAAD. O facto assente na alínea e) encontra-se provado pela declaração da B... junta aos autos pela Requerente.
17. Relativamente ao facto dado como não provado no ponto 1), considerou este Tribunal Arbitral que a falta de junção aos autos das DIC globalizadas submetidas pela B... enquanto fornecedora de combustível, dos consequentes actos de liquidação emitidos pela AT e dos respectivos comprovativos de pagamento, que não foram também associados às facturas juntas aos autos, não permitem certificar a efectiva liquidação e pagamento da CSR pela introdução no consumo do gasóleo adquirido pela Requerente.
18. O que é ainda agravado pelo facto de a qualificação da B... como sujeito passivo de CSR ter sido fundadamente posta em crise pela Requerida, sem que a Requerente tenha logrado provar o contrário, isto é, que aquela fornecedora de combustível era, à data dos factos, titular de estatuto fiscal em sede de ISP/CSR. Significa isto que esta sociedade não poderia ter sido a responsável pela introdução daqueles produtos no consumo e pelo pagamento das respectivas liquidações de CSR, actuando tão só como mera intermediária na cadeia de abastecimento, a quem podia ou não ter sido repercutido o encargo deste tributo.
19. Quanto ao facto dado como não provado no ponto 2), impõe-se desde logo registar que a prova da repercussão pressupõe inevitavelmente como ponto de partida a demonstração de que a CSR foi inicialmente liquidada e paga pelo sujeito passivo daquele tributo aquando da introdução no consumo dos produtos a ele sujeitos – o que, conforme se viu, não foi demonstrado pela Requerente.
20. Acresce que a Requerente não cumpriu o critério a observar na prova da repercussão da CSR, tal qual fixado pelo TJUE no despacho Vapo Atlantic, proferido em 7 de Fevereiro de 2022, no processo n.º C‑460/21. Ao que aqui importa, referiu aquele Tribunal o seguinte:
“(…) ainda que, na legislação nacional, os impostos indiretos tenham sido concebidos de modo a serem repercutidos no consumidor final e que, habitualmente, no comércio, esses impostos indiretos sejam parcial ou totalmente repercutidos, não se pode afirmar de uma maneira geral que, em todos os casos, o imposto é efetivamente repercutido. A repercussão efetiva, parcial ou total, depende de vários fatores próprios de cada transação comercial e que a diferenciam de outras situações, noutros contextos. Consequentemente, a questão da repercussão ou da não repercussão em cada caso de um imposto indireto constitui uma questão de facto que é da competência do órgão jurisdicional nacional, cabendo a este último apreciar livremente os elementos de prova que lhe tenham sido submetidos (v., neste sentido, Acórdãos de 25 de fevereiro de 1988, Les Fils de Jules Bianco e Girard, 331/85, 376/85 e 378/85, EU:C:1988:97, n.º 17, e de 2 de outubro de 2003, Weber’s Wine World e o., C-147/01, EU:C:2003:533, n.º 96).
45 Não se pode no entanto admitir que, no caso dos impostos indiretos, exista uma presunção segundo a qual a repercussão teve lugar e que cabe ao contribuinte provar negativamente o contrário. Sucede o mesmo quando o contribuinte tenha sido obrigado, pela legislação nacional aplicável, a incorporar o imposto no preço de custo do produto em causa. Com efeito, essa obrigação legal não permite presumir que a totalidade do imposto tenha sido repercutida, mesmo no caso de a violação de essa obrigação conduzir a uma sanção (Acórdão de 14 de janeiro de 1997, Comateb e o., C-192/95 a C-218/95, EU:C:1997:12, n.ºs 25 e 26).
46 O direito da União exclui assim que se aplique toda e qualquer presunção ou regra em matéria de prova destinada a fazer recair sobre o operador em causa o ónus de provar que os impostos indevidamente pagos não foram repercutidos noutras pessoas e que visem impedir a apresentação de elementos de prova destinados a contestar uma pretensa repercussão (Acórdão de 21 de setembro de 2000, Michaïlidis, C-441/98 e C-442/98, EU:C:2000:479, n.º 42).
(…)
48 Nestas condições, há que responder à segunda e terceira questões que o direito da União deve ser interpretado no sentido de que se opõe a que as autoridades nacionais possam fundamentar a sua recusa de reembolsar um imposto indireto contrário à Diretiva 2008/118 na presunção de que esse imposto foi repercutido sobre terceiros e, consequentemente, no enriquecimento sem causa do sujeito passivo.”. (destaque nosso)
21. Da aplicação da jurisprudência do TJUE ao presente caso resulta que a repercussão da CSR sobre terceiros não pode em caso algum ser presumida. O que é compreensível, se se tiver em consideração que a repercussão opera aqui como um fenómeno meramente económico, com uma configuração e amplitude variáveis. Como explica Sérgio Vasques, Manual de Direito Fiscal, 2.ª edição, Almedina, 2019, p. 399:
“A repercussão (…) pod[e] operar por mais que uma forma sobre os preços. A forma mais comum é a da repercussão descendente, que se verifica quando o vendedor soma o tributo ao preço de um bem, fazendo com que o comprador o suporte: por exemplo, quando se dá um aumento do imposto sobre a cerveja e os comerciantes sobem o preço na mesma medida, fazendo com que os consumidores o suportem. A repercussão transversal verifica-se quando o vendedor soma o tributo ao preço de um bem diferente daquele que é onerado pelo tributo: por exemplo, quando se dá um aumento do imposto sobre a cerveja e os comerciantes diluem esse aumento através do agravamento do preço da generalidade das bebidas alcoólicas. Enfim, a repercussão ascendente verifica-se quando o vendedor subtrai o tributo ao preço de um bem de que é comprador, obrigando os fornecedores a suportar-lhe o peso económico: por exemplo, quando se dá um aumento do imposto sobre a cerveja e os comerciantes obrigam as empresas cervejeiras a baixar o preço nessa mesma medida.
A repercussão constitui um fenómeno que depende em larga medida das condições económicas que rodeiem uma transacção”.
22. Portanto, a ocorrência do fenómeno de repercussão descendente não pode simplesmente ser presumida, impondo-se uma análise do contexto e dos vários factores que conformam cada transacção comercial para daí extrair a conclusão de que o encargo da CSR foi total ou parcialmente “repassado” ao longo dos vários intervenientes do circuito económico até atingir o consumidor final – o que abrange, necessariamente, a repercussão na esfera da Requerente. E assim é por muito que a repercussão seja expectável e/ou pretendida na lógica de funcionamento do tributo
23. E assim continuaria a ser mesmo que a repercussão resultasse de imposição legal, tal qual clarificou o TJUE no processo n.º C‑460/21 acima citado. A este respeito, sublinha-se que ao contrário do defendido pela Requerente, não constava do regime jurídico da CSR previsto na Lei n.º 55/2007, de 31 de Agosto, na redacção vigente à data dos factos, uma qualquer norma que consagrasse a obrigação legal de repercussão deste tributo, à semelhança do que acontece por exemplo ao nível do IVA, pelo que esta, a existir, sempre teria mera natureza económica ou de facto.
24. E, diga-se, idêntica conclusão vale relativamente ao CIEC, que só por via da alteração efectuada ao artigo 2.º daquele código, concretizada pela Lei n.º 24‑E/2022, de 30 de Dezembro, é que passou a estabelecer a repercussão como pressuposto inerente aos impostos especiais de consumo. Sublinha-se, porém, que esta alteração, feita com uma “aparente” natureza interpretativa, consubstancia, em boa verdade, uma alteração inovatória não prevista nem já subsumível ao teor literal da lei pré-existente, ou seja, tem uma falsa natureza interpretativa, revelando-se assim materialmente retroactiva. Consequentemente, “[f]ica juridicamente vedada a inferência de que, sendo esta uma norma de aplicação retroactiva, o ISP, e com a ele a CSR, é, e foi, sempre repercutido nos consumidores.”, conforme referiu o Tribunal Arbitral no acórdão proferido em 30 de Julho de 2024, no processo n.º 118/2024-T, para onde se remetem maiores desenvolvimentos sobre o tema.
25. Em suma, a repercussão carecia de ser demonstrada e esse exercício não foi realizado pela Requerente, que se limitou a alegar que na CSR a repercussão é legal, bem como a juntar aos autos facturas e listagens, acompanhadas da declaração referida na alínea e) dos factos assentes, onde a B... afirma de forma genérica, vaga e abstracta, que repercutiu no combustível fornecido à Requerente a CSR por si suportada e entregue ao Estado. Quanto a esta última declaração, sublinha-se que inexistem elementos de prova nos autos que permitam corroborar os factos nela alegados, cujo teor não se poderá dar como assente, até por terem sido postos em crise pela Requerida.
26. Sucede que das facturas, listagens e da referida declaração da B... não decorre, sem mais, a prova da repercussão, sendo este um facto que carecia de demonstração perante as concretas transacções realizadas entre aquela e a Requerente.
27. Ora, apenas com base nos referidos elementos não é possível fazer a correspondência entre as operações praticadas e as declarações de introdução no consumo dos combustíveis transaccionados; não é possível estabelecer a relação entre as transacções e as DIC com as correspondentes liquidações emitidas pela AT e, finalmente, não é possível demonstrar a incorporação do encargo da CSR nas facturas emitidas à Requerente, nem tão pouco em que grau e/ou medida tal incorporação se processou. Na verdade, não ficou sequer provado que a B... suportou, ela própria, o encargo da CSR que a Requerente alega ter sido repercutido na sua esfera.
28. Por muito que a Requerente defenda (erradamente) que a AT tinha mais facilmente conhecimento de todos estes factos e que a falta da sua revelação implica a incompletude do processo administrativo, certo é que era sobre si que recaía o ónus da prova nos termos do artigo 74.º da LGT. E o respectivo incumprimento não é passível de ser sanado através da inversão do ónus da prova contra a AT, à margem da lei, nem tão pouco pela possível notificação daquela ou de outros terceiros por este Tribunal para fazerem prova de tais factos. O que não viola, conforme invoca a Requerente, os princípios do acesso ao Direito e da tutela jurisdicional efectiva, previstos nos artigos 20.º, n.º 1 e 268.º, n.º 4 da CRP. Por um lado, porque a Requerente mantém plenamente a possibilidade de exercício judicial dos seus direitos directamente contra B..., na medida em que se considere prejudicada pela actuação desta. Por outro lado, porque a possibilidade de aceder aos Tribunais para tutela das respectivas pretensões jurídicas não permite por si só justificar a desoneração para a Requerente da prova dos factos constitutivos dos direitos de que se arroga.
29. Acresce ainda ao exposto que mesmo que tivesse ficado demonstrada a repercussão da CSR, não ficou ainda assim provado que esse encargo se “cristalizou” na esfera jurídica da Requerente. Dito de outro modo, não provou a Requerente que, em última instância, foi a entidade onerada com o tributo em causa, porquanto não incorporou o seu custo no preço dos bens e serviços fornecidos aos seus clientes, que no circuito ou cadeia económico-comercial podem situar‑se como os verdadeiros consumidores finais. Foi por isso que não se deu como provado o facto constante do ponto 3) supra.
30. Por fim, regista-se que não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, que apesar de serem apresentadas como factos, consistem em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.
IV. MATÉRIA DE DIREITO
IV.1. Questões prévias – saneamento
§1 – Incompetência do Tribunal Arbitral
31. Quanto à apreciação da competência material deste Tribunal Arbitral para conhecer do pedido formulado pela Requerente, seguem-se aqui de perto as conclusões a que chegou o Tribunal Arbitral no acórdão proferido em 29 de Fevereiro de 2024, no processo n.º 467/2023‑T.
32. Assim, impõe-se em primeiro lugar aferir se, em termos gerais, o pedido formulado é arbitrável, isto é, se a apreciação de pretensões referentes à CSR se encontra ou não inserida no âmbito de competência material da arbitragem tributária.
33. Ao que aqui importa, a competência dos Tribunais Arbitrais é delimitada no RJAT nos seguintes termos:
“Artigo 2.º
Competência dos tribunais arbitrais e direito aplicável
1 - A competência dos tribunais arbitrais compreende a apreciação das seguintes pretensões:
a) A declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta;
b) A declaração de ilegalidade de actos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de actos de determinação da matéria colectável e de actos de fixação de valores patrimoniais”. (negrito nosso)
34. Âmbito material este que é por sua vez circunscrito na Portaria de Vinculação, da seguinte forma:
“Artigo 2.º
Objecto da vinculação
Os serviços e organismos referidos no artigo anterior vinculam-se à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD que tenham por objecto a apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida referidas no n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, com excepção das seguintes:
a) Pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário;
b) Pretensões relativas a actos de determinação da matéria colectável e actos de determinação da matéria tributável, ambos por métodos indirectos, incluindo a decisão do procedimento de revisão;
c) Pretensões relativas a direitos aduaneiros sobre a importação e demais impostos indirectos que incidam sobre mercadorias sujeitas a direitos de importação; e
d) Pretensões relativas à classificação pautal, origem e valor aduaneiro das mercadorias e a contingentes pautais, ou cuja resolução dependa de análise laboratorial ou de diligências a efectuar por outro Estado membro no âmbito da cooperação administrativa em matéria aduaneira.
e) Pretensões relativas à declaração de ilegalidade da liquidação de tributos com base na disposição antiabuso referida no n.º 1 do artigo 63.º do CPPT, que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos do n.º 11 do mesmo artigo.”
35. Apesar de a concatenação das referidas normas jurídicas não apresentar uma resposta incontestável quanto à arbitrabilidade de actos de liquidação de contribuições, que parecem ter sido em parte excluídos do âmbito material da arbitragem tributária pela Portaria de Vinculação – o que tem reflexo na jurisprudência arbitral que não é uniforme nesta matéria –, certo é que resulta incontroversa a inclusão no âmbito de competência material dos Tribunais Arbitrais a apreciação da legalidade de actos de liquidação de impostos.
36. Revela-se, assim, necessário, qualificar a CSR enquanto “contribuição” ou “imposto”, para daí extrair as necessárias consequências quanto à competência material deste Tribunal Arbitral. Esta análise tem sido amplamente discutida e desenvolvida pela jurisprudência, que importa aqui considerar em cumprimento do desiderato de interpretação e aplicação uniforme do direito que emana do artigo 8.º, n.º 3 do Código Civil.
37. Nas decisões arbitrais proferidas nos processos n.ºs 31/2023-T, 508/2023-T e 520/2023-T a CSR foi qualificada como uma contribuição, o que levou aqueles Tribunais Arbitrais a julgar procedente a excepção de incompetência material. No acórdão proferido em 16 de Novembro de 2023, no processo n.º 520/2023-T, referiu-se a este respeito o seguinte:
“(…) nem se pode aceitar, à face da presunção de que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil), que fosse atribuída à CSR a designação de «contribuição» se legislativamente se pretendesse que ela fosse considerada como um «imposto» e não como uma das «demais contribuições financeiras a favor das entidades públicas» a que aludem o artigo 165.º, n.º 1, alínea i) da CRP e o artigo 3.º, n.º 2, da LGT. A expressão do pensamento em termos adequados faz-se necessariamente através da expressão correcta e não uma outra que o dissimule.
Assim, em boa hermenêutica, é de concluir que o artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, quando se refere a «impostos», está a reportar-se apenas aos tributos a que legalmente é atribuída tal designação (como, por exemplo, o IVA, o IRC e o IRS) e àqueles que, embora tenham outra designação, a própria lei explicitamente considera «impostos» (como sucede com as «contribuições especiais que assentam na obtenção pelo sujeito passivo de benefícios ou aumentos de valor dos seus bens em resultado de obras públicas ou da criação ou ampliação de serviços públicos ou no especial desgaste de bens públicos ocasionados pelo exercício de uma actividade», que o n.º 3 do artigo 4.º da LGT identifica e expressamente considera «impostos»). E, paralelamente, aquele artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011 não se estará a reportar a tributos que pela lei são denominados como «taxas» ou «contribuições financeiras a favor das entidades públicas», que não se enquadrem na definição das referidas «contribuições especiais», mesmo que, após análise aprofundada das suas características pelo tribunal previamente definido como competente, se possa concluir que devem ser considerados como impostos especiais, designadamente para efeitos de aplicação das exigências constitucionais relativas a impostos.
No caso da CSR, é manifesto que não se está perante uma «contribuição especial» enquadrável no conceito definido no n.º 3 do artigo 4.º da LGT, pois não assenta «na obtenção pelo sujeito passivo de benefícios ou aumentos de valor dos seus bens em resultado de obras públicas ou da criação ou ampliação de serviços públicos ou no especial desgaste de bens públicos ocasionados pelo exercício de uma actividade», pelo que não há suporte literal mínimo para que seja considerada, na perspectiva legislativa, um dos «impostos» a que alude o artigo 2.º da Portaria n.º 112-/2011.”.
38. Em sentido contrário, pronunciaram-se os Tribunais Arbitrais nas decisões proferidas nos processos n.ºs 564/2020-T, 629/2021-T, 304/2022-T, 305/2020-T, 644/2022-T, 665/2022‑T, 702/2022-T, 24/2023-T, 113/2023-T, 294/2023-T e 410/2023-T, que qualificaram a CSR como imposto e, consequentemente, consideraram-na arbitrável. Por todos, cita‑se nesta sede o acórdão proferido em 24 de Outubro de 2023, no processo n.º 644/2022-T, que registou a este respeito o seguinte:
“Afigura-se a este tribunal que a CSR, não obstante um nomen iuris que pareceria integrá-la na categoria das “contribuições financeiras a favor de entidades públicas” (art. 165º, 1, i) da CRP), preenche todos os requisitos de conteúdo pecuniário, carácter coactivo, unilateralidade, definitividade, ausência de cariz sancionatório, tendo como credor o Estado ou outros entes públicos, e a afectação à realização de fins públicos – que definem um imposto.
Essa qualificação não se modifica pela circunstância de surgirem algumas correspectividades como a da obtenção de receitas para financiamento da utilização de vias públicas – pois as contribuições que assentam no especial desgaste de bens públicos são impostos, como estabelece o art. 4º, 3 da LGT.
Falta à CSR o carácter de comutatividade, bilateralidade ou sinalagmaticidade grupal ou colectiva que é necessária à contribuição financeira. O seu regime não determina, para o sujeito activo respectivo, qualquer dever de prestar específico, qualquer contraprestação exigível pelo contribuinte, o que significa que tem o carácter unilateral de um verdadeiro imposto (quando muito, alguma “paracomutatividade”, referente à compensação de prestações de que os sujeitos passivos são presumíveis causadores ou beneficiários – mas não a correspectividade bilateral estrita de uma taxa, sem uma contrapartida aproveitada ou provocada individualmente pelo sujeito passivo, como sucede numa taxa).
Basta percebermos que, enquanto a CSR é estabelecida a favor da Infraestruturas de Portugal (inicialmente, Estradas de Portugal), sendo esta a entidade titular da correspondente receita, os sujeitos passivos da contribuição são as empresas comercializadoras de combustíveis rodoviários, e, portanto, não são os destinatários da actividade da Infraestruturas de Portugal. Na sua concepção, a CSR incide sobre a gasolina e o gasóleo rodoviário sujeitos ao imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos e dele não isentos, e é devida pelos sujeitos passivos do ISP, sendo aplicável à sua liquidação, cobrança e pagamento o disposto no Código dos Impostos Especiais de Consumo.
Trata-se, assim, de um imposto de receita consignada (a consignação, desacompanhada de qualquer comutatividade, não subverte a sua natureza), e esta conclusão reforça-se com a posição veiculada pelo Tribunal de Contas na Conta Geral do Estado de 2008 (…)
Lembremos, por fim, que a CSR nasceu, com a Lei nº 55/2007, de 31 de Agosto, como um mero desdobramento do ISP, e, sobre este último, nem o nomen iuris permite dúvidas sobre a respectiva natureza.
Não há, nesse ponto, qualquer paralelo entre a CSR e a CESE (Contribuição Extraordinária Sobre o Sector Energético), relativamente à qual uma decisão arbitral (Proc. n.º 714/2020-T) entendeu procedente a excepção de incompetência ratione materiae. A CESE, criada pela Lei do Orçamento do Estado para 2014, é tida como uma contribuição extraordinária cuja receita é consignada ao Fundo para a Sustentabilidade Sistémica do Sector Energético (FSSSE), criado pelo Decreto-Lei n.º 55/2014, de 9 de Abril, tendo por base, portanto, uma contraprestação de natureza grupal, na medida em que constitui um preço público a pagar pelo conjunto de pessoas singulares ou colectivas que integram o sector energético nacional, o que configura uma bilateralidade genérica ou difusa – que pura e simplesmente não encontramos na CSR.”
39. Cabendo tomar posição, e evitando repetições desnecessárias e contrárias à economia processual que se exige, acompanha este Tribunal Arbitral a jurisprudência que qualifica a CSR como um imposto, já que este é um tributo que efectivamente não reúne as características de bilateralidade difusa e de responsabilidade de grupo inerente às contribuições. Por conseguinte, nem se revela necessário indagar se as contribuições se inserem ou não no âmbito material da arbitragem, uma vez que resulta incontroverso do RJAT e da Portaria de vinculação que tal âmbito abrange a apreciação da legalidade de questões referentes a impostos.
40. Apesar de, em termos gerais, as matérias referentes à CSR serem arbitráveis, para se concluir pela competência material do Tribunal Arbitral é ainda necessário analisar e confrontar o concreto pedido formulado pela Requerente com a delimitação que resulta do RJAT e da Portaria de Vinculação.
41. No pedido de pronúncia arbitral a Requerente concluiu com a formulação dos seguintes pedidos:
“NESTES TERMOS E NOS MELHORES DE DIREITO APLICÁVEL, REQUER A V. EXA.: A) Julgar procedente a pretensão de decisão e pronúncia arbitral do seu pedido de revisão oficiosa do acto tributário de liquidação de Imposto Sobre Produtos Petrolíferos – Contribuição de Serviços Rodoviários referentes às declarações e liquidações de 2020-02 até 2022-12, ao abrigo do art.ºs 15.º e 16.º do Código dos Imposto Especiais de Consumo, e art.ºs 3.º e seguintes do Lei n.º 55/2007, de 31 de Agosto e art.ºs 35.º e 37.º da Portaria n.º 320-A/2011, de 30 de Dezembro em conjugação com os art.ºs 65.º e 78.º da Lei Geral Tributária (LGT) e art.ºs 9.º, 10.º e 44.º do Código de Procedimento e Processo Tributário (CPPT), no valor de 203.611,07 € (duzentos e três mil, seiscentos e onze euros e sete cêntimos) (cfr. Documentos nºs 1 a 230), com o consequente reembolso pela Requerida Impugnada à Requerente Impugnante; B) E, a Requerente Impugnante, além de pedir que a Requerida Impugnada seja condenada à restituição e reembolso do imposto pago no valor global de 203.611,07 € (duzentos e três mil, seiscentos e onze euros e sete cêntimos); C) E a condenação da Requerida Impugnada no pagamento dos respectivos juros indemnizatórios; D) E a condenação da Requerida Impugnada nas custas do processo arbitral.”.
42. Ainda que imperfeitamente expresso, o que resulta dos pedidos formulados, interpretados à luz do princípio pro actione e tendo em conta a causa de pedir tal qual conformada pela Requerente, é que se pretende a declaração de ilegalidade de liquidações de CSR que foram previamente objecto de um pedido de revisão oficiosa. Ao contrário do defendido pela Requerida, o pedido da Requerente não versa a pronúncia directa e imediata sobre a ilegalidade de actos de repercussão, subsequentes e autónomos dos actos de liquidação de CSR, nem tão pouco a mera condenação da AT a deferir a revisão oficiosa.
43. Em face do exposto, julga-se improcedente a excepção dilatória de incompetência material invocada pela Requerida, por considerar este Tribunal Arbitral que o pedido formulado pela Requerente integra o âmbito material da arbitragem tributária previsto no artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do RJAT e no artigo 2.º da Portaria de Vinculação.
§2 – Ineptidão do pedido de pronúncia arbitral
44. Invocou também a Requerida a ineptidão do pedido de pronúncia arbitral por falta de objecto e por ininteligibilidade do pedido e a contradição entre este e a causa de pedir.
45. Quanto a este tema, pronunciaram-se já de forma extensa e cuidada os Tribunais Arbitrais, cuja jurisprudência cumpre aqui considerar em respeito do já mencionado artigo 8.º, n.º 3 do Código Civil. Em concreto, adere-se aqui às seguintes considerações do Tribunal Arbitral, proferidas no acórdão de 18 de Abril de 2024, referentes ao processo n.º 604/2023-T:
“ ii) Questão da ineptidão da petição inicial
A Requerida invoca ainda, a título de exceção, a ineptidão da petição inicial, alegando que a Requerente não identifica, em nenhum lado do seu pedido de pronúncia arbitral, qualquer ato ributário que a Requerente pretenda ver apreciado. Suscita apenas a declaração da “ilegalidade dos atos de repercussão da CSR consubstanciados nas faturas referentes ao gasóleo rodoviário e à gasolina adquiridos pela requerente no decurso do período compreendido entre fevereiro de 2019 e dezembro de 2022, e, bem assim, das correspondentes liquidações de CSR praticadas pela administração tributária e aduaneira com base nas DIC submetidas pelas respetivas fornecedoras de combustíveis (…), limitando-se a identificar as faturas de aquisição de combustíveis ao seu fornecedor, sem identificar qualquer ato tributário”.
Vejamos:
O artigo 98º, n.º 1, alínea a) do CPPT, subsidiariamente aplicável ao processo arbitral tributário por força do disposto no artigo 29º, n.º 1, alínea d) do RJAT, indica com uma das nulidades insanáveis do processo judicial tributário, a ineptidão da petição inicial.
Por seu turno, sobre o que se considera ser ineptidão da petição inicial, dispõe o artigo 186º, n.º 1 do CPC, também subsidiariamente aplicável ao processo arbitral tributário por força do artigo 29º, nº 1, alínea e) do RJAT, que se diz inepta a petição inicial:
a) Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir
b) Quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir;
c) Quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis.
No caso vertente estão à partida excluídas as causas das alíneas b) e c), pelo que haverá que averiguar se se verifica a situação prevista na al. a): falta ou ininteligibilidade da indicação do pedido ou da causa de pedir
O pedido existe. A Requerente pede que o Tribunal arbitral declare a ilegalidade dos atos de repercussão da CSR consubstanciados nas faturas referentes ao gasóleo rodoviário adquirido pela Requerente no período compreendido entre fevereiro de 2019 e dezembro de 2022, bem como das correspondentes liquidações de CSR praticadas pela Autoridade Tributária e Aduaneira com base nas DIC (declarações de introdução no consumo) submetidas pelas respetivas fornecedoras de combustíveis.
Contudo, o pedido compreende vários elementos.
Em primeiro lugar pede-se a anulação dos atos de repercussão consubstanciados nas faturas referentes ao gasóleo adquirido pela Requerente às suas fornecedoras. Como ficou já evidenciado através da exposição das posições das partes, é controverso se existem verdadeiros atos de repercussão. Mas esta é uma questão de qualificação jurídica, suscetível de ser debatida e analisada, não sendo, certamente, causadora de ininteligibilidade do pedido.
Em segundo lugar pede-se a anulação das liquidações de CSR “praticadas pela Autoridade Tributária e Aduaneira com base nas DIC (declarações de introdução no consumo) submetidas pelas respetivas fornecedoras de combustíveis”.
A causa de pedir de ambos os pedidos é a ilegalidade da própria CSR, por violação do Direito da União Europeia, nomeadamente da Diretiva 2008/118/CE do Conselho, de 16 de Dezembro de 2008, relativa ao regime geral dos impostos especiais de consumo, por não prosseguir “motivos específicos”. A causa de pedir é, pois, claramente inteligível.
O problema de inteligibilidade do pedido pode residir, no entender do Tribunal, no pedido de anulação das liquidações de CSR praticadas pela Autoridade Tributária e Aduaneira com base nas DIC (declarações de introdução no consumo) submetidas pelas respetivas fornecedoras de combustíveis”. Isto porque não basta que o pedido seja claro em abstrato na sua formulação, mas é ainda necessário que ele seja suficientemente concretizado para poder servir de base ao processo, ie, para que o Tribunal possa efetivamente conhecer o objeto do processo.
Concretizar o pedido, no caso do contencioso de anulação de atos administrativos, significa necessariamente identificar os atos cuja anulação se pretende, como, aliás decorre do artigo 108º do CPPT, quando estipula que “[A] impugnação será formulada em petição articulada, dirigida ao juiz do tribunal competente, em que se identifiquem o ato impugnado e a entidade que o praticou e se exponham os factos e as razões de direito que fundamentam o pedido”.
A Requerente propõe-se identificar os atos de liquidação a partir das faturas.
A Requerente começa por dizer no início do seu ppa que pretende a apreciação das “liquidações de Contribuição de Serviço Rodoviário («CSR») praticadas pela Administração Tributária e Aduaneira com base nas Declarações de Introdução no Consumo («DIC») submetidas pelas B..., S.A., C..., S.A. e D..., S.A. (doravante, abreviadamente designadas, em conjunto, por «fornecedoras de combustíveis») e, bem assim, relativo aos consequentes atos de repercussão da referida CSR consubstanciados nas faturas referentes ao gasóleo rodoviário àquelas adquiridos pela Requerente no período compreendido entre fevereiro de 2019 e dezembro de 2022.
No final do ppa, a Requerente pede que se declare a ilegalidade dos atos de repercussão da CSR consubstanciados nas faturas referentes ao gasóleo rodoviário adquirido pela requerente no decurso do período compreendido entre fevereiro de 2019 e dezembro de 2022, e, bem assim, das correspondentes liquidações de CSR.
É clara e compreensível a intenção da Requerente de identificar as liquidações de CSR impugnadas através da sua correspondência com os atos de repercussão da mesma CSR no preço das aquisições de combustível efetuadas pela Requerente às suas fornecedoras. O que seria, aliás, perfeitamente viável se estivéssemos perante uma repercussão formal, como existe no IVA.
O problema está em que uma tal correspondência, entre a liquidação de CSR e a repercussão da mesma no preço das aquisições a jusante, não é suscetível de ser realizada. Ao contrário do que acontece no IVA, em que são os atos de repercussão do IVA (no preço cobrado ao adquirente), efetuados anteriormente à liquidação de IVA propriamente dita, que determinam esta, quanto ao seu montante e quanto ao seu período temporal, existindo uma correspondência exata entre o ato de repercussão e a liquidação de IVA, na CSR (mesmo admitindo, a priori, que existem atos de repercussão, estes não estão formalmente ligados ao ato de liquidação. Pelo que é teoricamente possível a um fornecedor de combustível entregar uma declaração de introdução no consumo (DIC), dando origem a uma liquidação de CSR, no dia 1 de março, e no final desse mês ainda estar a vender combustível adquirido em fevereiro, “repercutindo” nessas vendas a CSR que suportou em fevereiro. Acresce que, como também ficou demonstrado na matéria de facto, nem sempre as entidades fornecedoras de combustível são sujeitos passivos da CSR liquidada relativamente à introdução do combustível no consumo, o que torna virtualmente impossível estabelecer um nexo seguro entre uma determinada venda de combustível e uma liquidação de CSR.
Como se assinalou quanto à matéria de facto considerada provada, só as entidades fornecedoras, na melhor das hipóteses, poderiam efetuar a correspondência entre as faturas emitidas e as liquidações de CSR. Mas tal correspondência não foi realizada.
Assim sendo, verifica-se efetivamente uma falta de concretização de uma parte do pedido, por falta de identificação dos atos de liquidação da CSR.
No entanto, só existe ineptidão da petição inicial quando a ininteligibilidade do pedido (ou da causa de pedir) for absoluta, o que não é o caso. Pois, como vimos, uma parte do pedido é perfeitamente inteligível, mesmo no que diz respeito à sua concretização: a Requerente pretende a anulação dos atos de repercussão da CSR em cada uma das faturas que identifica pelos seus números. A Requerente, além de identificar as faturas pelo seu emitente e pelo seu número, aplica a taxa da CSR e calcula o montante da repercussão. Pelo que se considera improcedente a exceção de ineptidão da petição inicial.”.
46. Ora, no presente processo o pedido da Requerente não compreende vários elementos, sendo unicamente dirigido à declaração de ilegalidade de actos de liquidação de CSR. Para identificar as referidas liquidações, a Requerente limita-se a juntar aos autos as facturas emitidas pela B... enquanto fornecedora de combustíveis. Acontece que, pelas razões enunciadas no referido acórdão às quais se adere e dão por reproduzidas, bem como pela análise feita no âmbito da apreciação da matéria de facto provada e não provada nestes autos, não resulta da mera junção de facturas e cálculo da CSR alegadamente repercutida, a suficiente identificação das liquidações contestadas, não sendo assim possível identificar quais os concretos actos de liquidação cuja legalidade se pretende sindicar.
47. O que significa que, neste caso, a excepção dilatória de ineptidão da petição inicial opera em termos absolutos, com consequentemente a absolvição da Requerida da instância nos termos conjugados dos artigos 9.º do CPPT, 65.º da LGT, 55.º, n.º 1, alínea a) e 89.º, n.ºs 2 e 4, alínea e) do CPTA, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1 do RJAT.
48. Em face do decidido, fica prejudicada, porque inútil, a apreciação das demais questões suscitadas no processo.
V. DECISÃO
49. Termos em que se decide:
-
Julgar improcedente a excepção dilatória de incompetência material do Tribunal Arbitral para apreciar actos de liquidação de CSR;
-
Julgar procedente a excepção dilatória de ineptidão da petição inicial e, em consequência, absolver a Requerida da instância;
-
Condenar a Requerente no pagamento das custas do processo.
VI. VALOR DO PROCESSO
50. Atendendo ao disposto no artigo 97.º-A do CPPT, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 203.611,07.
VII. CUSTAS
51. Nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, as custas são no valor de € 4.284,00, a suportar pela Requerente, conforme ao disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem.
Notifique-se.
Lisboa, 3 de Abril de 2025
Os árbitros,
Carla Castelo Trindade
(Presidente e Relatora)
António Manuel Melo Gonçalves
(Vencido nos termos da declaração anexa)
Sílvia Oliveira
(com declaração de voto)
DECLARAÇÃO DE VOTO VENCIDO
1. Muito embora, no uso da faculdade concedida pelo artigo 22.º, n.º 1 do RJAT, relativa a pronúncias parciais, concorde com o sentido decisório e com a fundamentação que sustenta a decisão, voto vencido em razão de entender que a jurisdição arbitral não será a adequada para apreciar a pretensão da Requerente, pelas razões que sinteticamente se passam a expor.
2. Entre a autorização legislativa concedida pela Assembleia da República através do artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28.04.2010, e o texto da Portaria n.º 112-A/2011, de 22.03.2011, (portaria de vinculação) houve uma sucessiva redução do alcance da arbitragem tributária, facto que o Prof. Doutor Sérgio Vasques, que à época exercia as funções de Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, explicou num artigo publicado na Newsletter n.º 1 do CAAD.
Escreveu ele que «A arbitragem tributária, tal como contemplada no Regime da Arbitragem Tributária veio a apresentar âmbito mais estreito relativamente ao que figurava na autorização legislativa do orçamento de estado para 2010, pela consciência de que esta era, e continua a ser, uma experiência inovadora, que não vai sem os seus riscos. Foi também com precaução que a Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, através da qual se vinculou a administração tributária ao regime, impôs vários limites desde logo atendendo à especificidade e ao valor das matérias em causa, associando-se deste modo a Administração Fiscal a este mecanismo de resolução alternativa de litígios nos estritos termos e condições estabelecidas na Portaria» [1].
3. De facto, de uma autorização legislativa que previa a possibilidade de incluir a generalidade dos litígios relativos à liquidação de tributos, o legislador veio circunscrever a vinculação da administração tributária à apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida referidas no n.º 1 do artigo 2.º do RJAT e, dentro dos impostos cuja administração lhes está cometida, ainda criou uma restrição dentro da restrição, excluindo da arbitragem o conhecimento de certas pretensões relacionadas com a tributação por ela assegurada.
4. O artigo 2.º do RJAT, enquanto norma quadro, tem de ser interpretado e conjugado com as demais normas do diploma, e o facto de o legislador no artigo 4.º ter remetido para portaria, os termos e condições da vinculação não tem significado jurídico relevante, uma vez que agiu no quadro da autorização legislativa, sem ultrapassar os limites por ela impostos.
O que se constata é que, em vez de fixar no diploma, de forma imediata, aquilo que veio a fazer constar na portaria de vinculação, o legislador usou esta técnica legislativa pela incerteza do funcionamento de um mecanismo novo de resolução de conflitos tributários, tendo em conta, por um lado, a eventual necessidade de corrigir algum aspeto que se viesse a revelar mais disfuncional e, por outro, pela possibilidade de alargar gradualmente a amplitude da arbitragem, consoante os resultados que a mesma venha a apresentar.
Com efeito, ao remeter a responsabilidade da aplicação do regime tributário da arbitragem para os responsáveis que tutelam as áreas das finanças e da justiça, envolvendo apenas dois ministérios e não o Governo como um todo, qualquer ajustamento que se mostre necessário é, assim, muito mais fácil de concretizar.
5. O artigo 2.º da portaria de vinculação ao referir que os serviços e organismos (de administração de impostos), se vinculam à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida mencionadas no n.º 1 do artigo 2.º do RJAT, só faz sentido à luz da Lei Orgânica da AT, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 118/2011, de 15 de dezembro, a qual estabelece as missões e o quadro geral de atuação dos diversos serviços técnico-normativos, com a tipicidade e especificação próprias da administração de cada tributo.
Doutro modo, se quisesse regular de forma extensiva a intervenção arbitral, bastava ter feito uma simples referência aos organismos, (a DGCI e a DGAIEC), os quais, por natureza, são estruturados por serviços (técnico normativos, serviços de finanças e alfândegas), não havendo qualquer justificação para que o legislador no n.º 1, do artigo 3.º da portaria de vinculação, tenha repetido a mesma formulação da vinculação dos «serviços e organismos».
A persistência nesta aparente dupla redundância da referência aos serviços, tem de ser interpretada num quadro de adequada expressão do pensamento legislativo e não a uma mera e solta imprecisão terminológica, devendo ser tido em conta que o artigo 9.º, n.º 2 do Código Civil estabelece que não pode ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.
6. Os quadros gerais das atribuições dos respetivos serviços técnico normativos da AT, decorrentes da publicação da portaria n.º 320-A/2011, de 30 de dezembro, e sucessivas alterações, que enformam o poder de administração dos impostos não permitem vislumbrar esse exercício relativamente à CSR, configurando-se a AT como uma mera prestadora de serviços de cobrança, pela qual é remunerada em função de uma percentagem de 2% do produto da CSR, cobrada a título de encargos de liquidação e cobrança, como é previsto no artigo 5.º, n.º 2 da Lei 55/2007, ou seja, os ideais custos de tais operações, tal como acontece, por exemplo, com a cobrança da contribuição extraordinária sobre os fornecedores da indústria de dispositivos médicos para o Serviço Nacional de Saúde ou da contribuição especial para a conservação dos recursos florestais.
7. O quadro classificativo atribuído pelo legislador à CSR, enquanto tributo, parece-nos dever ser respeitado e não ser afastado, sem mais, pelo intérprete, pois é a ele que cabe legislar, o que não deve impedir os demais poderes de exercerem a sua atividade de controlo judicial.
Não é indiferente o facto de o intérprete assumir que os tribunais arbitrais são competentes para apreciar a legalidade de atos de liquidação de CSR, disputando essa competência em plano de igualdade com os tribunais tributários de primeira instância, pois essa assunção tem consequências a nível do exercício de direitos e da realização da justiça.
No conjunto de direitos e obrigações atribuídos à concessionária Infraestruturas de Portugal por intermédio do quadro de concessão, foi-lhe conferido, no quadro dos direitos, entre outros, ter como receita o produto da CSR, (alínea b) da Base 3, do anexo ao Decreto-Lei n.º 380/2007, de 13.11.2007).
Estando em causa o cumprimento de obrigações contratuais do Estado para com entidades terceiras, igualmente pertencentes à esfera pública, o Ministério Público, enquanto defensor da legalidade e da promoção do direito público, deve, conforme o artigo 14.º, n.º 2 do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), ser ouvido nos processos judiciais antes de ser proferida a decisão final, situação que não se mostra acautelada na jurisdição arbitral.
Por outro lado, considerando que estão em causa direitos do Estado fruídos por entidades autónomas, nos termos do artigo 24.º n.º 2 do Código de Processo Civil, aplicável por força do artigo 2.º, alínea e) do CPPT, as referidas entidades autónomas deveriam ter a possibilidade de intervir no próprio processo, através de mandatário próprio, situação igualmente não assegurada na jurisdição arbitral.
8. Em conclusão, independentemente de a CSR poder ser considerada uma contribuição ou um imposto, nos termos em que se encontra estabelecida a vinculação, não está abrangida pela jurisdição arbitral, em razão de não pertencer a um tributo do universo dos impostos administrados pela AT, cabendo o conhecimento dos atos de liquidação à esfera de competências dos tribunais tributários, conforme decorre do artigo 49.º, n.º 1, alínea a), i), da Lei n.º 13/2022, de 19 de fevereiro, (ETAF).
António Manuel Melo Gonçalves
DECLARAÇÃO DE VOTO
Concordo com o sentido decisório, mas não totalmente com a sua fundamentação.
Com efeito, considerando o regime legal aplicável aos IEC e, em especial, o regime da CSR à data dos factos, a CSR é devida pelos sujeitos passivos de ISP, que são os operadores económicos identificados no artigo 4º do Código dos IEC sendo que, o facto gerador é a introdução no consumo de produtos sujeitos a imposto e o imposto é exigível aquando da introdução no consumo (vide artigos 7º, 8º e 9º do Código dos IEC), a qual é formalizada, pelos sujeitos passivos de imposto (que declaram para introdução no consumo grandes quantidades de produtos petrolíferos e energéticos, sujeitos a imposto) através de uma DIC, processada por transmissão eletrónica de dados, a qual contém todos os elementos que permitem o cálculo e a liquidação do tributo aplicável.
As introduções no consumo efectuadas num determinado mês pelos sujeitos passivos que detenham um dos estatutos previstos no Código dos IEC são globalizadas no mês seguinte, numa única liquidação, processada de forma automática (artigo 10º-A do Código dos IEC) sendo que, neste caso, os sujeitos passivos são notificados da liquidação do imposto até ao dia 15 (quinze) do mês da globalização e o imposto deve ser pago até ao último dia útil do mês em que foi notificada a liquidação (artigos 11º e 12º do Código dos IEC).
Nestes termos, a falta de indicação das liquidações pela Requerente está perfeitamente justificada, pois as liquidações foram emitidas pela Requerida às empresas (sujeitos passivos) que apresentaram as DIC’s e não foram (nem tinham de ser) notificadas à Requerente, não sendo por isso exigível à Requerente que identificasse as liquidações que a Requerida emitiu com base nas vendas de combustíveis em causa.
Contudo, no caso, dado que não resultou provado que a B... (entidade que vendeu os combustíveis à Requerente) assumia, à data dos factos, a qualidade de sujeito passivo de ISP e CSR, nem que tenha apresentado à Requerida as DIC, nos períodos a que se referem as facturas anexadas pela Requerente, nem ficou provada a identificação dos sujeitos passivos que as possam ter apresentado, nem a identificação das liquidações de CSR (que deverão ter sido processadas até ao final do dia útil seguinte àquele em que ocorra a introdução no consumo) emitidas relativamente ao combustível adquirido pela Requerente à referida entidade, nos períodos a que se referem as facturas por esta emitidas, torna-se impossível para a Requerida (não sendo somente uma questão de organização interna dos serviços), identificar as liquidações que pudessem vir a ser mandadas anular, no caso de procedência do pedido.
Na verdade, no caso em análise, tendo em consideração a prova efectuada, a identificação dos sujeitos passivos de ISP e CSR era necessária para que a Requerida pudesse identificar as referidas liquidações de CSR, cuja anulação é pedida e que estiveram na base dos actos de repercussão documentados.
Assim, inexistem no processo elementos que permitam à Requerida – e muito menos ao Tribunal Arbitral – estabelecer um nexo causal entre as facturas (enquanto actos de repercussão, não arbitráveis por este Tribunal) que titulam a repercussão da CSR (ainda que confirmada por declaração da entidade revendedora dos combustíveis) e as liquidações que lhe estão a montante e cuja anulação é pedida pela Requerente pelo que concordo com a ineptidão do pedido.
Sílvia Oliveira
[1] In https://www.caad.pt.files/documentos/newsletter/Newsletter-CAAD_out_2011.pdf.