Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 948/2024-T
Data da decisão: 2025-04-07  IVA  
Valor do pedido: € 1.988.343,73
Tema: IVA – procedimento de regularização do imposto adotado pelas associadas da APIFARMA aderentes ao Acordo
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SUMÁRIO:

I – Resulta da jurisprudência do TJUE que uma contribuição aceite no quadro de um acordo entre o estado e as empresas da indústria farmacêutica, com vista a devolver ao estado uma parcela da sua despesa com medicamentos, deve ser reconhecida como redução de preço e dar lugar à redução do valor tributável dos fornecimentos.

II – A interpretação que a Autoridade Tributária portuguesa faz da lei, no sentido de que o pagamento das contribuições resultantes do Acordo APIFARMA não dá lugar à redução do valor tributável das transmissões de bens realizadas pelas empresas em causa às entidades integrantes do SNS, mostra-se por isso contrária ao princípio da neutralidade e ao artigo 90º, nº1, da Diretiva IVA, na leitura que dele faz o TJUE.

III – É totalmente legítimo o procedimento de regularização do imposto adotado pelas associadas da APIFARMA aderentes ao Acordo, dado estarmos perante uma redução de um preço inicialmente praticado tendo-se verificado uma alteração do valor tributável e do valor do imposto devido ao Estado, pelo que tais notas de crédito consubstanciam verdadeiras reduções do preço, sob pena de, em caso contrário, estarmos perante uma clara violação do Direito da União Europeia, atentando contra o princípio fundamental da neutralidade, o princípio da igualdade de tratamento consagrado no artigo 20.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, e o princípio da contraprestação efetiva, contante dos artigos 73.º e 90.º da Diretiva IVA e do artigo 78.º do Código do IVA, como devem ser interpretados de acordo com a jurisprudência clara do TJUE, maxime, nos Casos Boehringer e Novo Nordisk.

 

Os Árbitros Guilherme W. d'Oliveira Martins, Fernando Marques Simões
Marcolino Pisão Pedreiro, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formar o Tribunal Arbitral Coletivo, decidem o seguinte:

 

 

DECISÃO ARBITRAL

  1. RELATÓRIO

A..., LDA., com sede na..., ..., ...– ..., ..., Oeiras, titular do número de identificação fiscal..., veio, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e no artigo 10.º, ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, requerer a CONSTITUIÇÃO DE TRIBUNAL ARBITRAL COLETIVO com designação dos árbitros pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º do referido diploma, com os fundamentos que faz constar da petição inicial que aqui junta.

É Requerida a AT.

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral Coletivo (TAC) foi aceite pelo Senhor Presidente do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) e automaticamente notificado à AT no dia 8 de agosto de 2024.

A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.° e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.° do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), o Senhor Presidente do Conselho Deontológico designou como árbitros os signatários desta decisão, tendo sido notificadas as partes em 27 de setembro de 2024, que não manifestaram vontade de recusar a designação, nos termos do artigo 11.º n.º1 alíneas a) e b) e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

O TAC encontra-se, desde 15 de outubro de 2024, regularmente constituído e é materialmente competente à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

Notificada para o efeito, a Requerida, apresentou a sua resposta a 18 de novembro de 2024.

Por despacho de 3 de dezembro de 2024, o TAC proferiu o seguinte despacho:

“1. Designa-se o dia 16 de janeiro de 2025, pelas 10h00 horas, nas instalações do CAAD como data para realização da audiência para produção de prova testemunhal.

2. Notifiquem-se as partes do presente despacho.”

            Houve realização de duas audiências, uma no dia 16 de janeiro e a segunda no dia 17 de fevereiro, na sequência de requerimentos probatórios e garantia do contraditório.

            Ambas as partes apresentaram alegações.

 

  1. DESCRIÇÃO SUMÁRIA DOS FACTOS

II.1      Posição da Requerente

 

A Requerente fundamenta o seu pedido nos seguintes termos:

  1. A Requerente é uma empresa do Grupo B... que se dedica à venda de especialidades farmacêuticas, comercialização de medicamentos de prescrição médica obrigatória e outros de venda livre, cosméticos e dispositivos médicos (cfr. informação pública disponível em https://publicacoes.mj.pt/pesquisa.aspx).
  2. A Requerente encontra-se enquadrada no regime normal mensal de entrega de declarações periódicas de IVA, em conformidade com o disposto no artigo 41.º, n.º 1, alínea a) do Código do IVA.
  3. A Requerente é uma empresa da indústria farmacêutica associada da Associação Portuguesa da Indústria Farmacêutica, a APIFARMA.
  4. Enquanto titular da autorização de introdução no mercado de diversos produtos farmacêuticos, a Requerente vende estes produtos a entidades do SNS.
  5. Pelo fornecimento de produtos farmacêuticos (mormente medicamentos) às entidades do SNS, a Requerente emite, maioritariamente, faturas com IVA à taxa reduzida de 6%, nos termos da verba 2.5 da Lista I, anexa ao Código do IVA.
  6. No âmbito da sua atividade, e à semelhança do que sucedeu com a grande maioria das empresas da indústria farmacêutica, a Requerente aderiu ao Acordo celebrado em 2016 entre o Estado e a Indústria Farmacêutica.
  7. Em resultado do subfinanciamento crónico do SNS registado em particular desde os anos 90, o Estado teve necessidade de criar instrumentos económicos e financeiros com vista a acautelar a sustentabilidade do SNS e o acesso aos medicamentos.
  8. Foi neste contexto que, em 1997, o Estado e a APIFARMA, esta última em representação da Indústria Farmacêutica, deram início a um processo de colaboração com vista à celebração de protocolos que permitissem garantir a sustentabilidade orçamental e financeira do SNS e o acesso dos cidadãos a medicamentos.
  9. Inicialmente, aqueles protocolos visavam essencialmente controlar o crescimento dos encargos do SNS. Porém, a partir de 2012, o grande objetivo passou a ser o da redução da despesa do SNS com medicamentos.
  10. Nesse sentido, foi celebrado em 2012 um Acordo entre os Ministérios da Saúde, da Economia, do Emprego e das Finanças e a Indústria Farmacêutica (“Acordo de 2012”), nos termos do qual as empresas da indústria farmacêutica aderentes se comprometiam a colaborar numa redução da despesa com medicamentos no valor de 300 milhões de euros e a prestar uma contribuição na parte que excedesse os objetivos de despesa pública com medicamentos (fixado em 2038 milhões de euros).
  11. Dado o avultado valor da contribuição que as empresas farmacêuticas tinham sido convocadas a fazer, o Acordo de 2012 foi aditado pelas partes em 2013 (“Aditamento de 2013”). Nos termos do aditamento, as empresas farmacêuticas aderentes comprometiam-se a efetuar uma  contribuição de 122 milhões de euros para a redução da despesa pública com medicamentos, mediante o pagamento de uma contribuição em valor proporcional à sua quota de mercado, calculada por referência ao mercado hospitalar total. O pagamento da contribuição era realizado mediante a emissão de notas de crédito aos hospitais.
  12. Já em junho de 2014, foi celebrado entre os Ministérios das Finanças e da Saúde e a APIFARMA, em representação da Indústria Farmacêutica, um novo Acordo (“Acordo de 2014”), através do qual as empresas aderentes se vinculavam a efetuar uma contribuição no valor de 160 milhões de euros para a redução da despesa pública com medicamentos, mediante o pagamento de uma contribuição em valor proporcional à sua quota de mercado, calculada por referência aos encargos totais do SNS. O pagamento da contribuição era realizado mediante a emissão de notas de crédito aos hospitais e/ou pagamento à Administração Central do Sistema de Saúde, I.P. (“ACSS, I.P.”).
  13. O Acordo de 2014 foi posteriormente revisto e, em novembro de 2014, foi celebrado, entre as mesmas partes, novo Acordo para 2015 (“Acordo de 2015”), através do qual as empresas farmacêuticas aderentes se vinculavam a uma contribuição no valor de 180 milhões de euros, calculada considerando o total de vendas por tipo de medicamento, com a possibilidade de acréscimo na medida da respetiva proporção, caso a empresa aderente fosse representativa de uma quota superior a 75% dos encargos totais do SNS. Caso o valor da despesa pública fosse ultrapassado, as empresas aderentes pagariam ainda o montante que excedesse o objetivo máximo, durante o primeiro trimestre de 2016. O pagamento da contribuição era realizado mediante a emissão de notas de crédito aos hospitais e/ou pagamento à ACSS, I.P.
  14. Por fim, em março de 2016, foi celebrado entre os Ministérios das Finanças, da Economia e da Saúde e a APIFARMA, em representação da Indústria Farmacêutica, um novo Acordo referente ao triénio 2016-2018 (“Acordo APIFARMA”), através do qual as empresas aderentes se vincularam a uma contribuição financeira no valor de 200 milhões de euros, com a possibilidade de acréscimo na medida da respetiva proporção, caso a empresa aderente fosse representativa de uma quota superior a 75% dos encargos totais do SNS. Caso o valor da despesa pública fosse ultrapassado, as empresas aderentes pagariam ainda o montante que excedesse o objetivo máximo, durante o primeiro trimestre de 2017, na proporção da sua responsabilidade pelo aumento da despesa pública, e com limites máximos expressamente previstos (cfr. Acordo APIFARMA, que se junta como documento n.º 1).
  15. O pagamento da contribuição era realizado mediante a emissão de notas de crédito aos hospitais e/ou pagamento à ACSS, I.P. (cfr. documento n.º 1 acima junto).
  16. Em fevereiro de 2017, foi assinado um aditamento ao Acordo APIFARMA (“Aditamento ao Acordo APIFARMA”) que, apesar de ter introduzido algumas alterações relativamente aos prazos e medidas para controlo da despesa pública, manteve, no essencial, inalteradas as disposições previstas naquele Acordo.
  17. O Acordo APIFARMA, celebrado no dia 15 de março de 2016 e revisto em 2017, foi prorrogado desde 2019 até aos dias de hoje, mantendo-se em vigor.
  18. Para além dos Acordos acima mencionados, um instrumento de angariação de receita pública com o propósito de garantir a sustentabilidade ao SNS, na vertente dos gastos com medicamentos, foi introduzido pelo artigo 168.º da Lei n.º 82-B/2014, de 31 de dezembro, que aprovou o Orçamento do Estado para 2015 (“LOE 2015”): a Contribuição Extraordinária sobre a Indústria Farmacêutica (“CEIF”).
  19. O regime da CEIF, instituído pela Lei do Orçamento do Estado para 2015 e aprovado pelo artigo 141.º da Lei n. º 42/2016, de 28 de dezembro – aqui referido apenas para efeitos de contextualização –, criou uma obrigação tributária.
  20. Conforme dispõe o artigo 5.º, n.º 2 daquele Regime, estão isentas do pagamento da CEIF as empresas do setor farmacêutico que aderem ao Acordo APIFARMA.
  21. Quer isto dizer que as empresas do setor que não assumam o compromisso voluntário de colaborar na sustentabilidade do SNS no quadro de acordos celebrados com o Estado, estão sujeitas à contribuição extraordinária.
  22. Por via da adesão ao Acordo APIFARMA, tal com aditado, a Requerente comprometeu-se a ser parte do esforço que visa assegurar a sustentabilidade do SNS e o acesso aos medicamentos e, nesse sentido, a pagar um montante proporcional à despesa que o SNS tem com os medicamentos vendidos pela Requerente (cfr. declaração de adesão ao Acordo APIFARMA, que se junta como documento n.º 2).
  23. O Acordo APIFARMA começou, assim, a produzir efeitos na esfera da Requerente na data da assinatura da declaração de adesão, em 30.03.2016 (cfr. documento n.º 2 acima junto).
  24. As contribuições decorrentes do Acordo APIFARMA podem ser realizadas: i) através da emissão de notas de crédito às entidades do SNS – estas notas de crédito compensam as faturas mais antigas anteriormente emitidas a estas entidades (no pressuposto de existirem faturas vencidas e não pagas); ou ii) através de transferência bancária a favor da ACSS, I.P. (um instituto público tutelado pelo Ministério da Saúde). Assim:
    1. O cálculo do montante destas contribuições é definido por uma fórmula fornecida pela APIFARMA e que corresponde à aplicação de uma percentagem ao valor da despesa pública com medicamentos, com base em indicadores fornecidos pelo Infarmed – Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde, I.P. (“INFARMED”) relativamente a compras de medicamentos efetuadas por hospitais (cfr. cláusula 3.º do Acordo APIFARMA, acima junto como documento n.º 1).
    2. Esta fórmula determina que cada empresa associada e aderente ao Acordo APIFARMA deve contribuir com um montante proporcional à despesa que o SNS teve com os seus medicamentos, seja através do consumo hospitalar destes medicamentos ou da comparticipação dos mesmos aos pacientes.
  25. Ao montante apurado são depois aplicadas as taxas (percentagens) previstas no Regime da CEIF.
  26. Os valores apurados são comunicados, numa base trimestral, às entidades associadas da APIFARMA, sendo efetuados quatro pagamentos trimestrais durante o ano e um pagamento de acerto no final.
  27. Esta contribuição voluntária de base contratual, em que o pagamento é efetuado pela entidade aderente uma vez transmitidos os dados relevantes, não carece de qualquer intervenção da Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT”) ou modelo declarativo oficial próprio.
  28. Este mecanismo encontra-se devidamente documentado, uma vez que os dados dos contratos, os volumes de vendas dos medicamentos e a contabilização da contribuição estão disponíveis publicamente.
  29. Através deste mecanismo – concretizado quer por via da emissão de notas de crédito, quer pelo envio de receita adicional como meio de financiamento –, as entidades do SNS diminuem a sua dívida às empresas farmacêuticas fornecedoras dos medicamentos, como é o caso da Requerente.
  30. Ao incumprimento dos compromissos assumidos com o Estado mediante a adesão ao Acordo APIFARMA não corresponde outra consequência senão a resolução do Acordo.
  31. Do procedimento adotado pela Requerente: a emissão de notas de crédito e posterior regularização, a seu favor, do IVA nelas contido 
  32. Conforme resulta da cláusula 5.ª do Acordo APIFARMA e da declaração de adesão ao mesmo, a Requerente concretiza a sua contribuição mediante a emissão de notas de crédito em benefício das entidades do SNS (cfr. ponto III.6 da declaração de adesão, acima junta como documento n.º 2, bem como a lista de notas de crédito que se junta como documento n.º 3).
  33. Para o efeito, a Requerente recebe trimestralmente comunicações da APIFARMA com indicação do montante da sua contribuição.
  34. Neste caso, aplica-se a lógica first in first out, ou seja, a Requerente concretiza a sua contribuição, trimestralmente, mediante a emissão de notas de crédito em benefício das entidades do SNS que compensam as faturas mais antigas anteriormente emitidas a estas entidades.
  35. Estas notas de crédito, que configuram documentos retificativos de faturas anteriormente emitidas às entidades do SNS, são emitidas em concretização do objetivo de redução da despesa pública com a aquisição de medicamentos, nos termos previstos no art.º 5.º do Acordo APIFARMA, ou seja, destinam-se a reduzir o preço, logo, o valor tributável, dos fornecimentos anteriormente realizados.
  36. As notas de crédito emitidas pela Requerente fazem referência ao Acordo APIFARMA (cfr. documento n.º 3 acima junto).
  37. Através do extrato das notas de crédito emitidas para o Acordo APIFARMA, é possível estabelecer uma relação entre o valor da contribuição que é devido pela Requerente, concretizado mediante a emissão das notas de crédito, e a parte que respeita a cada entidade, i.e., a parte que cada entidade deixa de pagar à Requerente por efeito do Acordo APIFARMA (cfr. extrato das notas de crédito emitidas para o Acordo que se junta como documento n.º 4).
  38. Significa isto que o montante de cada uma das notas de crédito é subtraído ao valor que as entidades do SNS devem à Requerente pela aquisição de medicamentos.
  39. Com efeito, ao aderir ao Acordo APIFARMA, a Requerente renuncia a uma fração da contrapartida que deveria ser paga pelas entidades do SNS, i.e., há efetivamente uma parte da contrapartida das vendas de medicamentos às entidades do SNS que não chega a ser recebida pela Requerente.
  40. Há, portanto, uma relação direta entre as notas de crédito emitidas ao abrigo do Acordo APIFARMA e a redução do preço que é devido pelas entidades do SNS à Requerente pelo fornecimento de medicamentos.
  41. E tal relação direta resulta não só do facto de terem sido emitidas notas de crédito que fazem referência expressa ao Acordo APIFARMA, mas também por existir uma listagem de conta corrente, que é partilhada e aceite pelas partes intervenientes (fornecedor e adquirente), que reflete exatamente essa realidade (i.e., que a nota de crédito reduz o montante devido pelas entidades do SNS à Requerente pela aquisição de medicamentos).
  42. Ora, tendo em conta que estamos perante a redução de um preço inicialmente praticado e que, portanto, se verificou uma alteração do valor tributável e do valor do imposto devido ao Estado, a Requerente considerou as notas de crédito por si emitidas às entidades do SNS nas suas declarações periódicas de IVA.
  43. Com efeito, traduzindo-se estas notas de crédito em verdadeiras reduções do preço, a Requerente regularizou, a seu favor, o IVA liquidado nas faturas inicialmente emitidas às entidades do SNS pelo fornecimento de medicamentos – imposto que a Requerente entregou nos cofres do Estado, mas que nunca chegou a receber das entidades do SNS –, em estrito cumprimento do disposto no artigo 78.º do Código do IVA e nos artigos 73.º e 90.º da Diretiva IVA.
  44. Ao abrigo da Ordem de Serviço n.º OI2023... de 09.02.2023, a Requerente foi objeto de uma inspeção tributária interna, de âmbito parcial, com vista a verificar a sua situação tributária em sede de IVA, com referência ao ano de 2020.
  45. No âmbito deste procedimento inspetivo, a Requerente foi notificada pelos SIT do Projeto de Relatório de Inspeção Tributária (“Projeto de Relatório 2020”), no qual os SIT propunham correções no montante total de € 1.498.635,85, relativas a IVA (alegadamente) indevidamente regularizado pela Requerente, a seu favor, contido em notas de crédito emitidas às entidades do SNS ao abrigo do artigo 5.º do Acordo APIFARMA.
  46. Tendo prescindido da faculdade de exercer o seu direito de audição, o referido Projeto de Relatório foi convolado em Relatório Final de Inspeção (“Relatório de Inspeção 2020”) e notificado à Requerente (cfr. documento n.º 5 que se junta).

 

II.2. Posição da Requerida

 

Por seu turno, a Requerida fundamenta a sua posição nos seguintes termos:

  1. Não se conformando com as liquidações, veio a Requerente a apresentar Reclamação Graciosa.
  2. Analisados os elementos constantes dos procedimentos de reclamação graciosa (com os n.ºs ...2024... e ...2024...), foi proferida decisão no sentido do “Indeferimento do pedido formulado nos autos, com todas as consequências legais”, tendo por base os fundamentos que se dão aqui por integralmente reproduzidos (cf. consta das Informações n.ºs 47-ISC/2024 e 48-ISC/2024, ambas de 2024-05-06, da UGC).
  3. Em resumo, considerou-se que “(…) ficou amplamente demostrado em sede de RIT, nomeadamente, através do paralelismo com a natureza jurídica da contribuição extraordinária sobre a indústria farmacêutica (CEIF), a contribuição extraordinária sobre o setor energético (CESE) e a contribuição extraordinária sobre o setor bancário (CSB), conclui-se que, também neste caso, a contribuição resultante dos Acordos celebrados consubstancia uma contribuição financeira”.
  4. Nesse sentido, acolhendo as conclusões da ação inspetiva, entendeu-se que o mecanismo utilizado pela ora Requerente – a emissão de notas de crédito aos hospitais do Serviço Nacional de Saúde (SNS), com regularização do IVA, como se fosse um abatimento ao valor das suas vendas -, conduzia a uma situação de tratamento desigual face às empresas que pagam CEIF.
  5. Com efeito, “(…) com a utilização deste mecanismo, a Reclamante reverte a seu favor, sob a forma de crédito de imposto, uma parte do valor da contribuição, correspondente ao valor do IVA que deveria entregar ao Estado. O que manifestamente se traduz numa violação dos princípios da igualdade e da equivalência, entre os diversos aderentes ao Acordo celebrado”.
  6. Ademais, “não estamos aqui na presença de qualquer das situações previstas no n.º 2 do artigo 78.º em conjugação com o n.º 7 do artigo 29.º, ambos do CIVA”.

 

 

  1. SANEAMENTO

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (vide artigos 4.º e 10.º, n.º 2, ambos do RJAT, e artigos 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

O processo não enferma de nulidades.

 

  1. Fundamentação

IV.1.    Matéria de facto

 

Factos dados como provados

Considera-se como provada a seguinte matéria de facto:

  1. A Requerente é uma empresa do Grupo B... que se dedica à venda de especialidades farmacêuticas, comercialização de medicamentos de prescrição médica obrigatória e outros de venda livre, cosméticos e dispositivos médicos (cfr. informação pública disponível em https://publicacoes.mj.pt/pesquisa.aspx).
  2. A Requerente encontra-se enquadrada no regime normal mensal de entrega de declarações periódicas de IVA, em conformidade com o disposto no artigo 41.º, n.º 1, alínea a) do Código do IVA.
  3. A Requerente é uma empresa da indústria farmacêutica associada da Associação Portuguesa da Indústria Farmacêutica, a APIFARMA.
  4. Enquanto titular da autorização de introdução no mercado de diversos produtos farmacêuticos, a Requerente vende estes produtos a entidades do SNS.
  5. Pelo fornecimento de produtos farmacêuticos (mormente medicamentos) às entidades do SNS, a Requerente emite, maioritariamente, faturas com IVA à taxa reduzida de 6%, nos termos da verba 2.5 da Lista I, anexa ao Código do IVA.
  6. No âmbito da sua atividade, e à semelhança do que sucedeu com a grande maioria das empresas da indústria farmacêutica, a Requerente aderiu ao Acordo celebrado em 2016 entre o Estado e a Indústria Farmacêutica.
  7. Em resultado do subfinanciamento crónico do SNS registado em particular desde os anos 90, o Estado teve necessidade de criar instrumentos económicos e financeiros com vista a acautelar a sustentabilidade do SNS e o acesso aos medicamentos.
  8. Foi neste contexto que, em 1997, o Estado e a APIFARMA, esta última em representação da Indústria Farmacêutica, deram início a um processo de colaboração com vista à celebração de protocolos que permitissem garantir a sustentabilidade orçamental e financeira do SNS e o acesso dos cidadãos a medicamentos.
  9. Inicialmente, aqueles protocolos visavam essencialmente controlar o crescimento dos encargos do SNS. Porém, a partir de 2012, o grande objetivo passou a ser o da redução da despesa do SNS com medicamentos.
  10. Nesse sentido, foi celebrado em 2012 um Acordo entre os Ministérios da Saúde, da Economia, do Emprego e das Finanças e a Indústria Farmacêutica (“Acordo de 2012”), nos termos do qual as empresas da indústria farmacêutica aderentes se comprometiam a colaborar numa redução da despesa com medicamentos no valor de 300 milhões de euros e a prestar uma contribuição na parte que excedesse os objetivos de despesa pública com medicamentos (fixado em 2038 milhões de euros).
  11. Dado o avultado valor da contribuição que as empresas farmacêuticas tinham sido convocadas a fazer, o Acordo de 2012 foi aditado pelas partes em 2013 (“Aditamento de 2013”). Nos termos do aditamento, as empresas farmacêuticas aderentes comprometiam-se a efetuar uma  contribuição de 122 milhões de euros para a redução da despesa pública com medicamentos, mediante o pagamento de uma contribuição em valor proporcional à sua quota de mercado, calculada por referência ao mercado hospitalar total. O pagamento da contribuição era realizado mediante a emissão de notas de crédito aos hospitais.
  12. Já em junho de 2014, foi celebrado entre os Ministérios das Finanças e da Saúde e a APIFARMA, em representação da Indústria Farmacêutica, um novo Acordo (“Acordo de 2014”), através do qual as empresas aderentes se vinculavam a efetuar uma contribuição no valor de 160 milhões de euros para a redução da despesa pública com medicamentos, mediante o pagamento de uma contribuição em valor proporcional à sua quota de mercado, calculada por referência aos encargos totais do SNS. O pagamento da contribuição era realizado mediante a emissão de notas de crédito aos hospitais e/ou pagamento à Administração Central do Sistema de Saúde, I.P. (“ACSS, I.P.”).
  13. O Acordo de 2014 foi posteriormente revisto e, em novembro de 2014, foi celebrado, entre as mesmas partes, novo Acordo para 2015 (“Acordo de 2015”), através do qual as empresas farmacêuticas aderentes se vinculavam a uma contribuição no valor de 180 milhões de euros, calculada considerando o total de vendas por tipo de medicamento, com a possibilidade de acréscimo na medida da respetiva proporção, caso a empresa aderente fosse representativa de uma quota superior a 75% dos encargos totais do SNS. Caso o valor da despesa pública fosse ultrapassado, as empresas aderentes pagariam ainda o montante que excedesse o objetivo máximo, durante o primeiro trimestre de 2016. O pagamento da contribuição era realizado mediante a emissão de notas de crédito aos hospitais e/ou pagamento à ACSS, I.P.
  14. Por fim, em março de 2016, foi celebrado entre os Ministérios das Finanças, da Economia e da Saúde e a APIFARMA, em representação da Indústria Farmacêutica, um novo Acordo referente ao triénio 2016-2018 (“Acordo APIFARMA”), através do qual as empresas aderentes se vincularam a uma contribuição financeira no valor de 200 milhões de euros, com a possibilidade de acréscimo na medida da respetiva proporção, caso a empresa aderente fosse representativa de uma quota superior a 75% dos encargos totais do SNS. Caso o valor da despesa pública fosse ultrapassado, as empresas aderentes pagariam ainda o montante que excedesse o objetivo máximo, durante o primeiro trimestre de 2017, na proporção da sua responsabilidade pelo aumento da despesa pública, e com limites máximos expressamente previstos (cfr. Acordo APIFARMA, que se junta como documento n.º 1).
  15. O pagamento da contribuição era realizado mediante a emissão de notas de crédito aos hospitais e/ou pagamento à ACSS, I.P. (cfr. documento n.º 1 acima junto).
  16. Em fevereiro de 2017, foi assinado um aditamento ao Acordo APIFARMA (“Aditamento ao Acordo APIFARMA”) que, apesar de ter introduzido algumas alterações relativamente aos prazos e medidas para controlo da despesa pública, manteve, no essencial, inalteradas as disposições previstas naquele Acordo.
  17. O Acordo APIFARMA, celebrado no dia 15 de março de 2016 e revisto em 2017, foi prorrogado desde 2019 até aos dias de hoje, mantendo-se em vigor.
  18. Para além dos Acordos acima mencionados, um instrumento de angariação de receita pública com o propósito de garantir a sustentabilidade ao SNS, na vertente dos gastos com medicamentos, foi introduzido pelo artigo 168.º da Lei n.º 82-B/2014, de 31 de dezembro, que aprovou o Orçamento do Estado para 2015 (“LOE 2015”): a Contribuição Extraordinária sobre a Indústria Farmacêutica (“CEIF”).
  19. A Requerente vem contestar PARTE dos atos tributários, decorrentes das correções promovidas pelos Serviços de Inspeção Tributária (SIT) da Unidade dos Grandes Contribuintes (UGC), a coberto das ordens de serviço n.ºs OI2023... e OI2023..., extensivas aos anos de 2020 e 2021, com base nos fundamentos constantes do respetivo relatório de inspeção tributária (RIT), que se dão aqui integralmente por reproduzidos.

 

Factos dados como não provados

Não existem quaisquer factos não provados relevantes para a decisão da causa.

 

Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

A matéria de facto foi fixada por este TAC e a convicção ficou formada com base nas peças processuais e requerimentos apresentados pelas Partes, bem como nos documentos juntos aos autos e a audiência realizada, tendo admitido, ao abrigo da livre condução do processo, todos os documentos pertinentes ao apuramento da verdade material, garantindo o pleno contraditório às partes.

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem o dever de se pronunciar sobre toda a matéria alegada, tendo antes o dever de selecionar a que interessa para a decisão, levando em consideração a causa (ou causas) de pedir que fundamenta o pedido formulado pelo autor, cfr. n.º 1 do artigo 596.º e n.ºs 2 a 4 do artigo 607.º, ambos do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi das alíneas a) e e) do n.º do artigo 29.º do RJAT e consignar se a considera provada ou não provada, cfr. n.º 2 do artigo 123.º Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT).

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do n.º 7 do artigo 110.º do CPPT, a prova documental e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, tendo em conta que, como se escreveu no Acórdão do TCA-Sul de 26-06-2014, proferido no processo n.º 07148/13[1], “o valor probatório do relatório da inspeção tributária (...) poderá ter força probatória se as asserções que do mesmo constem não forem impugnadas”.

Segundo o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal baseia a decisão, em relação às provas produzidas, na íntima convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com a experiência de vida e conhecimento das pessoas, conforme n.º 5 do artigo 607.º do CPC.

Somente quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (e.g., força probatória plena dos documentos autênticos, conforme artigo 371.º do Código Civil) é que não domina na apreciação das provas produzidas o princípio da livre apreciação.

 

IV. 2. Matéria de Direito

 

Conforme bem refere a Requente no ppa, a questão em discussão é meramente de direito e já mereceu interpretação clara do Tribunal de Justiça da União Europeia (“TJUE”) nos acórdãos Boehringer Ingelheim Pharma, C-462/16, e Boehringer Ingelheim Rcv, C-717/19, e, mais recentemente, do Tribunal Arbitral, no âmbito do processo n.º 216/2023-T.

Por via da adesão a um Acordo celebrado entre o Estado e a Indústria Farmacêutica, a Requerente comprometeu-se a ser parte do esforço que visa assegurar a sustentabilidade do Serviço Nacional de Saúde (“SNS”) e o acesso a medicamentos e, nesse sentido, assumiu a obrigação de fazer uma contribuição voluntária de montante proporcional à despesa que o SNS tem com os seus medicamentos.

A Requerente concretiza a sua contribuição mediante a emissão de notas de crédito a favor de entidades do SNS, conforme as que junta no processo.

Assim, como resultado da emissão das notas de crédito, a Requerente deixa de receber (e a entidade destinatária das notas de crédito deixa de pagar) a totalidade do preço refletido nas faturas anteriormente emitidas às entidades do SNS (ou seja a totalidade do preço de venda dos medicamentos abrangidos pelas notas de crédito emitidas), o que inequivocamente implica uma redução do valor tributável das operações tituladas por aquelas faturas (uma redução do valor tributável dessas vendas).

Existe, portanto, um nexo inequívoco entre as notas de crédito emitidas pela Requerente e a venda dos medicamentos às entidades do SNS.

Em consequência, a Requerente regulariza, a seu favor, o IVA liquidado nas vendas daqueles medicamentos às entidades do SNS, em estrito cumprimento do disposto no artigo 78.º do Código do IVA e nos artigos 73.º e 90.º da Diretiva IVA.

Não tem assim razão a Requerida, quando refere que questão já não reside em saber se em virtude do serviço prestado é exigida uma qualquer remuneração, mas antes se essa retribuição pode ser considerada como “o contravalor efetivo do serviço fornecido ao beneficiário”. Continua ainda a argumentar que o TJUE entendeu não ser tributável a atividade desenvolvida pela Apple & Pear Development Council, apontando “duas razões essenciais: Primeiro, porque se mostra impossível identificar o beneficiário concreto do serviço prestado: a atividade de promoção da pêra e de maça é uma atividade difusa, que aproveita a todo um sector, sendo impossível imputar ao produtor individual as vantagens que dela resultam. Depois, porque falta uma relação clara entre as contribuições devidas pelos produtores e as vantagens que aqueles serviços de promoção lhes possam trazer: “as contribuições (…) são sempre exigíveis ao produtor individual, independentemente da questão de saber se um serviço específico do Council lhe confere ou não uma vantagem”” (Sérgio Vasques, in Op. Cit., p. 137, citando o Acórdão Apple & Pear, já referenciado, n.º 15). Conclui assim, que no presente caso estamos perante uma atividade difusa, que aproveita a todo um sector da indústria farmacêutica, sendo impossível imputar ao produtor individual as vantagens que dela resultam. Também falta uma relação clara entre a contribuição devida pelos produtores e as vantagens que os serviços prestados pela ACSS, IP lhes possam trazer. Com efeito, nem o regime da CEIF nem o Acordo preveem quaisquer descontos ou abatimentos, reduções ou anulações de vendas.

Não podemos acompanhar os argumentos da Requerida.

Em primeiro lugar quanto ao regime do CEIF, conforme é referido pelo Professor Doutor Sérgio Vasques, no parecer junto ao processo, “a contribuição extraordinária sobre a indústria farmacêutica serve um propósito claro e assumido abertamente pelo legislador, o de obrigar a colaborar na sustentabilidade do SNS as empresas do sector que não tenham assumido o compromisso voluntário de o fazer no quadro de acordos celebrados com o estado. A contribuição extraordinária criada pela Lei do Orçamento do Estado para 2015 constitui, pois, um tributo público com contornos muito particulares, que apenas abrange as empresas que não tenham aderido ao acordo de redução de custos intermediado pela APIFARMA.”

Assim, conclui, que:

  • “Assim, nos termos do Acordo APIFARMA as empresas podem deduzir ao montante das contribuições voluntárias as suas despesas de investigação e desenvolvimento bem como os investimentos associados aos procedimentos de combate aos medicamentos falsificados e os investimentos industriais de reforço da base produtiva. Estas últimas despesas não são, porém, dedutíveis à contribuição extraordinária.
  • Vemos assim que, mantendo embora pontos de contacto, as contribuições voluntárias possuem contornos e regime bem diferentes da contribuição extraordinária. As contribuições voluntárias constituem obrigações contratuais, que resultam de um acordo de vontades entre o estado e as empresas do sector, cada qual aceitando os seus “compromissos”; a contribuição extraordinária constitui um tributo público, com fonte na lei como todos, alheio a qualquer relação contratual.”

Quanto à regularização do IVA, acompanhamos plenamente, os argumentos expendidos pela Professora Doutora Clotilde Palma, junto pela Requerente no ppa, a saber:

  1. Em Portugal, à semelhança de procedimentos idênticos existentes em diversos outros países, iniciou-se em 1997 um processo de colaboração entre o Estado e a APIFARMA (em representação da Indústria Farmacêutica), concretizado maioritariamente através da celebração de protocolos com o duplo objetivo de garantir a sustentabilidade do SNS, assim como de facilitar o acesso dos cidadãos aos medicamentos.

 

  1. Entre tais mecanismos, assumem especial relevância na situação vertente os Acordos celebrados entre o Estado, representado pelos Ministérios das Finanças, da Economia e da Saúde, e a Indústria Farmacêutica, representada pela APIFARMA, ao abrigo da qual as entidades associadas da APIFARMA se comprometem a contribuir para este esforço.

 

  1. No contexto do Acordo vigente celebrado com a APIFARMA e à semelhança dos Acordos anteriores, o procedimento adotado pela esmagadora maioria das suas associadas aderentes concretiza-se na emissão de notas de crédito a favor das entidades do SNS, que compensam/liquidam as faturas mais antigas emitidas por estas entidades, e na regularização do IVA correspondente a seu favor.

 

  1. Tais entidades:
  • Emitem faturas à taxa reduzida pelo fornecimento de medicamentos às entidades do SNS.
  • Emitem notas de crédito, que concretizam a sua contribuição para o esforço que visa assegurar a sustentabilidade do SNS e o acesso aos medicamentos, ao compensarem/liquidarem as faturas mais antigas emitidas àquelas entidades do SNS.
  • As notas de crédito com IVA fazem referência quer ao Acordo, quer às faturas a que se reportam.

 

  1. Tendo em conta as regras do IVA, a sua interpretação pela jurisprudência do TJUE e a factualidade em apreço, concluímos estarmos perante transmissões de bens onerosas sujeitas a IVA levadas a cabo por sujeitos passivos de IVA, existindo contraprestações recíprocas e um nexo de causalidade entre tais contraprestações.

 

  1. Uma das decorrências naturais do denominado princípio da contrapartida real e efectiva conforme tem vindo a ser delineado pela jurisprudência do TJUE, resulta na exclusão dos descontos, abatimentos e bónus do valor tributável do IVA.

 

  1. O valor tributável é constituído por tudo o que constitui a contrapartida recebida ou a receber pelo fornecedor da parte do adquirente, ou seja, segundo o TJUE, a contrapartida realmente recebida.

 

  1.  É este princípio da tributação da despesa efetiva que determina que não façam parte da base tributável os descontos, bónus e abatimentos.

 

  1. Dentro da mesma lógica, outra das decorrências, consubstancia-se precisamente nas regras relativas às regularizações do imposto em caso de não pagamento total ou parcial ou redução do preço.

 

  1. Em todas estas situações estamos perante regras que visam repor o princípio da contrapartida real e efetiva, tendo em vista a neutralidade do imposto.

 

  1. Ou seja, qualquer redução do preço facultada ao adquirente no momento em que se realiza uma operação tributável, independentemente da sua forma ou designação, deve ter reflexo no valor tributável e, consequentemente, no imposto a liquidar ao Estado.

 

  1. Ora, ou a redução de preço ocorre em momento anterior à operação e nesse caso o valor tributável da operação terá, desde o início, em consideração essa mesma redução de preço, ou a redução de preço ocorre em momento posterior à operação, situação esta em que, nos termos do disposto no artigo 90.º da Diretiva IVA, é forçosa a regularização do IVA a favor do sujeito passivo assim se assegurando a neutralidade do imposto.

 

  1. A assim não suceder desvirtua-se a característica básica da neutralidade deste tributo e são onerados consumos não verificados, arrecadando o Estado um montante a que não tem, naturalmente, direito.

 

  1. O TJUE pronunciou-se, em diversas ocasiões de forma clara sobre as regras de determinação do valor tributável das operações e as regularizações do IVA, salientando que o disposto no artigo 90.º, n.º 1, da Diretiva IVA, constitui uma garantia fundamental do princípio da neutralidade, procurando que o valor tributável de uma operação corresponda ao valor efetivamente recebido como contrapartida dos serviços e ou bens fornecidos.

 

  1. Caso contrário, de acordo com o TJUE, o Estado estará a receber e manter, a título definitivo, em virtude da realização de uma operação tributável, um montante de IVA superior ao efetivamente recebido pelo fornecedor por parte do adquirente, violando o aludido princípio da contraprestação efetiva, constante do artigo 73.º da Diretiva IVA.

 

  1. Por outro lado, o TJUE conclui de forma igualmente clara que o artigo 90.º da Diretiva IVA apenas permite aos Estados membros impor aos sujeitos passivos condições formais para o exercício do seu direito à regularização e não condições materiais adicionais que obstaculizem o exercício deste direito.

 

  1. Ora, no caso vertente, as associadas da APIFARMA aderentes ao Acordo não dispõem da totalidade da contrapartida dos medicamentos vendidos, mas apenas de uma parte do montante final pago, após dedução dos montantes pagos no contexto do “Acordo”.

 

  1. Nos Casos Boehringer Ingelheim Pharma GMBH & CO. KG e Boehringer Ingelheim RCV GMBH& CO. KG, cuja jurisprudência clara não poderá deixar de ser aplicável na situação concreta, tanto mais que estavam em causa situações de maior complexidade do que a presente está precisamente em análise factualidade idêntica à controvertida - mecanismos de compensação vigentes na Alemanha e na Hungria em que, à semelhança da situação em apreço, empresas farmacêuticas são chamadas a ser parte do esforço que visa assegurar o acesso a medicamentos e a terapias novas e modernas, garantindo simultaneamente a sustentabilidade orçamental.

 

  1. Ora, a decisão do TJUE nesses caso é clara no sentido de que, atendendo ao princípio da neutralidade e ao princípio da igualdade de tratamento consagrado na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, o artigo 90.º da Diretiva IVA se opõe a uma legislação nacional que prive uma empresa farmacêutica da possibilidade de reduzir a posteriori o seu valor tributável do IVA quando, por força daqueles mecanismos, tenha havido de facto, tal como no caso em apreço, uma redução do preço depois de efetuada a operação.

 

  1. Em particular no Caso Boehringer Ingelheim RCV GMBH& CO. KG, foi proferida jurisprudência suficientemente clara com factualidade similar à controvertida, tendo o TJUE afirmado que, importa unicamente que o sujeito passivo não tenha recebido a totalidade ou parte da contrapartida dos seus produtos, não sendo necessário que um sujeito passivo esteja contratualmente vinculado ao beneficiário direto de um desconto para que este último possa constituir uma redução de preço depois de efetuada a operação na aceção do artigo 90.º da Diretiva IVA.

 

  1.  Como sucede no caso do Acordo APIFARMA, neste Caso:

-  Está em causa o pagamento de uma contribuição para fazer face aos custos da saúde;

- O cálculo da contribuição é determinado tendo por base o valor de venda dos medicamentos;

- A celebração dos contratos tem base voluntária não sendo obrigatória;

- Devido ao pagamento de tal contribuição, apenas é recebido uma parte do preço definido para a comercialização dos bens apenas uma parte é recebida, existindo uma fração do preço estabelecido no fornecimento dos medicamentos que nunca chega a ser recebido devido aos acordos celebrados (independentemente de o beneficiário das entregas dos bens não ser o organismo estatal);

- A Boehringer apresentou uma declaração retificativa do IVA junto das respetivas autoridades fiscais para recuperar parte do IVA inicialmente liquidado, tendo em conta a redução do preço.

 

  1. Também neste Caso o TJUE concluiu que não poderia colher a argumentação do Governo húngaro segundo a qual, em substância, não pode haver “redução do preço”, na aceção do artigo 90.º, n.º 1, da Diretiva IVA, uma vez que não existe um nexo direto entre a contrapartida recebida pela Boehringer Ingelheim e as contribuições pagas por esta ao organismo estatal do seguro de saúde, importando unicamente que o sujeito passivo não tenha recebido a totalidade ou parte da contrapartida dos seus produtos.

 

  1. Ou seja, resulta claramente dos citados Casos Boehring que se deve fazer prevalecer a substância económica dos factos, ao abrigo dos princípios da neutralidade e da igualdade de tratamento, garantindo, independentemente do modelo de compensação adotado e desde que seja emitida documentação que permita o controlo das operações, que a contraprestação para efeitos tributáveis corresponde ao valor efetivamente recebido, ou seja, o preço de venda dos produtos diminuído dos pagamentos/descontos atribuídos pelo fornecedor efectuados com o objetivo de ter acesso a determinado mercado (como é o caso do mercado dos medicamentos sujeitos a prescrição médica).

 

  1. Tendo em conta as regras vindas de enunciar e a factualidade em apreço, facilmente concluímos estarmos perante uma redução de preço que ocorre num momento posterior à operação, pelo que, inequivocamente, as associadas da APIFARMA aderentes ao Acordo têm direito à regularização do IVA contido nas notas de crédito emitidas.”

 

E este entendimento é reforçado pelo Acórdão Novo Nordisk do TJUE, de acordo com o que a mesma Professora Doutora Clotilde Palma refere na Adenda ao parecer junta ao processo, a saber:

“Atendendo ao exposto não nos resta senão concluir que o recente Caso Novo Nordisk vem militar no sentido sufragado pela Consulente e já acolhido pelo TJUE e pelo Tribunal Arbitral na mencionada jurisprudência anterior do TJUE, reforçando-o, de que estamos no caso vertente perante uma redução de um preço inicialmente praticado tendo-se verificado uma alteração do valor tributável e do valor do imposto devido ao Estado. Destarte, tal como adequadamente as associadas da APIFARMA aderentes ao Acordo têm considerado, é nosso entendimento que as notas de crédito consubstanciam verdadeiras reduções do preço, sendo totalmente legítimo o procedimento de regularização do imposto adotado em observância do disposto no artigo 78.º do Código do IVA, conforme o previsto no artigo 90.º da Diretiva IVA.

Tal como já antes salientámos no nosso Parecer, as regras da Diretiva IVA constantes do respetivo artigo 90.º têm por objetivo que o IVA, como imposto geral sobre o consumo que respeita o princípio fundamental da neutralidade, incida exclusivamente sobre o gasto efetivo feito com a aquisição de bens e serviços, como o TJUE tem vindo sucessivamente a afirmar na sua vasta e clara jurisprudência, nomeadamente no Caso Boehringer Ingelheim RCV GMBH& CO. KG, no qual, como então verificámos, foi proferida jurisprudência suficientemente clara com factualidade similar à controvertida. No Caso Novo Nordisk, como vimos, o Tribunal veio reiterar esta jurisprudência clarificando que, ainda que estejamos perante o pagamento de um imposto a uma autoridade pública, o sujeito passivo tem o direito de reduzir a posteriori o valor tributável a título dos montantes entregues.

A assim não suceder desvirtua-se a característica básica da neutralidade deste tributo e são onerados consumos não verificados, arrecadando o Estado um montante a que não tem, naturalmente, direito.

Em todos estes Casos, está precisamente em análise factualidade idêntica à controvertida - mecanismos de compensação vigentes na Alemanha e na Hungria em que, à semelhança da situação em apreço, empresas farmacêuticas são chamadas a ser parte do esforço que visa assegurar o acesso a medicamentos e a terapias novas e modernas, garantindo simultaneamente a sustentabilidade orçamental.

Ora, a decisão do TJUE é clara no sentido de que, atendendo ao princípio da neutralidade e ao princípio da igualdade de tratamento consagrado na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, o artigo 90.º da Diretiva IVA se opõe a uma legislação nacional que prive uma empresa farmacêutica da possibilidade de reduzir a posteriori o seu valor tributável do IVA quando, por força daqueles mecanismos, tenha havido de facto, tal como no caso em apreço, uma redução do preço depois de efetuada a operação.

Dúvidas pois não podem restar que, estando nós perante jurisprudência clara com factualidade similar à controvertida, não poderão os aplicadores da lei decidir em sentido distinto.

Termos em que se conclui uma vez mais a final ser totalmente legítimo o procedimento de regularização do imposto adotado pelas associadas da APIFARMA aderentes ao Acordo, dado estarmos perante uma redução de um preço inicialmente praticado tendo-se verificado uma alteração do valor tributável e do valor do imposto devido ao Estado, pelo que tais notas de crédito consubstanciam verdadeiras reduções do preço, sob pena de, em caso contrário, estarmos perante uma clara violação do Direito da União Europeia, atentando contra o princípio fundamental da neutralidade, o princípio da igualdade de tratamento consagrado no artigo 20.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, e o princípio da contraprestação efetiva, contante dos artigos 73.º e 90.º da Diretiva IVA e do artigo 78.º do Código do IVA, como devem ser interpretados de acordo com a jurisprudência clara do TJUE, maxime, nos Casos Boehringer e Novo Nordisk.”

 

Pelo que temos de concluir pela total procedência do pedido.

Quanto ao pedido de juros indemnizatórios, o processo arbitral tributário foi concebido como meio alternativo ao processo de impugnação judicial (cfr. a autorização legislativa concedida ao Governo pelo artigo 124.º, n.º 2 – primeira parte, da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de abril – Lei do Orçamento do Estado para 2010), devendo entender-se incluídos na competência dos tribunais arbitrais que funcionam sob a égide do CAAD os poderes que, na impugnação judicial, são atribuídos aos tribunais tributários, entre os quais o de apreciar pedidos de juros indemnizatórios.

Em consequência da procedência do pedido de anulação dos atos tributários na componente dos juros compensatórios e moratórios, fica a AT vinculada, nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 24.º, do RJAT, e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, a “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”, o que inclui, para além da restituição do indevido, “o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário.”

De igual modo, o n.º 1 do artigo 100.º, da Lei Geral Tributária (LGT), aplicável ao
processo arbitral tributário por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do
RJAT, estabelece que “1 - A administração tributária está obrigada, em caso de
procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo
judicial a favor do sujeito passivo, à plena reconstituição da situação que existiria se não
tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros
indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei.”

O regime dos juros indemnizatórios consta do artigo 43.º, da LGT, que fixa o
momento a partir do qual os mesmos são devidos, por erro imputável aos serviços (n.ºs 1
e 2) ou por “outras circunstâncias” (n.º 3), bem como a respetiva taxa (n.º 4) e a
consequência do atraso na execução da sentença transitada em julgado (n.º 5).

No caso em análise, fica a Requerida obrigada ao pagamento a favor da Requerente de juros indemnizatórios sobre o valor da prestação tributária paga em excesso, a liquidar nos termos do artigo 43.º, n.º 1 da LGT.

           

 

  1. DECISÃO

 

Em face do supra exposto, o Tribunal Arbitral decide:

  1. Julgar totalmente procedente o presente pedido arbitral, com as legais consequências;
  2. Condenar a Requerida ao pagamento das custas.

 

  1. Valor do processo

 

Fixa-se o valor do processo em € 1.988.343,73, nos termos do disposto no artigo 32.º do CPTA e no artigo 97.º-A do CPPT, aplicáveis por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT, e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).

  1. Custas

 

Nos termos da Tabela I anexa ao RCPAT, as custas são no valor de € 26.010,00, a pagar pela Requerida, uma vez que o pedido foi totalmente procedente, conformemente ao disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do RCPAT.

Notifique-se.

 

 

Lisboa, 7 de abril de 2025

 

 

Os Árbitros,

 

 

(Guilherme W. d’Oliveira Martins)

 

(Fernando Marques Simões)

 

 Declaração de voto do árbitro Marcolino Pisão Pedreiro

Votei vencido no processo 216/2023-T decisão de sentido idêntico à do presente processo, tendo considerado, além do mais, que “os  acórdãos do TJUE invocados pela impugnante não versam sobre situações em que os valores em causa respeitassem ao cumprimento de obrigação tributária, diferentemente do que ocorre  no caso dos autos, não se vislumbrando que  na letra, ou na  teleologia, do art. 90º, nº 1, da Diretiva IVA e do artigo 78º, nº 2, do CIVA, que no conceito “redução do preço” (art. 90º, nº 1 da Diretiva IVA), “redução do contrato”, ou “desconto”(art. 78º, nº 2, do CIVA) se possam incluir o pagamento dum tributo.”

No entanto, no acórdão do  Tribunal de Justiça (Primeira Secção) de 12 de setembro de 2024, proferido no processo C-248/23 consta, designadamente,  o seguinte:

“(…)o argumento do Governo húngaro segundo o qual, no processo que deu origem a esse acórdão, o caráter privado da companhia de seguros de doença constituía uma diferença fundamental, ao passo que, no caso em apreço, os pagamentos controvertidos têm natureza de receita fiscal, não é pertinente. Com efeito, como resulta do n.o 33 do presente acórdão, o beneficiário efetivo dos pagamentos controvertidos não é a Administração Fiscal, mas a NEAK, que os utiliza para subvencionar o preço de compra dos medicamentos, da mesma forma que nesse processo.”

Afigura-se-me  que o acórdão em causa  incidiu sobre caso  materialmente idêntico ao dos autos e  é claro.

Assim, à luz do princípio da uniformidade na aplicação do direito europeu, voto a presente decisão.

  

                                               

(Marcolino Pisão Pedreiro)

 



[1] Disponível em www.dgsi.pt, tal como a restante jurisprudência citada sem menção de proveniência.