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SUMÁRIO
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O tribunal arbitral é competente para apreciar pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de liquidação precedidas de pedido de revisão oficiosa desse acto tributário;
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Para efeitos de cálculo da derrama municipal, em sede de IRC, não devem ser tidos em consideração os rendimentos auferidos no estrangeiro.
DECISÃO ARBITRAL
Os árbitros, Victor Calvete (Presidente), Mariana Vargas (Vogal) e Rui M. Marrana (Vogal, Relator), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral Colectivo, acordam no seguinte:
I.Relatório
1.A..., Instituição Particular de Solidariedade Social (IPSS) com o número de identificação de pessoa colectiva ..., com sede na Rua ..., n.os ... a..., ...-... Lisboa veio requerer, ao abrigo do disposto nos art.os 2.º/1 a) e 10.º/2 do DL 10/2011, de 20.1 (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária - RJAT) e dos art.os 1.º e 2.º da Portaria 112-A/2011, de 22.3 a constituição de Tribunal Arbitral e deduzir o respectivo pedido de pronúncia sobre o indeferimento do pedido de revisão oficiosa dos actos de autoliquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC), na componente de parte da derrama municipal suportada, relativos aos períodos de tributação de 2019 e 2020 num montante total de € 109.562,19.
2.É requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante referida por AT ou Requerida.
3.Em 7 de Agosto de 2024 o pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Ex.mo Presidente do CAAD e seguiu a sua normal tramitação com a notificação da AT.
4.De acordo com o preceituado nos art.os 5.º/3 a), 6.º/2 a) e 11.º/1 a) do RJAT, o Ex.mo Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os árbitros do Tribunal Arbitral colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável. As Partes, notificadas dessa designação, não manifestaram vontade de a recusar.
5.O Tribunal Arbitral ficou constituído em 15 de Outubro de 2024.
6.Em 11 de Novembro de 2024 a Requerida apresentou Resposta, com defesa por excepção e impugnação, juntando o processo administrativo.
7.Em 19 de Dezembro de 2024 foi proferido despacho dispensando a reunião prevista no art. 18.º do RJAT, facultando ao Requerente um prazo de quinze dias para se pronunciar relativamente à excepção suscitada pela AT, o que veio a acontecer em 16 de Janeiro de 2025.
Posição do Requerente
8.O Requerente pretende que o Tribunal Arbitral se pronuncie sobre a legalidade do indeferimento do procedimento administrativo que desatendeu o reconhecimento da ilegalidade (por indevida liquidação) daquela parte das autoliquidações de IRC (derrama municipal) referentes aos exercícios fiscais de 2019 e 2020 - e sobre a legalidade daquela parte das autoliquidações de IRC (derrama municipal) referentes aos exercícios fiscais de 2019 e 2020, que importa um montante total de € 109.562,19 (o qual é composto pelos montantes de 64.214,59 € e 45.347,60 € referentes a 2019 e 2020, respectivamente).
9.Assim, relativamente a 2019 o Requerente apurou um resultado fiscal positivo de 24.758.964,33 €, tendo pago, a título de derrama municipal, o montante de 371.384,46 €.
10.Posteriormente (em 30.12.2020) o Requerente apresentou uma declaração Modelo 22 de substituição, referente àquele período de 2019, ao abrigo do art. 122.º/2 do Código do IRC, no qual apurou um resultado fiscal positivo de 25.033.535,86 € e uma derrama municipal no de 375.503,04 €.
11.Sucede que o lucro tributável sobre o qual a derrama municipal incidiu encontra-se influenciado por rendimentos auferidos no estrangeiro, no montante total de 4.280.972,64 €, dando origem a um montante de derrama municipal excessivo no valor de 64.214,59 €.
12.Relativamente ao período de 2020, o Requerente apresentou em 8.7.2021 a respectiva declaração periódica de rendimentos de IRC, Modelo 22, no qual apurou um resultado fiscal positivo no montante de 79.722.898,44 € e uma derrama municipal de 1.195.843,48 €.
13.Também aqui o lucro tributável sobre o qual a derrama municipal incidiu se encontra influenciado por rendimentos obtidos no estrangeiro, no montante total de 3.023.173,25 €, dando origem a um montante de colecta de derrama municipal excessivo no valor de 45.347,60 €.
14.Conforme resulta do disposto do art. 18.º da Lei 73/2013, de 3.9, a derrama municipal, que se encontra prevista no âmbito do Regime Financeiro das Autarquias Locais e Entidades Intermunicipais, configura um verdadeiro imposto, incidindo sobre o lucro tributável sujeito e não isento de IRC. O seu valor é apurado na proporção do rendimento gerado na área geográfica de um determinado município, acrescendo ao IRC e, sendo cobrado pela AT, é transferido para o município titular daquele rendimento.
15.Conforme se referiu, o Requerente liquidou derrama municipal sobre a totalidade dos respectivos lucros tributáveis, apurados com referência aos períodos de tributação de 2019 e 2020, não podendo apurar este tributo de forma distinta, atentas as limitações inerentes ao sistema informático da AT.
16.De facto, o modelo oficial da Declaração Modelo 22 para apuramento da derrama municipal impõe, nos termos do Anexo A, a consideração do lucro tributável total apresentado no campo 302 do quadro 09. O montante desse lucro resulta parcialmente de rendimentos obtidos no estrangeiro que não devem ser tidos em conta no apuramento da derrama municipal.
17.Por isso, o Requerente deduziu revisão oficiosa dos actos de autoliquidação de IRC referente aos períodos de tributação em causa (2019 e 2020), procurando ser ressarcido do montante das derramas municipais suportadas por si naqueles anos, correspondentes a rendimentos obtidos no estrangeiro.
18.A AT indeferiu em 8.5.2024 esse pedido de revisão oficiosa por considerar não se aplicar o prazo de 4 anos previsto no art. 78.º/1 da Lei Geral Tributária (LGT) já que não existiu erro imputável aos serviços.
19.Entende, por outro lado, a AT que o regime da derrama municipal não contempla nenhuma situação que determine a possibilidade de decepar o lucro tributável, dele expurgando rendimentos que legalmente não estão excluídos da incidência real daquele tributo. Nesse sentido, aliás, a informação 853/2022, da Direcção de Serviços do IRC, de 4.11.2022, defende que o lançamento da derrama municipal, por regra, deve incidir sobre o lucro tributável sujeito e não isento de IRC, recaindo, assim, também, sobre rendimentos provenientes de fonte estrangeira.
20.O Requerente não aceita esta posição e insiste ser indevido o apuramento de derrama municipal tendo por base lucro imputável a rendimentos obtidos no estrangeiro.
21.De facto, a derrama municipal, criada pela Lei 1/79, de 2.1 (Lei das Finanças Locais), visava a realização de melhoramentos urgentes a efectuar na área da autarquia em que se situassem instalações industriais ou turísticas. A Lei 1/87 de 6.1 veio a estabelecer que essa derrama, ia até um máximo de 10% da colecta de IRC, na parte relativa ao rendimento gerado na respectiva circunscrição (art. 5.º/1 na redacção do DL 37/93 de 13.2).
22.O regime seria revogado pela Lei 42/98 de 6.8 que estabeleceu a possibilidade de os municípios lançarem anualmente uma derrama, até ao limite de 10% sobre a colecta de IRC, que proporcionalmente corresponda ao rendimento gerado na sua área geográfica por sujeitos passivos que exerçam, a título principal, uma actividade de natureza comercial, industrial ou agrícola. Este diploma especificava, aliás, que os sujeitos passivos que tenham estabelecimentos estáveis ou representações locais em mais do que um município, a colecta do IRC relativa ao rendimento gerado na circunscrição de cada município é determinada pela proporção entre a massa salarial correspondente aos estabelecimentos que o sujeito passivo nele possua e a correspondente totalidade dos seus estabelecimentos situados em território nacional.
23.Ou seja, nos sucessivos regimes sempre se afirmou que o cômputo da derrama municipal devida teria por referência os rendimentos gerados na área geográfica de um determinado município.
24.A Lei 2/2007 de 15.1 (que revogou o regime anterior) estabeleceu que os municípios possam deliberar o lançamento anual de uma derrama municipal, até ao limite máximo de 1,5% incidente sobre o lucro tributável sujeito e não isento de IRC. Mas, quando os sujeitos passivos possuíssem estabelecimentos estáveis ou representações locais em mais do que um município, o lucro tributável imputável à circunscrição de cada município seria determinado pela proporção entre a massa salarial correspondente aos estabelecimentos que o sujeito passivo neles possuísse e a correspondente à totalidade dos seus estabelecimentos situados em território nacional.
25.O regime actual (denominado Regime Financeiro das Autarquias Locais) está consagrado na Lei 73/2013 de 3.9 e dispõe no seu art. 18.º/1 que [o]s municípios podem deliberar lançar uma derrama, de duração anual e que vigora até nova deliberação, até ao limite máximo de 1,5 /prct., sobre o lucro tributável sujeito e não isento de imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas (IRC), que corresponda à proporção do rendimento gerado na sua área geográfica por sujeitos passivos residentes em território português que exerçam, a título principal, uma actividade de natureza comercial, industrial ou agrícola e não residentes com estabelecimento estável nesse território.
26.O n.º 2 do mesmo artigo volta a fazer referência expressa ao lucro tributável à circunscrição de cada município a partir da totalidade dos estabelecimentos situados no território nacional, obrigando os sujeitos passivos que disponham de massa salarial alocada a mais do que um município, a identificar na sua declaração periódica de rendimentos de IRC Modelo 22 a proporção de massa salarial correspondente a cada município e efectuar o apuramento da derrama municipal que, em função daquele critério, seja devida em cada município.
27.Resulta, portanto, claro que a derrama municipal, constituindo uma receita dos municípios (nos termos do art. 14.º c) do Regime Financeiro das Autarquias Locais), tem como base relevante para o seu apuramento o lucro tributável sujeito e não isento de IRC que corresponda à proporção do rendimento gerado na sua área geográfica.
28.A contrario sensu, deve desconsiderar-se para efeitos do apuramento da derrama municipal devida em cada município o lucro tributável sujeito e não isento de IRC que não corresponda à proporção do rendimento gerado fora da circunscrição daquele município.
29.E, portanto, o rendimento que não seja gerado na circunscrição de nenhum dos municípios existentes em território português deverá ficar fora do âmbito de incidência da derrama municipal.
30.Na verdade, objectivo primordial da derrama tem sempre sido o financiamento dos municípios onde as empresas operam e desenvolvem a sua actividade, reforçando a conexão e a dependência entre os rendimentos que tenham sido gerados em determinada circunscrição geográfica e a incidência de derrama municipal sobre esses rendimentos.
31.Nesse sentido, o seu cálculo limita-se à proporção do lucro tributável que corresponda aos rendimentos gerados na circunscrição de cada município em território português.
32.De facto, não estão abrangidos pelo art. 18.º/2 os sujeitos passivos que não tenham estabelecimentos estáveis ou representações locais em mais do que um município e/ou não apresentem matéria colectável superior a 50.000 €. Nestes casos, a determinação do lucro tributável sujeito a derrama municipal deverá ser efectuada com base na presunção de que o rendimento relevante foi gerado no município onde se encontra localizada a sua sede ou direcção efectiva.
33.Ou seja, mesmo nestas situações, a presunção dirige-se apenas ao rendimento gerado em território português, sendo apenas esse totalmente imputável ao município da sede ou direcção efectiva da entidade.
34.Corroborando esta interpretação o Supremo Tribunal Administrativo (STA), no âmbito do processo n.º 03652/15.3BESNT 0924/17, de 13.1.2021 afirmou expressamente o lançamento de derrama […] tem de […] retirar da competente base de incidência, aqueles [rendimentos] que, num determinado exercício, forem obtidos fora do nosso território.
35.No mesmo sentido a decisão arbitral no proc. 554/2021-T de 15.3.2022 afirmou que os rendimentos gerados fora do território nacional […] devem ser excluídos do lucro tributável e, como tal, não podem contribuir para o cálculo da derrama municipal. Essa mesma ideia vem referida expressamente da decisão do proc. 211/2023-T (também, parcialmente no proc. 948/2023-T).
36.A não exclusão dos rendimentos obtidos ou gerados fora do território nacional – e, em consequência, fora da circunscrição de cada um dos seus municípios – violaria o disposto no art. 18.º do Regime Financeiro das Autarquias Locais e, como sugere o STA, os princípios da igualdade e da capacidade contributiva (art.os 13.º e 104.º da Constituição da República Portuguesa – CRP).
37.Debruçando-se sobre a sua situação específica, o Requerente explica que no ano de 2019 o seu lucro tributável ascendeu a 25.033.535,86 € o qual inclui 4.280.972,64 € de rendimentos obtidos no estrangeiro. Em 2020 o lucro tributável foi de 79.722.898,44 €, o qual inclui 3.023.173,25 € de rendimentos auferidos no estrangeiro.
38.O que significa que, se forem subtraídos aos lucros obtidos naqueles anos a parcela de rendimentos obtidos no estrangeiro, o valor das derramas municipais seria corrigido nos termos da tabela seguinte:
2019
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2020
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Lucro tributário corrigido
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Derrama municipal corrigida
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Lucro tributário corrigido
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Derrama municipal corrigida
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20.752.563,22 €
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311.288,45 €
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76.699.725,19 €
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1.150.495,88 €
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39.Daqui resulta que, em relação a 2019, a derrama municipal em excesso (além do valor indicado como corrigido) foi de 64.214,59 €, e que, em relação a 2020, esse excesso foi de 45.347,60 €. O somatório corresponde ao valor de 109.562,19 € cuja devolução se reclama, por ilegalidade das respectivas liquidações.
40.A AT entende não existir na lei qualquer exclusão da tributação relativamente à parte do lucro tributável obtido fora do território nacional e, por isso, não reconhece qualquer erro na autoliquidação imputável aos serviços – afastando, assim, também o prazo de quatro anos do art. 78.º/1 da LGT.
41.No entanto, o facto de o acto tributário ora impugnado ter sido liquidado pelo Requerente não exclui, por si só, a possibilidade de se considerar que o erro é imputável aos serviços.
42.Assim, quando a lei revogou do art. 78.º o anterior n.º 2 que determinava que qualquer erro de que enfermassem autoliquidações era imputável aos serviços, não tinha em vista afastar a imputabilidade aos serviços relativamente a todos os erros praticados nas autoliquidações, mas apenas evitar que essa imputabilidade se alargasse a todo e qualquer erro praticado pelos contribuintes, mesmo quando se verificasse que os mesmos actuavam de forma negligente.
43.Isso mesmo é referido na decisão do proc. 317/2022-T: será imputável aos serviços o erro do contribuinte em autoliquidação quando actuou em sintonia com orientações da Administração Tributária, gerais ou não, pois serão casos em que haverá nexo de causalidade entre a actuação da Autoridade Tributária e Aduaneira e o comportamento do contribuinte. (Nesse sentido, v. tb. Paulo Marques, ‘A Revisão do Acto Tributário: Do mea culpa à reposição da legalidade’, Cadernos IDEFF, 19, 3.ª edição revista e actualizada, Almedina, pp. 194 e 195).
44.Ora, na declaração periódica de rendimentos de IRC Modelo 22 não é possível ao contribuinte indicar o lucro tributável líquido dos rendimentos obtidos no estrangeiro, lucro esse que deverá ser utilizado como base para efeitos do apuramento da derrama municipal. Esse erro não lhe pode ser imputável, mas necessariamente à AT, cujas instruções determinam que no campo 01 do quadro 03, reservado a fornecer informações relevantes para o cálculo da derrama municipal, deverá ser inscrito o lucro tributável do regime geral e que consta do campo 302 do quadro 09 da declaração Modelo 22. Adicionalmente, o quadro 04 do Anexo A, que se destina ao cálculo da derrama municipal, determina que no subquadro 04-A – critério geral, na coluna 5 deverá ser inscrito o valor da derrama municipal a distribuir a cada município e corresponde ao produto do lucro tributável (campo 1 do quadro 03 – informações relevantes) pela taxa de derrama (coluna 2) e pelo rácio de repartição (coluna 4).
45.É, portanto, a AT que entende e determina que a derrama municipal incide sobre a totalidade do lucro tributável apurado pelos contribuintes, independentemente de ser ou não gerado em território português. O erro daí decorrente será, portanto, imputável aos serviços.
46.Nesse sentido o ac. STA de 13.12.2001, no proc. 26233 refere que a administração tributária está genericamente obrigada a actuar em conformidade com a lei (artigos 266.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa e 55.º da Lei Geral Tributária), pelo que, independentemente da prova da culpa de qualquer das pessoas ou entidades que a integram, qualquer ilegalidade não resultante de uma actuação do sujeito passivo será imputável a culpa dos próprios serviços.
47.Nestas circunstâncias o Requerente reclama não apenas a devolução dos montantes indevidamente pagos, como a condenação em juros indemnizatórios, calculados sobre o montante do imposto indevidamente suportado, de 64.214,59 € e de 45.347,60 €, desde a data do pagamento do respectivo imposto.
Posição da Requerida
48.A requerida responde por excepção e por impugnação.
49.Por excepção invoca a incompetência em razão da matéria, do tribunal arbitral, uma vez que o ppa incide sobre o indeferimento do pedido de revisão oficiosa, matéria que extravasa as competências que lhe estão reservadas por lei.
50.De facto, o art. 2.º/1 do RJAT estabelece que a competência dos tribunais arbitrais está circunscrita à apreciação da (a) declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta e (b) da declaração de ilegalidade de actos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de actos de determinação da matéria colectável e de actos de fixação de valores patrimoniais.
51.Todavia, a vinculação da administração tributária à jurisdição dos tribunais constituídos nos termos da presente lei depende de portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça, que estabelece, designadamente, o tipo e o valor máximo dos litígios abrangidos (art. 4.º/1 do RJAT).
52.Ora a Portaria 112-A/2011, de 22 de Março exclui as pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (art.º 2.º a).
53.Ora, como já referido, o pedido de pronúncia arbitral sub judice tem por objecto a autoliquidação de IRC respeitante ao exercício de 2019 e 2020, a qual foi alvo de pedido de revisão oficiosa de acto tributário, não podendo, por isso, ser apreciado pelo tribunal arbitral.
54.Assim, o legislador restringiu o conhecimento na jurisdição arbitral às pretensões que, sendo relativas à declaração de ilegalidade de actos de liquidação, tenham sido precedidas de reclamação graciosa (dada a referência ao prévio recurso à via administrativa nos termos dos art.os 131.º a 133.º do CPPT).
55.O procedimento administrativo de revisão oficiosa – usado pelo Requerente – não se inclui no requisito do art. 2.º a) da Portaria 112-A/2011, que, quando se refere ao recurso à via administrativa, se quer apenas referir aos meios previstos nos art. 131.º a 133.º do CPPT, atentos ao elemento literal e, por conseguinte, inelutável (já que envolveria uma ampliação do objecto fixado pelo legislador relativamente à vinculação da AT à jurisdição arbitral).
56.A arbitrabilidade depende, portanto, da prévia apresentação da reclamação graciosa (cf. proc. 51/2012-T), não sendo equiparável, para efeitos de competência, o procedimento de revisão oficiosa do art. 78.º da LGT (cf. 236/2013-T).
57.Isso mesmo decorreria também dos princípios constitucionais do Estado de Direito e da Separação dos Poderes (cfr. art. 2.º e 111.º da Constituição – CRP), bem como da Legalidade (art. 3.º/2 e 266.º/2 da CRP), como corolário do princípio da indisponibilidade dos créditos tributários ínsito no art. 30.º/2 da LGT, que vinculam o legislador e toda a actividade da Requerida.
58.De facto, o art. 4.º/1 do RJAT – ponderando a defesa do interesse público na vertente da indisponibilidade dos créditos tributários – faz depender a vinculação da AT do estipulado na Portaria 112-A/2011, o que impede o intérprete de amplificar esse objecto.
59.Isto porque, ao vincular-se à tutela arbitral (na qual vigora o princípio da irrevogabilidade das decisões), a AT abdicou de uma prerrogativa, a qual seria alargada se fosse admissível qualquer interpretação extensiva – o que constituiria uma manifesta inconstitucionalidade e ilegalidade.
60.Neste mesmo sentido estão ainda as decisões proferidas no CAAD nos proc.os 48/2012-T, 51/2012-T, 73/2012-T, 236/2013-T, 603/2014-T, 669/2015-T e 584/2016-T.
61.Por impugnação a AT identifica como questão central do presente processo saber se os rendimentos obtidos no estrangeiro devem ser, ou não, excluídos no cálculo da derrama municipal das sociedades residentes em território nacional, subtraindo-os ao lucro tributável sujeito e não isento de IRC apurado, conforme arguido pelo Requerente.
62.E – defendendo a não exclusão – recorda que a determinação do valor da dedução à colecta referente ao crédito de imposto por dupla tributação internacional permite que a derrama municipal seja deduzida sempre que a colecta de IRC não se mostre suficiente para os absorver na totalidade, como acontece no caso (ac. Tribunal Constitucional 603/2020; ac. STA 10.11.2021 proc. 0255/17.1BESNT).
63.Donde, se o crédito por dupla tributação internacional pode ser deduzido à fracção da colecta da derrama municipal originada por rendimentos obtidos no estrangeiro, é porque e inequivocamente tais rendimentos obtidos no estrangeiro estão sujeitos a derrama municipal.
64.A questão da exclusão dos rendimentos obtidos no estrangeiro no cálculo da derrama municipal das sociedades residentes em território nacional, deve ainda ser considerada face à situação inversa àquela a que alude o Requerente. Assim, se em vez de rendimentos obtidos no estrangeiro tivessem resultados menos valias fiscais, perdas/prejuízos, seriam de acrescer esses prejuízos ao lucro tributável sujeito e não isento de IRC apurado, para efeito de determinação da derrama municipal?
65.Por outro lado - prossegue a AT -, a questão deve analisar-se no quadro do regime da derrama municipal, prevista na Lei 73/2013, de 3.9, o qual revogou a anterior Lei das Finanças Locais introduzida pela Lei 2/2007, de 15.1.
66.Na evolução da figura da derrama são assinaláveis três marcos que contribuem para a compreensão do elemento histórico de interpretação das normas.
67.O primeiro desses marcos terá sido a criação da possibilidade de os municípios aplicarem, a título de derramas, uma taxa até 10% sobre a colecta da contribuição predial rústica e urbana, da contribuição industrial e do imposto de turismo cobrados na área do respectivo município (Lei 1/79 de 2.1), cuja receita deveria ser aplicada em melhoramentos urgentes a realizar no município.
68.No regime actual (da Lei 73/2013) fixou-se a possibilidade de os municípios deliberarem lançarem anualmente uma derrama aplicável às sociedades e outras pessoas colectivas, cuja sede ou estabelecimento se situem na sua área geográfica, por sujeitos passivos residentes em território que exerçam a título principal, uma actividade de natureza comercial, industrial ou agrícola e não residentes com estabelecimento estável messe território (art. 18.º/1). A derrama visa assim financiar os Municípios, pelos custos que estes têm de assumir face à presença, nos respectivos municípios de sociedades comerciais (infra-estruturas públicas, e manutenção destas, prestação de serviços públicos, etc.).
69.A derrama, visando a diminuição da dependência dos municípios em relação ao Estado central, assume-se actualmente como um imposto municipal, constituindo, portanto, uma expressão da autonomia financeira de que gozam as autarquias locais e concretamente os Municípios, nos termos dos art. 238.º/4 e 254.º da CRP. Essa autonomia financeira concretiza o princípio da autonomia local (art. 6.º/1 da CRP).
70.Ora o art. 18.º/1 da Lei 73/2013 determina que a derrama Municipal incide sobre o lucro tributável sujeito e não isento de IRC, correspondendo à proporção do rendimento gerado na área geográfica de cada município, por sujeitos passivos residentes em território nacional, que exerçam, a título principal, uma actividade de natureza comercial, industrial ou agrícola e não residentes com estabelecimento estável nesse território. Nestes termos, recai também sobre o lucro tributável (diferença entre os rendimentos e gastos) apurado em operações económicas realizadas no estrangeiro.
71.A contrapartida subjacente à figura da derrama municipal torna-se mais evidente quando se prevê que o valor apurado por uma sociedade comercial deve ser distribuído por tantos municípios quanto aqueles em que a sociedade actua no território nacional, ou seja, em conformidade com a fonte dos rendimentos (art.º 18º/2 da Lei 73/2013) – o que se impõe, atentos os princípios do benefício e da justiça na repartição dos encargos (art. 238.º CRP). Nesta medida deve recair também sobre o lucro tributável apurado em operações económicas realizadas no estrangeiro.
72.Na verdade, a derrama começou por incidir sobre a colecta da contribuição predial rústica e urbana, da contribuição industrial e do imposto do turismo cobrados na área do respectivo município (art. 12.º da Lei 1/79), passando a incidir sobre a colecta do IRC com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei 470-B/88 de 19.12 (art. 5.º). Essa incidência manteve-se inalterada com a Lei 42/1998 de 6.8, mas a Lei 2/2007 de 15.1 determinou que o cálculo da derrama fosse feito sobre o lucro tributável do IRC (art. 14.º). Essa incidência permanece até hoje (art. 18.º Lei 73/2013), recaindo também sobre o lucro tributável apurado em operações económicas realizadas no estrangeiro.
73.A posição do Requerente não tem fundamento em qualquer norma vigente, sendo o regime da derrama omisso quanto à determinação específica do lucro tributável sujeito à derrama, bem como quanto à respectiva liquidação, pagamento, obrigações acessórias e garantias.
74.Acrescenta depois a AT o seu entendimento no sentido de que a derrama municipal deve ser entendida como um imposto dependente do IRC, uma vez que a sua formação assenta na mesma origem (o lucro tributável sujeito e não isento a este imposto). Não obstante, a sua liquidação e exigência pode ocorrer mesmo que o imposto principal (IRC) não atinja o estádio pleno.
75.A derrama é decidida pelos municípios numa percentagem sobre o lucro tributável e não isento de IRC. Ora, no processo de apuramento deste, nenhuma excepção é feita quanto a rendimentos provenientes do estrangeiro, pelo contrário.
76.O Requerente invoca o ac. STA de 13.1.2021 (proc. 03652/15.3BESNT 0924/17) quando este conclui que ao lucro tributável apurado deveriam ser expurgados os rendimentos obtidos no estrangeiro (e não o lucro tributável resultante desses rendimentos), porquanto tais rendimentos não possuíam qualquer ligação ao município em causa, aplicando ao valor encontrado a taxa da derrama. Esta decisão olvidou, todavia, dois aspectos fundamentais no que concerne ao cálculo do lucro tributável, porquanto quer o imposto principal quer a derrama comungam das mesmas normas sobre a incidência plasmadas no CIRC, as quais têm necessariamente de ser acatadas. Desde logo o princípio da universalidade (art. 4.º/1 CIRC) na determinação do lucro tributável (integrando todo e qualquer rendimento recebido pelo sujeito passivo, independentemente da sua proveniência) e, por outro lado, a impossibilidade de se subtraírem os rendimentos obtidos no estrangeiro ao lucro tributável (quando, na lógica própria da operação, apenas se poderia subtrair o lucro tributável decorrente daqueles rendimentos).
77.Diverge ainda a AT do entendimento do acórdão quando este pretende que a base de incidência seja a proporção do lucro tributável do sujeito passivo que corresponda ao rendimento gerado na área geográfica do município, na medida em que se não admite a cobrança de derrama a estabelecimentos que registem prejuízos efectivos (apensar de num dado município gerarem rendimentos). Ora, a coincidência entre o conceito de lucro tributável para efeitos do IRC e da determinação da base de incidência da derrama tem sido reconhecida pela doutrina e pela jurisprudência do STA e resulta da melhor interpretação conjugada das normas reguladoras deste tributo que constam nomeadamente do art. 14.º/1 e 2 que não autorizam a exclusão daquela dos rendimentos provenientes do estrangeiro.
78.Prossegue a AT considerando que o Requerente não oferece – como lhe competia nos termos do art. 74.º/1 da LGT – os elementos de prova necessários ao cálculo do lucro tributável comprovadamente obtido em resultado dos rendimentos com origem no estrangeiro para efeitos do seu expurgo da base de incidência da derrama municipal.
79.É que, ao contrário do que pretende o Requerente, não basta com uma simples operação aritmética de subtracção do valor dos rendimentos obtidos no estrangeiro.
80.O Requerente deveria ter comprovado com documentos externos (passíveis de verificação pela AT), que suportassem a determinação do lucro tributável apurado em resultado dos rendimentos obtidos com origem no estrangeiro. Ora o Requerente limitou-se a juntar os balancetes analíticos e um extracto dos rendimentos de juros auferidos no âmbito do seu portfolio de investimentos financeiros, no valor 4.280.972,64 € em 2019 e de 3.023.173,25 € em 2020.
81.Por fim, a AT defende que o facto de a maioria das Convenções para a Evitar a Dupla Tributação em matéria de Impostos sobre o Rendimento (CDT) celebradas por Portugal abranger também os impostos cujos sujeitos activos são as autarquias locais, o que é o caso da derrama municipal, demonstrando, assim que a derrama consubstancia um imposto sobre o rendimento.
82.Ora nessa matéria releva a doutrina do ac. 603/2020, proferido no Recurso 172/20, da 2.ª Secção do Tribunal Constitucional que pretende averiguar, em sede de fiscalização concreta da constitucionalidade, se o entendimento segundo o qual na expressão "fracção do IRC", se inclui, ao lado da colecta do IRC enquanto imposto principal. Ora, quando este reconhece que o crédito por dupla tributação internacional pode ser deduzido à fracção da colecta da derrama originada por rendimentos obtidos no estrangeiro, isso implica que na base de cálculo da derrama estão incluídos não só os rendimentos (e gastos) provenientes do território português, mas os que têm origem no estrangeiro.
83.No mesmo sentido, o entendimento perfilhado na decisão arbitral proferida no proc. 32/2024-T, quando afirma expressamente que tendo a derrama passado a ser calculada a partir do lucro tributável – e não já a partir da colecta – há que concluir que a mesma se converteu, de uma perspectiva jurídico financeira, num adicionamento ao IRC, perdendo a sua natureza de adicional (Sérgio Vasques, 2009, ‘O sistema de tributação local e a derrama’, Fiscalidade, n.º 38, p. 121; Jónatas Machado/Paulo Nogueira da Costa, 2011, ‘As derramas municipais e o conceito de estabelecimento estável’, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor J. L. Saldanha Sanches, Coimbra Editora, Coimbra, p. 854).
84.Insiste mesmo que a lei não afirma que o rendimento se considera gerado no local da sede ou direcção efectiva da entidade que paga ou coloca à disposição os rendimentos, pelo que não pode o intérprete chegar a um resultado interpretativo que desconsidera o que a lei diz e que valoriza o que a lei não diz. Ora, da lei não resultará qualquer exclusão de rendimentos de fonte estrangeira, nem essa exclusão pode ser extraída do art. 18.º/2 da Lei n.º 73/2013.
85.Admitir-se a exclusão dos rendimentos de fonte estrangeira para efeitos de derrama municipal, implicaria tratar de modo injustificadamente diferente as entidades que desenvolvem uma actividade exclusivamente no território nacional e as que desenvolvem actividade também fora desse território, em benefício destas.
86.Conclui a Requerida considerando, por cautela, que, ainda que proceda o pedido do Requerente, esta não terá direito ao pagamento de juros indemnizatórios por não se verificar qualquer erro de facto ou de direito, imputável aos serviços, até porque o apuramento do imposto foi efectuado pelo Requerente.
87.E, mesmo que se entenda haver lugar ao pagamento de juros indemnizatórios, estes apenas seriam devidos a partir do prazo de um ano após o pedido de revisão do acto tributário por iniciativa do contribuinte, em consonância com a lógica do art. 43.º/3 c) da LGT (ac. STA de 3.7.2019, proc. 04/19.0BALSB).
Posição do Requerente relativamente à excepção da incompetência
88.Na resposta à excepção de incompetência invocada pela AT, o Requerente remeteu para tudo quanto tinha afirmado no ppa, relembrando ainda as conclusões proferidas no proc. 560/2023-T, nas quais se afirma que o pedido de revisão oficiosa constitui um meio administrativo equiparável à reclamação graciosa – tal como a própria AT assume na sua resposta, mesmo que paradoxalmente venha, em momento distinto, considerar que essa equiparação esteja legalmente vedada em sede arbitral.
89.A competência arbitral em situações de reacção a indeferimento de pedido de revisão de autoliquidação, em relação à qual não foi apresentada reclamação graciosa foi, aliás, reconhecido pelo TCA Sul no ac. de 26.5.2022 (proc. 96/17.6BCLSB, que segue jurisprudência anterior).
II.Saneamento
90.O Tribunal foi regularmente constituído e o pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado no prazo previsto no art. 10.º do RJAT.
91.As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (v. art.os 4.º e 10.º/2 do RJAT e art. 1.º da Portaria 112-A/2011, de 22.3).
92.É suscitada a excepção de incompetência em razão da matéria, questão cuja apreciação se remete para a análise da matéria de Direito.
93.Não foram identificadas outras nulidades ou questões que obstem ao conhecimento do mérito.
III.Matéria de facto
Factos provados
94.Os factos relevantes para a decisão da causa que são tidos como assentes, são os seguintes:
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Relativamente ao ano de 2019 o Requerente apresentou em 30.6.2020 a declaração de autoliquidação de IRC, modelo 22, no qual se apurava um resultado fiscal positivo de 24.758.964,33 €. Este valor foi este corrigido para 24.758.964,33 € através de declaração de substituição apresentada em 30.12.2020.
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O lucro tributável sobre o qual a derrama municipal incidiu incluía os rendimentos auferidos no estrangeiro, no montante total de 4.280.972,64 €, ao qual corresponde o valor de 64.214,59 € incluído nesse montante total da derrama municipal.
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Relativamente ao ano de 2020 o Requerente apresentou em 8.7.202 a declaração de autoliquidação de IRC, modelo 22, no qual se apurava um resultado fiscal positivo de 79.722.898,44 €.
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O lucro tributável sobre o qual a derrama municipal incidiu incluía os rendimentos auferidos no estrangeiro, no montante total de 3.023.173,25 €, ao qual corresponde o valor de 45.347,60 € incluído nesse montante total da derrama municipal.
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O Requerente liquidou, assim, a derrama municipal sobre a totalidade dos respectivos lucros tributáveis apurados com referência aos períodos de tributação de 2019 e 2020, não podendo apurar este tributo de forma distinta, atentas as limitações inerentes ao sistema informático da AT (cujo modelo 22 impõe a consideração do lucro tributável total para efeitos de apuramento da derrama municipal nos termos do Anexo A).
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Em 20.3.2023 o Requerente deduziu pedido de revisão oficiosa dos actos de autoliquidação de IRC relativos a 2019 e 2020 pretendendo ser ressarcido pelos montantes das derramas municipais suportadas por si naqueles anos correspondentes aos rendimentos obtidos no estrangeiro.
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A AT indeferiu o pedido, por considerar não existir no apuramento da derrama municipal qualquer incorrecção que tenha determinado uma tributação indevida.
Factos não provados
95.Não há factos relevantes para esta decisão arbitral que não se tenham provado.
96.O tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada ou não provada com base nos documentos juntos à petição e no processo administrativo remetido pela AT (e nas declarações de parte e das testemunhas).
97.Cabe ao Tribunal Arbitral seleccionar os factos relevantes para a decisão, em função da sua relevância jurídica, considerando as várias soluções plausíveis das questões de Direito, bem como discriminar a matéria provada e não provada (cfr. art. 123.º/2 do CPPT e art.os 596.º/1 e 607.º/3 e 4 do Código de Processo Civil - CPC, aplicáveis ex vi art. 29.º/1 a) e e) do RJAT), abrangendo os seus poderes de cognição factos instrumentais e factos que sejam complemento ou concretização dos que as Partes alegaram (cfr. art.os 13.º do CPPT, 99.º da LGT, 90.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos - CPTA e art.os 5.º/2 e 411.º do CPC).
98.Segundo o princípio da livre apreciação dos factos, o tribunal baseia a sua decisão, em relação aos factos alegados pelas partes, na sua íntima e prudente convicção formada a partir do exame e avaliação dos meios de prova trazidos ao processo, e de acordo com as regras da experiência - cfr. art. 16.º e) do RJAT e art. 607.º/4 do CPC, aplicável ex vi art. 29.º/1 e) do RJAT.
99.Somente relativamente a factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, a factos que só possam ser provados por documentos, a factos que estejam plenamente provados por documentos, acordo ou confissão, ou quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (por exemplo, quanto aos documentos autênticos, por força do art. 371.º do Código Civil), é que não domina, na apreciação das provas produzidas, o referido princípio da livre apreciação - cfr. art. 607.º/5 do CPC ex vi art. 29.º/1 e) do RJAT.
100.Além disso, não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade que se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada, nem os factos incompatíveis ou contrários aos dados como provados.
IV.Matéria de Direito
Excepção da incompetência do tribunal arbitral
101.Entende a AT existir incompetência do Tribunal Arbitral em razão da matéria, por considerar que o ppa tem por objecto as autoliquidações de IRC respeitantes aos exercícios de 2019 e 2020, as quais foram alvo de pedido de revisão oficiosa de acto tributário, quando o conhecimento pela jurisdição arbitral se restringirá, nos termos do 2.º a) da Portaria 112-A/2011 às pretensões que, sendo relativas à declaração de ilegalidade de actos de liquidação, tenham sido precedidas de reclamação graciosa (dada a referência ao prévio recurso à via administrativa nos termos dos art.os 131.º a 133.º do CPPT).
102.Não colhe o argumento da AT já que – no sentido da decisão no proc. 560/2023-T – o pedido de revisão oficiosa constitui um meio administrativo equiparável à reclamação graciosa, para efeito da competência arbitral.
103.Assim, é certo que o art. 2.º a) da Portaria 112-A/2011 remete para o art. 131.º do CPPT, e este se refere ao procedimento de reclamação graciosa - e não à revisão oficiosa dos actos tributários. Aquela disposição (da Portaria 112-A/2011) deve, no entanto, ser interpretada como abrangendo a revisão dos actos tributários prevista no artigo 78.º, já que a finalidade visada pela norma é a de garantir que a autoliquidação e as retenções na fonte (em que os contribuintes actuam em substituição e no interesse da Autoridade Tributária) sejam objecto de uma pronúncia prévia por parte da AT, por forma a racionalizar o recurso à via judicial, que só se justifica se existir uma posição divergente, um verdadeiro litígio. Por isso, concede-se à AT a oportunidade (e o direito) de se pronunciar sobre o erro na autoliquidação do contribuinte ou nas retenções na fonte efectuadas pelo substituto tributário e de fundamentar a sua decisão antes de ser confrontada com um processo contencioso.
104.De facto, quando a referida portaria exige que as pretensões tenham sido previamente objecto de recurso à via administrativa, haverá que atentar essencialmente a esta exigência geral, considerando que a referência à reclamação graciosa no CPPT não vem limitar este enquadramento.
105.Este é também o entendimento do TCA Sul no ac. de 26.5.2022 que cita, aliás, diversa jurisprudência no mesmo sentido.
106.Improcede, portanto, a excepção da incompetência do tribunal arbitral invocada pela AT.
Sobre o âmbito de incidência da derrama municipal
107.A questão central que se levanta no presente processo é a de saber se, em sede de IRC, o cálculo da derrama municipal deve ou não incidir sobre os rendimentos auferidos no estrangeiro.
108.De facto, na evolução do regime jurídico relativo à derrama municipal era tido em conta especificamente o rendimento gerado na circunscrição de cada município - cf. Lei 1/87, Lei 42/98 e Lei 2/2007.
109.O regime actual, consagrado na da Lei 73/2013 (Regime Financeiro das Autarquias Locais - RFAL), determina no seu art. 18.º/1 que os municípios possam lançar uma derrama sobre o lucro tributável sujeito e não isento de IRC, que corresponda à proporção do rendimento gerado na sua área geográfica.
110.Sempre que os sujeitos passivos tenham estabelecimentos estáveis ou representações locais em mais de um município, o lucro tributável imputável à circunscrição de cada município é determinado pela proporção entre os gastos com a massa salarial correspondente aos estabelecimentos que o sujeito passivo nele possua e a correspondente à totalidade dos seus estabelecimentos situados em território nacional (art. 18.º/2), devendo os SP identificar na sua declaração periódica de rendimentos de IRC modelo 22 a proporção de massa salarial correspondente a cada município e efectuar o apuramento da derrama municipal que, em função daquele critério, seja devida em cada município.
111.Parece, portanto, evidente que a derrama municipal é apurada com base no lucro tributável sujeito e não isento de IRC que corresponda à proporção do rendimento gerado na sua área geográfica.
112.Esta conexão territorial parece sugerir que se devam desconsiderar, nesse apuramento, os rendimentos gerados fora do território nacional, uma vez que estes não sendo gerados na circunscrição geográfica de qualquer município não deverão também concorrer no respectivo cálculo.
113.É esse o entendimento do STA (ac. 13.1.2021, proc. 03652/15.3BESNT 0924/17) que, num enquadramento ligeiramente diferente, afirma expressamente que deve ser retirado da base de incidência da derrama municipal o lucro obtido fora do território nacional. No mesmo sentido tem decidido o CAAD (proc. 554/2021-T, decisão de 15.3.2022; tb. 211/2023-T e 948/2023-T).
114.Nesta matéria não colhe o argumento da AT segundo o qual se o crédito por dupla tributação internacional pode ser deduzido à fracção da colecta da derrama municipal originada por rendimentos obtidos no estrangeiro, é porque inequivocamente tais rendimentos obtidos no estrangeiro estão sujeitos a derrama municipal.
115.Isto porque ao admitir-se a possibilidade de dedução à fracção da colecta da derrama decorrente de rendimentos obtidos no estrangeiro não se está a apreciar se esta fracção é devida, mas, tão-só a considerar que existindo, pode ser considerada para efeito de dedução. Não sendo apreciado o âmbito da derrama não parece que se possa retirar nessa matéria qualquer conclusão.
116.Menos sentido faz o argumento da suposta discriminação, segundo o qual admitir-se a exclusão dos rendimentos de fonte estrangeira para efeitos de derrama municipal, implicaria tratar de modo injustificadamente diferente as entidades que desenvolvem uma actividade exclusivamente no território nacional e as que desenvolvem actividade também fora desse território, em benefício destas. A questão é, tão só, saber se havendo rendimentos obtidos no estrangeiro estes devem ser ponderados no cálculo da derrama. Se estes não existem, a questão desaparece. Não há discriminação porque as situações não são idênticas.
117.Também não colhe o argumento da AT quando entende que a remissão para o lucro tributável imputável à circunscrição de cada município sirva apenas para efeito do cálculo da distribuição, ignorando a relação directa com esse mesmo lucro, para efeitos de cálculo do valor da própria derrama.
118.Não pode mesmo deixar de se estranhar que a Requerida, quando confrontada com os termos de uma decisão do STA - de 13.1.2021 (proc. 03652/15.3BESNT 0924/17 – se limite a expor seu desentendimento ou divergência (arrogando-se aparentemente à possibilidade de ignorar a jurisprudência superior quando com ela não convirja).
119.Não colhe, finalmente, o argumento da AT segundo o qual o Requerente não oferece – como lhe competiria nos termos do art. 74.º/1 da LGT – os elementos de prova necessários ao cálculo do lucro tributável comprovadamente obtido em resultado dos rendimentos com origem no estrangeiro para efeitos do seu expurgo da base de incidência da derrama municipal.
120.Se, em tempo devido, a AT não questionou ou solicitou quaisquer elementos nesse sentido por não admitir a relevância da origem desses rendimentos, não pode vir agora invocar suposta superficialidade dos elementos para considerar as conclusões como não provadas.
121.Procede, portanto, o pedido do Requerente, no sentido de deverem ser desatendidos os lucros obtidos no estrangeiro para efeitos do cálculo da derrama municipal.
Juros indemnizatórios
122.Reclama o Requerente que a AT seja condenada no pagamento de juros indemnizatórios por erro imputável aos serviços.
123.Discorda a AT por considerar não se verificar qualquer erro de facto ou de direito, imputável aos serviços, até por o apuramento do imposto ter sido efectuado pelo Requerente.
124.Não colhe, também aqui, o entendimento da Requerida.
125.De facto, o erro do contribuinte em autoliquidação quando tenha actuado – conforme aconteceu no caso – em sintonia com orientações da AT é imputável aos serviços (cf. proc. 317/2022-T). O Requerente não tinha forma de indicar na declaração Modelo 22 um lucro tributável excluído dos rendimentos obtidos do estrangeiro que permitisse apurar a derrama municipal sobre esse montante. Donde, pretender que a haver erro, este lhe seja imputável é descabido.
126.Por outro lado, independentemente da prova da culpa de qualquer das pessoas ou entidades que a integram, qualquer ilegalidade não resultante de uma actuação do sujeito passivo será imputável a culpa dos próprios serviços (ac. STA, de 12.12.2001, proc. 26233)
127.Assim, tendo o Requerente suportado relativamente aos períodos de tributação de 2019 e 2020, imposto em montante superior ao legalmente devido, o Requerente tem direito não só ao respectivo reembolso, mas, também a juros indemnizatórios, nos termos do art. 43.º da LGT.
128.Colhe, neste âmbito um argumento da AT. De facto, tendo a revisão do acto tributário sido efectuada por iniciativa do contribuinte mais de um ano após o pedido deste - art. 43.º/3 c) da LGT – estes apenas serão devidos após o prazo de um ano (ac. STA de 3.7.2019, proc. 04/19.0BALSB).
V.Decisão
Em face do supra exposto, decide-se
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Julgar procedente o pedido de declaração de ilegalidade da parte da derrama municipal relativa aos rendimentos auferidos no estrangeiro e do indeferimento do pedido de revisão oficiosa das respectivas autoliquidações de IRC relativas a 2019 e 2020, no montante de 109.562,19 €, com o consequente direito ao reembolso acrescido de juros indemnizatórios à taxa legal contados a partir do decurso de um ano após o pedido de revisão;
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Condenar a Requerida no pagamento integral das custas do presente processo.
VI.Valor do processo
Fixa-se o valor do processo em 109.562,19 €, nos termos do disposto no art. 32.º do CPTA e no art. 97.º-A do CPPT, aplicáveis por força do disposto no art. 29.º/1 a) e b), do RJAT, e do art. 3.º/2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).
VII.Custas
Nos termos da Tabela I anexa ao RCPAT, as custas são no valor de 3.060 € (três mil e sessenta euros), a pagar pela Requerida, nos termos dos art.os 12.º/2, e 22.º/4, do RJAT, e artigo 4.º/5, do RCPAT.
Notifique-se.
Lisboa, 15 de Abril de 2025
Os árbitros
Victor Calvete (Presidente)
Mariana Vargas (Vogal)
Rui M. Marrana (Vogal, Relator)
Texto elaborado em computador.
A redacção da presente decisão rege-se pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.