Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 472/2014-T
Data da decisão: 2014-12-15  Selo  
Valor do pedido: € 2.940,01
Tema: IS – verba 28.1 TGIS
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DECISÃO ARBITRAL

 

I – RELATÓRIO

a)                 Objeto do litígio:

1.             A, sujeito passivo com o NIF …, residente na Rua …, em Lisboa, apresentou no Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) pedido de constituição de tribunal arbitral singular, ao artigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º, do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), para declaração da ilegalidade e consequente anulação das liquidações de Imposto de Selo – verba 28.1 da TGIS, com o valor global de € 2 940,01, relativas ao ano de 2012 e a doze divisões de utilização independente, destinadas a habitação, do prédio urbano sito na Avenida …, em Lisboa, inscrito na matriz predial da freguesia de … sob o artigo …(ex-artigo …), de que é comproprietária na proporção de ¼;

2.             O pedido de pronúncia arbitral deu entrada no CAAD em 7 de julho de 2014, tendo a AT sido automaticamente notificada do mesmo, em 10 de julho de 2014;

3.             A Requerente optou por não designar árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6º, nº 2, alínea a), do RJAT, foi a signatária designado pelo Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD para integrar o presente tribunal arbitral, encargo que aceitou nos termos legalmente previstos.

 

b) Matéria de facto:

Em síntese, a Requerente sustenta a sua pretensão nos seguintes factos:

a)             A requerente é comproprietária, na proporção de ¼, do prédio urbano sito na Avenida …, em Lisboa, inscrito na matriz predial da freguesia de … sob o artigo … (ex-artigo …);

b)             O referido prédio era, no ano a que respeitam as liquidações, composto por treze andares ou divisões de utilização independente, doze das quais destinadas a habitação, não se encontrando, então, constituído em propriedade horizontal;

c)             O valor patrimonial tributário (VPT) das diversas divisões de utilização independente foi apurado separadamente, nos termos do disposto no artigo 7.º, n.º 2, alínea b), do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (adiante, CIMI), variando o VPT das partes ou divisões destinadas a habitação, em 31 de dezembro de 2011, entre os € 61.100,00 e os € 125.290,00, perfazendo o valor global de € 1 175 990,00;

d)            As liquidações de Imposto de Selo a que se referem os autos foram emitidas em 14 de julho de 2013, para pagamento numa única prestação durante o mês de novembro do mesmo ano, contendo os seguintes elementos de identificação:

Descrição do prédio

Verba da TGIS

Valor Patrimonial (€)

Quota-Parte

Valor isento

Taxa

(%)

Coleta (€)

… RC D

28.1

81 410,00

¼

0,00

1,00

203,53

… RC E

28.1

119 800,00

¼

0,00

1,00

299,50

… RC F

28.1

61 100,00

¼

0,00

1,00

152,75

… 1.º D

28.1

86 890,00

¼

0,00

1,00

217,23

… 1.º E

28.1

92 380,00

¼

0,00

1,00

230,95

… 1.º F

28.1

125 290,00

¼

0,00

1,00

313,23

… 2.º D

28.1

86 890,00

¼

0,00

1,00

217,23

… 2.º E

28.1

92 380,00

¼

0,00

1,00

230,95

… 2.º F

28.1

125 290,00

¼

0,00

1,00

313,23

… 3.º D

28.1

86 890,00

¼

0,00

1,00

217,23

… 3.º E

28.1

92 380,00

¼

0,00

1,00

230,95

… 3.º F

28.1

125 290,00

¼

0,00

1,00

313,23

 

e)             O imposto liquidado foi pago pela Requerente, em 30 de novembro de 2013;

f)              Não se conformando com as liquidações de Imposto de Selo de que foi notificada, a Requerente apresentou, em 6 de fevereiro de 2014, reclamação graciosa, que correu termos pelo Serviço de Finanças de Lisboa 8 sob o n.º …;

g)             Em sede de audição prévia, esclareceu a Requerente que o que estava em causa era clarificar qual o VPT a considerar, para efeitos de Imposto de Selo da Verba 28, da TGIS, dado que as diversas divisões de utilização independente se encontram avaliadas nos termos do n.º 2 do artigo 7.º, do CIMI, devendo obedecer às mesmas regras dos prédios constituídos em propriedade horizontal, sendo o IMI e o Imposto de Selo liquidados individualmente em relação a cada uma das partes, sob pena da violação dos princípios da legalidade e da igualdade fiscal;

h)             Através do ofício n.º …, do Serviço de Finanças de Lisboa 8, de 31 de março de 2014, foi a Requerente notificada, na pessoa do seu Mandatário, em 8 de abril de 2014, do indeferimento da reclamação graciosa.

 

Factos Provados: A convicção do Tribunal, quanto aos factos enunciados supra, que se consideram provados, deriva da análise crítica do requerimento arbitral e dos documentos a ele anexos, bem como da resposta prestada pela AT.

 

Factos não provados: Não existem factos que devam considerar-se não provados.

 

II – SANEAMENTO:

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão devidamente representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

O Tribunal Arbitral Singular foi regularmente constituído no CAAD, no dia 7 de outubro de 2014, e é materialmente competente para apreciar e decidir o litígio objeto dos presentes autos.

Notificada para contestar, nos termos do artigo 17.º, do RJAT, a AT apresentou atempadamente a sua resposta, na qual propugna pela improcedência do pedido e pela manutenção dos atos tributários objeto do pedido arbitral, requerendo a dispensa da reunião a que se refere o artigo 18.º, do RJAT.

Não foram invocadas exceções e o pedido é tempestivo.

Por despacho arbitral de 10 de novembro de 2014, de que as partes foram notificadas no dia seguinte, foi decidida a dispensa de realização da reunião prevista no artigo 18.º, do RJAT, e determinado que o processo prosseguisse com alegações escritas sucessivas, designando-se o dia 15 de dezembro de 2014 para a prolação da decisão arbitral.

Em requerimento datado de 13 de novembro de 2014, veio a AT requerer a dispensa de alegações escritas, por inúteis para a decisão da causa.

 

Por despacho arbitral de 17 de novembro de 2014, notificado às partes no dia imediato, tendo em conta que as alegações têm natureza facultativa e, mesmo que não sejam apresentadas, o processo prossegue os seus termos, foi decidido manter o despacho anterior.

Ambas as partes apresentaram alegações escritas, nas quais reiteraram as posições já assumidas.

 

III – FUNDAMENTAÇÃO:

Fixada a matéria de facto supra, cumpre decidir.

Na sentença, deve o juiz pronunciar-se sobre todas as questões que deva apreciar, abstendo-se de se pronunciar sobre questões de que não deva conhecer (segmento final do n.º 1 do artigo 125.º, do Código de Procedimento e de Processo Tributário – CPPT, aplicável subsidiariamente ao processo arbitral tributário, por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT).

As questões trazidas aos autos, quer por banda da Requerente, quer pela Requerida AT, já tinham sido objeto da reclamação graciosa, ou seja, as questões de saber se, num prédio urbano não submetido ao regime da propriedade horizontal a sujeição a imposto de selo, nos termos da verba n.º 28 da TGIS, é determinada pelo Valor Patrimonial Tributário (VPT) que corresponde a cada uma das partes do prédio, economicamente independentes e com afetação habitacional, como defende a Requerente ou se, pelo contrário, é determinada pelo VPT global do prédio, o qual corresponderia ao somatório de todos os VPT dos andares ou divisões de utilização independente e com afetação habitacional que o compõem, como sustenta a AT e se qualquer das interpretações em confronto é inconstitucional, por violação dos princípios da legalidade e da igualdade fiscal.

O entendimento da Requerente é, em síntese, o seguinte:

·         “a sujeição à aplicação do imposto de selo, previsto na verba 28.1 é determinada pela conjugação de dois fatores: a afetação habitacional e o VPT, constante da matriz, igual ou superior a € 1.000.000,00”;

·          “aplicando o critério que a própria Lei enuncia, no artigo 67.º, n.º 2, do CIS «às matérias não reguladas no presente código respeitantes à verba 28 da Tabela Geral aplica-se subsidiariamente o CIMI»” (negrito e sublinhado no original);

·         “Nos termos do CIMI, e atendendo à inscrição na matriz do prédio em questão, que à data dos factos, estava constituído em propriedade vertical (…), devemos concluir que estes prédios obedecem às mesmas regras dos prédios construídos (sic) em propriedade horizontal, pois que, o respetivo IMI, e bem assim, o novo IS, são liquidados individualmente em relação a cada uma das partes” (negrito e sublinhado no original);

·         “ (…) qualquer outra interpretação seria contraditória, uma vez que é a própria AT que assume a aplicação do referido critério quando, nas liquidações emitidas do imposto em causa, resulta que o valor de incidência é correspondente ao VPT de cada uma das divisões independentes, sendo a liquidação desta verba do IS individualizada sobre a parte do prédio a que respeita e não à sua globalidade”;

·         “ (…) não pode a ora requerente deixar de concluir que, só haveria lugar à incidência do novo IS (verba 28.1 da TGIS) se alguma das divisões independentes do prédio em causa apresentasse um VPT superior a € 1.000.000,00”;

·         “O critério aplicado pela AT não se encontra sustentado pela legislação aplicável que determina que o IS a incidir na aplicação da verba 28 da TGIS da verba 28 da TGIS «sobre o valor patrimonial tributário para efeitos de IMI.»” (negrito no original);

·         “ (…) o critério adotado pela AT na determinação da incidência do IS viola os princípios da legalidade fiscal, resultante do disposto no artigo 103.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa (CRP), na interpretação que se deverá fazer das normas jurídicas em causa, no que respeita à incidência do imposto aplicado, bem como o da igualdade fiscal e ainda o da prevalência da verdade material sobre a realidade jurídico-formal”(negrito e sublinhado no original).

Por seu turno, a posição da AT, na esteira de “informação vinculativa por parte da AT, com despacho de concordância de 11.2.2013 do Substituto Legal do Diretor-Geral da Autoridade Tributária” e defendendo a improcedência do pedido de pronúncia arbitral, é, sinteticamente, a que se segue (embora por lapso manifesto seja feita referência a liquidações do ano de 2013, quando o caso em análise se reporta a liquidações de Imposto de Selo do ano de 2012):

·         “ (…) a Requerente pretende erradamente assimilar a propriedade vertical à propriedade horizontal (…);

·         “ (…) o CIMI constitui o quadro normativo de referência no que tange à tributação da propriedade de prédios urbanos com valor patrimonial tributário superior a um milhão de euros, assumindo neste contexto papel relevante o conceito do prédio constante do artigo 2.º daquele código, o qual estabelece no seu n.º 1 que « (…) prédio é toda a fração de território, abrangendo (…) edifícios e construções de qualquer natureza nela incorporados ou assentes, com carácter de permanência (…)»”;

·         “ (…) estabelece o n.º 4 daquele artigo que «(…) cada fração autónoma, no regime de propriedade horizontal, é havida como constituindo um prédio»”;

·          “Deste modo, e por interpretação a contrario sensu, facilmente se conclui que não constituem prédios urbanos as frações destes últimos que não se encontram sujeitas ao regime da propriedade horizontal, como sucede precisamente no caso vertente” (sublinhado nosso);

·         “Falece, porém, de sustentação legal a tese defendida pela Requerente, pois muito embora a liquidação do IS, nas situações previstas na verba nº 28.1 da TGIS, se processe de acordo com as regras do CIMI, a verdade é que o legislador ressalva os aspetos que careçam das devidas adaptações, a saber aqueles em que, como é o caso dos prédios em propriedade total, ainda que com andares ou divisões suscetíveis de utilização independente (muito embora o IMI seja liquidado relativamente a cada parte suscetível de utilização independente) para efeitos de IS releva o prédio na sua totalidade pois que, as divisões suscetíveis de utilização independente não são havidas como prédio, mas apenas as frações autónomas no regime de propriedade horizontal, conforme nº 4 do art. 2º do CIMI” (sublinhado nosso);

·         “ (…) tratando-se de um prédio em propriedade total, o VPT que serve de base ao seu cálculo, será indiscutivelmente o VPT que a ora Requerente define como o valor global do prédio”;

·         “Contudo (…) a inscrição matricial dos andares suscetíveis de utilização independente e a atribuição de um valor patrimonial individual não só não afasta o valor patrimonial do respetivo prédio onde aqueles se encontram inseridos, como acaba por concorrer ou determinar o próprio valor patrimonial tributário do prédio urbano”;

·         “ (…) esta conclusão se retira de forma inequívoca do próprio artigo 7.º/2-b) do CIMI («[…] cada parte é avaliada por aplicação das correspondentes regras, sendo o valor do prédio a soma dos valores das suas partes»)”;

·          “Consequentemente, ter-se-á de haver por inconstitucional, por ofensa aos já aludidos princípios da legalidade tributária e da igualdade, a interpretação da verba 28.1. da Tabela Geral no sentido ora propugnado pela Requerente”;

·         “ (…) a AT entende que a previsão da verba 28.1 da TGIS não consubstancia qualquer violação ao princípio da igualdade, inexistindo qualquer discriminação na tributação de prédios constituídos em propriedade horizontal e prédios em propriedade total com andares ou divisões suscetíveis de utilização independente, ou entre prédios com afetação habitacional e prédios com outras afetações”;

·         (…) “A constituição da propriedade horizontal implica uma mera alteração jurídica do prédio, mas o legislador pode, no entanto, submeter a um enquadramento jurídico tributário distinto, os prédios em regime de propriedade horizontal e vertical, em especial, beneficiando o instituto juridicamente mais evoluído da propriedade horizontal, sem que essa discriminação deva ser considerada necessariamente arbitrária”;

·         “Esta discriminação pode também ser imposta pela necessidade de impor coerência ao sistema fiscal.”;

·         “Importa ainda, salientar, que a tributação em sede de IS obedece ao critério de adequação, na exata medida em que visa a tributação da riqueza consubstanciada na propriedade de imóveis de elevado valor, surgindo num contexto de crise económica que não pode de todo ser ignorado”;

·         “Assim, encontra-se legitimada a opção por este mecanismo de obtenção da receita, o qual apenas seria censurável, face ao princípio da proporcionalidade, se resultasse manifestamente indefensável”.

Começar-se-á por notar que a AT tem razão ao referir que um prédio constituído em propriedade horizontal é uma realidade jurídico-tributária distinta de um prédio urbano em “propriedade total”.

A tanto obrigam as regras da interpretação, que tem o texto como partida, cabendo-lhe a função negativa de eliminar qualquer sentido que não tenha qualquer apoio na letra da lei[1].

Desde logo, porque o n.º 4 do artigo 2.º do CIMI, estabelece a ficção legal de que cada uma das frações autónomas de um prédio constituído em propriedade horizontal consubstancia um prédio, enquanto uma parte de utilização independente, de um prédio urbano não constituído em propriedade horizontal, continua a ser apenas isso – uma parte de um prédio e não um prédio, como, aliás, a AT reconhece ao afirmar na sua resposta que “as divisões suscetíveis de utilização independente não são havidas como prédio”.

 

Tanto bastaria para concluir que, tendo o legislador fixado qualificações tributárias distintas para realidades juridicamente diferenciadas (prédios e partes de prédios), não será legítimo que o aplicador da norma, em nome das “necessárias adaptações” a que se refere o artigo 23º, n.º 7 do Código do Imposto de Selo (CIS), crie uma nova norma de incidência daquele imposto, matéria submetida ao princípio da legalidade tributária ínsito no artigo 103.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, segundo o qual os elementos essenciais dos impostos – a incidência, a taxa, os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes – são estabelecidos por lei da Assembleia da República.

Ora, a verba 28 da TGIS, aditada pelo artigo 4.º da Lei nº 55-A/22012 de 29 de outubro, veio determinar, na sua redação originária, aplicável ao caso em apreço, a incidência objetiva do imposto de selo sobre prédios urbanos de afetação habitacional, cujo valor patrimonial tributário, para efeitos de IMI, seja igual ou superior a € 1 000 000,00 (e não, como entende a AT, sobre partes de prédios ou sobre o VPT global de um prédio não constituído em propriedade horizontal, correspondente ao somatório dos VPT das partes que o integram)), ao estabelecer que o imposto de selo incide sobre:

 «28 — Propriedade, usufruto ou direito de superfície de prédios urbanos cujo valor patrimonial tributário constante da matriz, nos termos do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI), seja igual ou superior a € 1 000 000 — sobre o valor patrimonial tributário utilizado para efeito de IMI:

28.1 — Por prédio com afetação habitacional — 1 %;

28.2 — Por prédio, quando os sujeitos passivos que não sejam pessoas singulares sejam residentes em país, território ou região sujeito a um regime fiscal claramente mais favorável, constante da lista aprovada por portaria do Ministro das Finanças — 7,5 %.»

 

Também aqui o elemento literal da norma há-de ser o ponto de partida para a sua interpretação e, “na falta de outros elementos que induzam à eleição do sentido menos imediato do texto, o intérprete deve optar em princípio por aquele sentido que melhor e mais imediatamente corresponde ao significado natural das expressões verbais utilizadas, e designadamente ao seu significado técnico-jurídico, no suposto (nem sempre exato) de que o legislador soube exprimir com correção o seu pensamento[2].

 

Que a atuação da AT exorbita da norma de incidência da verba 28, da TGIS, parece evidente, ao não respeitar o VPT para efeitos de IMI, que, para os prédios não constituídos em propriedade horizontal é individualizado relativamente a cada uma das partes ou divisões de utilização independente que os compõem, não sendo efetuada qualquer liquidação de imposto sobre o somatório dos VPT atribuídos às partes. Daí que, para efeitos de IMI, não seja atribuída relevância ao VPT global.

 

Argumenta no entanto a AT, que, nos termos do artigo 7.º, n.º 2, alínea b), do CIMI, “«[…] cada parte é avaliada por aplicação das correspondentes regras, sendo o valor do prédio a soma dos valores das suas partes»”.

Acontece, porém, que nem sempre o CIMI faz corresponder o todo à soma das partes. Como, aliás, decorre da sistemática do mesmo n.º 2 do artigo 7.º do CIMI, cujas alíneas a) e b) apenas têm aplicação na determinação do valor patrimonial tributário “dos prédios urbanos com partes enquadráveis em mais de uma das classificações do n.º 1 do artigo anterior”.

De acordo com o n.º 1 do artigo 6.º, do CIMI, os prédios urbanos dividem-se em a) Habitacionais; b) Comerciais, industriais ou para serviços; c) Terrenos para construção; d) Outros.

Da conjugação das normas do n.º 2 do artigo 7.º e 6.º, n.º 1, ambos do CIMI, decorre que, se um prédio urbano não constituído em propriedade horizontal, integrar exclusivamente partes ou divisões de afetação habitacional, o valor do prédio não equivale à soma das suas partes. O mesmo que é dizer-se que cada uma das partes é autónoma e que, independentemente do VPT que lhe tenha sido atribuído, fica excluída da incidência do imposto de selo previsto na verba 28, da TGIS.

Aqui chegados, caberá questionar da sujeição a imposto de uma parte ou divisão de utilização independente, com afetação habitacional, de um prédio não constituído em propriedade horizontal, em que se integrem partes ou divisões de utilização independente, enquadráveis em outra das classificações do n.º 1 do artigo 6.º, do CIMI, por exemplo, divisões destinadas a comércio indústria ou serviços.

Ora, a resposta há de ser negativa, não obstante a previsão da alínea b) do n.º 2, do artigo 7.º, do CIMI, segundo a qual o valor do prédio é a soma dos valores das suas partes ou divisões de utilização independente, enquadráveis em mais do que uma das classificações do n.º 1, do artigo 6.º, do mesmo Código.

 

É que aqui, repare-se, não se estão a cotejar duas realidades juridicamente distintas, como são as partes ou divisões de utilização independente de um prédio urbano não constituído em propriedade horizontal com as frações autónomas de prédios submetidos àquele regime, que, para efeitos de IMI, são elas próprias prédios.

Aqui, o que está em confronto são realidades em tudo idênticas, ou seja, partes ou divisões de utilização independente e afetação habitacional, integradas em prédios urbanos não constituídos em propriedade horizontal.

E a resposta à questão há-de ser negativa, pois nada justificaria que o legislador pretendesse tributar partes ou divisões de utilização independente e afetação habitacional de um prédio urbano não constituído em propriedade horizontal, integrado por outras partes ou divisões de utilização independente destinadas a outros fins e não tributasse partes ou divisões de utilização independente e afetação habitacional de um prédio urbano não constituído em propriedade horizontal, integrado exclusivamente por partes ou divisões de utilização independente, destinadas a habitação. Caso o legislador pretendesse tratar de forma desigual realidades em tudo idênticas, teria de se concluir por uma flagrante violação do princípio da igualdade.

Não se afigurando ser essa a intenção legislativa, não se poderá aceitar que a AT formule uma norma de incidência ex novo, diversa da que foi criada pelo legislador, pretendendo tributar o “VPT global”, correspondente ao somatório das partes que compõem os prédios em “propriedade total”, ainda que económica e funcionalmente independentes e, como tal, separadamente inscritas na matriz, a qual discrimina também o respetivo valor patrimonial tributário (cfr. o n.º 3 do artigo 12.º, do CIMI), pois a lei é clara ao sujeitar a imposto de selo da verba 28, da TGIS, os prédios urbanos de afetação habitacional, cujo VPT, para efeitos de IMI, seja superior a € 1 000 000,00.

Diferente seria o caso de uma parte ou divisão de utilização independente e afetação habitacional, inserida em prédio urbano não constituído em propriedade horizontal, mas com um VPT, para efeitos de IMI, igual ou superior a € 1 000 000,00, atendendo à ratio legis da norma de incidência.

Efetivamente, tal como refere a Requerente nas suas alegações e já serviu de fundamento a outras decisões arbitrais, nomeadamente a proferida nos processo n.º 50/2013-T, “A ratio legis subjacente à regra da verba 28 da TGIS, introduzida pela Lei nº 55-A/2012 de 29 de outubro, em obediência ao disposto no artigo 9º do Código Civil, segundo o qual a interpretação da norma jurídica não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos e dos restantes elementos de interpretação o pensamento legislativo, tendo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.

O legislador ao introduzir esta inovação legislativa considerou como elemento determinante da capacidade contributiva os prédios urbanos, com afetação habitacional, de elevado valor, mais rigorosamente, de valor igual ou superior a € 1 000 000,00, sobre os quais passou a incidir uma taxa especial de imposto de selo, pretendendo introduzir um princípio de tributação sobre a riqueza exteriorizada na propriedade, usufruto ou direito de superfície de prédios urbanos de luxo com afetação habitacional. O critério foi de aplicação da nova taxa aos prédios urbanos com afetação habitacional, cujo VPT seja igual ou superior a € 1000 000,00.

Tal lógica parece fazer sentido quando aplicada a “habitação”, seja ela “casa”, “fração autónoma” ou “parte de prédio com utilização independente” “unidade autónoma”, porque se supõe uma capacidade contributiva acima da média e, nessa medida, se justifica a necessidade de realização de um esforço contributivo adicional, pouco sentido faria passar a desconsiderar os apuramentos "unidade a unidade" quando só através do somatório dos VPTs das mesmas, porque detidas pelo mesmo indivíduo, é que se superaria o milhão de euros.

Tal conclui-se da análise da discussão da proposta de Lei n.º 96/XII na Assembleia da República, disponível para consulta no Diário da Assembleia da República, I série, nº 9/XII/2, de 11 de outubro de 2012.”.

Temos pois que, para além do elemento gramatical da interpretação da norma de incidência contida na verba 28, da TGIS, também o seu elemento racional ou teleológico, a ratio legis ou fim visado pelo legislador ao elaborar aquela norma, aponta no sentido de a tributação incidir sobre prédios urbanos de afetação habitacional com VPT, para efeitos de IMI, superior a € 1 000 000,00 e não sobre partes de prédios urbanos não constituídos em propriedade horizontal, ainda que aquelas partes sejam suscetíveis de utilização independente e se destinem a habitação.

Em face dos motivos expostos, fica prejudicado o conhecimento das questões relativas à alegada inconstitucionalidade das interpretações dadas pela Requerente e pela Requerida à norma da verba 28.1, da TGIS, por violação dos princípios da legalidade e da igualdade fiscal, uma vez que esta norma não comporta a interpretação que dela fez, no caso, a AT, ao emitir as liquidações objeto do pedido de pronúncia arbitral.

 

IV – DECISÃO

 

Com base nos fundamentos expostos e, nos termos do artigo 2º do RJAT, decide-se:

− Declarar a ilegalidade das liquidações de Imposto de Selo impugnadas, por erro nos pressupostos de direito, determinando a sua anulação;

− Condenar a AT à restituição da quantia de € 2 940,01, valor indevidamente pago pela Requerente, equivalente ao somatório dos valores das liquidações de Imposto de Selo declaradas ilegais;

− Não condenar a AT no pagamento de juros indemnizatórios, por não terem sido pedidos.

VALOR DO PROCESSO: De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 2.940,01.

CUSTAS: Calculadas de acordo com o artigo 4.ºdo Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e da Tabela I a ele anexa, no valor de € 612.00, a cargo da AT.

Lisboa, 15 de dezembro de 2014.

O Árbitro,

 

/Mariana Vargas/

 

Texto elaborado em computador, nos termos do n.º 5 do artigo 131.º do CPC, aplicável por remissão da alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do DL 10/2011, de 20 de janeiro.

A redação da presente decisão rege-se pelo acordo ortográfico de 1991. 

 



[1] Neste sentido, cfr. MACHADO, J. Baptista, “Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador”, Almedina, Coimbra, 1995, pág. 182 a 185.

[2] Cfr. o Autor citado, ob. e loc. cit.