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SUMÁRIO:
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A liberdade de circulação de capitais é estabelecida pelo artigo 63.º do TFUE como uma liberdade fundamental do mercado interno, dotada de relevância constitucional no âmbito do Direito da União Europeia, que impõe a proibição de todas as restrições aos movimentos de capitais entre Estados-membros.
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A liberdade de circulação de capitais goza da primazia normativa sobre o direito interno, cabendo aos poderes públicos legislativos e administrativos a tomada das medidas internas de transposição, execução e aplicação, consoante os casos, do direito primário e secundário relevante, de forma a assegurar a efetividade da livre circulação de capitais.
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As normas do n.º 1, parte final, e n.º 3 do artigo 22.º do EBF, interpretadas conjugadamente, ao estabelecerem um tratamento fiscal diferenciado para os OIC´S que operem em Portugal de acordo com a legislação portuguesa, em relação aos organismos equiparáveis que tenham sido constituídos de acordo com a legislação de outro Estado-Membro da União Europeia, viola o princípio da liberdade de circulação de capitais consagrado no artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia.
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A retenção na fonte em IRC de 25% sobre os dividendos distribuídos por sociedades residentes em Portugal a OIC’s estabelecidos noutros Estados Membros da União Europeia ou de países terceiros, simultaneamente isentando de tributação a distribuição de dividendos a OIC’s estabelecidos e domiciliados em Portugal, é desconforme com os princípios estabelecidos no TFUE, em particular com o artigo 63.º do TFUE que garante a liberdade de circulação.
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ACÓRDÃO
Acordam os árbitros José Poças Falcão, Adelaide Moura e Manuel Lopes da Silva Faustino, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral Coletivo, no seguinte:
I – RELATÓRIO
A..., Organismo de Investimento Coletivo constituído de acordo com o direito alemão, com o número de contribuinte português ..., com sede em..., ..., Alemanha, (doravante designado de “Requerente”), veio requerer a constituição de Tribunal Arbitral Coletivo para apreciação da legalidade dos atos de retenção na fonte de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“IRC”) incidentes sobre o pagamento de dividendos relativos aos anos de 2019, 2020, 2021 e 2022, bem como da formação da presunção de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa previamente apresentado para o efeito.
O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Requerida, Autoridade Tributária e Aduaneira.
O Requerente não exerceu o direito à designação de árbitro pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a) e do artigo 11.º, n.º 1, alínea a), ambos do RJAT, foram designados os signatários como árbitros do Tribunal Arbitral coletivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
Em conformidade com o disposto no artigo 11.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, o Tribunal Arbitral coletivo ficou constituído em 19-6-2024.
A Requerida, tendo sido notificada, ao abrigo do disposto no artigo 17.º do RJAT, para apresentar a sua resposta, veio sustentar a improcedência total do pedido e a consequente manutenção na ordem jurídica dos atos tributários impugnados e a sua absolvição do pedido.
Foi dispensada a reunião do Tribunal com as partes nos termos do artigo 18º, do RJAT.
Ambas as partes apresentaram alegações finais escritas concluindo, no essencial, pela mesma forma dos respetivos articulados.
O prazo para a decisão previsto no artigo 21º, do RJAT, foi sucessiva e justificadamente prorrogado pelos despachos de 18/12/2024 e 18-2-2025.
Cumpre decidir.
Saneamento do processo
Suscita a Requerida as exceções de incompetência material, de ilegitimidade ativa e inimpugnabilidade dos atos tributários.
Como melhor se verá ou fundamentará infra, aquando da apreciação do mérito do pedido, tais exceções não procedem.
O Tribunal é assim competente, as partes são legítimas e capazes e estão devidamente representadas.
O processo não enferma de nulidades, exceções ou questões prévias que obstam ao conhecimento do mérito do pedido.
II – FUNDAMENTAÇÃO
Posição das partes
A - Argumentos do Requerente
Os argumentos trazidos aos autos pelo Requerente centram-se, fundamentalmente, na questão da conformidade da aplicação da taxa de retenção na fonte aplicável aos dividendos de fonte portuguesa distribuídos (ao Requerente) com a liberdade de circulação de capitais consagrada no artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), interpretado pelo TJUE no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado-Membro da UE por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um organismo de investimento coletivo (abreviadamente “OIC”) não residente são objeto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção; esta jurisprudência é aplicável à situação sub juditio na medida em que o requerente é um OIC de direito alemão, constituído sob a forma contratual não societária (comummente designado por “Fundo de Investimento”), sujeito passivo de IRC não residente para efeitos fiscais, sem qualquer estabelecimento estável em Portugal; tendo recebido dividendos desde 2019 até 2022, relativos a participações sociais em sociedades residentes em Portugal, aqueles foram sujeitos (ilegalmente) a tributação por retenção na fonte, à taxa (liberatória) de 25%, previstas no artigo 87º-4, do CIRC.
A Requerente, ao abrigo do artigo 78º, da LGT, formulou à AT um pedido de revisão oficiosa para apreciação, na linha apontada, dos citados atos de retenção na fonte de IRC, solicitando a anulação dos mesmos por ilegalidade traduzida na violação direta do Direito da UE (artigo 63º, do TFUE).
Alega a Requerente que auferiu dividendos distribuídos por sociedades comerciais com residência fiscal em Portugal e suportou imposto conforme quadro que consta do artigo 7º do PPA (pedido de pronúncia arbitral), sendo que tais dividendos não deveriam ser sido sujeitos a qualquer tributação e a Requerente deveria ter beneficiado da isenção aplicável aos OIC’s residentes em Portugal conforme disposto no artigo 22º, do EBF, consubstanciando tal diferenciação de tratamento uma restrição ilegal à livre circulação de capitais a que se refere o artigo 63º, do TFUE.
Conclui pedindo a anulação dos citados atos de retenção na fonte, no valor global de €155.407,75, com devolução deste valor acrescido de juros indemnizatórios.
B – Argumentos da Requerida
Por sua vez, a AT alega e defende, em suma, que:
A – Ilegitimidade ativa
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Ao apresentar-se com o NIF ... a “(...)Requerente não tem legitimidade para apresentar o pedido de anulação das liquidações de retenção na fonte de IRC efetuadas a terceiros referente aos pagamentos de dividendos efetuados nos anos de 2019 e 2020, nomeadamente aos sujeitos passivos com os NIF’s portugueses ... e ..., beneficiários do pagamento dos dividendos e substituídos tributários identificados pelo substituto (...)”
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É “(...)ilegítimo o pedido apresentado pela Requerente relativamente a todas as retenções de IRC peticionadas relativas a 2019 (€31.370,93) e em 2020, às retenções (...) no montante de €59.517,27 (...)” e “(...) não existem provas de que as retenções na fonte efetuadas em 09/2022, no montante de €6.233,50, entraram nos cofres do Estado (...)”
B- Inimpugnabilidade dos atos tributários de retenção na fonte
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Para considerar procedente esta exceção, louva-se a Requerida na decisão proferida no Processo do CAAD nº 1000/2023-T e nos votos de vencido nas decisões proferidas no Processo do CAAD nºs 817/2023-T, 928/2023-T e 984/2023-T (Cfr arts 17 a 19., da Resposta)
C – Incompetência material do Tribunal
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Considera a Requerente, que na qualidade de substituído tributário, pede que o Tribunal Arbitral aprecie pela primeira vez, as retenções na fonte efetuadas pelo substituto tributário, “(...) sem que tenha desencadeado o procedimento de reclamação graciosa no. termos do artigo 132º, do CPPT (...)”coloca uma situação que está fora da vinculação da AT à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, tanto mais que a Requerente não recorreu, em tempo, à Reclamação graciosa prevista no artigo 132º, do CPPT, deixando precludir o prazo de 2 anos aí previsto, sendo que a revisão oficiosa não pode substituir a reclamação graciosa (cita os acórdãos arbitrais nos processos nºs 382/2019-T e 51/2012).
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Por consulta da declaração mod 30, verifica-se que, em 2019 não foi declarado pelos substitutos tributários qualquer distribuição de rendimentos à Requerente, B... e em 2020 apenas foi declarado o montante de rendimento de € 668,60 e retenção de €234,10 (fls 60 a 63, do PA); em 2021 e 2022 foram também indicados na Declaração modelo 30, a favor da Requerente os valores que menciona em 8, da Resposta; não há, por outro lado, coincidência entre os valores de retenção na fonte constantes do Modelo 30 no período de 2022 e os ora peticionados; por outro lado, não foram apresentadas pela Requerente declarações emitidas pelo agente pagador em Portugal no período relevante (artigo 28º, da LGT) atestando a data de distribuição dos dividendos, seu montante bruto e imposto retido na fonte em Portugal bem como o número da guia através da qual foi entregue o imposto retido junto dos Cofres do Estado; relativamente a 2022, a Requerente não prova ter suportado a alegada retenção de IRC no montante de €6.233,50 respeitante a 09/2022.
A questão decidenda
A questão decidenda consiste em determinar a conformidade das normas relevantes do Código do IRC e do EBF em vigor à data dos factos tributários relativas ao regime de tributação dos dividendos auferidos pelo OIC em presença com os princípios estabelecidos no TFUE, em particular com o artigo 63.º do TFUE que garante a liberdade de circulação de capitais. Por outras palavras, em causa está saber se a retenção na fonte em IRC sobre os dividendos distribuídos por sociedades residentes em Portugal a OIC’s estabelecidos noutros Estados Membros da União Europeia (in casu, na Alemanha), simultaneamente isentando de tributação a distribuição de dividendos a OIC’s estabelecidos e domiciliados em Portugal viola, ou não, o artigo 63.º do TFUE.
II – FUNDAMENTAÇÃO
Matéria de facto
A - Os factos provados
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O Requerente é, de acordo com o quadro regulatório e fiscal alemão, uma entidade jurídica de direito alemão, mais concretamente um Organismo de Investimento Coletivo (“OIC”), com residência fiscal na Alemanha, constituída sob a forma contratual e não societária;
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O Requerente, nos anos de 2018 a 2022, era um sujeito passivo de IRC não residente, para efeitos fiscais, em Portugal e sem qualquer estabelecimento estável no país (cfr. certificado de residência fiscal emitido pelas Autoridades Fiscais alemãs, que se junta como documento n.º 1);
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O Requerente detém investimentos financeiros em Portugal, consubstanciados na detenção de participações sociais em sociedades residentes, para efeitos fiscais, em Portugal;
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Nos anos de 2019 a 2022, o Requerente era detentor de participações sociais na seguinte sociedade residente em Portugal: C... SGPS, SA, D..., SGPS, SA, E..., SA, F... – SGPS, SA, G..., SGPS, SA e H... SGPS, SA;
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Os dividendos recebidos pelo Requerente em 2019, 2020, 2021 E 2022, foram sujeitos a tributação por retenção na fonte liberatória, às taxas de 25% e 35% (artigo 87º, do |CIRC), conforme a seguinte tabela descritiva:
Ano da Retenção
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Valor Bruto do Dividendo
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Data de Pagamento
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Taxa de Retenção na Fonte
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Guia de pagamento
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Valor da retenção (€)
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2019
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3 548,33
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10.09.2019
|
25%
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...
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887,08
|
2019
|
4 108,39
|
09.05.2019
|
25%
|
|
1 027,10
|
2019
|
2 170,35
|
09.05.2019
|
25%
|
|
542,59
|
2019
|
18 093,43
|
09.05.2019
|
25%
|
|
4 523,36
|
2019
|
16 172,39
|
10.09.2019
|
25%
|
|
4 043,10
|
2019
|
31 822,33
|
24.04.2019
|
25%
|
|
7 955,58
|
2019
|
18 930,50
|
30.05.2019
|
25%
|
|
4 732,63
|
2019
|
30 637,95
|
24.05.2019
|
25%
|
|
7 659,49
|
2020
|
4 203,60
|
21.05.2020
|
25%
|
|
1 050,90
|
2020
|
668,61
|
16.12.2020
|
35%
|
|
234,01
|
2020
|
1 152,58
|
15.07.2020
|
25%
|
|
288,15
|
2020
|
60 000,00
|
15.05.2020
|
25%
|
|
15 000,00
|
2020
|
8 554,80
|
15.05.2020
|
25%
|
|
2 138,70
|
2020
|
20 553,27
|
21.05.2020
|
25%
|
|
5 138,32
|
2020
|
19 874,88
|
15.05.2020
|
25%
|
|
4 968,72
|
2020
|
123 733,91
|
03.07.2020
|
25%
|
|
30 933,48
|
2021
|
20 119,40
|
20.05.2021
|
25%
|
|
5 029,85
|
2021
|
48 722,94
|
25.05.2021
|
25%
|
|
12 180,74
|
2021
|
20 862,18
|
17.05.2021
|
25%
|
|
5 215,55
|
2021
|
70 796,59
|
06.05.2021
|
25%
|
|
17 699,15
|
2022
|
24 934,00
|
20.09.2022
|
25%
|
|
6 233,50
|
2022
|
23 975,00
|
10.05.2022
|
25%
|
|
5 993,75
|
2022
|
47 728,00
|
18.05.2022
|
25%
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11 932,00
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TOTAL
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155 407,75
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€155.407,75
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Assim é que a Requerente suportou, em Portugal, nos anos de 2019 a 2022 a quantia total de imposto (IRC) de € 155.407,75, resultante das retenções na fonte supra identificadas;
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Em 8-9-2023, o Requerente apresentou, ao abrigo do artigo 78º, da LGT, pedido de revisão oficiosa para apreciação da legalidade dos referidos atos de retenção na fonte, requerendo a anulação dos mesmos por violação direta do direito da UE, com inerente direito á restituição do imposto pago – Cfr Doc 4, junto com o PPA;
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Em 8-4-2024 (data de apresentação do presente pedido de pronúncia arbitral), o Requerente não havia sido ainda notificado de qualquer decisão relativa ao sobredito pedido de revisão;
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A Requerente, com o NIF português ..., também foi fiscalmente identificada com os nomes “B...” com o NIF ..., I..., com o NIF ... e J..., com o NIF ... (cf. “Portal das Finanças” e arts. 4 e segs, da Resposta da Requerente às exceções).
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As retenções na fonte efetuadas em 09/2022, no montante de €6.233,50, entraram nos cofres do Estado (cfr docs 2 e 3, com o PPA);
B - Factos não provados
Não há outros factos relevantes para a apreciação do pedido, provados ou não provados.
C - Fundamentação da fixação da matéria de facto
Ao Tribunal incumbe o dever de selecionar os factos que interessam à decisão e discriminar a matéria que julga provada e declarar a que considera não provada, não tendo de se pronunciar sobre todos os elementos da matéria de facto alegados pelas partes, tal como decorre dos termos conjugados do artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e do artigo 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.
Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram assim selecionados e conformados em função da sua relevância jurídica, a qual é definida tendo em conta as várias soluções plausíveis das questões de direito para o objeto do litígio, tal como resulta do artigo 596.º, n.º 1 do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.
Tendo em conta as posições assumidas pelas partes, o disposto nos artigos 110.º, n.º 7 e 115.º, n.º 1, ambos do CPPT, a prova documental e o PPA junto aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos essenciais acima elencados.
II – FUNDAMENTAÇÃO (cont)
O Direito
As exceções suscitadas pela AT na Resposta.
A – A (in)competência material do Tribunal
Improcede tal exceção porquanto – e ao contrário do que alega a AT -, não estão excluídos da competência material do Tribunal Arbitral os litígios que tenham por objeto a declaração de ilegalidade de atos de retenção na fonte não precedidos de reclamação graciosa.
Na verdade, tal como tem sido entendido de forma praticamente pacífica pela Jurisprudência, incluindo a constitucional (Cfr Acórdão n.º 244/2018 do Tribunal Constitucional ao «não julga[r] inconstitucional a norma que considera os pedidos de revisão oficiosa equivalentes às situações em que existiu ‘recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário» (cit.). Importa ainda realçar que tal decisão foi motivada, precisamente, pela posição militantemente comprometida da AT para efeito da interpretação da alínea a) do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, sendo, pois, notório que a referida decisão do Tribunal Constitucional segue no sentido de considerar as reações aos pedidos de revisão oficiosa como encontrando-se abrangidas pela jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD.
Foi, efetivamente, decidido neste relevante Acórdão do Tribunal Constitucional, datado de 11 de Maio de 2018, não julgar inconstitucional a norma que considera os pedidos de revisão oficiosa equivalentes às situações em que existiu «recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário», para efeito da interpretação da alínea a) do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, encontrando-se tais situações, por isso, abrangidas pela jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD (Centro de Arbitragem Administrativa)[1]. Ou seja, o Tribunal Constitucional admite que os pedidos de revisão oficiosa são equivalentes às situações de recurso à via administrativa, pelo que sufraga a competência dos Tribunais Arbitrais nestas situações, entendimento também sufragado por este tribunal arbitral.
E, nesta mesma linha, se encontram variadíssimas decisões judiciais, como por exemplo, as proferidas pelo STA no processo nº 0839/11, de 6-2-2013, pelo CAAD no processo nº 480/2021-T, citadas pela Requerente.
B – A (i)legitimidade processual da Requerente
Os contribuintes, incluindo substitutos e responsáveis, outros obrigados tributários, partes dos contratos fiscais e outras entidades que provem interesse legalmente protegido, têm legitimidade no procedimento e no processo tributário – artigo 9º, CPPT.
Estando demonstrado que o K... identificou a Requerente como beneficiário dos pagamentos de dividendos nos anos de 2019 e 2020, usando embora um número de identificação fiscal diferente do indicado no pedido de pronúncia arbitral, tal circunstância não é de molde a afetar a legitimidade da Requerente porquanto é uma e só uma a entidade Requerente, pese embora os dados de identificação diferentes usados conforme se alega em 5. a 9. da resposta à exceção, sendo a esta única entidade que foram pagos os dividendos e, consequentemente, é ela a beneficiária efetiva dos rendimentos sujeitos a retenção na fonte, com entrega nos cofres do Estado português.
Improcede, consequentemente, esta exceção.
C – A (in)impugnabilidade dos atos de retenção na fonte.
Funda-se a Requerida na apresentação do pedido de revisão oficiosa após o decurso do prazo de 2 (dois) anos para apresentação da reclamação graciosa.
Estriba-se a Requerida em decisões arbitrais isoladas (Proc CAAD nº 1000/2023-T) e voto de vencido (Proc nº 984/2023-T).
Pois bem, não assiste razão à Requerida pelas razões invocadas pela Jurisprudência quase unânime (cfr., v. g., Acórdãos do STA no processo nº 087/22.5BEAVR, de 9-11-2022; no processo nº 0565/07, de 14-11-2007, no recurso nº 26233, de 12.12.2001, no processo nº 0706/11.9BELRS, 0140/13, de 20-5-20213 e 0565/07, de 14-11-2007 e demais decisões citadas pela Requerente na Resposta às exceções.
Daqui se concluiu e conclui que a revisão oficiosa do ato de retenção na fonte pode ser pedida pelo contribuinte, com base em erro de direito imputável aos serviços, no prazo de 4 (quatro) anos a contar da data do ato tributário e, consequentemente, revela-se igualmente sem fundamento a exceção de inimpugnabilidade do ato de retenção na fonte, que assim improcede.
O Mérito do pedido
As questões de mérito que são objeto deste processo são:
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Saber se os dividendos distribuídos de ações cuja detenção é registada em nome de OIC’s não residentes europeus estão obrigados à retenção na fonte liberatória, conforme dispõe a norma aplicável em vigor;
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Decidir se esta retenção na fonte é conforme ao que dispõe o artigo 63.º do TFUE e não integra uma das exceções previstas no artigo 65.º do TFUE; e
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Saber se a posição da Requerida de que - «está a cumprir a norma em vigor» - é sustentável face ao ordenamento português e qual a posição do Tribunal Constitucional perante a aplicação do artigo 63.º do TFUE pelos Tribunais nacionais.
Vejamos:
Assinale-se preliminarmente que, conforme desde há muito constitui jurisprudência pacífica, não tem o Tribunal de apreciar ou conhecer os argumentos ou considerações que as partes tenham produzido em defesa das respetivas posições[2]. Isto porque uma coisa são as questões submetidas ao tribunal e outra são os argumentos que se usam na sua defesa, sendo que só têm dignidade de questões as pretensões processuais formuladas pelas partes ao tribunal e não os argumentos por elas usados em defesa das mesmas.[3]
A questão da aplicação do direito europeu no ordenamento jurídico português é relativamente pacífica em termos doutrinários e jurisprudenciais.
Reconhecem-se, sem mais e porque isso resulta dos Tratados subscritos pela República Portuguesa, os princípios estruturantes do direito europeu – o efeito direto e o primado.
A doutrina do Tribunal Constitucional está bem sintetizada no Acórdão n.º 198/2023 que, em resumo entende que «não compete ao TC controlar a adequação dos juízos acerca da conformidade entre normas de direito interno e as normas de direito primário da União Europeia, dada a natureza deste ordenamento e a sua específica forma de relacionamento com a ordem jurídica nacional».
O TC tem sim competência para apreciação da aplicação das normas do direito internacional que resultam de Convenções Internacionais não se incluindo nestas as que deram origem às instituições e regras Europeias.
Resulta deste non liquet que a competência para a apreciação da aplicação dos princípios e regras europeias é, em primeiro lugar, dos tribunais de primeira instância, incluindo os Tribunais arbitrais.
No caso em análise dá-se a feliz circunstância de já ter sido julgado pelo TJUE pelo menos um caso em tudo semelhante ao presente nos autos, que é o caso do processo do TJUE, n.º C- 545/2019, decidido em 17.03.2022 e que resulta de um pedido de reenvio prejudicial feito por Tribunal constituído no âmbito do CAAD (Proc nº 93/2019-T).
Aí se decidiu que «o artigo 63.° TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado‑Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um organismo de investimento coletivo (OIC) não residente são objeto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção».
A questão a decidir no presente processo é assim idêntica à que foi objeto do citado reenvio prejudicial e a outras sobre as quais a arbitragem do CAAD tem sido chamada a pronunciar-se[4], e reconduz-se a saber se o artigo 63.º do TFUE deve, ou não, ser interpretado no sentido de vedar que a legislação de um Estado‑Membro imponha a retenção na fonte da tributação correspondente a dividendos distribuídos por sociedades residentes a um OIC não-residente, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção.
No centro da questão a apreciar está o artigo 22.º do EBF: o n.º 1, desse artigo 22.º, dispõe que “são tributados em IRC, nos termos previstos neste artigo, os fundos de investimento mobiliário, fundos de investimento imobiliário, sociedades de investimento mobiliário e sociedades de investimento imobiliário que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional”, excluindo, portanto, do âmbito do regime aí previsto os OIC como o Requerente, que não foram constituídos de acordo com a legislação nacional.
O artigo 22.º do EBF estabelece um regime consideravelmente mais favorável do que o regime geral de tributação em IRC, visto que, nos termos do seu n.º 3, não considera os rendimentos referidos nos artigos 5.º, 8.º e 10.º do CIRS (juros, dividendos, rendas, mais-valias) para efeitos do apuramento do lucro tributável – exceto quando esses rendimentos provenham de entidades com residência ou domicílio em país, território ou região sujeito a um regime fiscal claramente mais favorável, constante de lista aprovada em portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças –, os gastos ligados àqueles rendimentos ou previstos no artigo 23.º-A do CIRC, bem como os rendimentos, incluindo os descontos, e gastos relativos a comissões de gestão e outras comissões que revertam para as entidades referidas no n.º 1, e a isenção de derramas, estadual e municipal. O n.°10 do mesmo artigo dispensa as empresas que distribuem dividendos aos OIC da obrigação de reter e de entregar esse imposto à Fazenda Pública.
Importa saber se a retenção na fonte em IRC sobre os dividendos distribuídos, por sociedades residentes em Portugal, a OIC estabelecidos noutros Estados-Membros da União Europeia – ao mesmo tempo que se isenta de tributação a distribuição de dividendos a OIC residentes em Portugal, e se sujeita os mesmos a tributação trimestral em IS, pela verba 29 da TGIS, e à eventual aplicação da tributação autónoma, designadamente a prevista no artigo 88º, 11 do CIRC – é conforme, ou não, com o artigo 63.º do TFUE.
Trata-se, em suma, de aferir da conformidade com este artigo, à data dos factos relevantes, das pertinentes normas do CIRC e do EBF respeitantes ao regime de tributação dos dividendos auferidos pela Requerente.
A liberdade de circulação de capitais
O artigo 26.º do TFUE estabelece uma conexão substantiva entre a criação do mercado interno e a liberdade de circulação de capitais, elevada esta, pelo artigo 63.º do TFUE, ao estatuto de liberdade fundamental do mercado interno, dotada de relevância constitucional no âmbito do Direito da União Europeia.
A mesma goza da primazia normativa sobre o direito interno dos Estados-Membros, cabendo aos tribunais nacionais, na sua qualidade de tribunais europeus em sentido amplo, assegurar a primazia de aplicação do direito da União Europeia, desaplicando o direito nacional de sentido contrário.
A criação de um mercado interno supõe, por definição, a gradual e efetiva abolição dos diferentes mercados nacionais, em favor de um único mercado interno, de forma a potenciar o crescimento económico à escala europeia, através da mais fácil disponibilização de capital. O objetivo dos OIC, cujo enquadramento jurídico é definido pela Diretiva nº 2009/65/CE, consiste em facilitar a participação dos investidores privados num mercado de valores mobiliários, idealmente integrado a nível da UE.
O TJUE desempenha uma função interpretativa decisiva, nomeadamente em sede de ações por incumprimento e de reenvios prejudiciais, devendo os tribunais nacionais conformar-se com o entendimento sobre as normas dos Tratados que venha a ser vertido na jurisprudência daquele tribunal, sob pena de incumprimento do direito da União Europeia e de responsabilidade por parte do Estado-Membro.
A liberdade de circulação de capitais consagrada no artigo 63.º do TFUE implica a proibição de discriminação entre capitais de um dado Estado-Membro, e capitais provenientes de fora. Trata-se de uma norma diretamente aplicável aos Estados-Membros, que devem abster-se de restringir o seu alcance por via legislativa, administrativa ou jurisdicional, embora isso não impeça os Estados-Membros de regularem em alguma medida a circulação de capitais, desde que o façam em termos compatíveis com o direito da União Europeia.
A autonomia fiscal permite aos Estados‑Membros regularem soberanamente as condições de tributação aplicáveis, desde que o tratamento das situações transfronteiriças não seja discriminatório em comparação com o das situações nacionais. Não obstante a fiscalidade direta ser da competência dos Estados‑Membros, o respetivo regime jurídico deve respeitar o direito da União Europeia, sem qualquer discriminação em razão da nacionalidade ou da residência.
A posição consolidada no TJUE
De acordo com a respetiva fundamentação e, no seguimento da jurisprudência constante dos Acórdãos de 2 de Junho de 2016, Pensioenfonds Metaal en Techniek, C‑252/14, EU:C:2016:402, n.º 27 e de 30 de Janeiro de 2020, Köln‑Aktienfonds Deka, C‑156/17, EU:C:2020:51, n.º 49, decidiu o TJUE que “ao proceder a uma retenção na fonte sobre os dividendos pagos aos OIC não residentes e ao reservar aos OIC residentes a possibilidade de obter a isenção dessa retenção na fonte, a legislação nacional em causa no processo principal procede a um tratamento desfavorável dos dividendos pagos aos OIC não residentes”, que “pode dissuadir, por um lado, os OIC não residentes de investirem em sociedades estabelecidas em Portugal e, por outro, os investidores residentes em Portugal de adquirirem participações sociais em OIC e constitui, por conseguinte, uma restrição à livre circulação de capitais proibida, em princípio, pelo artigo 63.º TFUE (v., por analogia, Acórdão de 21 de junho de 2018, Fidelity Funds e o., C‑480/16, EU:C:2018:480, n.ºs 44, 45 e jurisprudência referida).”.
Ponderou também o TJUE da possibilidade de uma eventual derrogação ao disposto no artigo 63.º, do TFUE, tendo em conta que, nos termos do artigo 65.º, n.º 1, alínea a), do TFUE, aquele não prejudica o direito de os Estados Membros “aplicarem as disposições pertinentes do seu direito fiscal que estabeleçam uma distinção entre contribuintes que não se encontrem em idêntica situação no que se refere ao seu lugar de residência ou ao lugar em que o seu capital é investido”.
A este propósito, lembrou ainda o TJUE que, de acordo com a jurisprudência firmada, “a derrogação prevista no artigo 65.º, n.º 1, alínea a), TFUE é ela própria limitada pelo disposto no artigo 65.º, n.º 3, TFUE, que prevê que as disposições nacionais a que se refere o n.º 1 desse artigo «não devem constituir um meio de discriminação arbitrária, nem uma restrição dissimulada à livre circulação de capitais e pagamentos, tal como definida no artigo 63.º [TFUE]» (…)” e que “para que uma legislação fiscal nacional possa ser considerada compatível com as disposições do TFUE relativas à livre circulação de capitais, é necessário que a diferença de tratamento daí decorrente diga respeito a situações que não sejam objetivamente comparáveis ou se justifique por uma razão imperiosa de interesse geral [Acórdão de 29 de abril de 2021, Veronsaajien oikeudenvalvontayksikkö (Rendimentos distribuídos por OICVM), C‑480/19, EU:C:2021:334, n.º 30 e jurisprudência referida]”.
Quanto à comparabilidade das situações dos OIC residentes e não residentes, bem como dos detentores das respetivas participações sociais, concluiu o TJUE que “resulta de jurisprudência constante que, a partir do momento em que um Estado, de modo unilateral ou por via convencional, sujeita ao imposto sobre o rendimento não só os contribuintes residentes mas também os contribuintes não residentes, relativamente aos dividendos que auferem de uma sociedade residente, a situação dos referidos contribuintes não residentes assemelha‑se à dos contribuintes residentes (Acórdão de 22 de novembro de 2018, Sofina e o., C‑575/17, EU:C:2018:943, n.º 47 e jurisprudência referida).” (parágrafo 49).
A este respeito, não obstante as alegações do Governo português, de que a tributação dos dividendos recebidos por estas duas categorias de OIC (residentes e não-residentes) é regulada por diferentes técnicas de tributação – sujeitos a IRC, por retenção na fonte, quando pagos a um OIC não-residente e a imposto do selo e à tributação autónoma prevista no n.º 11, do artigo 88.º, do CIRC, se pagos a um OIC residente, e que, ficando os dividendos distribuídos pelos OIC residentes a detentores das suas participações sociais, pessoas singulares residentes ou não-residentes com estabelecimento estável, sujeitos a IRS à taxa de 28%, e, no caso das pessoas coletivas residentes a IRC à taxa de 25%, enquanto os dividendos pagos a detentores de participações sociais não-residentes no território português, e que não tenham estabelecimento estável neste último, estão, em princípio, isentos do imposto sobre o rendimento das pessoas singulares e do imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas, o que leva a uma estreita coerência entre a tributação dos rendimentos dos OIC e dos detentores de participações sociais, imprescindível à coerência do sistema tributário –, sem esquecer a situação de transparência fiscal da Requerente, que livremente optou por não operar em Portugal através de um estabelecimento estável e cujos detentores de participações sociais podem imputar ou creditar o imposto retido na fonte em Portugal ao imposto por eles devido no país da sua residência, o TJUE concluiu que um OIC não residente se encontra numa situação objetivamente comparável à de um OIC residente em Portugal.
Quanto ao argumento da tributação dos dividendos pagos por sociedades nacionais a OIC residentes e a OIC não-residentes por técnicas de tributação diferentes, considerou o TJUE que a legislação em causa no processo principal não se limitava a prever diferentes modalidades de cobrança de imposto em função do local de residência do OIC beneficiário de dividendos de origem nacional, mas previa, na realidade, uma tributação sistemática dos referidos dividendos que onerava apenas os organismos não-residentes.
Salientava ainda que embora o imposto do selo, de natureza patrimonial, incidente sobre o rendimento do capital acumulado, pudesse ser equiparado a um imposto sobre os dividendos, um OIC residente sempre poderia escapar a tal tributação dos dividendos procedendo à sua distribuição imediata, possibilidade que não está aberta a um OIC não-residente.
Por outro lado, a tributação autónoma prevista no n.º 11 do artigo 88.º, do CIRC apenas incide sobre os dividendos recebidos por OIC residentes quando as partes sociais a que respeitam os lucros não tenham permanecido na titularidade do mesmo sujeito passivo, de modo ininterrupto, durante o ano anterior à data da sua colocação à disposição, e não venham a ser mantidas durante o tempo necessário para completar esse período, só ocorre em casos limitados, não podendo ser equiparado ao imposto geral de que são objeto os dividendos de origem nacional recebidos pelos OIC não-residentes, não colocando estes numa situação objetivamente diferente da dos OIC residentes no que se refere à tributação dos dividendos de origem portuguesa.
Ora, apesar de os OIC residentes poderem ser tributados em sede de imposto do selo, caso optem pela não distribuição de lucros aos titulares das respetivas UP, mas antes pela sua acumulação, bem como pela tributação autónoma prevista no n.º 11, do artigo 88.º, do CIRC, apenas se reunidas as condições ali indicadas, impostos a que não estão sujeitos os OIC não-residentes, estes estão sempre sujeitos a IRC, por retenção na fonte a título definitivo, sem possibilidade de beneficiar de qualquer isenção deste imposto.
Considerou ainda o TJUE que “o Estado de residência da sociedade distribuidora deve assegurar que, em relação ao mecanismo previsto no seu direito nacional para evitar ou atenuar a tributação em cadeia ou a dupla tributação económica, as sociedades não residentes sejam submetidas a um tratamento equivalente ao tratamento de que beneficiam as sociedades residentes” (parágrafo 66) e que “tendo a República Portuguesa optado por exercer a sua competência fiscal sobre os rendimentos auferidos pelos OIC não residentes, estes encontram‑se, por conseguinte, numa situação comparável à dos OIC residentes em Portugal no que respeita ao risco de dupla tributação económica dos dividendos pagos pelas sociedades residentes em Portugal” (parágrafo 67).
Relativamente à necessidade de preservar a coerência do regime fiscal nacional, entendeu o Tribunal de Justiça, na esteira dos Acórdãos de 8 de Novembro de 2012, Comissão/Finlândia, C‑342/10 e de 13 de Novembro de 2019, College Pension Plan of British Columbia, C‑641/17, que “para que um argumento baseado nessa justificação possa ser acolhido, é necessário que esteja demonstrada a existência de uma relação direta entre o benefício fiscal em causa e a compensação desse benefício por uma determinada imposição fiscal” (parágrafo 78).
Como não estava a isenção da retenção na fonte dos dividendos em benefício dos OIC residentes“ sujeita à condição de os dividendos recebidos pelos organismos serem redistribuídos por estes e de a sua tributação na esfera dos detentores de participações sociais permitir compensar a isenção da retenção na fonte”, não se verificava “uma relação direta (…) entre a isenção da retenção na fonte dos dividendos de origem nacional auferidos por um OIC residente e a tributação dos referidos dividendos enquanto rendimentos dos detentores de participações sociais nesse organismo” que permitisse invocar a necessidade de preservar a coerência do regime fiscal nacional como justificação para a restrição à liberdade de circulação de capitais.
Por outro lado, entendeu também o TJUE que não é de acolher a justificação baseada na preservação da repartição equilibrada do poder de tributar entre Portugal e o Estado da residência, pois, tal como já decidido, entre outros, no seu Acórdão de 21 de Junho de 2018, Fidelity Funds, C‑480/16,“quando um Estado‑Membro tenha optado, como na situação em causa no processo principal, por não tributar os OIC residentes beneficiários de dividendos de origem nacional, não pode invocar a necessidade de garantir uma repartição equilibrada do poder de tributar entre os Estados‑Membros para justificar a tributação dos OIC não residentes beneficiários desses rendimentos.”
Como corolário da obrigatoriedade de reenvio prejudicial prevista no artigo 267.º do TFUE, as decisões do TJUE têm carácter vinculativo para os Tribunais nacionais, ao permitirem a uniformidade na aplicação do direito da União no território dos Estados-Membros em aplicação do princípio do primado ou prevalência do direito da União sobre o direito nacional, acolhido pelo n.º 4, do artigo 8.º, da Constituição da República Portuguesa, segundo o qual “as disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respetivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático.”.
Face aos factos dados como provados e ao Direito aplicável dúvidas parecem não existir quanto à aplicabilidade desta jurisprudência ao caso em concreto pelo que, sem mais, passamos à decisão de considerar procedente o pedido de pronúncia arbitral.
Deixa-se consagrado ainda que foram conhecidas e apreciadas as questões relevantes submetidas à apreciação deste Tribunal, não o tendo sido aquelas cuja decisão ficou prejudicada pela solução dada a outras, ou cuja apreciação seria inútil [artigo 608.º do CPC, ex vi art. 29.º, 1, c) e e), do RJAT] e que a presente decisão se encontra na mesma linha de outras decisões arbitrais proferidas em sentido praticamente unânime por vários Tribunais constituídos no âmbito do CAAD[5](cfr., v. g., os acórdãos proferidos nos processos números 28/2021-T 12/2023-T, 816/2023-T, 139/2024-T e 727/2024-T).
Reembolso de quantias pagas e juros indemnizatórios
No que diz respeito ao pedido de pagamento de juros indemnizatórios, dir-se-á que, de acordo com o disposto no n.º 5, do artigo 24.º, do RJAT “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na lei geral tributária e no
Código de Procedimento e de Processo Tributário”, daqui resultando que uma decisão arbitral não se limita à apreciação da legalidade do ato tributário.
De igual modo, de acordo com o disposto no artigo 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT, deverá ser entendido que o pedido de juros indemnizatórios é uma pretensão relativa a atos tributários que visa explicitar/concretizar o conteúdo do dever de “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”.
E, conforme tem sido assinalado pela Jurisprudência arbitral, insere-se nas competências dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD a fixação dos efeitos da decisão arbitral que podem ser definidos em processo de impugnação judicial, designadamente, a anulação dos atos cuja declaração de ilegalidade é pedida, a condenação da Autoridade Tributária e Aduaneira no pagamento de juros indemnizatórios.
O reembolso do imposto e o pagamento de juros indemnizatórios é uma consequência da anulação administrativa, tal como resulta do disposto no artigo 172.º do CPA, que impõe à Administração o dever de reconstituir a situação que existiria se o ato anulado não tivesse praticado, em consonância com o também estabelecido no artigo 43.º da LGT.
Nestes termos, entende este Tribunal Arbitral que terá de haver lugar ao reembolso do montante de imposto indevidamente retido, no total de EUR 155.407,75, acrescido dos juros indemnizatórios, calculados nos termos legais.
E quais esses termos legais?
Vejamos:
O TJUE tem decidido que a cobrança de impostos em violação do direito da União tem como consequência não só direito ao reembolso como o direito a juros, como pode ver-se pelo acórdão de 18-04-2013, processo n.º C-565/11 (e outros nele citados), em que se refere: 21 Há que lembrar ainda que, quando um Estado-Membro tenha cobrado impostos em violação do direito da União, os contribuintes têm direito ao reembolso não apenas do imposto indevidamente cobrado mas igualmente das quantias pagas a esse Estado ou por este retidas em relação direta com esse imposto. Isso inclui igualmente o prejuízo decorrente da indisponibilidade de quantias de dinheiro, devido à exigibilidade
prematura do imposto (v. acórdãos de 8 de março de 2001, Metallgeselischaft e o., C- 397/98 e C-410/98, Colet., p. I-1727, n.ºs 87 a 89; de 12 de dezembro de 2006, Test Claimants in the FII Group Litigation, C-446/04, Colet., p. I-11753, n.º 205; Littlewoods Retail e o., já referido, n.º 25; e de 27 de setembro de 2012, Zuckerfabrik Jülich e o., C- 13.113/10, C-147/10 e C-234/10, n.º 65).
22 Resulta daí que o princípio da obrigação de os Estados-Membros restituírem com juros os montantes dos impostos cobrados em violação do direito da União decorre desse mesmo direito da União (acórdãos, já referidos, Littlewoods Retail e o., n.º 26, e Zuckerfabrik Jülich e o., n.º 66).
23 A esse respeito, o Tribunal de Justiça já decidiu que, na falta de legislação da União,
compete ao ordenamento jurídico interno de cada Estado-Membro prever as condições em que tais juros devem ser pagos, nomeadamente a respetiva taxa e o modo de cálculo.
Essas condições devem respeitar os princípios da equivalência e da efetividade, isto é, não devem ser menos favoráveis do que as condições relativas a reclamações semelhantes baseadas em disposições de direito interno, nem organizadas de modo a, na prática, impossibilitar ou dificultar excessivamente o exercício dos direitos conferidos pelo ordenamento jurídico da União (v., neste sentido, acórdão Littlewoods Retail e o.,
já referido, n.ºs 27 e 28 e jurisprudência referida).
No entanto, cabe a cada Estado-Membro prever as condições em que tais juros devem ser pagos, nomeadamente a respetiva taxa e o modo de cálculo.
O regime substantivo do direito a juros indemnizatórios é regulado no artigo 43.º da LGT, que estabelece, no que aqui interessa, o seguinte:
Artigo 43.º
Pagamento indevido da prestação tributária
1 – São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.
2 – Considera-se também haver erro imputável aos serviços nos casos em que, apesar da liquidação ser efectuada com base na declaração do contribuinte, este ter seguido, no seu preenchimento, as orientações genéricas da administração tributária, devidamente publicadas.
3. São também devidos juros indemnizatórios nas seguintes circunstâncias:
a) (...)
b) (...)
c) Quando a revisão do acto tributário por iniciativa do contribuinte se efectuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à administração tributária;
d) Em caso de decisão judicial transitada em julgado que declare ou julgue a inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma legislativa ou regulamentar em que se fundou a liquidação da prestação tributária e que determine a respetiva devolução.
4. A taxa dos juros indemnizatórios é igual à taxa dos juros compensatórios.
5. No período que decorre entre a data do termo do prazo de execução espontânea de decisão judicial transitada em julgado e a data da emissão da nota de crédito, relativamente ao imposto que deveria ter sido restituído por decisão judicial transitada em julgado, são devidos juros de mora a uma taxa equivalente ao dobro da taxa dos juros de mora definida na lei geral para as dívidas ao Estado e outras entidades públicas.
Como há muito vem entendendo o Supremo Tribunal Administrativo, a imputabilidade para efeitos de juros indemnizatórios apenas depende da prática de um ato ilegal, por iniciativa da Administração Tributária, mesmo em situações em que a ilegalidade deriva apenas da violação do direito da União Europeia: – «em geral, pode afirmar-se que o erro imputável aos serviços, que operaram a liquidação, entendidos estes num sentido global, fica demonstrado quando procederem a reclamação graciosa ou impugnação dessa mesma liquidação» ( 1 );– «Para efeitos da obrigação de pagamento de juros indemnizatórios, imposta à administração tributária pelo art. 43.º da L.G.T., havendo um erro de direito na liquidação e sendo ela efectuada pelos serviços, é à administração que é imputável esse erro, sempre que a errada aplicação da lei não tenha por base qualquer informação do contribuinte (...) – «há erro nos pressupostos de direito, imputável aos serviços, de modo a preencher o pressuposto da obrigação da Administração de indemnizar aquele a quem exigiu imposto indevido, quando na liquidação é aplicada uma norma nacional incompatível com uma Directiva comunitária» ( 3 ); – «os juros indemnizatórios previstos no art. 43.º da LGT são devidos sempre que possa afirmar-se, como no caso sub judicibus, que ocorreu erro imputável aos serviços demonstrado, desde logo e sem necessidade de mais, pela procedência de reclamação graciosa ou impugnação judicial da correspondente liquidação (...)»
À luz desta jurisprudência, não sendo os erros que afetam as retenções na fonte imputáveis ao Requerente, eles são imputáveis à Autoridade Tributária e Aduaneira.
O facto de se tratar de atos de retenção na fonte não praticados diretamente pela Autoridade Tributária e Aduaneira, não afasta essa imputabilidade, pois, ilegalidade da retenção a fonte, quando não é baseada em informações erradas do contribuinte, não lhe é imputável, mas sim «aos serviços» devendo entender-se que se integra neste conceito a entidade que procede à retenção na fonte, na qualidade de substituto tributário, que assume perante quem suporta o encargo do imposto o papel da Administração Tributária na liquidação e cobrança do imposto.
Seguindo o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência proferido pelo STA no Proc nº 022/23.3BALSB, em 28-9-2023 e a abundante e consolidada jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, mormente a vertida nos Acórdãos de 28/01/2015, no Processo n.º 0722/14, de 11/12/2019, no Processo n.º 058/19.9BALSB, de 20/05/2020, no Processo n.º 05/19.8BALSB, de 26/05/2022, no Proc. n.º 159/21.3BALSB, entende-se que os juros indemnizatórios só serão devidos depois de decorrido um ano após a apresentação dos pedidos de revisão oficiosa, e não desde a data do pagamento do imposto (cf. artigo 43.º, n.ºs 1 e 3, alínea c), da LGT).
Neste mesmo sentido já se pronunciou o tribunal arbitral, designadamente nas decisões proferidas nos processos n.º 296/2020-T, 18/2021-T, 785/2020-T e 271/2021-T, entre outras.
Assim é que, a Requerente tem direito ao pagamento de juros indemnizatórios sobre as importâncias indevidamente retidas, contados desde 8 de setembro de 2024, data em que se perfez um ano desde o momento da apresentação do pedido de revisão oficiosa, até integral reembolso, contados à taxa legal supletiva, nos termos dos artigos 43.º, n.º 4, e 35.º, n.º 10, da LGT, do artigo 61.º do CPPT, do artigo 559.º do Código Civil e da Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril.
III - DECISÃO
Nos termos e com os fundamentos expostos, este Tribunal Arbitral decide:
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Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral e, em consequência,
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Anular os atos de (i) indeferimento tácito do mencionado pedido de revisão oficiosa e (ii) de retenção na fonte de IRC, com o consequente reembolso das importâncias indevidamente retidas e cobradas, acrescida dos correspondentes juros indemnizatórios contados desde 8-9-2024, até efetivo reembolso e
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Condenar a Requerida nas custas do processo, atento o seu decaimento.
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Valor do processo: Fixa-se o valor do processo em € 155.407,75 (cento e cinquenta e cinco mil quatrocentos e sete euros e setenta e cinco cêntimos) nos termos do artigo 97.º -A, n.º 1, alínea a) do CPPT, aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e artigo 2.º do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
Custas: Fixa-se o valor das custas em € 3.672,00 (três mil seiscentos e setenta e dois euros), nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT e 3.º, n.º 1 e 4, números 1 a 4, do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
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Notifique-se, incluindo o Ministério Público.
Lisboa, 14 de abril de 2025
O Tribunal Arbitral Coletivo,
José Poças Falcão
(Presidente e Relator),
Adelaide Moura
(Árbitro Adjunto)
Manuel Lopes da Silva Faustino
(Árbitro Adjunto)
[1] Destaque e sublinhado nosso.
[2] Cfr, v. g., Acórdão do STA de 14-3-2018 – Proc nº 0716/13.
[3] Questões, são «…todos os problemas concretos que haja sido chamado a resolver no quadro do litígio (tendo em conta o pedido, a causa de pedir e as eventuais exceções invocadas), ficando apenas excetuado o conhecimento das questões cuja apreciação e decisão tenha ficado prejudicada pela solução dada a outras. E questão, para este efeito (contencioso tributário), é tudo aquilo que é susceptível de caracterizar um vício, uma ilegalidade do ato tributário impugnado» (ac. deste TCAN n.º 01258/05.4BEVIS de 11-04-2014, traduzindo vasta jurisprudência pacífica no mesmo sentido) e «argumentos» são os factos, razões, raciocínios que as partes mobilizam em defesa da procedência das «questões» que pretendem ver resolvidas (por via de ação ou por exceção) e submetem a tribunal, cabendo, também aqui, as controvérsias que as partes sobre elas suscitem (ac. da Subsecção do CA do STA n.º 01007/06 31-10-2007).
[4] Em sentido idêntico ao aqui deliberado vide, v. g., o acórdão arbitral proferido no processo n.º 917/2023-T.
[5] Todos foram presididos pelo mesmo árbitro que tem idênticas funções neste processo.