Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 312/2024-T
Data da decisão: 2025-04-07  IVA  
Valor do pedido: € 40.308,22
Tema: IVA; direito à dedução; e ónus da prova
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SUMÁRIO:

 

 

 

I - Cabe à AT apenas a prova da verificação dos pressupostos legais que legitimam a sua atuação  e ao contribuinte o ónus de prova da existência dos factos tributários que alegou como fundamento do seu direito de dedução  de IVA.

 

II – Basta existir uma relação indireta entre o bem ou serviço no qual o IVA foi incorrido e as operações produzidas a jusante – atividade económica do sujeito passivo – para que o imposto seja dedutível.

 

III – O Tribunal Arbitral não identificou no caso sub iudice essa relação, ainda que indireta, por falta de prova.

 

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

 

I - RELATÓRIO

 

  1. A..., s.a.,   contribuinte n.º  ..., sediada na ..., ..., ..., Lisboa, doravante designada por  “Requerente”, requereu  a constituição de Tribunal Arbitral e deduziu pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2,  todos do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro,   relativamente ao ato de indeferimento do pedido de revisão oficiosa e, mediatamente, sobre a liquidação adicional de IVA n.º 2021... (período 19.06T).

 

  1. É demandada a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante também designada por “Requerida” ou “AT”.

 

  1. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) em 6 de março de 2024 e, de seguida, notificado à AT.

 

  1. Nos termos do disposto no artigo 5.º, n.º 2, no artigo 6.º, n.º 1 e no artigo 11.º, n.º 1, alínea a), todos do RJAT, o Exmo. Senhor Presidente do Conselho Deontológico designou o signatário como árbitro, que, no prazo legal, comunicou a aceitação do encargo.

 

  1. Em 24 de abril de 2024, as partes foram notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados das alíneas a) e c), do n.º 1, do artigo 11.º do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.

 

  1. O Tribunal Arbitral foi constituído em 15 de maio de 2024, tendo a Requerida sido notificada para apresentar resposta no dia 20 de maio de 2024.

 

  1. A Requerida apresentou, em 24 de junho de 2024, resposta, na qual defendeu, nomeadamente, que:  não foi possível estabelecer qualquer ligação entre as despesas que a Requerente considerou com IVA dedutível e a eventual atividade tributada, pois as despesas são de índole pessoal e, paralelamente, não se comprovou que as despesas efetuadas com a aquisição de serviços jurídicos, relativamente a processos judiciais em curso, nos tribunais portugueses, sejam afetas a atividades tributadas. 

 

  1. O Tribunal Arbitral determinou que, por despacho de 26 de outubro de 2024, ao abrigo do princípio da autonomia do tribunal arbitral na condução do processo e na determinação das regras a observar com vista à obtenção, em prazo razoável, de uma pronúncia de mérito sobre as pretensões formuladas (artigo 16.º, al. c), do RJAT), a dispensa da reunião a que o artigo 18.º do RJAT alude. De igual forma, considerou que as questões objeto do processo estão suficientemente debatidas nas peças processuais apresentadas pelas partes, pelo que, decidiu, em sintonia com o previsto no artigo 113.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”), subsidiariamente aplicável, por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, pela desnecessidade de alegações.

 

Posição da Requerente

 

  1. A Requerente alega que a Requerida não tem razão quando fundamenta a decisão administrativa com o facto de não ter declarado atividades sujeitas a IVA.

 

  1. Vejamos, em concreto, os fundamentos que utiliza para suportar a referida conclusão:

 

  1. Exerce naturalmente a sua atividade, como se pode ver pelas prestações de serviços referidas na decisão de aplicação da coima e pelas respetivas declarações fiscais que a comprovam;

 

  1. No período de 1806T a 1906T tem proveitos e custos como a Requerida refere na decisão de aplicação da coima;

 

  1. Saber se uma empresa comercial reúne, ou não, os requisitos formais para o exercício de uma determinada atividade, qualquer que ela seja (e.g., a existência de licenças e alvarás para o aluguer de bens recreativos e desportivos e transporte de passageiros por vias navegáveis interiores), integra uma competência da entidade supervisora e não da AT. Por isso, sustentar que a atividade não estava licenciada constitui uma intromissão na liberdade de gestão da empresa;
  2. Ainda que a Requerente não tivesse obtido rendimentos em determinado exercício, tal não seria fundamento suficiente para concluir que os custos com a atividade pudessem ser considerados como não dedutíveis;

 

  1. Não é esse sequer o caso, na medida em que realizou, em 2019, proveitos resultantes da sua atividade de consultoria ao cliente B..., Limited;

 

  1. Não tem, por isso, qualquer suporte legal a conclusão de que não foram declaradas, e exercidas, atividades sujeitas a IVA.

 

  1. Defende, em segundo lugar, quanto ao segmento da correção com génese nas despesas de índole pessoal, que as aquisições de bens e serviços suportados para a atividade sujeita, não ofende o artigo 20.º, n.º 1, al. a), do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado (“CIVA”), na medida em que o imposto deduzido respeita a bens e serviços adquiridos pelo sujeito passivo para a realização de transmissões de bens e prestações de serviços sujeitas a imposto e dele não isentas.

 

  1. Argumenta em favor da referida posição do seguinte modo:

 

  1. Não está fundamentada, nem tem respaldo legal, a conclusão que suportou e deduziu o IVA com despesas de vestuário, perfumes, livros e brinquedos de criança, cabeleireiros, alimentação e despesas com a embarcação e, assim, de natureza pessoal;

 

  1. A determinação da matéria tributável no sistema fiscal português assenta no princípio declarativo e, se a contabilidade estava organizada segundo a lei comercial ou fiscal, presume-se a veracidade dos dados nela inscritos;

 

  1. A Requerida não fez prova dos erros, inexatidões ou de quaisquer outros indícios fundados de que a contabilidade não reflete a matéria tributável do contribuinte;

 

  1. Se o objeto social incorpora a compra e venda de imóveis, arrendamento (de imóveis), sua administração e gestão imobiliária, alojamento local, consultoria para negócios e gestão, aluguer de bens recreativos e desportivos, e transporte de passageiros por vias navegáveis interiores serão dedutíveis os valores de IVA suportados com bens recreativos, desportivos e transportes por vias navegáveis interiores – artigo 20.º, n.º 1, alínea a), do CIVA;

 

  1. Igual conclusão é válida para as despesas de alimentação, mormente, na atividade de transporte de passageiros com embarcações, essenciais à prestação e promoção dos referidos serviços;

 

  1. O facto de a Requerente não ter funcionários nos seus quadros, nem apresentar custos com pessoal em nada releva para a sua capacidade de prestação de serviços, pois trabalha com fornecedores e colaboradores remunerados – a Administração.

 

  1. Defende, quanto à desconsideração de gastos com serviços jurídicos faturados pela C..., Sociedade de Advogados,  período 1906T (34 808,25 euros), que:

 

  1. No período em causa foi necessário, no quadro de um processo judicial em curso, contratar uma sociedade de advogados e, paralelamente, os honorários encontram-se pagos;

 

  1. A pretensa falta de pagamento de faturas não é um critério da dedutibilidade fiscal do IVA suportado;

 

  1. Durante o exercício fiscal de 2018 e 2019, a Requerente suportou gastos com serviços jurídicos das sociedades “D..., Sociedade de Advogados, SL e E..., Sociedade de Advogados,  serviços estes que não foram questionados pela Requerida, como justificam grande parte do IVA reportável (5 499,97 euros);

 

  1. Deve ficar provado que foi parte nos seguintes processos: (i) .../18...T8LSB -  Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa – Juízo de Comércio de Lisboa, no montante de 3 719 092,38 euros; (ii) .../18...T8LSB – Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa – Juízo de Comércio de Lisboa, no montante de  10 460 862,74 euros; (iii) .../18...T8LSB, Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa,  Juízo Cível, no montante de 10 460 862,74 euros; e (iv) .../19...T8LSB – Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa – Juízo de Comércio de Lisboa, no montante de  9 950 376,50 euros;

 

  1. A quantidade de processos, bem como os montantes envolvidos atestam a importância e necessidade dos serviços jurídicos prestados;

 

  1. Sendo clara a relação causal entre os processos judiciais a decorrer nos tribunais portugueses  e os gastos contabilizados com serviços jurídicos deve o IVA ser dedutível.

 

  1.  O direito à dedução só pode ser excluído em situações estritamente excecionais previstas na Diretiva IVA (“DIVA”) e no CIVA, mormente, nos casos de utilização fraudulenta, situação que não se verifica no caso sub iudice.

 

  1. Defende que, por último, se o ato tributário de liquidação é ilegal, não podendo  esta (ilegalidade) ser imputável à Requerente, assiste-lhe o direito ao reembolso do imposto que estima ter sido indevidamente pago e à perceção de juros indemnizatórios.

 

Posição da Requerida

 

  1. A Requerida defende que não se verifica qualquer ilegalidade na liquidação em crise.

 

  1. Observa, quanto à questão da dedução de IVA, o seguinte:

 

  1. Não foi demonstrado que as aquisições de bens e serviços, cujo imposto foi deduzido, fossem afetas à realização de operações tributáveis;

 

  1. No ano de 2019, a faturação declarada respeita a serviços prestados, no âmbito da atividade tributada de consultoria à “B... Limited”, no valor de 16 449,76 euros e a “F...”, no montante de 600 euros;

 

  1. Estando a Requerente registada para efeitos de IVA como um sujeito passivo misto, que pratica simultaneamente operações isentas que não conferem direito à dedução e operações que conferem esse direito, com afetação real de todos os bens, para exercer o direito à dedução do imposto suportado, existem dois momentos ou fases para calcular o montante de IVA dedutível: i) identificação do IVA suportado em bens e serviços que são, ou virão a ser, totalmente usados em operações que conferem direito à dedução ou totalmente usados em operações que não conferem esse direito; ii) se houver qualquer montante de imposto suportado que  não possa ser objeto de imputação direta, por respeitar a bens ou serviços que são, ou serão, usados, tanto em operações que conferem direito à dedução, como em operações que não conferem esse direito, o imposto suportado tem de ser objeto de “repartição”, através dos métodos do “pro rata” ou da “afetação real”;

 

 

  1. No caso concreto, não foi possível estabelecer qualquer ligação entre as despesas que a Requerente considerou com IVA dedutível e as atividades desenvolvidas, pois são despesas de índole pessoal e, paralelamente, não foi comprovado que as despesas efetuadas com a aquisição de serviços jurídicos, respeitantes a processos judiciais, estejam afetas à realização de atividades tributadas.

 

 

  1. Quanto ao IVA incorrido com a aquisição de serviços jurídicos, nada obsta à contratação, quer no exercício da sua atividade ou relativamente a terceiros (como, por exemplo, o seu administrador), todavia para que esses serviços sejam fiscalmente aceites como dedutíveis é necessário que tenham sido  suportados (ou incorridos) para obter ou garantir rendimentos tributáveis em IVA. No entanto, não foram prestados quaisquer esclarecimentos quanto à conexão de serviços jurídicos adquiridos com as operações económicas tributáveis, limitando-se a Requerente a sustentar que foram pagos para fazer face aos processos em litigância nos tribunais portugueses;

 

 

  1. Os elementos carreados para o processo com indicação dos concretos autos em que a Requerente esteve envolvida em 2019, como parte, embora justifiquem a relação causal com os gastos de honorários pagos a advogados, não provam um nexo de causalidade com as operações económicas realizadas ou a realizar a jusante pela Requerente;

 

  1. Conclui que, por isso, deve ser mantida a desconsideração do imposto deduzido.

 

 

  1. Defende que, não existindo qualquer “erro imputável aos serviços” na liquidação do tributo, não deve ser reconhecido o direito a juros indemnizatórios.

 

19. Questões a Apreciar

 

  1. Se a decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa e, mediatamente, a liquidação adicional de IVA n.º 2021 ... é ilegal – o IVA que a Requerente deduziu relativamente a bens e serviços adquiridos entre 1806T e 1906T respeita a prestações de serviços sujeitas a imposto e dele não isentas(?);

 

  1. Se a Requerente tem direito ao reembolso do montante de IVA suportado com serviços jurídicos da sociedade C...– Sociedade de Advogados,  no montante de 34 808,25 euros;

 

  1. Se deve ser reconhecido o direito de a Requerente deduzir o IVA suportado com gastos com serviços jurídicos das sociedades D... Associados e da E..., Sociedade de Advogados, no montante de 5 499,97 euros (excesso reportável para os períodos seguintes).

 

 

II – FUNDAMENTAÇÃO

 

MATÉRIA DE FACTO

 

20. Factos com relevância para a apreciação da causa que se consideram provados

 

20.1 A Requerente é uma sociedade anónima que tem como atividade principal “Compra e Venda de Bens Imobiliários” – CAE 68100, e, de modo secundário, o “Alojamento Mobilado para Turistas” (CAE 55201), o “Arrendamento de Bens Imobiliários (CAE – 68200) e, “Outras Atividades Consultoria para os Negócios e a Gestão” (CAE 70220).

(PA)

 

20.2 A Requerente encontra-se enquadrada em IRC no regime normal e, em sede de IVA, no regime normal, na periodicidade trimestral.

(PA)

 

20.3 A Requerente está enquadrada, em IVA, como sujeito passivo misto com afetação real de todos os bens.

(PA)

 

20.4 A Requerente deduziu, no campo 24 do período 1806T até 1906T, 40 308,22 euros.

(PA)

 

20.5 A Requerente formulou, no dia 16 de agosto de 2019, um pedido de reembolso de IVA, referente ao período 1906T, no valor de 34 808,25 euros.

(PA)

 

20.6 No Relatório do pedido de reembolso de IVA concluiu-se que:

 

Correções Aritméticas

(…)

Do que foi anteriormente exposto concluímos o seguinte:

1.Do período 1806T até ao período do reembolso 1906T, o sujeito passivo não exerceu qualquer atividade sujeita a IVA. Foram verificados os valores de volume de negócios, bem como os montantes deduzidos no campo 24 (Outros bens e serviços) desde abril de 2018 até junho de 2019.

2.Em face da atividade exercida não ser sujeita a imposto, o sujeito passivo não poderia ter deduzido o IVA suportado. No entanto procedeu à dedução integral de todo este imposto suportado em toda a atividade, apesar de não ter declarado proveitos com a sujeição a imposto.

3. Das despesas deduzidas pelo sujeito passivo além das despesas com advogados, destacam-se diversas despesas tais como: despesas de vestuário, perfumes, livros e brinquedos de criança, cabeleireiros, alimentação e despesas com embarcação, que como referimos acima são de índole pessoal.

4.Ora o sujeito passivo não comprovou para cada registo contabilístico das contas do IVA dedutível, quais as aquisições de bens e serviços suportados para a eventual atividade sujeita a imposto, conforme a alínea a) do n.º 1 do artigo 20.º do CIVA, que refere que só se pode deduzir imposto incidido sobre bens adquiridos pelo sujeito passivo para a realização de transmissões de bens e prestações de serviços sujeitas a imposto e dele não isentas.

5. De referir que neste período, o sujeito passivo também deduziu o IVA de diversas despesas de alimentação, com IVA à taxa reduzida e intermédia e que justificou a dedução, com o fornecimento ao pessoal da empresa de alimentação em cantinas, com base na alínea b) do n.º 2 do artigo 21.º do CIVA, mas verificamos que o sujeito passivo não possui funcionários nos seus quadros, nem apresentou custos de pessoal.

O total de IVA deduzido e declarado no campo 24 nos períodos 1806T a 1906T, foi de 40 308,22 = [564,45 euros (1806T) + 89,70 euros (1809T) + 347,14 euros (1812T) + 4250,28 (1903T) + 35 056,65 (1906T)].

Assim, ocorreu uma dedução indevida de imposto no valor de 40 308,22 euros.

O sujeito passivo tinha um crédito de imposto de 40 308,22 euros, mas só solicitou no pedido de reembolso, o valor de 34 808,25 euros, ficando 5 499,97 euros a reportar para o período seguinte.

Assim, o imposto deduzido e suportado ao longo dos diversos períodos, não é dedutível, por força do artigo 20.º do CIVA.

(PA)

20.7 A Requerente exerceu o direito de audição prévia, no dia 26 de novembro de 2020, no qual dissentiu quanto à referida correção.

(PA)

 

20.8 A decisão final do procedimento de inspeção manteve a correção de IVA nos termos constantes na proposta de decisão administrativa.

(PA)

 

20.9 A Requerente foi, assim, notificada da correção n.º..., de 11 de dezembro de 2020, tendo esta sido a fonte da liquidação de IVA n.º 2021..., relativa ao período 201906T, no montante de 40 308,22 euros, correspondente ao valor do reembolso e ao (valor) que possuía em crédito de IVA.

(PA)

 

20.10 A liquidação identificada em 20.9 não foi objeto de impugnação.

(Facto aceite pela Requerente e Requerida)

 

20.11 A Requerente apresentou, no dia 19 de junho de 2023, pedido de revisão oficiosa da liquidação de IVA n.º 2021... .

(PA)

 

20.12 O pedido de revisão oficiosa foi indeferido por despacho de 28 de novembro de 2023, com os seguintes fundamentos:

 

(…)

 

40. Nas aquisições de bens e serviços que possam ser utilizados em ambas as atividades (tributada e isenta) haverá que determinar um critério objetivo de utilização desses bens ou serviços adquiridos em cada atividade.

41. Deste modo, uma vez que se trata de um sujeito passivo misto, tem obrigatoriamente que entregar a declaração periódica de IVA, incluindo as operações sujeitas e as operações isentas nos termos do artigo 9.º do CIVA.

42. Nesta sequência e após análise do procedimento inspetivo, conclui-se que o efetuado pelo IT, não merece qualquer reparo, e está de acordo com a Lei, não se tendo detetado qualquer erro que possa ser imputado à AT.

43. A acrescer ao facto de, nesta sede, não ter sido apresentada qualquer prova documental, nos termos do artigo 74.º da LGT, que possa colocar em causa o analisado e efetuado pela IT.

(…)

(PA)

 

20.13 O pedido de pronúncia arbitral foi apresentado no dia 4 de março de 2024.

(Sistema informático do CAAD).

 

21.Factos não provados

 

Não existem quaisquer factos não provados com relevância para a decisão.

 

22. Fundamentação dos factos provados

 

O Tribunal Arbitral, quanto à matéria de facto, não tem de se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (artigo 123.º, n.º 2, do CPPT, artigo 607.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.

Os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis das questões de Direito (artigo 596.º do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

Tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, a prova documental junta aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, nos quais se descreve a fonte utilizada para que se os dê como assentes.

Não se deram como provadas, nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.

 

23.MATÉRIA DE DIREITO

 

23.1 Questão da ilegalidade da liquidação de IVA n.º 2021...

 

A questão central dos autos consiste em determinar se as aquisições de bens ou serviços foram suportadas para a eventual atividade sujeita a imposto, relativamente ao intervalo compreendido entre 1806T e 1906T, objeto de pedido de reembolso respeitante ao período 1906T.

O IVA caracteriza-se como (i)  um imposto indireto, com caráter de incidência geral sobre o consumo, na medida em que atinge as transmissões de bens e as prestações de serviços; (ii) plurifásico, porquanto assenta numa estrutura de entrega e respetiva dedução pelos diversos intervenientes na cadeia, até ao consumidor final, que o suporta, e não o pode deduzir; e (iii) não cumulativo, na medida em que em cada estádio do circuito económico se tributa apenas o valor acrescentado nessa fase, evitando-se, assim,  o efeito cumulativo.

O IVA funciona através do método subtrativo indireto, de acordo com o qual o sujeito passivo deduz, ao imposto liquidado nos seu outputs, o imposto suportado nos respetivos inputs. Assim, o direito à dedução é um elemento essencial do funcionamento do imposto.

Vejamos agora, em particular, as regras aplicáveis ao direito à dedução.

O artigo 19.º do CIVA dispõe que:

 

1- Para apuramento do imposto devido, os sujeitos passivos deduzem, nos termos dos artigos seguintes, ao imposto incidente sobre as operações tributáveis que efetuaram:

a) O imposto devido ou pago pela aquisição de bens e serviços a outros sujeitos passivos;

                                   b) O imposto devido pela importação de bens;

c) O imposto pago pelas aquisições de bens ou serviços abrangidos pelas alíneas e), h), i), j), l), m) e n) do n.º 1 do artigo 2.º;​

d) O imposto pago como destinatário de operações tributáveis efetuadas por sujeitos passivos estabelecidos no estrangeiro, quando estes não tenham no território nacional um representante legalmente acreditado e não tenham faturado o imposto;

e) O imposto pago pelo sujeito passivo à saída dos bens de um regime de entreposto não aduaneiro, de acordo com o n.º 6 do artigo 15.º

2 - Só confere direito a dedução o imposto mencionado nos seguintes documentos, em nome e na posse do sujeito passivo:

  1. Em faturas passadas na forma legal;


b) No recibo de pagamento do IVA que faz parte das declarações de importação, bem como em documentos emitidos por via eletrónica pela Autoridade Tributária e Aduaneira, nos quais constem o número e a data do movimento de caixa. 

c) Nos recibos emitidos a sujeitos passivos enquadrados no «regime de IVA de caixa», passados na forma legal prevista neste regime. 

3 - Não pode deduzir-se imposto que resulte de operação simulada ou em que seja simulado o preço constante da fatura. 

4 - Não pode igualmente deduzir-se o imposto que resulte de operações em que o transmitente dos bens ou prestador dos serviços não entregar nos cofres do Estado o imposto liquidado, quando o sujeito passivo tenha ou devesse ter conhecimento de que o transmitente dos bens ou prestador de serviços não dispõe de adequada estrutura empresarial suscetível de exercer a atividade declarada.

5 - No caso de faturas emitidas pelos próprios adquirentes dos bens ou serviços, o exercício do direito à dedução fica condicionado à verificação das condições previstas no n.º 11 do artigo 36.º. 

6 - Para efeitos do exercício do direito à dedução, consideram-se passadas na forma legal as faturas que contenham os elementos previstos nos artigos 36.º ou 40.º, consoante os casos. 

7 - Não pode deduzir-se o imposto relativo a bens imóveis afetos à empresa, na parte em que esses bens sejam destinados a uso próprio do titular da empresa, do seu pessoal ou, em geral, a fins alheios à mesma. 

 8 - Nos casos em que a obrigação de liquidação e pagamento do imposto compete ao adquirente dos bens e serviços, apenas confere direito a dedução o imposto que for liquidado por força dessa obrigação. 

 

O artigo 20.º do CIVA prevê o seguinte:

1 - Só pode deduzir-se o imposto que tenha incidido sobre bens ou serviços adquiridos, importados ou utilizados pelo sujeito passivo para a realização das operações seguintes:

a) Transmissões de bens e prestações de serviços sujeitas a imposto e dele não isentas;

                     b) Transmissões de bens e prestações de serviços que consistam em:

                     I) Exportações e operações isentas nos termos do artigo 14.º;

II) Operações efetuadas no estrangeiro que seriam tributáveis se fossem efetuadas no território nacional;

III) Prestações de serviços cujo valor esteja incluído na base tributável de bens importados, nos termos da alínea b) do n.º 2 do artigo 17.º;

IV) Transmissões de bens e prestações de serviços abrangidas pelas alíneas b), c), d) e e) do n.º 1 e pelos n.os 8 e 10 do artigo 15.º;

V) Operações isentas nos termos dos n.os 27) e 28) do artigo 9.º, quando o destinatário esteja estabelecido ou domiciliado fora da Comunidade Europeia ou que estejam diretamente ligadas a bens, que se destinam a ser exportados para países não pertencentes à mesma Comunidade;

VI) Operações isentas nos termos do artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 394-B/84, de 26 de Dezembro.

2 - Não confere, porém, direito à dedução o imposto respeitante a operações que deem lugar aos pagamentos referidos na alínea c) do n.º 6 do artigo 16.º.

 

O artigo 23.º do CIVA dispõe que:

 

Quando o sujeito passivo, no exercício da sua atividade, efetuar operações que conferem direito a dedução e operações que não conferem esse direito, nos termos do artigo 20.º, a dedução do imposto suportado na aquisição de bens e serviços que sejam utilizados na realização de ambos os tipos de operações é determinada do seguinte modo:

a) Tratando-se de um bem ou serviço parcialmente afeto à realização de operações não decorrentes do exercício de uma atividade económica prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º, o imposto não dedutível em resultado dessa afetação parcial é determinado nos termos do n.º 2;

b) Sem prejuízo do disposto na alínea anterior, tratando-se de um bem ou serviço afeto à realização de operações decorrentes do exercício de uma atividade económica prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º, parte das quais não confira direito à dedução, o imposto é dedutível na percentagem correspondente ao montante anual das operações que deem lugar a dedução.

 

2 - Não obstante o disposto da alínea b) do número anterior, pode o sujeito passivo efetuar a dedução segundo a afetação real de todos ou parte dos bens e serviços utilizados, com base em critérios objetivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços em operações que conferem direito a dedução e em operações que não conferem esse direito, sem prejuízo de a Direcção-Geral dos Impostos lhe vir a impor condições especiais ou a fazer cessar esse procedimento no caso de se verificar que provocam ou que podem provocar distorções significativas na tributação.

3 - A administração fiscal pode obrigar o sujeito passivo a proceder de acordo com o disposto no número anterior:

                     a) Quando o sujeito passivo exerça atividades económicas distintas;

b) Quando a aplicação do processo referido no n.º 1 conduza a distorções significativas na tributação.

4 - A percentagem de dedução referida na alínea b) do n.º 1 resulta de uma fração que comporta, no numerador, o montante anual, imposto excluído, das operações que dão lugar a dedução nos termos do n.º 1 do artigo 20.º e, no denominador, o montante anual, imposto excluído, de todas as operações efetuadas pelo sujeito passivo decorrentes do exercício de uma atividade económica prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º, bem como as subvenções não tributadas que não sejam subsídios ao equipamento.

5 - No cálculo referido no número anterior não são, no entanto, incluídas as transmissões de bens do ativo imobilizado que tenham sido utilizadas na atividade da empresa nem as operações imobiliárias ou financeiras que tenham um carácter acessório em relação à atividade exercida pelo sujeito passivo.

6 - A percentagem de dedução referida na alínea b) do n.º 1, calculada provisoriamente com base no montante das operações realizadas no ano anterior, assim como a dedução efetuada nos termos do n.º 2, calculada provisoriamente com base nos critérios objetivos inicialmente utilizados para aplicação do método da afetação real, são corrigidas de acordo com os valores definitivos referentes ao ano a que se reportam, originando a correspondente regularização das deduções efetuadas, a qual deve constar da declaração do último período do ano a que respeita.

7 - Os sujeitos passivos que iniciem a atividade ou a alterem substancialmente podem praticar a dedução do imposto com base numa percentagem provisória estimada, a inscrever nas declarações a que se referem os artigos 31.º e 32.º

8 - Para determinação da percentagem de dedução, o quociente da fração é arredondado para a centésima imediatamente superior.

9 - Para efeitos do disposto neste artigo, pode o Ministro das Finanças, relativamente a determinadas atividades, considerar como inexistentes as operações que deem lugar à dedução ou as que não confiram esse direito, sempre que as mesmas constituam uma parte insignificante do total do volume de negócios e não se mostre viável o procedimento previsto nos n.os 2 e 3.

 

O exercício do direito à dedução do IVA exige o preenchimento cumulativo de requisitos objetivos (ou formais), subjetivos e temporais[1].

Os requisitos objetivos exigem que o imposto suportado deva constar de fatura emitida na forma legal, fazendo menção aos requisitos previstos no artigo 36.º, n.º 5, do CIVA (e no artigo 226.º da DIVA), deve tratar-se de IVA português (pois é vedada a dedução de IVA de outros Estados-Membros) e a despesa deve conceder, per si, direito à dedução, como resulta do artigo 21.º, n.º 1, do CIVA.

Os requisitos subjetivos impõem que o interessado (i) seja um sujeito passivo de IVA, com direito à dedução, e exerça uma atividade económica, (ii) que os bens ou serviços invocados sejam utilizados a jusante para as próprias operações tributadas e (iii), a montante, sejam entregues ou prestados por outro sujeito passivo.

O artigo 20.º, n.º 1, do CIVA prevê que para que o IVA seja suscetível de dedução é necessário que exista um nexo de causalidade entre o bem ou serviço adquirido (input) e o output tributado. Deste modo, o imposto suportado em determinada operação só é dedutível caso se encontre vinculado a uma operação efetivamente tributada.

O critério utilizado para aferir o descrito no parágrafo anterior deve ser objetivo, tendo-se em consideração a causa exclusiva da operação. Ou, dito de outro modo, se for demonstrado que a operação não foi efetuada com orientação para as atividades tributáveis do sujeito passivo, a mesma não terá uma relação direta e imediata com a atividade do sujeito passivo e, como tal, o IVA não será dedutível.

Em bom rigor, a jurisprudência admite, ainda que falte o nexo direto e imediato entre a operação a jusante e as vendas e as prestações de serviços tributáveis, que a dedução de IVA é legítima se os custos dos serviços em causa fizerem parte das suas despesas gerais, enquanto tais, e assumirem-se, como elementos constitutivos do preço dos bens que fornece ou dos serviços que presta, exigindo-se, ainda, que os mesmos tenham uma relação direta e imediata com o conjunto da atividade económica do sujeito passivo.

O ónus da prova da existência da relação, ou nexo, entre a despesa e a atividade (da Requerente) impende sobre a Requerente.

Já o requisito temporal (que não é controvertido nos autos) respeita ao período em que é possível concretizar o direito à dedução.

Os sujeitos passivos “mistos” (que exercem simultaneamente atividades que conferem direito à dedução e atividades que não o admitem) podem deduzir IVA relativamente aos bens e serviços utilizados para efetuarem operações com direito à dedução.

Os bens e serviços adquiridos por sujeitos passivos “mistos” que sejam exclusivamente afetos a operações e atividades que conferem direito à dedução, legitimam a imputação direta do correspondente IVA incorrido e deduzido o imposto na íntegra.

O artigo 23.º, n.º 1, do CIVA localiza-se num plano diverso da imputação direta, em concreto, o dos bens ou serviços utilizados conjuntamente para as duas categorias de operações, i.e., o dos “gastos comuns” ou dos “recursos de utilização mista”, caso, na atividade desenvolvida pelo sujeito passivo, coexistam operações que confiram direito à dedução e outras que não confiram direito à dedução.

Deste modo, o método do pro rata e o (método) da afetação real são aplicáveis a recursos de utilização mista. É necessário destacar que a questão é distinta daquela que respeita aos sujeitos passivos mistos, que, no respeitante à aquisição de bens e serviços que sejam exclusivamente afetos a operações que conferem direito à dedução, deve ser efetuada a imputação direta do correspondente IVA incorrido e deduzido na totalidade; pelo contrário, caso os bens e serviços em causa sejam exclusivamente utilizados em operações que não conferem direito à dedução, não deve ser deduzido qualquer imposto. Estas últimas questões respeitam à aplicação do artigo 20.º do CIVA.

Voltando ao artigo 23.º do CIVA, o método do pro rata e (método) da afetação real são aplicáveis aos recursos de utilização mista, nos quais importa segmentar
(i) as aquisições de bens e serviços que sejam parcialmente afetas à realização de operações não decorrentes do exercício de uma atividade económica, que se encontrem submetidas ao método da afetação real para determinar  a medida do imposto que não é  suscetível de dedução e (ii) as restantes operações de bens e serviços de utilização mista  seguem o regime do pro rata, sendo  o imposto dedutível na proporção correspondente ao montante anual das operações que dão lugar  a dedução.

A correção aritmética em crise nos autos tem por fundamento, nomeadamente,  o facto de o sujeito passivo não ter comprovado: (i) “[p]ara cada registo contabilístico das contas do IVA dedutível, quais as aquisições de bens e serviços suportados para a eventual atividade, sujeita a imposto, conforme a alínea a), do n.º 1, do artigo 20.º, do CIVA, que refere, que só se pode deduzir imposto que incida sobre bens adquiridos pelo sujeito passivo para a realização de transmissões de bens  e  prestações de serviços sujeitas a imposto e dele não isentas”; (ii) na dedução de despesas de alimentação, com IVA à taxa reduzida e intermédia, justificada, pela Requerente, com o fornecimento ao pessoal da empresa de alimentação em cantinas, apesar de o sujeito passivo não possuir funcionários nos seus quadros ou apresentar custos com pessoal; (iii) na falta de apresentação de prova do exercício da atividade de aluguer de bens recreativos e desportivos  e transporte de passageiros por vias navegáveis interiores, até porque o barco em causa, para efeitos de Imposto Único de Circulação, encontra-se registado para uso particular; e (iv) as despesas deduzidas são, para além das que resultam da prestação de serviços jurídicos, de natureza pessoal, como são disso exemplo, as de vestuário (incluindo pijamas), perfumes, brinquedos de criança, cabeleireiros e alimentação.

Vejamos então, agora, se a correção aritmética dever-se-á, ou não, manter na ordem jurídica.

 

Caso concreto

 

A AT fundamentou a correção aritmética com a circunstância de a Requerente não ter demonstrado o nexo entre as aquisições e as eventuais transmissões de bens e prestações de serviços sujeitas a IVA e dele não isentas.

A jurisprudência[2] observa, quanto ao ónus da prova, o seguinte:

“É sabido que, de acordo com o princípio geral, no âmbito do procedimento e do processo tributário o ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da AT e dos contribuintes recai sobre quem os invoque (nº 1 do art. 342° do CCivil e nº 1 do art. 74° da LGT).

Assim, dado, ainda o princípio da legalidade administrativa, impende sobre a AT o ónus de provar a factualidade que a leve a proceder a correções à matéria coletável declarada pelos sujeitos passivos. Ou seja, cabe à AT «o ónus da prova da verificação dos pressupostos legais (vinculativos) da sua atuação, como factos constitutivos de tal direito, em termos daquele princípio da legalidade, segundo a sua atual compreensão, entendido não como mero limite à atividade da administração, mas como fundamento de toda a sua atividade», cabendo, por sua vez, «ao contribuinte apresentar prova bastante da ilegalidade do ato, quando se mostrem verificados estes pressupostos». Similarmente com o que sucede no âmbito de outras isenções de IVA, também no caso presente se pode considerar que «quando o ato de liquidação adicional do IVA se fundamente no não reconhecimento das deduções declaradas pelo contribuinte cabe à administração apenas a prova da verificação dos pressupostos legais que legitimam a sua atuação (...) e ao contribuinte o ónus de prova da existência dos factos tributários que alegou como fundamento do seu direito de dedução do imposto (...)».” (nosso sublinhado)

Assim, para que o ónus da prova passe a caber ao sujeito passivo, em casos como o dos autos, é fundamental que a AT tenha de forma sustentada demonstrado a verificação dos pressupostos legais que legitimam a sua atuação.

Deste modo, importa verificar se a AT demonstrou, no caso sub iudice, os pressupostos legais que legitimam a sua atuação.

O Tribunal Arbitral entende que este ónus foi cumprido no Relatório que suporta a correção empreendida, nomeadamente, quando descreve que o IVA deduzido respeita a aquisições de natureza pessoal (com a respetiva especificação) e, em segundo lugar, o relato de que não é possível estabelecer uma ligação entre as aquisições de serviços jurídicos e as atividades efetivamente tributadas.

Deste modo é, assim, necessário verificar se o sujeito passivo provou a existência de factos tributários que legitimam a dedução do imposto. Adianta o Tribunal, desde já, que não.

A Requerente sustenta que exerce uma atividade económica e que a própria Requerida, no âmbito do despacho de fixação da coima, a reconhece; pelo contrário, a Requerida defende que não foi apresentada qualquer prova do exercício de uma atividade pela Requerente no período de 1806T a 1906T e esta também não faturou qualquer montante pelo seu exercício.

O conceito de atividade económica compreende toda e qualquer atividade de produção, comercialização ou de prestação de serviços, abrangendo as atividades extrativas, agrícolas e (as atividades) das profissões liberais ou equiparadas, incluindo todos os estádios subjacentes à mesma – artigo 2.º, n.º 1, alínea a), do CIVA.

Cabem no conceito de “atividade económica” os atos preparatórios praticados por um sujeito passivo que antecedem a fase operativa de atividade de uma empresa, pelo que, quem praticar atos dessa natureza é sujeito passivo e tem direito à dedução.

Mais, o TJUE tem defendido que basta existir uma relação indireta entre o bem ou serviço no qual o IVA foi incorrido e as operações produzidas a jusante – atividade económica do sujeito passivo – para que o imposto seja dedutível.

Veja-se, na linha referida no parágrafo anterior o seguinte aresto[3]:

24. Importa, por conseguinte, considerar que, com as suas questões, que importa analisar em conjunto, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 168.o, alínea a), da Diretiva 2006/112 deve ser interpretado no sentido de que um sujeito passivo tem o direito de deduzir o IVA pago a montante por uma prestação de serviços que consiste em construir ou melhorar um bem imóvel de que um terceiro é proprietário, quando este último beneficia a título gratuito do resultado desses serviços e estes são utilizados quer pelo sujeito passivo quer por esse terceiro no âmbito das suas atividades económicas.

25      Quanto à questão de saber se o direito a dedução previsto no artigo 168.o, alínea a), da Diretiva 2006/112 se opõe a uma disposição, como o artigo 70.o da ZDDS, recorde‑se que esse direito faz parte integrante do mecanismo do IVA e não pode, em princípio, ser limitado. Exerce‑se imediatamente em relação à totalidade dos impostos que incidiram sobre as operações efetuadas a montante (v., neste sentido, designadamente, acórdãos de 29 de outubro de 2009, SKF, C‑29/08, EU:C:2009:665, n.o 55, e de 18 de julho de 2013, AES‑3C Maritza East 1, C‑124/12, EU:C:2013:488, n.o 25).

26      O regime das deduções destina‑se, com efeito, a libertar completamente o empresário do ónus do IVA devido ou pago no âmbito de todas as suas atividades económicas. Por conseguinte, o sistema comum do IVA garante a neutralidade quanto à carga fiscal de todas as atividades económicas, quaisquer que sejam os seus fins ou resultados, na condição de as mesmas estarem, em princípio, sujeitas ao IVA (v., designadamente, acórdãos de 29 de outubro de 2009, SKF, C‑29/08, EU:C:2009:665, n.o 56, e de 18 de julho de 2013, AES‑3C Maritza East 1, C‑124/12, EU:C:2013:488, n.o 26).

27      Resulta do artigo 168.o da Diretiva 2006/112 que na medida em que o sujeito passivo, agindo nessa qualidade no momento em que adquire um bem ou um serviço, utilize esse bem ou serviço para as necessidades das suas operações tributadas está autorizado a deduzir o IVA devido ou pago em relação ao referido bem ou serviço (v., neste sentido, acórdão de 22 de outubro de 2015, Sveda, C‑126/14, EU:C:2015:712, n.o 18).

28      Segundo jurisprudência constante, a existência de uma relação direta e imediata entre uma determinada operação a montante e uma ou várias operações a jusante com direito a dedução é, em princípio, necessária para que o direito a dedução do IVA pago a montante seja reconhecido ao sujeito passivo e para determinar a extensão de tal direito. O direito a dedução do IVA que incidiu sobre a aquisição de bens ou serviços a montante pressupõe que as despesas efetuadas com a sua aquisição tenham feito parte dos elementos constitutivos do preço das operações tributadas a jusante com direito a dedução (acórdãos de 29 de outubro de 2009, SKF, C‑29/08, EU:C:2009:665, n.o 57, e de 18 de julho de 2013, AES‑3C Maritza East 1, C‑124/12, EU:C:2013:488, n.o 27).

29      Foi também admitido, no entanto, um direito a dedução a favor do sujeito passivo, mesmo na falta de uma relação direta e imediata entre uma determinada operação a montante e uma ou várias operações a jusante com direito a dedução, quando os custos dos serviços em causa fazem parte das despesas gerais deste último e são, enquanto tais, elementos constitutivos do preço dos bens fornecidos ou dos serviços prestados pelo mesmo. Tais custos têm, com efeito, uma relação direta e imediata com o conjunto da atividade económica do sujeito passivo (v., designadamente, acórdãos de 29 de outubro de 2009, SKF, C‑29/08, EU:C:2009:665, n.o 58, e de 18 de julho de 2013, AES‑3C Maritza East 1, C‑124/12, EU:C:2013:488, n.o 28).

30      Pelo contrário, quando os bens ou os serviços adquiridos por um sujeito passivo estão relacionados com operações isentas ou não estão abrangidos pelo âmbito de aplicação do IVA, não pode haver cobrança do imposto a jusante nem dedução deste a montante (v., neste sentido, designadamente, acórdão de 29 de outubro de 2009, SKF, C‑29/08, EU:C:2009:665, n.o 59).

31      Resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que, no quadro da aplicação do critério da relação direta, que incumbe às Administrações Fiscais e aos órgãos jurisdicionais nacionais, cabe a estes ter em consideração todas as circunstâncias em que se desenrolaram as operações em causa e ter em conta apenas as operações que têm relação objetiva com a atividade tributável do sujeito passivo. A existência dessa relação deve, assim, ser apreciada à luz do conteúdo objetivo da operação em questão (v., neste sentido, acórdão de 22 de outubro de 2015, Sveda, C‑126/14, EU:C:2015:712, n.o 29).

32      A fim de responder à questão de saber se, em circunstâncias como as que estão em causa no processo principal, a Iberdrola tem o direito de deduzir o IVA pago a montante para reabilitar a estação de bombagem das águas residuais, importa portanto determinar se existe uma relação direta e imediata entre, por um lado, esse serviço de reabilitação e, por outro, uma operação tributada efetuada a jusante pela Iberdrola ou a atividade económica dessa sociedade.

33      Resulta da decisão de reenvio que sem a reabilitação dessa estação de bombagem a ligação à mesma dos edifícios que a Iberdrola planeava construir teria sido impossível, de tal modo que essa reabilitação era indispensável para realizar esse projeto e, por conseguinte, na falta dessa reabilitação, a Iberdrola não teria podido exercer a sua atividade económica.

34      Tais circunstâncias são suscetíveis de demonstrar a existência de uma relação direta e imediata entre o serviço de reabilitação da estação de bombagem das águas residuais pertencente ao município de Tsavero e uma operação tributada efetuada a jusante pela Iberdrola, uma vez que se afigura que este serviço foi fornecido para permitir a esta última realizar o projeto imobiliário em causa no processo principal.

 

O direito à dedução pode, assim, ter um nexo entre uma operação a montante e uma, ou diversas, operações a jusante, desde que se demonstre que os inputs integram o objetivo final de prossecução de uma atividade (output) que confere direito à dedução.

No caso concreto, não é possível perceber em que medida as aquisições efetuadas se relacionam com uma atividade que confere direito à dedução, não se revelando adequado sustentar, à luz das regras da experiência comum,  que os inputs suportados estejam direta ou indiretamente, relacionados com outputs sujeitos a IVA ou a sua incorporação na atividade económica do sujeito passivo.

É legítimo, ainda, perguntar: em que medida a aquisição de perfumes, brinquedos de criança, cabeleireiros, gastos com uma embarcação que para efeitos de IUC se encontra afeta a uso particular e vestuário de mulher permite estabelecer esse nexo? Entende o Tribunal Arbitral que em nenhuma, até porque as operações ativas desenvolvidas se circunscrevem, no intervalo cronológico aqui em causa, duas prestações de serviços de consultoria.

Já quanto aos serviços jurídicos contratados não é possível estabelecer esse nexo de associação ao objetivo final de desenvolvimento de uma atividade que confere direito à dedução, visto que há uma total omissão, nos autos, quanto ao objeto dos serviços jurídicos. Ou seja, importaria perceber em que medida os mesmos relevam, ou não, para a atividade que a Requerente sustenta prosseguir.

Para além do mais, insiste-se, não se percebe, nem a Requerente o demonstra, a relação existente entre as operações tributáveis e a aquisição de perfumes, serviços de  cabeleireiro de senhora, pijamas, brinquedos de criança e vestuário.

O suprarreferido é bastante para se concluir pelo decaimento da pretensão anulatória da Requerente.

Deste modo, os atos impugnados dever-se-ão manter na ordem jurídica, com as legais consequências.

 

23.2 Questão da restituição do imposto que a Requerente considera indevidamente pago e da condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios

 

A Requerente pediu ainda a restituição do imposto e a condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios, à taxa legal, calculados sobre o imposto, até ao reembolso integral da quantia devida.

Ora, tendo em consideração que se julgou improcedente o presente pedido de pronúncia arbitral, em virtude de não se imputar qualquer ilegalidade aos atos tributários impugnados, não se pode considerar que ocorreu um qualquer erro imputável aos serviços que justifique a plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido praticado o ato de liquidação nos termos anteriormente referidos. Assim sendo, os atos tributários impugnados são legais, não ocorrendo erro imputável à AT, pois não foi pago qualquer montante de imposto que deva ser reembolsado, não assistindo igualmente à Requerente o direito ao recebimento de quaisquer juros indemnizatórios.

 

III – DECISÃO

 

Termos em que se decide:

 

  1. Julgar improcedente o pedido de anulação da liquidação de IVA n.º 2021..., relativa ao período 1906T (e da decisão de indeferimento da revisão oficiosa), mantendo-se, por isso, a mesma na ordem jurídica;

 

  1. Julgar improcedente o pedido de restituição de imposto, com as legais consequências;

 

  1. Julgar improcedente o pedido de condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios;

 

  1. Condenar a Requerente no pagamento integral de custas arbitrais.

 

VALOR DO PROCESSO

 

Fixa-se o valor do processo em 40 308,22 euros, nos termos do artigo 97.º-A do CPPT, aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”).

 

CUSTAS

 

Custas a cargo da Requerente, no montante de 2142 euros, em conformidade com o RCPAT e a Tabela I a este anexa e com os artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4, do RJAT, e 527.º do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

 

Notifique.

 

Lisboa, 7 de abril de 2024

 

O árbitro,

                                                                                               

 

Francisco Nicolau Domingos

 



[1] V. Clotilde Celorico Palma, Introdução ao Imposto sobre o Valor Acrescentado, Cadernos IDEFF, n.º 1, 5.ª edição, Almedina, 2012, pp. 203-231 e Joana Celorico Palma, O exercício do direito à dedução em IVA: uma análise dos requisitos fundamentais, Rei dos Livros, 2021, pp. 37-92.

[2] Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 21 de novembro de 2024, proferido no âmbito do processo n.º 1839/10.4BELRS.

[3] Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia, de 14 de setembro de 2017, proferido no âmbito do processo n.º C-132/16,