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DECISÃO ARBITRAL
SUMÁRIO:
I - Enquanto a herança permanecer indivisa, cada herdeiro é titular de um direito abstrato a uma fração ideal da herança, sem qualquer direito real sobre bens específicos;
II - A partilha é o momento que atribui aos herdeiros direitos plenos sobre bens concretos e individualizados;
III - A alienação do quinhão hereditário corresponde à transmissão de uma posição jurídica global na herança indivisa e não de direitos reais sobre bens concretos;
IV – A alínea a) do n.º 1 do art.º 10.º do CIRS, faz subsumir na sua alçada a alienação de direitos reais sobre imóveis e não sobre a alienação do quinhão hereditário, por este não ser qualificado como um direito real sobre bens específicos. Assim, a cessão de quinhão hereditário não está sujeita à tributação em sede de IRS por mais-valias;
VI - A utilização de escritura pública de compra e venda, que identifica bens concretos e determinados, tende a demonstrar uma intenção clara de alienar a quota-parte de um imóvel específico, caracterizando-se como operação sujeita a tributação em sede de mais-valias;
VII - A essência da transmissão sub judicio reflete a venda de bens concretos e não a cessão de quinhão hereditário, sendo esta qualificação decisiva para enquadrar a transmissão aqui em causa como sujeita a tributação em sede de IRS, em conformidade com o disposto na alínea a) do n.º 1 do art.º 10.º do CIRS.
I. Relatório:
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A..., contribuinte fiscal n.º ..., residente na ..., n° ..., Linda-a-Velha, apresentou, em 02.12.2024, pelas 18:07 horas, um pedido de pronúncia arbitral, invocando o disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprova o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), conjugado com o disposto no n.º 1 e 2 do artigo 95.º e da alínea a) do artigo 101.º da Lei Geral Tributária (LGT); no artigo 140.º, do CIRS; e na alínea a) do n.º 1 do artigo 97.º e na alínea a) do artigo 99.º; e ainda na alínea a) do n.º 1 do art.º 102.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), aplicáveis ex vi do artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do aludido RJAT.
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É demandada a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante identificada por “AT” ou Requerida.
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No pedido de pronúncia arbitral, a Requerente optou por não designar árbitro.
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Nos termos do n.º 1 do artigo 6.º do RJAT, o Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem designou o árbitro que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.
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Em 23.01.2025, foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, por aplicação conjugada da alínea a) e b) do n.º 1 do art.º 11º do RJAT e dos art.º 6º e 7º do Código Deontológico.
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Em conformidade com o estatuído na alínea c) do n.º 1 do art.º 11º do RJAT, na redacção que lhe foi introduzida pelo art.º 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Tribunal Arbitral Singular foi constituído em 11.02.2025 para apreciar e decidir o objecto do processo.
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Em 14.03.2025, a Requerida apresentou Resposta, defendendo-se por impugnação, refutando os vícios imputados pela Requerente à liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (“IRS”) n.º 2024..., respeitante ao ano de 2023, da qual resultou o valor a pagar de 7.573,08 € e ora colocada em crise.
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Em 18.03.2025, foi proferido e inserido no Sistema de Gestão Processual do CAAD (doravante SGP) o seguinte despacho: “[C]onsiderando que: - Face aos articulados apresentados pelas partes afigura-se que as questões a apreciar e decidir se reconduzirão, fundamentalmente, a questões de direito, sendo que ambas as partes, nos respetivos articulados, deixaram bem expressas as suas posições; - Não foi apresentada prova testemunhal, nem requerida a produção de qualquer prova adicional; - Não descortina o Tribunal, na presente lide, a existência de factualidade relevante controvertida; - A factualidade relevante nos presentes autos está provada documentalmente; - Não foram suscitadas pela Requerida exceções, pelo que, não há exceções que seja necessário apreciar e decidir antes de se conhecer do pedido. DECIDE-SE, ao abrigo dos princípios da autonomia do tribunal arbitral na condução do processo, da celeridade, da simplificação e informalidade processuais (artigos 16º, alíneas c) e e), 19º,nº 1 e 29º, nº 2 do RJAT), e do princípio da proibição de atos inúteis (art.º 130º do Código de Processo Civil, ex vi da alínea e) do nº 1 do artigo 29º do RJAT): i) Interpelar a Requerida no sentido de juntar aos autos, no prazo de dez dias, o processo administrativo a que se refere o no n.º 2 do art.º 17º do Decreto-Lei n.º 10/2021, de 20 de janeiro e que o Tribunal não encontra no Sistema de Gestão Processual do CAAD; ii) Dispensar a realização da reunião prevista no artigo 18.° do RJAT e a apresentação de alegações. A decisão final será proferida e notificada às partes até ao termo do prazo fixado no artigo 21º, nº 1 do RJAT, devendo a Requerente, no mesmo prazo de dez dias, proceder ao pagamento da taxa arbitral subsequente, nos termos do n.º 3 do artigo 4.° do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e comunicar o mesmo pagamento ao CAAD (Cf. art.º 4.º, n.º 4 do Regulamento de Custas nos processos de Arbitragem Tributária). NOTIFIQUE-SE. Lisboa, 18 de março de 2025. O Árbitro, Ass.”
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Em 31.03.2025, a Requerida apresentou o Processo Administrativo a que se refere o n.º 2 do art.º 17º do Decreto-Lei n.º 10/2021, de 20 de Janeiro, doravante PA.
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Fundamentando o seu pedido, a Requerente alegou, em síntese, o seguinte:
I.A) Alegações da Requerente:
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Quanto à titularidade dos herdeiros nos direitos que consubstanciam a herança, defende o Requerente que antes da partilha, aqueles são titulares de uma quota na herança, composta por um conjunto de bens indivisos, e não por direitos específicos sobre bens concretos.
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Trazendo de seguida à colação o Acórdão do STJ de 07.05.2009, Processo n.º 08B3572, onde a dado passo se diz: “Enquanto a herança se mantiver indivisa, cada herdeiro é titular de um direito a uma quota de uma massa de bens, que constitui um património autónomo e não um direito individual sobre cada um dos bens que a integram.” Referindo ainda que referências similares constam nos Acórdãos da Relação do Porto, de 04.03.2002, Processo n.º 0151906, e da Relação de Lisboa, de 12.06.96, Processo n.º 1936, e de 26.11.96, Processo n.º 740.
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A partilha é o momento em que os bens da herança são atribuídos aos herdeiros de forma concreta: “Só com a partilha é que o herdeiro é considerado sucessor único dos bens que lhe foram atribuídos” (artigo 2119.º do Código Civil).
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Até a partilha, os direitos dos herdeiros limitam-se a uma quota ideal da herança, não sendo titulares plenos dos bens imóveis que possam integrar a herança.
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Mesmo que a herança inclua bens imóveis, o herdeiro só adquire direito pleno sobre eles após a partilha: “Só com a partilha passa a ser titular do direito de propriedade sobre eles e nessa qualidade a poder exercer os direitos correspondentes.”
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A posição jurídica do herdeiro no estado de indivisão permanece distinta da de um proprietário pleno.
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E partindo daqui, defende o Requerente que, in casu, não obstante estarmos perante uma escritura denominada como “compra e venda”, ela refere-se à alienação do direito ao quinhão hereditário e não à alienação de bens concretos, pelo que, sustenta: “(...) o que foi transmitido foi, como se refere no Ac. do STJ de 09.02.2012, Processo n.º 2752/07.8TBTVD.L1.S1, “um direito abstractamente considerado e idealmente definido, como expressão patrimonial ainda incerta e cujas demarcação e abrangência também se patenteiam inseguras.”
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E não se detendo quanto à questão da ausência de alienação de imóveis identificados, aduz ainda no sentido de que a transmissão de bens concretos não ocorreu, pois tal só seria possível após a realização da partilha. Diz: “Não ocorreu [...] uma alienação de imóvel concretamente identificado, até porque só com a realização da partilha é possível estabelecer a titularidade do direito de propriedade sobre tal imóvel.”
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Isto dito, conclui o Requerente aduzindo que a escritura reflete a cessão do quinhão hereditário, mas não a alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis.
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E trazendo ainda à colação o Acórdão do STJ, Processo n.º 09A0635, de 21.04.2009 e o Acórdão do STA, Processo n.º 0450/14, de 28.01.2005, prossegue o Requerente referindo que o direito do herdeiro à herança indivisa não equivale ao direito de propriedade ou a qualquer outro direito real e respaldando a sua tese de que a alienação de quinhão hereditário não configura alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis, traz também à discussão a decisão arbitral tirada no Processo n.º 301/2024-T, sumariando que a alienação de quinhão hereditário não é abrangida pelo art.º 10.º do CIRS.
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Em jeito de conclusão aduz: “Deve pois ser descontada à liquidação de IRS o valor proporcional correspondente à alienação de quinhão hereditário, num total de EUR 51.250,00 (Cinquenta e um mil duzentos e cinquenta euros).”
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Peticiona o Requerente: “[N]estes termos, e nos melhores de direito, atentos os factos enunciados e os fundamentos expendidos, requer-se, a V. Exa, a aceitação do presente pedido de constituição de tribunal arbitral, determinando, em consequência: i) a anulação da liquidação de Imposto de IRS em crise, supra identificada; ii) a anulação da liquidação de juros, supra identificadas (...).”
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A Requerida apresentou Resposta, na qual, em breve síntese, alega:
I.B) Alegações da Requerida:
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Começa por, numa afirmação de princípio e meramente conclusiva, dizer que "A ‘liquidação’ de IRS ‘n.º 2024...’ não merece qualquer censura, sendo legal, pelo que deve manter-se."
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Prossegue a Requerida aduzindo no sentido de que o imóvel em questão foi alienado através de uma escritura pública de compra e venda e não como parte de uma cessão de quinhão hereditário.
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Refere também que a escritura pública, enquanto documento autêntico e dotado de fé pública, comprova que o Requerente e os restantes herdeiros venderam a sua quota-parte na herança sobre o imóvel.
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Para a Requerida "Tratou-se, efetivamente, de uma compra e venda."
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E isto dito, prossegue como segue : i) Esta alienação está abrangida pelo artigo 2091.º, n.º 1, do Código Civil, que permite aos herdeiros exercer conjuntamente os direitos relativos à herança, incluindo a alienação de bens concretos; ii) A venda ou alienação de herança ou quinhão hereditário (artigo 2124.º do Código Civil) implica a transmissão da totalidade dos bens da herança, o que não ocorreu neste caso; iii) "A alienação da quota-parte no imóvel em causa não configura uma venda do quinhão hereditário, porquanto [...] não poderão ser cedidos direitos sobre bens em concreto com exclusão de outros."; iv) “Nessa transmissão/alienação do imóvel acima referido, está-se perante uma transmissão do direito de propriedade sobre imóveis, e não perante uma mera transmissão do direito à herança." v) "O artigo 2130.º do Código Civil consagra o direito preferencial na venda de quinhão hereditário e não na alienação/venda de bens compreendidos em herança indivisa." vi) « Tratando-se de uma herança indivisa, os herdeiros são titulares do direito a uma quota ideal até que procedam à partilha. Todavia esse facto não impossibilita a venda de bens determinados, que compõe a referida herança, desde que, nesse ato intervenham todos os herdeiros."
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Volvendo agora para a forma como foi alienado o imóvel aqui em causa, sustenta a Requerida que: i) O imóvel foi identificado de forma específica e alienado por todos os herdeiros mediante contrato de compra e venda. Logo, não se tratou de uma mera transmissão do direito à herança; ii) Anteriormente, foi celebrado um contrato-promessa de compra e venda com eficácia real, relacionado ao imóvel específico e não ao quinhão hereditário; iii) "O facto de, da escritura de compra e venda, constar que se destina a revenda, indicia também que é um imóvel [...] que está a ser objeto de transmissão."
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E partindo dali, advoga a Requerida que a alienação configura uma transmissão onerosa de direitos reais sobre bens imóveis, enquadrando-se no âmbito do artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do Código do IRS, sujeita a tributação em sede de mais-valias. Considerando que os rendimentos obtidos são imputados aos herdeiros na proporção das suas quotas, como o próprio Requerente declarou no Anexo G da sua declaração de rendimentos.
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O entendimento defendido na Resposta encontra respaldo em jurisprudência arbitral do CAAD que é enunciada pela Requerida, concretamente, as decisões prolatadas no processo n.º 176/2017-T e no n.º 862/2023-T, defendendo que "Estas decisões confirmam que a alienação de bens concretos de herança indivisa configura alienação onerosa sujeita à tributação."
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Peticionando como segue: “[D]eve ser julgado improcedente o presente pedido de pronúncia arbitral, mantendo-se na ordem jurídica a liquidação n.º 2024... de IRS, referente ao ano de 2023, absolvendo-se, em conformidade, a Entidade Requerida do peticionado no ponto i) do pedido, formulado a final no PPA, consistente na “anulação da liquidação de Imposto de IRS em crise, supra identificada” com o nº 2024... (sendo que, quanto ao ponto ii) do pedido, reafirma-se o vertido no 2º parágrafo do ponto 4. desta Resposta), o que se requer.”
II. Thema decidendum:
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O “thema decidendum” reporta-se à questão de saber se a transmissão do imóvel aqui em causa, configura uma cessão do quinhão hereditário (excluído de tributação em sede de IRS) ou se configura ato de alienação do direito de propriedade do aludido imóvel, sujeitos a tributação em sede de IRS.
Cumpre, então, agora, proferir decisão.
III. SANEAMENTO:
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O Tribunal foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria para conhecer da liquidação de IRS de 2023 ora impugnada, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a), e 11.º, n.º 1, todos do RJAT.
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As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (Cfr. artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
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A ação é tempestiva, porque apresentada no prazo previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, de acordo com a remissão operada para o artigo 102.º, n.º 1 do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT).
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O processo não enferma de nulidades.
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Não foram identificadas questões que obstassem ao conhecimento do mérito.
IV. DECISÃO:
IV.A) Factos que se consideram provados:
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Antes de entrarmos na apreciação do mérito das questões submetidas a julgamento, cumpre-nos fixar a matéria factual que é relevante para a respectiva decisão:
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O Requerente é, juntamente com mais cinco Tios, herdeiro de B..., conforme resulta da escritura de compra e venda outorgada em 5 de dezembro de 2023, no cartório da Dr.ª C..., notária na cidade do Porto, exarada a folhas 83 a 94 verso do livro 8 C. (Cf. Doc. n.º 3 e Doc. n.º 4 junto ao PPA);
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Dos seis irmãos, cinco resultam do casamento do Pai do Requerente em primeiras núpcias, pelo que aos seis lhes cabia em herança um sexto de 75% da herança e ao irmão I..., identificado na escritura junta ao PPA como Doc. n.º 3, como único filho do segundo casamento, cabia igualmente um sexto de 75%, acrescido de 25% por pré-falecimento de sua Mãe D... . (Cf. Doc. n.º 3 junto ao PPA);
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O pai do Requerente, B..., juntamente com mais sete irmãos e duas irmãs, é um dos dez herdeiros da herança de E... e de F..., conforme resulta da escritura de habilitação de herdeiros datada de 17.11.1986, relativa ao falecimento do avô paterno do requerente em 20.03.1986. (Cf. Doc. n.º 3 junto ao PPA);
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Em 26.10.2002, faleceu a avó paterna do Requerente, conforme resulta da escritura de habilitação de herdeiros datada de 12.03.2003. (Cf. Doc. n.º 6 junto ao PPA);
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A herança foi aceite, mas não partilhada. (Cf. ponto 10 do PPA).
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Por escritura pública de “COMPRA E VENDA”, o Requerente, juntamente com os restantes herdeiros acima melhor identificados, procederam à venda, à “G..., LDA”, livre de quaisquer ónus ou encargos, pelo preço de quatro milhões e cem mil euros (4.100.000,00 Euros), do prédio rústico, composto de terra a cultura, pastagem, eucalipto e mato, sito no lugar ... ..., da união das freguesias de ... (...), ... e ..., concelho de Gondomar, inscrito na respetiva matriz rústica sob o artigo ..., com o valor patrimonial tributário de €3.984,64, descrito na Conservatória do Registo Predial de Gondomar sob o número ... (...)-..., outorgada em 5 de dezembro de 2023, no cartório da Dr.ªC..., notária na cidade do Porto, na ... ..., exarada a folhas 83 a 94 verso do livro 8 C. (Cf. Doc. n.º 3 junto ao PPA);
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Na mencionada escritura pública de “COMPRA E VENDA”, referida no ponto F) do probatório, ficou consignado: “[Q]ue no dia vinte e seis de Maio de dois mil e vinte e três foi celebrado entre eles um contrato promessa de compra e venda com eficácia real, sem ter havido tradição.” (Cf. Doc. n.º 3 junto ao PPA);
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Consta ainda da escritura pública referida no ponto F) do probatório: “[Q]ue, em nome da sua representada [G..., LDA], aceita a presente venda nos termos exarados e que destina o imóvel ora adquirido a revenda.”
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No dia 17 de Abril de 2024, o Requerente procedeu à entrega da declaração de IRS, com o número de identificação ..., por referência aos rendimentos obtidos no ano de 2023, na qual declarou, no Anexo G, as mais-valias provenientes daquela alienação, tendo indicado, no Quadro 4 daquele Anexo G, no Campo respeitante à alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis, como valor de realização, o montante 51.250,00 € e como valor de aquisição, o montante de 3.984,64 €, identificando ainda o imóvel com o artigo matricial ... e referindo em termos de titularidade uma quota parte de 1,25%. (Cf. Doc. n.º 1 junto ao PPA);
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Em 02.12.2024, pelas 18:07 horas, a Requerente apresentou o pedido de constituição do tribunal arbitral que deu origem ao presente processo (Cfr. Sistema de Gestão Processual do CAAD).
IV.B) Factos não provados:
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Não se provou que o Requerente tenha alienado a sua quota-parte do direito à herança ou o seu quinhão hereditário.
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Não se provou que o aqui Requerente e os restantes herdeiros tenham alienado a universalidade de bens que compunha a herança.
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Não se provaram outros factos com relevância para a decisão das questões submetidas a julgamento.
IV.C) Fundamentação da decisão sobre a matéria de facto:
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Relativamente à matéria de facto, importa, antes de mais, salientar que o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e distinguir a matéria provada da não provada, tudo conforme o artigo 123.º, n.º 2, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) e o artigo 607.º, n.ºs 3 e 4 do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.
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Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. art.º 596.º do CPC).
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A convicção sobre os factos dados como provados e não provados (acima explicitados) assentou na análise crítica da prova e fundou-se nas posições assumidas pelas partes nos respetivos articulados que não foram impugnadas pela parte contrária e, nomeadamente, na prova documental junta aos autos pela Requerente e nas informações oficiais e nos documentos constantes do PA junto aos autos, conforme remissão feita a propósito de cada ponto do probatório, sendo indicado expressamente em cada um daqueles pontos o(s) documento(s) que contribuíram para a extração do correspondente facto.
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A valoração dos documentos atendeu ao seu valor probatório, ao seu teor e aos factos que os mesmos comprovam, em si mesmos ou em conjugação com os demais, sendo de salientar que as informações oficiais, fazem fé, quando devidamente fundamentadas e se se basearem em critérios objectivos. (Cfr. artigos 76º, n.º 1 da LGT e 115º, n.º 2 do CPPT).
IV.D) Matéria de Direito (fundamentação):
IV.D.1) Da (i)legalidade substantiva do ato de liquidação de IRS de 2023 aqui sindicado:
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Tal como já acima referido, nos presentes autos cumpre decidir se a alienação do prédio em causa, efetivada por escritura pública de compra e venda, configura uma “alienação de direitos reais sobre bens imóveis” para efeitos do disposto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do Código do IRS que estatui: “Constituem mais-valias os ganhos obtidos que, não sendo rendimentos empresariais e profissionais, de capitais ou prediais, resultem de: a) Alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis e afetação de quaisquer bens do património particular a atividade empresarial e profissional exercida em nome individual pelo seu proprietário; (...)”.
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Comecemos, então, por explicitar o posicionamento da jurisprudência sobre esta matéria, seguindo de perto a decisão arbitral tirada no processo n.º 247/2022-T que pode ser lida in https://caad.org.pt/tributario/decisoes/decisao.php?listOrder=Sorter_data&listDir=DESC&listPage=4&id=6821 .
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Os tribunais vêm reiterada e uniformemente decidindo no sentido que resulta do sumário que a seguir se transcreve e prolatado na decisão arbitral acima melhor identificada: “[A]s mais-valias resultantes da alienação do direito ao quinhão hereditário constituído por imóveis não se encontram abrangidas pela norma de incidência do artigo 10º, nº 1, alínea a) do CIRS, por não integrar o conceito de alienação onerosa do direito real sobre bens imóveis, uma vez que não é transmitido um direito real sobre os bens da herança, mas “um direito abstratamente considerado e idealmente definido” de uma quota-parte na herança ilíquida e indivisa.”
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A dado passo da fundamentação jurídica daquela decisão arbitral e a propósito do conceito e natureza jurídica do quinhão hereditário, identificando-se, ademais, sobeja jurisprudência emanada do STA e STJ onde se respalda tal decisão, diz-se o seguinte: “[R]esulta claro que não há, nem pode haver, uma transmissão onerosa ou gratuita de “bens concretos e determinados integrantes da herança enquanto esta permanecer indivisa” (cfr. CAAD, Processo nº 627/2017-T). Neste sentido, veja-se o acórdão do STJ de 30.01.2013, proferido no proc.º 1100/11.7TBABT, no qual se lê: “I – Tanto a Jurisprudência, como a mais balizada doutrina da especialidade, apontam decisivamente no sentido de que só se pode dividir os bens da herança de que se seja proprietário, ou seja, que tenham sido atribuídos aos herdeiros em partilha previamente realizada. II – A ratio de tal solução é muito simples: é que, até à partilha, os co-herdeiros de um património comum, adquirido por sucessão “mortis causa”, não são donos dos bens que integram o acervo hereditário, nem mesmo em regime de compropriedade, pois apenas são titulares de um direito sobre a herança (acervo de direitos e obrigações) que incide sobre uma quota ou fracção da mesma para cada herdeiro, mas sem que se conheça quais os bens concretos que preenchem tal quota. III - É pela partilha(...) que serão adjudicados os bens dessa universalidade que é herança e que preencherão aquelas quotas. Por isso, assim se ponderou no aresto deste Supremo Tribunal, de 04.02.1997 supra citado: “A compropriedade pressupõe um direito de propriedade comum sobre uma coisa ou bem concreto e individualizado, ao invés do que sucede na contitularidade do direito à herança que recai sobre uma universalidade de bens, ignorando-se sobre qual ou quais deles o direito hereditário se concretizará”. (...).” Em conclusão, considerando que “um quinhão hereditário não se traduz num direito de propriedade sobre bens determinados” (CAAD, Processo nº 627/2017-T), pela alienação de quinhão hereditário indiviso transfere-se para o adquirente o direito de quinhão em causa e não um direito de propriedade sobre um bem concreto e individualizado.”
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É entendimento pacífico da doutrina e da jurisprudência (e a título meramente exemplificativo indicamos aqui, naquele sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo proferido no âmbito do processo n.º 0975/09, de 25.11.2009), o que sustenta que enquanto a herança se mantiver indivisa, cada herdeiro é titular de um direito a uma quota de uma massa de bens, que constitui um património autónomo e não um direito individual sobre cada um dos bens que a integram.
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Nesta conformidade, só com a partilha é que o herdeiro se torna pleno titular dos bens ou direitos que por ela lhe couberem. Só a partir da concretização da partilha o herdeiro passa a dispor dos bens que lhe foram atribuídos em resultado da partilha e não de quaisquer outros bens que pudessem ter integrado o acervo hereditário. E, ainda que a herança seja constituída por bens imóveis, só com a partilha o herdeiro passa a ser titular do direito de propriedade (singular ou em compropriedade) sobre eles e nessa qualidade a poder exercer os direitos correspondentes.
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No Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido no âmbito do processo n.º 09A0635, de 21.04.2009, igualmente se defende que os herdeiros são apenas titulares de um direito à herança, ou seja, apenas titulares de uma universalidade de bens ou direitos, ignorando-se sobre que bens ou direitos irá recair esse direito à herança e se haverá lugar à compensação dos demais herdeiros em tornas. Enquanto a herança se mantiver em estado de indivisão, nenhum dos herdeiros tem direitos sobre bens certos e determinados, nem um direito real sobre os bens em concreto da herança, nem sequer uma quota-parte em cada um.
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Adequado se mostrando retirar a seguinte asserção: até à partilha os herdeiros são titulares do direito a uma fração ideal (o quinhão hereditário) do conjunto que é o acervo hereditário e não de uma quota-parte concreta sobre cada um dos bens ou direitos que compõem a herança.
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A partilha põe termo à comunhão hereditária e só após a partilha é que o herdeiro se torna pleno titular de direitos sobre os bens que integram a herança e que por ela lhe couberam.
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Já quanto à transmissão do quinhão hereditário diz-se a dado passo da decisão arbitral que vimos seguindo de perto: “[A] transmissão do quinhão hereditário da herança quando integrada por bens imóveis, como é o caso, é distinta da alienação do direito de propriedade que o proprietário ou o comproprietário detêm sobre bens imóveis. A situação em causa não se enquadra no art.º 10º, nº 1, alínea a) do CIRS, isto porque, no caso em apreço, não ocorreu uma transmissão onerosa de direitos reais sobre bens imóveis. (...) A Requerente, “enquanto titular de um direito a quinhão da herança líquida e indivisa, nunca teve, na parte que lhe cabia, o gozo “de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição” dos bens da herança, isto é, não teve um direito de propriedade sobre os bens da herança, incluindo os imóveis em apreço (artigo 1305.º do CC). O que a Requerente detinha, por morte da sua mãe, era um direito a quinhoar na herança líquida e indivisa, aberta por óbito de C... e de D..., mas tal direito não lhe conferia qualquer direito de propriedade sobre os bens da herança. Enquanto a herança se mantiver indivisa, cada herdeiro é titular de um direito a uma quota de uma massa de bens que constituiu um património autónomo e não um direito individual sobre cada um dos bens que a integram.” (...). Resulta claro do artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do CIRS que a norma de incidência tributária incide sobre a “alienação onerosa de direitos reais sobre imóveis” e não sobre o direito ao quinhão hereditário, o que significa que a sua alienação em causa não está sujeita a tributação em sede de mais-valias no âmbito do IRS. Este entendimento é, aliás, acompanhado pela jurisprudência. No caso em apreço, com a cessão de quinhão hereditário transmite-se o direito ao quinhão hereditário, isto é, “um direito abstractamente considerado e idealmente definido”, conforme decorre do acórdão do STJ de 09.02.2012 - Proc. 2752/07.8TBTVD.L1.S1. Só com a realização da partilha é que se pode estabelecer a titularidade do direito de propriedade sobre tais bens imóveis.”
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E finalmente quanto à questão de saber se a cessão de quinhão hereditário integra o conceito de “alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóvel” para efeitos do disposto na alínea a) do n.º 1 do art.º 10.º do CIRS e não obstante já acima havermos levantado o véu sobre tal temática, indo no sentido de que tal cessão do quinhão hereditário não pode consubstanciar a alienação de direitos reais sobre bens imóveis e, por isso, não pode subsumir-se nas normas de incidência da categoria G do IRS, nomeadamente na aludida alínea a) do n.º 1 do art.º 10º do CIRS, refere-se na aludida decisão arbitral o seguinte: “[D]a análise do elemento literal do artigo 10.º, n.º 1 alínea a) do CIRS, não se inclui no seu âmbito de previsão a alienação onerosa de quinhão hereditário sobre herança constituída por imóveis, isto porque, no caso em apreço, não ocorreu uma transmissão de bens imóveis. (...) Uma vez que a norma de incidência tributária incide sobre a alienação onerosa de direitos reais sobre imóveis (artigo 10.º, n.º 1 alínea a) CIRS) e não sobre o direito ao quinhão hereditário, não sendo o direito ao quinhão hereditário qualificado de direito real, a alienação desse direito não está sujeita à tributação em sede de mais-valias em IRS. O artigo 10.º, n.º 1 alínea a) do CIRS deve ser objeto de interpretação de acordo com o artigo 9.º do CC e o artigo 8.º n.º 1 da LGT que obsta a que sejam objeto de tributação factos que não estão expressamente previstos na norma de incidência (artigo 8.º, n.º 1 da LGT). Por conseguinte, não existindo no CIRS, nem em qualquer outro diploma legal, uma norma de incidência que sujeite a IRS as mais-valias decorrentes da alineação onerosa de quinhão hereditário sobre uma herança líquida e indivisa com imóveis, não pode a AT interpretar a norma de incidência do artigo 10.º, n.º 1 alínea a) do CIRS no sentido de abranger as mais-valias decorrentes da alienação onerosa do direito a quinhoar uma herança líquida e indivisa, ainda que esta contenha imóveis. Como foi aliás anteriormente referido, o direito de que os herdeiros são titulares é um direito a uma parte ideal sobre o conjunto da herança no seu todo e não sobre este ou aquele bem integrado no acervo hereditário. Assim, quando é transmitido o direito ao quinhão hereditário o que se transmite é, como se refere no Ac. do STJ de 09.02.2012 - Proc. 2752/07.8TBTVD.L1.S1, “um direito abstractamente considerado e idealmente definido, como expressão patrimonial ainda incerta e cujas demarcação e abrangência também se patenteiam inseguras”. (...).”
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Ademais, o ato de partilha também não cabe na norma de incidência em causa, uma vez que não há transmissão de direitos reais sobre bens imóveis entre os herdeiros. Nesse sentido veja-se o Acórdão do STA de 07.04.2021, prolatado no âmbito do Processo 077/17.0BEPDL.
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Acrescendo dizer que a alienação de um direito tem subjacente a legítima propriedade desse direito.
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Isto dito, importa agora aferir se a transmissão aqui em causa configura uma cessão do quinhão hereditário e, como visto, excluída de tributação em sede de IRS ou se, ao invés, configura ato de alienação do direito de propriedade sobre bem imóvel, sujeito a tributação em sede de IRS por subsunção na alínea a) do n.º 1 do art.º 10.º do CIRS. Vejamos,
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A venda de bens da herança ou a cessão do quinhão hereditário encontra-se regulada pelo artigo 2124.º do Código Civil, que estabelece: “A alienação de herança ou quinhão hereditário está sujeita às disposições reguladoras do negócio jurídico que lhe der causa, salvo o preceituado nos artigos seguintes”. Este dispositivo confirma que tanto a herança como o quinhão hereditário podem ser transmitidos, mas sem especificar bens concretos.
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Por outro lado, o art.º 2128.º do Código Civil, determina que o adquirente da herança ou do quinhão hereditário sucede nos bens, direitos e encargos compreendidos na herança ou no quinhão hereditário de forma global, o que reforça a ideia de uma transmissão do conjunto, sem individualização de bens concretos.
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Ademais, o art.º 2130.º do Código Civil, estabelece o direito de preferência dos co-herdeiros na alienação de quinhão hereditário a terceiros, um regime especial que reflete a natureza indivisível do quinhão enquanto parte da universalidade da herança.
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Finalmente, o art.º 2091.º do Código Civil, discorre sobre o exercício conjunto dos direitos relativos à herança indivisa, permitindo, é certo, a alienação de bens específicos da herança, mas exigindo o consentimento de todos os herdeiros.
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Por aplicação conjugada das referidas normas, pode intuir-se que a alienação de herança ou quinhão hereditário pode abranger a herança como um todo e aceite pelo único herdeiro ou pelo conjunto de todos os co-herdeiros; bem como a alienação de uma parte da herança (quinhão hereditário) atribuída a um ou mais co-herdeiros.
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Nessa conformidade, vem a doutrina defendendo que a cessão de quinhão hereditário não implica a individualização de bens ou direitos concretos, mas sim a transmissão de uma posição global no conjunto indivisível que constitui a herança. Com interesse para a dilucidação desta questão, vejam-se os ensinamentos de Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, Volume VI (Reimpressão, Coimbra Editora), pág. 203, onde abordam os pressupostos essenciais para a alienação da herança ou do quinhão hereditário e onde enfatizam o seguinte: i) A alienação do quinhão hereditário ocorre sobre a posição jurídica global na herança, e não sobre bens específicos; ii) Para que isso ocorra, é essencial que a herança tenha sido aceite e que não tenha havido partilha, destacando-se a indivisibilidade do quinhão até o momento da partilha, fundando-a no regime jurídico que decorre do estatuído nos art.ºs 2124.º e seguintes do Código Civil.
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Aqueles insignes autores, na análise que ali empreendem, sublinham/enfocam dois pressupostos essenciais para que ocorra a cessão de quinhão hereditário: i) a aceitação da herança pelos herdeiros e ii) a ausência de partilha, ou seja, defendem que a alienação da herança ou do quinhão hereditário, está na dependência da verificação de dois pressupostos essenciais: a herança deve estar aceite e não partilhada.
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É este o quadro normativo e doutrinário que, incontornavelmente, permite distinguir alienação de herança ou quinhão hereditário da alienação de bens concretamente identificados.
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Prosseguindo na dilucidação sobre se a transmissão aqui em causa configura uma cessão do quinhão hereditário e, como visto, excluída de tributação em sede de IRS ou se configura ato de alienação do direito de propriedade sobre bem imóvel, sujeito a tributação em sede de IRS por subsunção na alínea a) do n.º 1 do art.º 10.º do CIRS.
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A Requerente sustenta que a escritura teria sido denominada “compra e venda” por erro, sendo, na verdade, uma alienação do direito ao seu quinhão hereditário. Segundo essa linha de raciocínio, não haveria a venda de um imóvel determinado, o que, em tese, a faria afastar-se da incidência das mais-valias por impossibilidade de subsunção na alínea a) do n.º 1 do art.º 10.º do CIRS.
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Já a Requerida defende que, pelo simples facto de o documento que titulou a transmissão ser uma escritura pública, com todas as formalidades necessárias, o seu teor deve ser considerado autêntico e vinculante. Além disso, argumenta que a venda de um quinhão hereditário – no sentido de alienar o conjunto universal dos bens da herança – não se confunde com a transmissão da quota-parte de um bem concreto. Ou seja, como os herdeiros venderam apenas a sua participação sobre o imóvel (que é um bem determinado) e não a totalidade dos bens da herança, caracteriza-se tal operação como uma típica compra e venda, sujeita a imposto em sede de mais-valias em conformidade com o disposto na alínea a) do n.º 1 do art.º 10.º do CIRS.
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Face ao dissídio, o Tribunal Arbitral Singular entende, diga-se desde já e como posição de princípio, que a interpretação que prevalece, com respaldo até no entendimento consolidado nas decisões arbitrais tiradas nos Processos nºs 176/2017-T e 862/2023-T, é o defendido pela Requerida, ou seja, a operação sub judicio deve ser considerada uma compra e venda da quota-parte do imóvel e, portanto, sujeita a tributação em sede de mais-valias, nos termos da alínea a) do n.º 1 do art.º 10.º do CIRS.
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É que o instrumento utilizado – a escritura pública de compra e venda – é documento autêntico, dotado de fé pública, sendo, por isso, essencial na formalização de negócios jurídicos que exijam segurança e autenticidade. Nos termos do artigo 371.º, n.º 1 do Código Civil, a escritura pública tem força probatória plena quanto aos factos que o notário certificou como tendo ocorrido na sua presença, conferindo presunção de veracidade ao teor do documento. Este princípio da autenticidade assegura que o conteúdo da escritura pública reflete de forma vinculativa a vontade das partes que nela intervêm, salvo demonstração em contrário com elementos de prova robustos que consigam abalar essa presunção.
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No caso concreto, a escritura pública de compra e venda identifica de forma clara e precisa o bem transmitido, descrevendo-o com todos os elementos necessários, como sejam, os elementos registrais, a respetiva localização e características. Tal individualização reforça o caráter inequívoco da transmissão do bem imóvel, afastando a possibilidade de interpretação de que se tratou da cessão de um quinhão hereditário.
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Adicionalmente, diga-se que o uso da terminologia “compra e venda” naquele instrumento, bem como a descrição exata do bem e do preço ajustado, faz sobressair que as partes pretenderam realizar uma transmissão de um bem concreto e não a transmissão de uma posição jurídica abstrata sobre a herança.
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É importante destacar que o princípio da fé pública atribuído à escritura pública impede que os argumentos que alegam erro ou incorreção na qualificação do negócio prevaleçam, a menos que sejam acompanhados de provas contundentes que os sustentem. Nessa conformidade, o documento goza de força probatória plena, devendo ser presumido autêntico e representativo da real intenção das partes. Essa intenção, no caso analisado, está expressamente dirigida à venda de um bem imóvel específico, e não à alienação de um direito abstrato ao quinhão hereditário.
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E assim sendo, se os herdeiros optaram por formalizar a transmissão por esse meio, o Tribunal não pode deixar de presumir que a operação sub judicio teve por objeto específico a transferência da quota-parte do imóvel e já não a transmissão do quinhão hereditário do aqui Requerente.
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Não podendo olvidar-se que segundo o art.º 2124.º do Código Civil, a alienação do quinhão hereditário implica a transmissão do conjunto de bens que o compõem, donde, no caso em apreço, os herdeiros (e em particular o aqui Requerente) não alienaram a totalidade dos bens da herança, mas sim, especificamente, a sua fração relativa a um imóvel determinado.
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Assim sendo, para o Tribunal a transmissão aqui em causa não pode consubstanciar uma alienação de “quinhão hereditário” (o que, de acordo com o art.º 2124.º do Código Civil, envolveria a transmissão universal dos bens que compõem a herança), mas sim a venda, de forma individualizada, da quota concreta detida pelo Requerente e que recai sobre o imóvel. No caso em análise, os herdeiros não alienaram a universalidade dos bens que compunham a herança (não há evidência em sentido contrário nos autos), mas sim, especificamente, a quota referente a um imóvel determinado. Essa individualização do bem e a utilização do instrumento de transmissão consubstanciado na escritura de compra e venda não podem deixar de ter peso decisivo para a qualificação da operação.
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Isto dito, meridianamente se conclui, aliás, com respaldo no entendimento que já fora sedimentado na jurisprudência e pela interpretação dos requisitos legais acima traçados, que a Requerida tem razão ao enxergar a operação como uma venda real de direito sobre um imóvel determinado e não como alienação de um quinhão hereditário, já que qualificar a operação como tal não faria jus, como visto, à dinâmica prática e formal do negócio, uma vez que se vendeu uma parte identificada de um ativo e não a universalidade da herança. O tribunal, ponderado este argumento esgrimido na Resposta pela Requerida, aceita-o sem reservas.
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Adequado se mostrando ainda dizer que mesmo em situações de indivisão da herança, existe um regime jurídico claro que regula a imputação de rendimentos aos herdeiros de acordo com as respetivas quotas hereditárias. Tal abordagem demonstra como, independentemente da ausência de partilha, os rendimentos da alienação podem ser apurados e atribuídos aos respetivos herdeiros. Aliás, a este propósito e acompanhando a Requerida, faz o Tribunal notar que, embora a herança não tenha sido objeto de partilha, tal circunstancialismo não impede a imputação dos rendimentos resultantes da alienação aos herdeiros. A legislação aplicável (acima sobejamente explicitada) prevê que, mesmo em situações de contitularidade (que não de compropriedade), seja determinada a quota hereditária correspondente a cada titular, permitindo a correta atribuição dos rendimentos gerados (o que não é aqui sequer controvertido, já que a AT aceitou a expressão do rendimento que está no Anexo G da declaração apresentada pelo aqui Requerente – Cf. ponto I) do probatório). Assim, a indivisão da herança, por si só, não poderia jamais constituir obstáculo à identificação e tributação proporcional de cada herdeiro pelos rendimentos auferidos, tal como parece advogado pelo Requerente e na interpretação do Tribunal não pode colher.
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Diante do exposto, e considerando as decisões arbitrais invocadas que reforçam a posição de que a formalização por escritura pública de compra e venda demonstra a vontade inequívoca de transmitir a participação sobre um imóvel (e não apenas um quinhão hereditário de forma abstrata), não podem deixar de se acolher os robustos argumentos jurídicos e técnicos que sustentam a firmação de que a operação sub judicio se encontra sujeita a tributação em sede de mais-valias por subsunção na alínea a) do n.º 1 do art.º 10.º do CIRS.
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É certo que o Requerente também invoca jurisprudência a favor da sua tese. Por todos refiram-se: i) o Acórdão do STJ de 07.05.2009, Processo n.º 08B3572; ii) o Acórdão da Relação do Porto de 04.03.2002, Processo n.º 0151906; iii) os Acórdãos da Relação de Lisboa de 12.06.96, Processo n.º 1936 e de 26.11.96, processo n.º 740; iv) o Acórdão do STJ de 09.02.2012, Processo n.º 2752/07.8TBTVD.L1.S1; v) Acórdão do STJ de 21.04.2009, Processo n.º 09A0635; vi) e, finalmente, o Acórdão do STA de 28.01.2005, Processo n.º 0450/14. Contudo e não obstante, apesar dessa invocação, a linha jurisprudencial ali traçada deve ser analisada no contexto concreto de cada decisão. In casu, a questão central girava em torno da natureza da transmissão formalizada na escritura pública. A controvérsia estava em saber se se tratou, de facto, de uma alienação de uma quota de um imóvel individualmente identificado (o que implicaria a incidência de mais-valias), ou se teria sido a transmissão de um quinhão hereditário, cuja venda, segundo a mais adequada interpretação, como visto, teria de envolver a totalidade dos bens do acervo hereditário e não só parte deles.
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Particularizando agora a análise à decisão do STA tirada no Acórdão de 28.01.2005, Processo n.º 0450/14, diga-se que ele é frequentemente citado em situações que envolvem distinções entre a alienação do quinhão hereditário e a transmissão de bens concretamente identificados. Essa decisão, em função da interpretação que o Tribunal faz do seu contexto, favorece a tese de que a simples designação do negócio como “compra e venda” não é suficiente para afastar a natureza de transmissão do quinhão hereditário, principalmente se a intenção das partes e os elementos do caso indicarem isso. Ora, parece ser este o iter percorrido pelo Requerente ao longo dos argumentos expendidos no seu PPA, ou seja, com respaldo nele, parece o Requerente querer uma diferente qualificação jurídica do negócio firmado e também se pode descortinar uma diferenciada intenção das partes ali envolvidas que ao invés da celebração de uma típica compra e vende pretenderiam uma efetiva alienação dos respetivos quinhões hereditários, donde, uma diferente intenção das partes naquele negócio. O STA, naquele acórdão, não deixou de argumentar (o que aqui se acompanha) que a essência do negócio deve prevalecer sobre a forma como foi documentado.
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Assim, não custa a aceitar que a decisão do STA de 28.01.2005, tirada no Processo n.º 0450/14, podia, de facto, apresentar-se como um precedente tendente a fundamentar a posição do Requerente. Contudo e não obstante, a aplicação dessa jurisprudência ao caso concreto sempre estaria dependente da análise de outros elementos formais e probatórios, como sejam, v.g., a redação da escritura e o comportamento e vontade ali expressa pelas partes envolvidas. E ponderados esses aspetos, não pode o tribunal deixar de concluir no sentido de que tendo os herdeiros formalizado a transmissão por meio de uma escritura de compra e venda, utilizaram um instrumento que se destina a identificar concretamente o objeto da negociação que, neste caso, era a alienação da quota-parte do imóvel de cada herdeiro e não o da transmissão do respetivo quinhão hereditário.
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A transmissão de um bem concretamente identificado refere-se à alienação de um ativo individualmente determinado com indicação de dados registrais, localização, descrição específica, etc.. Nesse caso, o objeto da negociação é claro e delimitado, e não há dúvida sobre que bem ou direito real está e ser transferido. O conteúdo do documento que consubstancia a escritura pública aponta para uma venda efetiva de uma quota de um bem identificado. Diz-se a dado passo da referida escritura: i) “[Q]ue no dia vinte e seis de Maio de dois mil e vinte e três foi celebrado entre eles um contrato promessa de compra e venda com eficácia real, sem ter havido tradição; ii) “[Q]ue pela presente escritura, e pelo preço de quatro milhões e cem mil euros (4.100.000,00 Euros), já recebido, enquanto únicos titulares do prédio abaixo melhor identificado, vendem à representada do segundo outorgante “H...”, a dita “G..., LDA”, livre de quaisquer ónus ou encargos, o seguinte: Prédio rústico, composto de terra a cultura, pastagem, eucalipto e mato, sito no lugar ..., da união das freguesias de ... (...), ... e ...concelho de Gondomar, inscrito na respetiva matriz rústica sob o artigo ..., com o valor patrimonial tributário de €3.984,64, descrito na Conservatória do registo Predial de Gondomar sob o número ... (...)-... (...)”. iii) “[Q]ue, em nome da sua representada [G..., LDA], aceita a presente venda nos termos exarados e que destina o imóvel ora adquirido a revenda.”
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Constatando-se, assim, que o título de “compra e venda”, emitido por escritura pública, descreve de maneira inequívoca o imóvel (com sua identificação registral, localização e demais elementos objetivos), sendo que, isso tende a demonstrar que a intenção era transmitir um bem específico e não apenas o “direito” abstrato ao quinhão.
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O Tribunal entende que tal escritura, em face dos elementos acima transcritos, reforça, incontornavelmente, o caráter individualizado da transmissão, sendo que o Requerente não trouxe para os autos qualquer elemento de prova que o infirmasse, tal como está dito no ponto desta peça reportado à matéria de facto dada como não provada.
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A análise ao documento que titula o negócio transmissivo exige verificar se, na prática, as partes demonstraram a intenção de vender a totalidade dos direitos relativos à herança ou apenas a participação sobre um bem específico. Se os herdeiros (ou a herança) reservaram para si outros bens (ou uma parte deles) ou se a transação se limitou a um “direito real” sobre um dos ativos, isso evidencia estarmos perante uma transmissão individualizada.
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Por vezes, pode acontecer denominarem as partes o negócio como “venda de quinhão hereditário” (afastando a incidência de determinadas obrigações fiscais); ou como “contrato de compra e venda”([1]). Porém, na interpretação que o julgador deve fazer e se os elementos probatórios coligidos nos autos (dados do imóvel, descrições, cláusulas que tratam de localização e identificação) indicarem, na prática, a transferência de um bem concreto, o caráter substancial decorrente desses elementos de prova deve prevalecer sobre a mera terminologia constante dos elementos probatórios que consubstanciaram a transmissão. A adequada interpretação não depende apenas da terminologia usada no instrumento usado (como “compra e venda” ou “venda de quinhão”), mas deve olhar para a realidade substancial dos elementos do negócio.
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E se o conteúdo do documento aponta para uma venda efetiva de uma quota de um bem identificado, como, efetivamente, aqui ocorre, o negócio transmissivo não pode deixar de se configurar, para fins fiscais, como uma operação sujeita a tributação em sede de mais-valias por subsunção na alínea a) do n.º 1 do art.º 1.º do CIRS e afirmamo-lo com respaldo na uniforme jurisprudência que vem sendo prolata sobre esta matéria e que acima foi sobejamente identificada.
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Sem mais considerações, porquanto desnecessárias, improcedem, assim, as pretensões anulatórias do aqui Requerente, fundadas na alegada, mas não verificada, ilegalidade substantiva da liquidação de IRS n.º 2024..., respeitante ao ano de 2023, da qual resultou o valor a pagar de 7.573,08 € e ora colocada em crise.
IV.D.2) Questões de conhecimento prejudicado:
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Julgando-se procedente o PPA, tal como já se deixou antever, fica prejudicada, por inútil, a apreciação da questão da eventual violação do princípio constitucional da igualdade, referido no artigo 26. da Resposta e onde a dado passo se diz: “(...) a tese apresentada pelo Requerente seria violadora do principio da igualdade, pois nos casos em que os herdeiros celebram partilha, são tributados pelos ganhos auferidos com a alienação dos imóveis, ao passo que, como no caso dos autos, sendo a herança constituída unicamente por uma parte do bem alienado, já não há necessidade de fazer qualquer partilha, nem tributar os ganhos porque não são atribuídos aos herdeiros, mas à herança.”
IV.D.3) Da (i)legalidade da liquidação de juros compensatórios:
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A Requerente pede, ainda, a anulação da liquidação de juros compensatórios, dizendo-se no ponto ii) do petitório, o seguinte: “ii) a anulação da liquidação de juros, supra identificadas”.
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Tal como refere a Requerida na sua Resposta, esse pedido, formulado pelo Requerente, foi certamente enunciado em erro, porquanto o ora Requerente não alude, no PPA, a qualquer “liquidação de juros” e não juntou aos autos qualquer nota demonstrativa da liquidação de juros, sendo que, da liquidação de IRS impugnada, não constam quaisquer “juros”.
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Nessa conformidade, fica prejudicada a apreciação da (i)legalidade da liquidação de juros compensatórios, já que não há qualquer liquidação de juros compensatórios que seja objeto dos presentes autos.
V. DECISÃO:
Face ao exposto, o Tribunal Arbitral Singular decide julgar totalmente improcedente o pedido formulado na presente ação arbitral, fundado na alegada, mas não verificada, ilegalidade do ato de liquidação de IRS n.º 2024..., respeitante ao ano de 2023, do qual resultou, de acordo com a correspondente demonstração de liquidação, o valor a pagar de IRS que se cifra em 7.573,08 €, com a consequente manutenção na ordem jurídica daquela liquidação ora impugnada.
VI. VALOR DO PROCESSO:
Fixo o valor do processo em 7.573,08 € em conformidade com o disposto no art.º 97.º-A do CPPT, aplicável por remissão do art.º 3º do regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).
VII. CUSTAS:
Fixo o valor das Custas em 612,00 €, calculadas em conformidade com a Tabela I do regulamento de Custas dos Processos de Arbitragem Tributária em função do valor do pedido (sendo que, tal valor foi o indicado pela Requerente no PPA e não contestado pela Requerida e corresponde ao valor das liquidações sindicadas) a cargo do Requerente por decaimento total, nos termos do disposto nos artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4 do RJAT e ainda art.º 4.º, n.º 5 do RCPAT e art.º 527, nºs 1 e 2 do CPC, ex vi do art.º 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.
Notifique-se.
Lisboa, 01 de Abril de 2025.
O texto da presente decisão foi elaborado em computador, nos termos do n.º 5, do art.º 131.º do Código de Processo Civil, aplicável por remissão da alínea e), do n.º 1, do art.º 29.º do RJAT.
O Árbitro,
(Fernando Marques Simões)
[1] Como fez o Requerente e os seus co-herdeiros, dizendo aquele haver laborado em erro nessa denominação.
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