Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 1210/2024-T
Data da decisão: 2025-03-20  IUC  
Valor do pedido: € 235,98
Tema: IUC – Diminuição do grau de incapacidade por força da reavaliação em junta médica.
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SUMÁRIO:

I - O grau de incapacidade de 36% atribuído ao Requerente em 2017 é inquestionavelmente desfavorável, pois essa alteração do grau de incapacidade resultante da reavaliação implicou uma inquestionável perda de direitos de que o mesmo se encontrava a dispor e de benefícios que, em consequência disso, lhe estavam a ser concedidos e reconhecidos, nomeadamente, no caso, a dedução relativa às pessoas com deficiência e a isenção de pagamento do IUC.
II - Em observância do princípio da avaliação mais favorável, deveria ter sido mantido o grau de incapacidade de 80%, mantendo o Requerente os direitos e benefícios já constituídos, essencialmente, o benefício fiscal da isenção do pagamento do IUC.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

O Árbitro Hélder Faustino, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formar o Tribunal Arbitral, constituído em 21 de Janeiro de 2025, decide o seguinte:

 

I – Relatório

1. A..., casado, aposentado, portador do número de identificação civil ..., válido até 3 de Novembro de 2028 e do número de identificação fiscal ..., residente em Rua ..., n.º ..., ..., ...-..., freguesia de ..., concelho de Ponta Delgada (ilha de São Miguel, Açores), (doravante, “Requerente”) veio requerer a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, alínea a) do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (“RJAT”), para apreciar a legalidade das liquidações de Imposto Único de Circulação (“IUC”) n.º ..., n.º ... e n.º ..., relativas ao ano de 2020 – referente ao veículo automóvel com a matrícula ...– e aos anos de 2022 e 2023 – referentes ao veículo com a matrícula  ... –, no montante total de € 235,98.

O Requerente alega, em síntese, que, nos processos de revisão ou reavaliação, o grau de incapacidade resultante da aplicação da Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais vigente à data da avaliação ou da última reavaliação é mantido, sempre que tal se mostre mais favorável ao avaliado. Donde, deveria ter sido mantido o grau de incapacidade de 80% declarado em 30 de Maio de 2012, em vez do grau de 36%, declarado em 13 de Dezembro de 2017.

A Requerida refuta a argumentação do Requerente, conforme explicado abaixo.

2. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Requerida.

3. O Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 1 e do artigo 11.º, n.º 1, alínea a), ambos do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou o signatário como árbitro do Tribunal Arbitral, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável. As Partes foram notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.

4. O Tribunal Arbitral ficou constituído em 21 de Janeiro de 2025.

5. A Requerida apresentou a Resposta, por impugnação, e juntou o Processo Administrativo (PA). Alega, em síntese: um dos pressupostos da isenção de IUC em causa é a existência de um grau de incapacidade de pelo menos 60%, devidamente confirmada através de atestado médico de incapacidade multiuso. O Decreto-Lei n.º 202/96, de 23 de Outubro, veio estabelecer o regime de avaliação de incapacidade das pessoas com deficiência para efeitos de acesso às medidas e benefícios previstos na lei. Nesse âmbito, face à inexistência de normas específicas para a avaliação de incapacidade e de forma a possibilitar alguma uniformização valorativa a nível nacional, recorria-se inicialmente à Tabela Nacional de Incapacidades (“TNI”) aprovada pelo Decreto-Lei n.º 341/93, de 30 de Setembro, e perspectivada para a avaliação do dano em vítimas de acidentes de trabalho e doenças profissionais. Em 2007, o Decreto-Lei n.º 352/2007, de 23 de Outubro, veio revogar o Decreto-Lei n.º 341/93, de 30 de Setembro, e aprovar uma nova TNI, a Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, bem como a Tabela Nacional para Avaliação de Incapacidades Permanentes em Direito Civil. Em 2009, tendo em vista a salvaguarda das especificidades próprias das incapacidades das pessoas com deficiência, o Decreto-Lei n.º 291/2009, de 12 de Outubro, veio proceder à adequação dos procedimentos previstos no Decreto-Lei n.º 202/96, de 23 de Outubro, às instruções previstas na nova TNI, “(...) de forma a salvaguardar as especificidades próprias das incapacidades das pessoas com deficiência, garantindo que nos processos de revisão ou reavaliação o grau de incapacidade resultante da aplicação da Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais vigente à data da avaliação ou da última reavaliação é mantido sempre que, de acordo com declaração da junta médica, se mostre mais favorável ao avaliado.”. Já a Lei n.º 80/2021, de 29 de Novembro “clarifica os processos de revisão ou reavaliação do grau de incapacidade”, e que procedeu à alteração do Decreto-Lei n.º 202/96, de 23 de Outubro, que estabelece que o regime de avaliação de incapacidade das pessoas com deficiência para efeitos de acesso às medidas e benefícios previstos na lei, aditando o artigo 4.º-A sob a epígrafe “Norma interpretativa”. E foi nessa medida que, em 2009, na sequência da aprovação de uma nova Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho ou Doenças Profissionais – que substituiu a anteriormente vigente, também já utilizada para estes fins, se estabeleceu que o grau de incapacidade resultante da aplicação da Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais vigente à data da avaliação ou da última reavaliação seria mantido sempre que se mostrasse mais favorável ao avaliado. Na prática, haveria uma avaliação entre a situação clínica aquando da revisão ou da reavaliação à luz quer da nova Tabela quer da anterior, a fim de aferir se existia diferença de resultados. E, por conseguinte, determinou-se que no processo de revisão ou reavaliação, ao abrigo da nova Tabela, o grau de incapacidade manter-se-ia inalterado sempre que resulte num grau de incapacidade inferior ao grau determinado à data da avaliação ou última reavaliação, efectuada de acordo com a antiga TNI, procurando assim acautelar que não eram introduzidas alterações de grau de incapacidade que resultassem de um diferente critério de avaliação. Pelo que, não se acompanha o entendimento do Requerente, quando refere que o n.º 9 do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 202/96, de 23 de Outubro sustenta a sua posição. Até porque, no caso em apreço a incapacidade foi sempre determinada ao abrigo da TNI aprovada pelo Decreto-Lei n.º 352/2007, de 23 de Outubro. Questão diferente é aquela que foi acautelada no n.º 7 do mesmo artigo 4.º, ou seja, nos casos em que existe uma alteração da situação de facto, nomeadamente, nos casos em que a situação clínica se altera, por evolução favorável da patologia. No caso em apreço, a isenção prevista na alínea a) do n.º 2 do artigo 5.º do Código do IUC conjugada com o n.º 5 do mesmo artigo depende da verificação cumulativa de um conjunto de pressupostos, entre os quais, a existência de um grau de incapacidade igual ou superior a 60% devidamente comprovado através de atestado médico de incapacidade multiuso. Na data do aniversário da matrícula, o sujeito passivo tem de ser portador de uma incapacidade fiscalmente relevante. Ou seja, o sujeito passivo, reunindo todos os pressupostos deverá requerer o reconhecimento da isenção, após o que, nos termos da alínea a) do n.º 5 do artigo 5.º do Código do IUC, o reconhecimento será, oficioso, pela Autoridade Tributária e Aduaneira, caso se mantenham todos os pressupostos, e o sujeito passivo não opte por beneficiar de isenção para um outro veículo, substituindo o primeiro isento. Mas esta oficiosidade do reconhecimento não se traduz, porém, num benefício subjectivo ou vitalício que tenha sido atribuído ao sujeito passivo no primeiro momento em que fez o pedido. Com efeito, trata-se de um mecanismo que o legislador implementou em sede de IUC para garantir que este tipo de contribuintes tenham o menor custo administrativo possível no reconhecimento deste benefício sempre e enquanto se mantêm todos os pressupostos definidos na lei, garantindo ao mesmo tempo, mais eficiência e eficácia na administração do imposto. Em conclusão, a cada ano de tributação é aferido da susceptibilidade (ainda que seja um procedimento automatizado e informatizado) de ser reconhecido o benefício de isenção. Não se tratando por isso de benefício que o contribuinte tenha adquirido ou venha exercendo, nos termos e condições previstas no n.º 8 do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 202/96, de 23 de Outubro.

6. Por Despacho, foi dispensada a reunião do artigo 18.º do RJAT, por desnecessidade e economia processual. As Partes foram notificadas para apresentarem alegações finais, querendo, o que veio o Requerente a fazer, em 5 de Março de 2025, e a Requerida, em 6 de Março de 2025.

7. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído. As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março). O processo não enferma de nulidades.

 

II – Decisão

A. Matéria de facto

A.1. Factos dados como provados

a) Em 30 de Maio de 2012 foi conferido ao Requerente o grau de incapacidade de 80% ao abrigo do Decreto-Lei n.º 352/2007, de 23 de Outubro – cfr. Documento n.º 2, junto com o pedido de pronúncia arbitral.

b) O Requerente passou a ser portador do Atestado Médico de Incapacidade Multiuso – cfr. Documento n.º 2, junto com o pedido de pronúncia arbitral.

c) A Autoridade Tributária e Aduaneira reconheceu ao Requerente o benefício fiscal de isenção de pagamento do Imposto Único de Circulação.

d) Em resultado de uma reavaliação, efectuada em 13 de Dezembro de 2017, o Requerente passou a ser portador de deficiência que lhe conferiu uma incapacidade permanente global de 36% – cfr. Documento n.º 2, junto com o pedido de pronúncia arbitral.

e) O Requerente comunicou à Autoridade Tributária e Aduaneira a diminuição do grau de incapacidade (de 80% para 36%), através da apresentação do novo Atestado de Incapacidade – cfr. Documento n.º 8, junto com o pedido de pronúncia arbitral.

f) A Autoridade Tributária e Aduaneira considerou o grau de incapacidade de 80% para todos os efeitos fiscais, desde 2017 até 2024.

g) Em 17 de Julho de 2024, a Autoridade Tributária e Aduaneira emitiu três liquidações adicionais de Imposto Único de Circulação.

h) Em 27 de Agosto de 2024, o Requerente apresentou reclamação graciosa (processo n.º ...2024...) – cfr. Documento n.º 4, junto com o pedido de pronúncia arbitral –, tendo a Autoridade Tributária e Aduaneira notificado o Requerente do projecto de indeferimento – cfr. Documento n.º 5, junto com o pedido de pronúncia arbitral.

i) Em 24 de Setembro de 2024, o Requerente exerceu o direito de participação na decisão, na modalidade de audiência prévia – cfr. Documento n.º 6, junto com o pedido de pronúncia arbitral.

j) Em 3 de Outubro de 2024, a Autoridade Tributária e Aduaneira notificou o Requerente da manutenção da decisão de indeferimento – cfr. Documento n.º 7, junto com o pedido de pronúncia arbitral.

c) Em 13 de Novembro de 2024, o Requerente apresentou o presente pedido de pronúncia arbitral.

 

A.2. Factos dados como não provados

Não existem factos dados como não provados, com relevo para a decisão da causa.

 

A.3. Fundamentação da matéria de facto

Relativamente à matéria de facto, o Tribunal Arbitral não tem de se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas Partes, cabendo-lhe o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

Os factos pertinentes para o julgamento são escolhidos em função da sua relevância jurídica (artigo 596.º do CPC). Assim, da prova documental e do PA retiram-se os factos provados acima elencados, que são os relevantes para a causa da causa. E, do mesmo modo, dos diversos articulados das Partes retiram-se os factos não provados.

 

B. Do Direito

A questão que se coloca no presente o presente pedido de pronúncia arbitral prende-se com os efeitos, em sede de IUC, da diminuição do grau de incapacidade por força da reavaliação em junta médica.

Ou seja, o Requerente era possuidor de um grau de incapacidade de 80% devidamente documentada desde 2012, passando esse grau para 36% por força de reavaliação em 2017.

 

Vejamos,

 

O Decreto-Lei n.º 202/96, de 23 de Outubro estabelece o regime de avaliação de incapacidade das pessoas com deficiência para efeitos de acesso às medidas e benefícios previstos na lei.

 

O artigo 2.º do diploma estabelece que a avaliação das incapacidades das pessoas com deficiência compete a juntas médicas para o efeito constituídas.

 

A avaliação da incapacidade é calculada de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 352/2007, de 23 de Outubro.

 

Atentando, especialmente, o estipulado no artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 202/96, de 23 de Outubro:

“Artigo 4.º

Avaliação de incapacidade

1 - A avaliação da incapacidade é calculada de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 352/2007, de 23 de Outubro, tendo por base o seguinte:

a) Na avaliação da incapacidade das pessoas com deficiência, de acordo com o definido no artigo 2.º da Lei n.º 38/2004, de 18 de Agosto, devem ser observadas as instruções gerais constantes do anexo i ao presente decreto-lei, do qual faz parte integrante, bem como em tudo o que não as contrarie, as instruções específicas constantes de cada capítulo ou número daquela Tabela;

b) Não se aplicam, no âmbito desta avaliação de incapacidade, as instruções gerais constantes daquela Tabela.

2 - Finda a avaliação, o presidente da JMAI emite por via informática o respetivo AMIM, cujo modelo é aprovado por despacho do diretor-geral da Saúde e no qual se indica expressamente qual a percentagem de incapacidade do avaliado.

3 - Quando o grau de incapacidade arbitrado for suscetível de variação futura, a JMAI deve indicar a data da nova avaliação, levando em consideração o previsto na tabela nacional de incapacidades ou na fundamentação clínica que lhe tenha sido presente.

4 - Sempre que a lei faça depender a atribuição de benefícios de determinados requisitos específicos, o atestado médico de incapacidade deve indicar o fim a que se destina e respectivos efeitos e condições legais, bem como a natureza das deficiências e os condicionalismos relevantes para a concessão do benefício.

5 - Sempre que a JMAI entender necessário esclarecimento adicional sobre a situação clínica do interessado, o presidente da JMAI requer exames complementares, técnicos ou de especialidade, cujo relatório deve ser apresentado no prazo de 30 dias a contar da data daquele requerimento.

6 - Os atestados de incapacidade podem ser utilizados para todos os fins legalmente previstos, adquirindo uma função multiuso, devendo todas as entidades públicas ou privadas, perante quem sejam exibidos, devolvê-los aos interessados ou seus representantes após anotação de conformidade com o original, aposta em fotocópia simples.

7 - Sem prejuízo do disposto no n.º 1, nos processos de revisão ou reavaliação, o grau de incapacidade resultante da aplicação da Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais vigente à data da avaliação ou da última reavaliação é mantido sempre que, de acordo com declaração da junta médica, se mostre mais favorável ao avaliado.

8 - Para os efeitos do número anterior, considera-se que o grau de incapacidade é desfavorável ao avaliado quando a alteração do grau de incapacidade resultante de revisão ou reavaliação implique a perda de direitos que o mesmo já esteja a exercer ou de benefícios que já lhe tenham sido reconhecidos.

9 - No processo de revisão ou reavaliação, o grau de incapacidade resultante da aplicação da Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais mantém-se inalterado sempre que resulte num grau de incapacidade inferior ao grau determinado à data da avaliação ou última reavaliação.

10 - Sem prejuízo do disposto no n.º 3, todos os AMIM, quando sujeitos a renovação ou reavaliação, incluindo os emitidos ao abrigo do n.º 10 do artigo 2.º ou de outros regimes previstos na lei, mantêm-se válidos para efeitos da atribuição e manutenção de benefícios sociais, económicos e fiscais, desde que sejam acompanhados do comprovativo da apresentação, até à data do seu termo, do requerimento da JMAI.

11 - O disposto no número anterior cessa logo que se realize uma JMAI, bem como se o interessado faltar à mesma injustificadamente.

12 - O regime previsto no n.º 10 cessa igualmente quando o prazo médio, registado a nível nacional, para a realização das JMAI, for o indicado no n.º 5 do artigo 3.º.” (sublinhados nossos)

 

Findo o exame ou a reavaliação, o presidente da junta médica emite, por via informática ou manual, o respectivo atestado médico de incapacidade multiuso.

 

Os atestados de incapacidade podem ser utilizados para todos os fins legalmente previstos – artigo 4.º, n.º 6 do Decreto-Lei n.º 202/96, de 23 de Outubro.

 

Nesse sentido,

 

O n.º 7 do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 202/96, de 23 de Outubro determina que, nos processos de revisão ou reavaliação, o grau de incapacidade resultante da aplicação da Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais vigente à data da avaliação ou da última reavaliação é mantido sempre que tal for mais favorável ao avaliado.

 

De acordo com esta norma, no caso em apreço deveria ter sido mantido o grau de incapacidade de 80% declarado em 30 de Maio de 2012, em vez do grau de 36%, declarado em 13 de Dezembro de 2017.

 

Este não foi o entendimento seguido pela Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

De forma esquematizada, o que o n.º 7 do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 202/96, de 23 de Outubro refere é o seguinte:

  1. Sem prejuízo (ou tendo em consideração / sem violação, etc.) das regras de avaliação da incapacidade calculada de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 352/2007, de 23 de Outubro,
  2. Nos processos de revisão ou reavaliação, o grau de incapacidade (resultante da aplicação da Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais vigente à data da avaliação ou da última reavaliação) é mantido sempre que, de acordo com declaração da junta médica, se mostre mais favorável ao avaliado.

 

Ora, o entendimento da Autoridade Tributária e Aduaneira é aquele segundo o qual só beneficiará do disposto no n.º 7 quem, ao abrigo do Decreto-Lei n.º 341/93 (antiga Tabela Nacional de Incapacidades - TNI), tiver obtido um determinado grau de incapacidade e posteriormente obtido outro grau de incapacidade desfavorável, ao abrigo do Decreto-Lei n.º 352/2007 (nova TNI).

 

Permitindo-se apenas nestes casos, segundo o entendimento da Autoridade Tributária e Aduaneira, que o interessado beneficie do anterior grau de incapacidade, o mais favorável.

 

Ora, não é essa a interpretação que resulta da letra da lei (elemento literal), nem do seu espírito (elemento teleológico), pois, com o devido respeito, esta interpretação não tem respaldo na lei e restringe (sem fundamento na letra da lei ou em qualquer outra circunstância) o âmbito de aplicação subjectivo e objetivo do n.º 7 do artigo 4.º do referido Decreto-Lei.

 

Se fosse essa a intenção do legislador, o mesmo teria regulado nesse sentido e de forma expressa.

O que, no caso, não fez.

 

É esse, de resto, um dos corolários do princípio da legalidade expressamente previsto no artigo 8.º, n.º 1 da LGT.

 

Ademais, uma interpretação nesse sentido retiraria qualquer sentido útil à ressalva expressa no n.º 7 “sem prejuízo do disposto no n.º 1 (…)” que o legislador teve o cuidado de prever, a qual impõe que se respeite o disposto no n.º 1 (não obstante o previsto no n.º 7).

 

Ou seja, a aplicação do n.º 1 não prejudica, nem pode prejudicar ou impedir a aplicação do n.º 7.

 

Pelo contrário, os n.ºs 1 e n.º 7 do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 202/96 são, pois, de aplicação cumulativa.

 

Se assim fosse, o legislador teria utilizado a expressão “com excepção das situações previstas no n.º 1”, em vez de “sem prejuízo”.

 

A este respeito, esclarece ainda o n.º 8 do artigo 4.º do referido Decreto-Lei o seguinte: “Para os efeitos do número anterior, considera-se que o grau de incapacidade é desfavorável ao avaliado quando a alteração do grau de incapacidade resultante de revisão ou reavaliação implique a perda de direitos que o mesmo já esteja a exercer ou de benefícios que já lhe tenham sido reconhecidos.”.

 

No caso, o grau de incapacidade de 36% atribuído ao Requerente em 13 de Dezembro de 2017 é inquestionavelmente desfavorável, pois essa alteração do grau de incapacidade resultante da

reavaliação implicou uma inquestionável perda de direitos de que o mesmo se encontrava a dispor e de benefícios que, em consequência disso, lhe estavam a ser concedidos e reconhecidos, nomeadamente, no caso, a dedução relativa às pessoas com deficiência e a isenção de pagamento do IUC.

O legislador reforçou ainda este entendimento na redação do n.º 9 do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 202/96, de 23 de Outubro, que impõe o seguinte No processo de revisão ou reavaliação, o grau de incapacidade resultante da aplicação da tabela nacional de incapacidades por acidentes de trabalho e doenças profissionais mantém-se inalterado sempre que resulte num grau de incapacidade inferior ao grau determinado à data da avaliação ou última reavaliação (sublinhado nosso).

 

Este entendimento tem também respaldo na jurisprudência dos tribunais administrativos e fiscais superiores, de que é exemplo o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, Processo n.º 00375/22.0BEVIS, de 26 de Outubro de 2023: “sempre que a reavaliação implique a perda de direitos que o avaliado já esteja a exercer ou de benefícios que já lhe tenham sido reconhecidos ter-se-á em consideração a avaliação imediatamente anterior e sendo esta a mais favorável é ela que será mantida até próxima reavaliação.”.

 

Foi ainda esclarecido o seguinte, quanto à decisão sobre a aplicação do grau de incapacidade conferido inicialmente (tal como no caso concreto do Requerente, foi conferido inicialmente um grau de incapacidade superior) ou o grau de incapacidade atribuído na reavaliação (atribuído igualmente um grau de incapacidade inferior – ambos os graus atribuídos ao abrigo da TNI – Anexo I, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 352/2007, de 23 de Outubro):

“Ora, da matéria de facto provada resulta que, no dia 05 de agosto de 2014, foi atribuído um atestado médico de incapacidade multiuso ao Autor que atesta que, de acordo com a TNI - Anexo I, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 352/2007, de 23 de Outubro, o mesmo é portador de deficiência que lhe confere uma incapacidade permanente global de: 60% (sessenta por cento), (…) Mais resulta da matéria de facto provada que, no dia 03 de junho de 2019, foi atribuído atestado médico de incapacidade multiuso ao Autor, que atesta que (…), o mesmo é portador de deficiência que lhe confere uma incapacidade permanente global de 44% (quarenta e quatro por cento) (...).

Assim, nos presentes autos, é manifesto que nos encontramos no domínio dos n.ºs 7 e 8 do artigo 4.º do Decreto-Lei 202/96, de 23 de outubro, isto é, de portador de incapacidade oncológica que, tendo sido sujeito à realização de uma nova junta médica, viu o grau de incapacidade alterado em consequência de modificações efetivamente verificadas no seu estado clínico, o mesmo é dizer, de alterações ao nível das sequelas de que ficou a padecer.

Aqui chegados, a questão em apreço concerne em saber se o Autor tem direito à manutenção do grau de incapacidade de 60% em face do princípio da avaliação mais favorável. Isto é, se face à reavaliação da incapacidade, com resultado inferior ao resultado da avaliação inicial, se deve considerar que se mantém em vigor o resultado mais favorável, isto é, o resultante da avaliação inicial. Ora, como vimos, a norma interpretativa referente aos referidos n.ºs 7 e 8 do artigo 4.º do Decreto-Lei 202/96, de 23 de outubro, esclarece que à avaliação de incapacidade se aplica o princípio da avaliação mais favorável ao avaliado e que, sempre que do processo de revisão ou reavaliação de incapacidade resulte a atribuição de grau de incapacidade inferior ao anteriormente atribuído, e consequentemente a perda de direitos ou de benefícios já reconhecidos, mantém-se em vigor o resultado da avaliação anterior, mais favorável ao avaliado, desde que seja relativo à mesma patologia clínica que determinou a atribuição da incapacidade e que de tal não resulte prejuízo para o avaliado. Note-se que, como é consabido e a Entidade Demandada reconhece, a atribuição de uma incapacidade igual ou superior a 60% conferiu e confere diversos direitos inerentes ao atestado médico de incapacidade multiusos e durante a sua vigência ou, dito de outro modo, até à reavaliação da incapacidade.

Quer isto dizer, a manutenção de diversos direitos e benefícios, nomeadamente de isenções subjetivas tributárias, implica a manutenção de incapacidade global igual ou superior a 60%.” (sublinhado nosso)

 

E que:

“Por força da norma interpretativa constante no art. 4.º-A do Decreto-Lei n.º 202/96, aditado pela Lei n.º 80/2021, de 29 de novembro, tem direito ao tratamento mais favorável o sujeito passivo portador de deficiência cuja incapacidade for reavaliada numa percentagem inferior à legalmente exigida para a obtenção de benefício fiscal (...)”. (sublinhado nosso)

 

No mesmo entendimento, veja-se o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, 1.ª Secção - Contencioso Administrativo, Processo n.º 00144/18.2BECBR, de 28 de Junho de 2019:

“I- Com a solução normativa gizada nos n.ºs 7 e 8 do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 202/96, de 23,01, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 291/2009, de 12.10, o legislador salvaguardou a situação dos portadores de incapacidade que tendo sido sujeitos à realização de uma nova junta médica, viram o grau de incapacidade que lhes foi fixado à data da avaliação ou da última reavaliação alterado em consequência de modificações efetivamente verificadas no seu estado clínico. Nessas situações, o legislador permite à junta médica que mantenha o anterior grau de incapacidade do avaliado, quando estejam em causa situações das quais possa resultar a perda de direitos que o mesmo já esteja a exercer ou de benefícios que já lhe tenham sido reconhecidos.

II- (…) Em tais situações, o avaliado tem direito à emissão de certificado de incapacidade multiuso do qual conste o seu anterior grau de incapacidade.”.

 

No mesmo sentido, veja-se a decisão arbitral, no Processo n.º 230/2020-T, de 20 de Agosto de 2021:

“I – Em relação às liquidações de IUC dos anos 2018 e 2019, objeto do presente processo arbitral, tendo o pedido arbitral sido precedido de reclamação graciosa, e tendo esta sido extemporânea, por ter operado a caducidade do direito à impugnação, seja pela via arbitral seja por recurso ao Tribunal Administrativo e Fiscal.

II - Com a solução normativa gizada nos n.ºs 7 e 8 do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 202/96, de 23,01, na redação dada pelo Decreto-Lei n.º 291/2009, de 12.10, o legislador salvaguardou a situação dos portadores de incapacidade que tendo sido sujeitos à realização de uma nova junta médica, viram o grau de incapacidade que lhes foi fixado à data da avaliação ou da última reavaliação alterado em consequência de modificações efetivamente verificadas no seu estado clínico. Nessas situações, o legislador permite à junta médica que mantenha o anterior grau de incapacidade do avaliado, quando estejam em causa situações das quais possa resultar a perda de direitos que o mesmo já esteja a exercer ou de benefícios que já lhe tenham sido reconhecidos.” (sublinhado nosso)

 

Assim, no caso concreto, em observância do princípio da avaliação mais favorável, deveria ter sido mantido o grau de incapacidade de 80%, mantendo o Requerente os direitos e benefícios já constituídos, essencialmente, o benefício fiscal da isenção do pagamento do IUC.

 

Por todo o exposto, é declarada a ilegalidade das liquidações adicionais de Imposto Único de Circulação n.º 122978085, n.º 122978116 e n.º 122978169, relativas aos anos de 2020, 2022 e 2023, no montante total de € 235,98 e, em consequência, a anulação das mesmas.

 

III – Decisão

Termos em que se decide julgar:

a) totalmente procedente o pedido arbitral e, em consequência, declarar a ilegalidade e anular os actos tributários em apreço;

b) condenar a Requerida no pagamento das custas do processo.

 

IV – Valor da causa

De harmonia com o disposto nos artigos 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se o valor do processo em € 235,98.

 

V – Custas

Nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT, e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e Tabela I anexa a esse Regulamento, fixa-se o montante das custas em € 306,00, que fica a cargo da Requerida.

 

Notifique-se.

Lisboa, 20 de Março de 2025

 

O Árbitro

 

(Hélder Faustino)