Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 1174/2024-T
Data da decisão: 2025-03-20  IRC  
Valor do pedido: € 241.435,89
Tema: IRC. Artigo 22.º EBF. Organismos de Investimento Coletivo não residentes. Retenção na Fonte. Dividendos. Livre circulação de capitais. Países terceiros.
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SUMÁRIO

  1. O artigo 22.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF), na redação do Decreto-Lei n.º 7/2015, de 13 de Janeiro, viola o princípio da livre circulação de capitais previsto no artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, quando interpretado no sentido de que o regime aí previsto apenas é aplicável a entidades constituídas à luz da legislação portuguesa, excluindo as que o foram segundo as demais legislações dos Estados-Membros da União Europeia ou de países terceiros.
  2. A interpretação do Tribunal de Justiça sobre o direito da União Europeia é vinculativa para os órgãos jurisdicionais nacionais, com a necessária desaplicação do direito interno em caso de desconformidade com aquela.
  3. É ilegal o ato de tributação, em sede de IRC, dos dividendos de fonte portuguesa auferidos por organismo de investimento coletivo (OIC) de direito norte-americano e com sede nos Estados Unidos da América, com desaplicação do regime previsto no n.º 1 do artigo 22.º do EBF.

DECISÃO ARBITRAL

Os árbitros Professora Doutora Rita Correia da Cunha (Presidente), Professora Doutora Maria do Rosário Anjos e Professor Doutor Rui Miguel Zeferino Ferreira (Vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formar Tribunal Arbitral Coletivo no processo em epígrafe, decidem o seguinte:

I. RELATÓRIO

A..., organismo de investimento coletivo (OIC) constituído e regido pela legislação dos Estados Unidos da América (“EUA”), com sede em ...,..., ..., EUA, titular do número de identificação fiscal americano ... e do número de identificação fiscal português ... (“Primeiro Requerente”)

E

B... FUND, OIC constituído e regido pela legislação dos EUA, com sede em ..., ..., ..., EUA, titular do número de identificação fiscal americano ... e do número de identificação fiscal português ... (“Segundo Requerente”),

conjuntamente designados como “Requerentes”, vieram, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 3.º, n.º 1, 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a), e 10.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, todos do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (“RJAT”), requerer a constituição de Tribunal Arbitral Coletivo e apresentar pedido de pronúncia arbitral (“PPA”), em que é demandada a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (“Requerida” ou “AT”), com vista à declaração de ilegalidade e anulação dos atos tributários de retenção na fonte de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“IRC”), efetuados a título liberatório ou definitivo sobre rendimentos de capital (dividendos) de fonte portuguesa pagos no ano de 2022, atos estes que foram objeto de reclamações graciosas apresentadas em 8 de abril de 2024, entretanto indeferidas tacitamente (em 8 de agosto de 2024). Mais peticionam os Requerentes a restituição do montante indevidamente pago de € 241.435,89, acrescido de juros indemnizatórios.

Em suporte das suas pretensões alegam os Requerentes, em síntese, que a tributação que incidiu sobre as quantias retidas na fonte foram sujeitas a um tratamento discriminatório em território nacional e que colide com a livre circulação de capitais consagrada no artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (“TFUE”), uma vez que tais dividendos, se auferidos por um OIC constituído e a operar de acordo com a legislação nacional, estariam excluídos de tributação de acordo com o n.º 3 do artigo 22.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais (“EBF”).

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral Coletivo foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD em 04/11/2024, e automaticamente notificado à AT.

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do Tribunal Arbitral Coletivo os aqui signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável. Devidamente notificadas dessa designação, as partes não manifestaram vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Tribunal Arbitral Coletivo foi constituído em 09/01/2025.

Em 12/02/2025, a AT apresentou resposta ao PPA, defendendo-se por impugnação, tendo junto o processo administrativo (“PA”) em 14/12/2025.

Por despacho de 25/02/2025, dispensou-se a realização da reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT, e a apresentação de alegações escritas, ao abrigo dos princípios da autonomia do Tribunal arbitral na condução do processo, da celeridade, simplificação e informalidade processuais previstos nos artigos 16.º, alínea c), 19.º e 29.º, n.º 2, todos do RJAT.

Em 07/03/2025, o Requerente procedeu à junção do comprovativo do pagamento da taxa de arbitragem subsequente, tendo se pronunciado sobre os documentos juntos ao PA.

 

II. SANEAMENTO

O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído e é materialmente competente para conhecer do pedido (cf. artigo 2.º, n.º 1, alínea a), do RJAT).

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão devidamente representadas (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT e 1.º da Portaria n.º 112- A/2011, de 22 de março).

As partes não suscitaram exceções suscetíveis de obstar ao conhecimento do mérito da causa. O processo não enferma de nulidades.

III. QUESTÃO DECIDENDA

Face à exposição das partes nos respetivos articulados e aos documentos apresentados, a questão controvertida nos presentes autos é a de saber se a retenção na fonte de IRC, a título definitivo, sobre dividendos pagos a OIC residentes em países terceiros é ilegal por violação da liberdade de circulação de capitais que decorre do artigo 63.º do TFUE, em resultado da aplicação do regime legal previsto no artigo 22.º do EBF.

IV. MATÉRIA DE FACTO

FACTOS PROVADOS

  1. Os Requerentes são ambos organismos de investimento coletivo abertos constituídos ao abrigo das leis do estado americano de Maryland, em particular a Investment Company Act de 1940, os quais se encontram registados junto da United States Securities and Exchange Commission (“US SEC”), entidade federal responsável pela supervisão do setor financeiro nos EUA, como uma série da E..., Inc. (cf. declaração emitida pela US SEC junta ao PPA como Documento 1, e prospetos juntos ao PPA como Documentos 3 e 4).
  2. Os Requerentes têm como entidade gestora a C..., Inc., sociedade de direito americano com sede em ..., no estado de ... (EUA), também ela sujeita à supervisão da US SEC (cf. declaração emitida pela US SEC junta ao PPA como Documento 2).
  3. Em 2022, os Requerentes eram residentes, para efeitos fiscais, nos EUA (cf. certificados de residência fiscal juntos ao PPA como Documentos 5 e 6).
  4. O Primeiro Requerente investiu em participações sociais de sociedades com sede em Portugal, tendo auferido dividendos no montante de € 859.224,89 e sofrido uma retenção na fonte (25%) no montante de € 214.806,22, efetuada pelo D... S.A. e entregue nos cofres do Estado, conforme demonstrado pela guia n.º ..., referente ao mês de maio de 2022 (cf. Documento 9 junto ao PPA).
  5. O Segundo Requerente investiu em participações sociais de sociedades com sede em Portugal, tendo auferido dividendos no montante de € 750.347,75 e sofrido uma retenção na fonte (25%) no montante de € 187.586,93, efetuada pelo D... S.A. e entregue nos cofres do Estado, conforme demonstrado pela guia n.º ..., referente ao mês de maio de 2022 (cf. Documento 11 junto ao PPA).
  6. Os Requerentes não foram reembolsados de qualquer parcela do montante retido na fonte (cf. alegado no artigo 21.º do PPA, e não controvertido pela Requerida).
  7. Os Requerentes não deduziram, no Estado de Residência (EUA), o montante retido na fonte em Portugal (cf. Documentos 7 e 8 juntos ao PPA).
  8. Em 08/04/2024, os Requerentes deduziram reclamações graciosas contra os atos de retenção supra referidos (cf. Documentos 10 e 12 juntos ao PPA).
  9. O PPA que deu origem aos presentes autos foi apresentado em 30/10/2024, tendo os Requerentes peticionado a anulação parcial das referidas retenções na fonte, no montante de € 241.435,89 (devendo o valor de € 128.883,73 ser restituído ao Primeiro Requerente, e € 112.552,12 ser restituído ao Segundo Requerente).

FACTOS NÃO PROVADOS

Com relevo para a decisão, não existem factos alegados que devam considerar-se não provados.

 

FUNDAMENTAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO

Relativamente à matéria de facto, o Tribunal Arbitral não tem de se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe sim o dever de selecionar os factos que importa, para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cf. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT). Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cf. artigo 596.º do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT). Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes à luz do artigo 110.º, n.º 7, do CPPT, a prova documental junta ao PPA, bem como o processo administrativo junto aos autos, consideram-se provados, com relevo para a decisão, os factos supra elencados.

V. MATÉRIA DE DIREITO

1. Da ilegalidade das liquidações de IRC

Tal como resulta da matéria de facto assente, os Requerentes são pessoas coletivas constituídas como fundos de investimento ao abrigo da lei dos EUA, e residentes nos EUA, sendo, para efeitos de IRC, sujeitos passivos não residentes e sem estabelecimento estável em território português. Em 2022, os Requerentes auferiram dividendos com fonte em território português, tendo estes dividendos sofrido uma retenção na fonte à taxa de 25%.

Os OIC são atualmente regulados pelo Regime Jurídico dos Organismos de Investimento Coletivo (“RJOIC”), aprovado pela Lei n.º 16/2015, de 24 de fevereiro, que transpôs parcialmente para a ordem jurídica portuguesa a Diretiva n.º 2011/61/UE, do Parlamento e do Conselho de 8 de junho de 2011, relativa aos gestores de fundo de investimento alternativo e a Diretiva n.º 2013/14/UE, do Parlamento e do Conselho de 21 de maio de 2013, relativa aos gestores de fundos de investimento alternativo no que diz respeito à dependência excessiva relativamente às notações de risco. E na sequência da entrada em vigor do RJOIC, foi igualmente alterado o regime fiscal dos OIC pelo Decreto-Lei n.º 7/2015, de 13 janeiro.

Nessa medida, nos termos do n.º 3 do artigo 22.º do EBF, “Para efeitos do apuramento do lucro tributável, não são considerados os rendimentos referidos nos artigos 5.º, 8.º e 10.º do Código do IRS, exceto quando tais rendimentos provenham de entidades com residência ou domicílio em país, território ou região sujeito a um regime fiscal claramente mais favorável constante de lista aprovada em portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças, os gastos ligados àqueles rendimentos ou previstos no artigo 23.º-A do Código do IRC, bem como os rendimentos, incluindo os descontos, e gastos relativos a comissões de gestão e outras comissões que revertam para as entidades referidas no n.º 1”.

Tendo a AT através da Circular 6/2015, de 17 de Junho esclarecido quanto ao artigo 22.º do EBF que: “Esta exclusão abrange todos os rendimentos, realizados ou potenciais, que tenham a natureza de rendimentos de capitais, prediais ou mais-valias, incluindo, nomeadamente, as menos-valias realizadas ou potenciais, os rendimentos vencidos e ainda não recebidos, os rendimentos e gastos decorrentes da aplicação do justo valor a instrumentos financeiros e imóveis que integram o património do fundo, bem como os gastos ou perdas associados a variações cambiais, os quais consubstanciam, por natureza, rendimentos daquelas categorias e, de acordo com o normativo contabilístico aplicável aos OIC, devem ser contabilizados conjuntamente com os ativos que lhes deram origem.

Cumpre, assim, analisar se o artigo 22.º do EBF, ao excluir de tributação os dividendos auferidos por OIC residentes em território nacional, e sujeitar a retenção na fonte os dividendos auferidos por entidades equivalentes não residentes, configura uma restrição à livre circulação de capitais, nos termos do artigo 63.º do TFUE.

Sem mais delongas, adiante-se desde já que entende este Tribunal Arbitral que assiste razão aos Requerentes quando defendem que o artigo 22.º, n.º 1, do EBF, na parte em que limita o regime nele previsto a OIC constituídos segundo a legislação nacional, excluindo OIC constituídos segundo a legislação de países terceiros (como sejam os EUA), viola o princípio da liberdade de circulação de capitais consagrado no artigo 63.º do TFUE, em linha com jurisprudência arbitral recente nesta matéria: Decisão Arbitral de 20-09-2023, processo n.º 12/2023-T; Decisão Arbitral de 23-02-2024, processo n.º 777/2023-T; Decisão Arbitral de 28-03-2024, processo n.º 840/2023-T; Decisão Arbitral de 12-04-2024, processo n.º 577/2023-T; Decisão Arbitral de 12-04-2024, processo n.º 842/2023-T; Decisão Arbitral de 15-04-2024, processo n.º 849/2023-T; Decisão Arbitral de 21-05-2024, processo n.º 839/2023-T; Decisão Arbitral de 11-06-2024, processo n.º 60/2024-T; Decisão Arbitral de 24-06-2024, processo n.º 850/2023-T.

Relembre-se a jurisprudência do STA vertida no Acórdão de 13/09/2023, processo n.º 715/18.7BELRS (subscrita por vários Acórdãos subsequentes do mesmo Tribunal, designadamente nos processos: 0802/21.4BELRS, de 08/05/2024; 0806/21.7BELRS e 0755/19.9BELRS, ambos de 29/05/2024; e 0757/19.5BELRS de 05/06/2024). E mais recentemente também pelo STA no processo n.º 01676/20.8BELRS, de 11/07/2024. E na mesma senda deste último Acórdão, por se aderir aos fundamentos expressos no citado no Acórdão do STA de 13/09/2023, remete-se para o mesmo, destacando-se o excerto que de seguida se transcreve:

“Como referimos, o Tribunal recorrido assentou a sua decisão no acórdão do TJUE, de 17 de março de 2022, proferido no processo C-545/19. Sobre este acórdão a AT não se pronuncia nas suas conclusões de recurso, designadamente não afasta a doutrina que dele emana ao caso em apreço.

Ora, no acórdão em referência estava em causa um reenvio prejudicial apresentado no âmbito de um litígio que opunha a AllianzGI-Fonds AEVN à Autoridade Tributária e Aduaneira (Portugal), a respeito da retenção na fonte do imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas relativo aos anos de 2015 e 2016. E discutia-se a compatibilidade do artigo 22.º do EBF com o artigo 63.º (livre circulação de capitais) do TFUE, tendo o TJUE concluído que:

O artigo 63.º TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado - Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um organismo de investimento coletivo (OIC) não residente são objeto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção.

Esta jurisprudência, proferida relativamente a uma OIC de um país Membro da União Europeia, aplica-se manifestamente a uma OIC de um País Terceiro, uma vez que por força do artigo 63.°, n.° 1, do TFUE, a livre circulação de capitais aplica-se tanto aos fluxos de capitais entre Estados-Membros como entre Estados-Membros e países terceiros, sem nenhuma condição de reciprocidade (Acórdão de 10 de fevereiro de 2011, Haribo Lakritzen Hans Riegel e Österreichische Salinen (C-436/08 e C-437/08). Esta característica distingue a livre circulação de capitais de todas as outras liberdades do mercado interno, uma vez que estas se aplicam exclusivamente no território dos Estados-Membros.” (negrito nosso)

Daqui se retira, de forma clara, que o artigo 22.º do EBF, na redação dada pelo Decreto-Lei n.º 7/2015, de 13 de janeiro, viola o princípio da livre circulação de capitais previsto no artigo 63.º do TFUE, quando torna aplicável o regime aí previsto apenas a OIC constituídos à luz da legislação portuguesa, excluindo os que o foram segundo as demais legislações dos Estados Membros da EU ou de países terceiros. In casu, os dividendos distribuídos por sociedades residentes em Portugal a OICs residentes num Estado terceiro, são objeto de retenção na fonte, quando, ao invés, os dividendos distribuídos a OICs que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional não estaria, sujeito a essa mesma retenção.

Ainda quanto à questão da comparabilidade, recorde-se que a AT veio alegar, na sua resposta, que tais situações não são comparáveis, defendendo que o tratamento fiscal é diferenciado entre um OIC que se constitua e operem de acordo com a legislação nacional e um OIC não residente, porquanto o primeiro é tributado em sede de imposto do selo (verba 29 TGIS) e o último não. Porém, no Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia (“TJUE”) proferido no processo C-545/19, AllianzGI-Fonds AEVN, foi decidido que tal circunstância é irrelevante, na medida em que não colocam os fundos de investimentos residentes numa situação objetivamente diferente dos fundos de investimento não residentes, tal como resulta dos parágrafos 53 a 58 do referido Acórdão, que se passam a transcrever:

53 - A este propósito, importa salientar, por um lado, no que respeita ao imposto do selo, que resulta tanto das observações escritas apresentadas pelas partes como da resposta do órgão jurisdicional de reenvio ao pedido de informações do Tribunal de Justiça que, pelo facto de a sua matéria coletável ser constituída pelo valor líquido contabilístico dos OIC, esse imposto do selo é um imposto sobre o património, que não pode ser equiparado a um imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas.

54 Além disso, como salientou a advogada-geral no n.o 47 das suas conclusões, no processo principal, a legislação fiscal portuguesa distingue, no caso dos OIC residentes, entre o rendimento do capital acumulado e o que é imediatamente redistribuído, apenas o primeiro sendo englobado na matéria coletável do referido imposto do selo. Ora, este aspeto basta, por si só, para distinguir este processo do que deu origem ao Acórdão de 2 de junho de 2016, Pensioenfonds Metaal en Techniek (C-252/14, EU:C:2016:402).

55 Com efeito, mesmo considerando que esse mesmo imposto do selo possa ser equiparado a um imposto sobre os dividendos, um OIC residente pode escapar a tal tributação dos dividendos procedendo à sua distribuição imediata, ao passo que esta possibilidade não está aberta a um OIC não residente. 56 Por outro lado, no que se refere ao imposto específico previsto no artigo 88.o , n.o 11, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas, resulta das indicações da Autoridade Tributária, contidas na decisão de reenvio, que, por força desta disposição, este imposto só incide sobre os dividendos recebidos por OIC residentes quando as partes sociais a que respeitam os lucros não tenham permanecido na titularidade do mesmo sujeito passivo, de modo ininterrupto, durante o ano anterior à data da sua colocação à disposição e não venham a ser mantidas durante o tempo necessário para completar esse período. Assim, o imposto previsto pela referida disposição só incide sobre os dividendos de origem nacional recebidos por um OIC residente em casos limitados, pelo que não pode ser equiparado ao imposto geral de que são objeto os dividendos de origem nacional recebidos pelos OIC não residentes.

57 Por conseguinte, a circunstância de os OIC não residentes não estarem sujeitos ao imposto do selo e ao imposto específico previsto no artigo 88.o , n.o 11, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas não os coloca numa situação objetivamente diferente em relação aos OIC residentes no que se refere à tributação dos dividendos de origem portuguesa.

58 Em seguida, quanto ao argumento do Governo português que figura no n.o 48 do presente acórdão, há que salientar que, como alegou a Comissão em resposta às perguntas escritas do Tribunal de Justiça, no domínio da livre prestação de serviços, ao abrigo do artigo 56.o TFUE, os operadores económicos devem ser livres de escolher os meios adequados para exercer as suas atividades num Estado-Membro diferente do da sua residência, independentemente de se estabelecerem ou não de modo permanente nesse outro Estado-Membro, não devendo esta liberdade ser limitada por disposições fiscais discriminatórias.

Conclui-se, assim, que também aqui não assiste razão à Requerida.

Importa também recordar o Princípio do Primado do Direito da União Europeia sobre o Direito Nacional, bem como o relevo que assume a jurisprudência do TJUE na garantia de uma aplicação uniforme do Direito da União Europeia nos diversos Estados-Membros, por via do mecanismo de reenvio prejudicial previsto no artigo 267.º do TFUE. Não há dúvida de que, estando em causa questões de Direito da União Europeia, a jurisprudência do TJUE tem carácter vinculativo para os tribunais nacionais (neste sentido, por todos, Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 26-03-2003, proferido no âmbito do processo n.º 01716/02, e de 27-11-2018, proferido no âmbito do processo n.º 46/13.9TBGLG.E1.S1).

O Princípio do Primado do Direito da União Europeia sobre o Direito Nacional tem suporte no n.º 4 do artigo 8.º da Constituição da República Portuguesa, em que se estabelece que “as disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respetivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático”. Daqui se retira que os tribunais nacionais (incluindo os tribunais arbitrais) têm o poder-dever de desaplicar as normas de direito interno que se revelem contrárias a normas de Direito da União Europeia, desde que estas respeitem os princípios fundamentais do Estado de direito democrático (neste sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 03-02-2016, proferido no processo n.º 01172/14).

Pelo exposto, e considerando a incompatibilidade do artigo 22.º do EBF, ao excluir do seu âmbito de aplicação os OIC constituídos segundo a legislação de países terceiros, com o artigo 63.º do TFUE, o Tribunal Arbitral declara ilegais e anula as liquidações de IRC por retenção na fonte contestadas, e os atos de indeferimento tácitos das reclamações graciosas apresentadas pelos Requerentes, por vício de violação de lei, consubstanciado na violação do princípio da livre circulação de capitais previsto no artigo 63.º do TFUE e, consequentemente, do artigo 8.º, n.º 4, da CRP, em conformidade com o artigo 163.º do Código do Procedimento Administrativo, subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 2.º, alínea c), da LGT.

2. Dos juros indemnizatórios

De harmonia com o disposto na alínea b) do artigo 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a Administração Tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”.

Embora o artigo 2.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT utilize a expressão “declaração de ilegalidade” para definir a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, não fazendo referência a decisões condenatórias, deverá entender-se que se compreendem nas suas competências os poderes que, em processo de impugnação judicial, são atribuídos aos tribunais tributários, sendo essa a interpretação que se sintoniza com o sentido da autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, em que se proclama, como primeira diretriz, que “o processo arbitral tributário deve constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à ação para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária” (cf. Decisões Arbitrais proferidas nos processos n.ºs 277/2020-T e 220/2020-T).

Na sequência da anulação dos atos impugnados, os Requerentes terão direito a ser reembolsados do imposto indevidamente pago, o que é efeito da própria anulação, por força dos artigos 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e 100.º da LGT.

O processo de impugnação judicial, apesar de ser essencialmente um processo de anulação de atos tributários, admite a condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios, como se depreende do artigo 43.º, n.º 1, da LGT, em que se estabelece que “são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”, e do artigo 61.º, n.º 4, do CPPT, que dispõe que “se a decisão que reconheceu o direito a juros indemnizatórios for judicial, o prazo de pagamento conta-se a partir do início do prazo da sua execução espontânea”. Já o n.º 5 do artigo 24.º do RJAT vem dizer que “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”.

Relativamente ao momento a partir do qual são devidos os juros indemnizatórios, pronunciou-se o STA no Acórdão proferido no âmbito do processo n.º 0360/11.8BELRS, de 07/04/2021:

“(…) afigura-se-nos justo e equitativo que a indemnização ao contribuinte (decorrente do pagamento de juros indemnizatórios, pela AT) não retroaja ao momento da prática do ato de retenção na fonte (da responsabilidade do substituto tributário), porquanto, tratando‑se de uma situação de autoliquidação, só com a competente impugnação administrativa, atempada, os serviços da AT ficam em condições de conhecer e reparar uma cometida ilegalidade, sendo, a partir do momento em que não assumem a respetiva reparação, justificado o ressarcimento do sujeito passivo, decorrente de não receber e passar a dispor desde esse momento (que podia ter sido de viragem) do imposto indevidamente entregue ao Estado, através do mecanismo da substituição tributária.

Neste ponto, apenas, resta problematizar se, na situação versada (ou equiparáveis), o dies a quo deve corresponder ao da data da apresentação da impugnação administrativa (reclamação graciosa e/ou recurso hierárquico) ou ao do momento em que os competentes serviços da AT se pronunciam/comunicam o resultado da pronúncia ao contribuinte.

(…) julgamos, justo, adequado e seguro, assumir como marco, para identificar e fixar o disputado dies a quo, o prazo, fixado por lei, para a decisão do procedimento de reclamação graciosa (...), isto é, o período, atualmente, de 4 meses”. (negrito nosso)

Mais recentemente, pronunciou-se o STA no Acórdão proferido no âmbito do processo n.º 011/19.2BELRS, de 29/11/2023:

“I - Em caso de retenção na fonte e havendo lugar a impugnação administrativa do acto tributário em causa (v.g. reclamação graciosa), o erro passa a ser imputável à A. Fiscal depois de operar o indeferimento do mesmo procedimento gracioso, efectivo ou presumido, funcionando tal data como termo inicial para cômputo dos juros indemnizatórios a pagar ao sujeito passivo, nos termos do artº.43, nºs.1 e 3, da L.G.T., sendo que o indeferimento tácito de reclamação graciosa deduzida opera ao fim de quatro meses, prazo esse que é contínuo e se deve contar nos termos do artº.279, do C. Civil (cfr.artº.57, nºs.1 e 3, da L.G.T.; artºs.20, nº.1, e 106, do C.P.P.T.)..

II – In casu, tendo a reclamação graciosa dado entrada nos serviços da autoridade reclamada no dia 07.05.2015, nos termos da doutrina emanada daquele aresto do Pleno, temos que o indeferimento silente dessa pretensão se formou em 08.09.2015 (CC, art. 279.º., als. b) e c), ex vi LGT, art. 57.º, n.ºs 1 e 3).

(...)

IV – Assim, relevando esse “indeferimento presumido” como termo inicial (dies a quo) da obrigação de contagem de juros indemnizatórios, quando ligada à existência do procedimento de reclamação graciosa, o dia a considerar para tal efeito é, precisamente, 08.09.2015, e não já o dia em que foi proferido o despacho de indeferimento, ou seja, 26.09.2018, como se julgou na sentença recorrida.”

Entendimento ao qual se adere.

Assim, tendo os Requerentes apresentado reclamações graciosas em 08/04/2024, e o indeferimento presumido sido formado em 09/08/2024 (nos termos do artigo 57.º, n.º 1 e 5, da LGT), o Tribunal Arbitral determina que os juros indemnizatórios sobre o montante de € 241.435,89 deverão contar-se desde o dia 09/08/2024 até ao integral reembolso ao Requerentes, nos termos do artigo 43.º da LGT e do artigo 61.º do CPPT.

 

VI. DECISÃO

De harmonia com o exposto acordam neste Tribunal Arbitral em julgar totalmente procedente o pedido de pronúncia arbitral e consequentemente:

  1. Declarar ilegais e anular (parcialmente) as retenções na fonte contestadas, no montante € 241.435,89, do período de maio de 2022;
  2. Declarar ilegal e anular os atos de indeferimento tácito das reclamações graciosas apresentadas pelos Requerentes com referência às retenções na fonte em apreço;
  3. Condenar a AT no reembolso de € 128.883,73 ao Primeiro Requerente, e € 112.552,12 ao Segundo Requerente;
  4. Condenar a AT no pagamento de juros indemnizatórios sobre os referidos montantes, contados desde 09/08/2024 até integral reembolso aos Requerentes;
  5. Condenar a AT no pagamento das custas processuais, em razão do decaimento.

 

VALOR DO PROCESSO

Fixa-se ao processo o valor de 241.435,89, correspondente ao montante das retenções na fonte que o Requerente impugnou - v. artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT, aplicável por remissão do artigo 3.º do RCPAT.

 

CUSTAS

Custas no montante de 4.284,00, a cargo da Requerida, em razão do decaimento, em conformidade com a Tabela I anexa ao RCPAT e com os artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT, 4.º, n.º 5, do RCPAT, e 527.º do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

Notifique-se.

CAAD, 20 de março de 2025

 

O Tribunal Arbitral,

 

 

Professora Doutora Rita Correia da Cunha

 

 

 

Professora Doutora Maria do Rosário Anjos

 

 

Professor Doutor Rui Miguel Zeferino Ferreira