Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 1001/2024-T
Data da decisão: 2025-03-31  IRC  
Valor do pedido: € 187.589,98
Tema: Imposto sobre os Rendimentos das Pessoas Coletivas – IRC
Incompatibilidade da aplicação do artigo 22.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais, com o artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia. Juros indemnizatórios.
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SUMÁRIO:

 

  1. A liberdade de circulação de capitais é estabelecida pelo artigo 63.º do TFUE como uma liberdade fundamental do mercado interno, dotada de relevância constitucional no âmbito do Direito da União Europeia, que impõe a proibição de todas as restrições aos movimentos de capitais entre Estados-membros e entre Estados-membros e Países Terceiros.
  2. A norma do n.º 1, parte final, e n.º 3 do artigo 22.º do EBF, interpretadas conjugadamente, ao estabelecerem um tratamento fiscal diferenciado para os OIC´S que operem em Portugal de acordo com a legislação portuguesa, em relação aos organismos equiparáveis que tenham sido constituídos de acordo com a legislação de um Pais Terceiro, neste caso os EUA, viola o princípio da liberdade de circulação de capitais consagrado no artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia.
  3. A retenção na fonte em IRC de 25% sobre os dividendos distribuídos por sociedades residentes em Portugal a OIC’s estabelecidos noutros Estados Membros da União Europeia ou em países terceiros, simultaneamente isentando de tributação a distribuição de dividendos a OIC’s estabelecidos e domiciliados em Portugal, é desconforme com os princípios estabelecidos no TFUE, em particular com o artigo 63.º do TFUE que garante a liberdade de circulação.
  4.  Do princípio do primado do Direito da União Europeia resulta que a Requerida tem o dever de recusar a aplicação de normas nacionais contrários ao Direito da União Europeia.
  5. Em caso de ilegalidade praticada em atos de retenção na fonte, os respetivos juros indemnizatórios devem ser contados nos termos do artigo 61.º, n.º 5, do CPPT.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

Os árbitros Juiz José Poças Falcão (Presidente), Maria Alexandra Mesquita (Vogal e Relatora) e Dr. Fernando Miranda Ferreira (Vogal), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa – CAAD para formar Tribunal Arbitral Coletivo, constituído em 4 de novembro de 2024, decidem o seguinte:

  • RELATÓRIO

 

A..., Organismo de Investimento Coletivo (OIC), doravante citado como Requerente, constituído de acordo com o direito norte-americano, com sede em ..., ..., ..., ..., Nova Iorque, Estados Unidos da América,  com o número de contribuinte português ... vem, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e no artigo 10.º do RJAT, deduzir Pedido de Pronúncia Arbitral (PPA), para apreciação da legalidade dos atos de retenção na fonte de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“IRC”) incidentes sobre pagamentos de dividendos relativos ao ano de 2021, no montante de 187.589,98€, que foram objeto de reclamação graciosa sobre a qual recaiu indeferimento expresso, notificado em 24 de maio de 2024 e recebido pelo Requerente, a 28 de maio de 2024.

No presente Pedido de Pronúncia Arbitral (PPA) requer-se o pedido de anulação do ato de indeferimento da reclamação graciosa, a anulação dos atos tributários de retenção na fonte

 

de Imposto sobre o Rendimentos de pessoas Coletivas, por vicio de violação de lei, em concreto por violação do Direito da União Europeia e da Constituição da Republica Portuguesa, a restituição no  montante acima descrito, e o reconhecimento do pagamento de juros indemnizatórios, e caso assim for entendido, a condenação da Autoridade Aduaneira ao pagamento das custas de arbitragem.

 

É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira ou AT.

 

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral Coletivo apresentado pelo Requerente em 26 de agosto de 2024, foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente comunicado à Requerida, que foi do mesmo notificada em 27 de agosto de 2024.

 

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do Tribunal Arbitral Coletivo, os aqui signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

Em 14 de outubro de 2024, foram as Partes devidamente notificadas dessas designações, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1 alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

 

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Tribunal Arbitral Coletivo foi constituído em 4 de novembro de 2024 e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

 

 

 

IIARGUMENTOS DAS PARTES

§. 1.º Do Requerente

 

No pedido de pronúncia arbitral (PPA) o Requerente defendeu o seguinte, e que já constava da reclamação graciosa, sobre o qual recaiu um indeferimento expresso e neste PPA se repete, pelo que, assim sendo, desta decisão também faz parte integrante:

  1. O Requerente é um fundo de investimento constituído e a operar de acordo com direito norte-americano, sendo um sujeito passivo de IRC não residente para efeitos fiscais em Portugal, e sem qualquer estabelecimento estável no país conforme certificado de residência fiscal emitido pelas Autoridades Fiscais norte-americanas, relativo ao ano de 2021, (doc.n.1);
  2. O Requerente é gerido pela B..., sociedade residente para efeitos fiscais nos Estados Unidos da América (“EUA”).
  3. O Requerente detém investimentos financeiros, consubstanciados na detenção de participações sociais em sociedades residentes para efeitos fiscais em Portugal.
  4. No ano de 2021[i] o Requerente era detentor de participações sociais nas seguintes sociedades residentes:

 

C... – SGPS, S.A.

D... S.A.

 

  1. Os dividendos recebidos no decorrer do ano de 2021 foram sujeitos a tributação por retenção na fonte liberatória, à taxa de 25%, prevista no n.º 4 do artigo 87.º do Código do IRC (“CIRC”), e à taxa de 15%, prevista no Acordo para Evitar a Dupla Tributação celebrado entre Portugal e os Estados Unidos da América (“ADT”).
  2. Na parte dos dividendos que foram sujeitos a retenção na fonte à taxa de 25%, o Requerente efetuou pedido de reembolso do imposto retido na fonte em excesso face à taxa prevista no ADT (correspondente a 10%[ii], pois a taxa prevista no ADT para os dividendos é de 15%), através da entrega do formulário Modelo 21 RFI, relativo ao pagamento de dividendos no dia 20.05.2021.
  3. O Requerente já obteve o reembolso do imposto retido na fonte em excesso, no decurso da reclamação graciosa.
  4.  O valor objeto do presente pedido ascende a 15% do valor bruto dos rendimentos auferidos em Portugal, correspondente à taxa prevista no ADT, conforme abaixo melhor identificado.[iii]

 

 

Ano da Retenção

 

Valor Bruto do Dividendo

 

Data de Pagamento

 

Taxa de Retenção na Fonte

 

Guia de pagamento

 

Valor da retenção (€) – 25%

 

Retenção na

fonte (ADT) (€) – 15%

2021

800 491,30

20.05.2021

25%

...

200 122,83

120 073,70

2021

450 108,50

16.09.2021

15%

...

-

67 516,28

TOTAL

187 589,98

 

 

 

O quadro acima permite discriminar, relativamente ao ano em questão,

  1. o montante bruto dos dividendos recebidos,
  2.  as datas de pagamento dos referidos rendimentos,
  3.  (iii) os números das guias de pagamento através das quais o imposto retido na fonte foi entregue junto dos cofres da AT em Portugal,
  4.  (iv) o valor total de imposto suportado por retenção na fonte, e
  5. O valor suportado após obtenção de reembolso ao abrigo do ADT[iv], no montante da quantia total de imposto de EUR 187.589,98, constitui o objeto do presente pedido de pronúncia arbitral.
  1. Para prova o Requerente juntou:

 Cópias dos documentos emitidos pelo depositário (E...), correspondentes a declarações com o número de ações, valor dos dividendos, data de pagamento e valor de imposto suportado em Portugal, e que comprovam ainda que o Requerente é o beneficiário dos rendimentos (doc.2); e

  1. Cópias das declarações (vouchers) emitidas pelos agentes pagadores em Portugal no período relevante (F... e G... Plc), atestando a data de distribuição dos dividendos, montante bruto dos dividendos distribuídos ao Requerente e imposto retido na fonte em Portugal (conforme declarado no respetivo, Modelo 30), bem como os números das guias de pagamento através das quais foi entregue o imposto retido junto dos cofres da Autoridade Tributária (doc.3).
  2.  Os argumentos trazidos aos autos centraram-se, fundamentalmente, na questão da conformidade da aplicação da taxa de retenção na fonte aplicável aos dividendos de fonte portuguesa distribuídos ao Requerente, em paralelo, com a liberdade de circulação de capitais consagrada no artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE)
  3.  O Requerente alega que os atos de retenção na fonte violam a liberdade de circulação de capitais prevista no artigo 63.º do TFUE com os fundamentos que a seguir se sintetizam:
  4. Considera o Requerente que os atos impugnados violam o decidido no Acórdão AlliaznGI Fonds- (AEVN, Proc. C-545/19), e 17.03.2022 e no Acórdão de Uniformização do STA, de 28.09.2023 (P.º 93/19.7BALSB)[v], aplicável à situação do Requerente;
  5. No entender do Requerente, os OIC´s não residentes são objeto de uma discriminação contrária ao TFUE, na medida em que o regime previsto no artigo 22.º, n.ºs 1, 3 e 10, do EBF[vi], é aplicável apenas aos OIC´s residentes em Portugal que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional – i.e. ao abrigo da Lei n.º 16/2015, de 24 de Fevereiro, que transpõe a Diretiva 2009/65/CE –, não permitindo o Estado português que os OICVM[vii] não residentes, acedam a tal regime, ainda que demonstrem que cumprem no seu Estado de residência exigências equivalentes às contidas na lei portuguesa;
  6. Para efeitos de aferir se uma legislação como a que está em causa constitui uma restrição à liberdade de circulação de capitais, proibida pelo artigo 63.º do TFUE, urge responder às seguintes três perguntas: (i) A legislação interna prevê uma diferença de tratamento entre residentes e não residentes? (ii) Essa diferença de tratamento é suscetível de estar abrangida pelo artigo 63.º do TFUE? (iii) A diferença de tratamento que resulta da legislação interna é suscetível de dissuadir as entidades residentes noutro EM de realizarem investimentos naquele outro EM – Portugal? 
  7. Quanto à primeira questão, entende o Requerente que da matéria de facto e do acima exposto resulta inquestionável que existe uma diferença de tratamento conferida pela legislação fiscal portuguesa, entre os OIC residentes e os OIC não residentes, na tributação de dividendos de fonte portuguesa; Concretamente, esta diferença de tratamento consubstancia-se no diferente tratamento fiscal que é conferido aos rendimentos obtidos em Portugal por OIC constituídos ao abrigo da lei portuguesa – que estão isentos de imposto – e aos rendimentos obtidos em Portugal por OIC não constituídos ao abrigo da lei portuguesa – que estão sujeitos a retenção na fonte liberatória de IRC a uma taxa de 25%;
  8. Quanto à segunda questão, isso mesmo foi confirmado pelo TJUE, no recente acórdão proferido no processo C-545/19, nos seguintes termos: “Ao proceder a uma retenção na fonte sobre os dividendos pagos aos OIC não residentes e ao reservar aos OIC residentes a possibilidade de obter a isenção dessa retenção na fonte, a legislação nacional em causa no processo principal procede a um tratamento desfavorável dos dividendos pagos aos OIC não residentes” (cfr. AllianzGI-Fonds AEVN, C-545/19, parágrafo 38).  Ora, um tratamento desfavorável por um EM dos dividendos pagos a entidades não residentes face ao tratamento favorável reservado aos dividendos pagos às entidades aí residentes é inequivocamente susceptível de dissuadir as entidades não residentes de realizarem investimentos nesse EM, aqui Portugal, e constitui, por conseguinte, uma restrição à livre de circulação de capitais.
  9. Terceira questão, no que respeita à comparabilidade das situações, enquanto critério na avaliação da conformidade de determinado normativo com o Direito da UE, cumpre clarificar, em linha com o que vem sendo professado pelo TJUE, que a partir do momento em que um EM estende a sua soberania tributária a contribuintes não residentes, sujeitando, de modo unilateral ou por via convencional, a imposto sobre o rendimento, não só os contribuintes residentes mas também os contribuintes não residentes, relativamente a dividendos que recebam de uma sociedade residente, a situação dos contribuintes não residentes é comparável à situação dos contribuintes residentes (v., neste sentido, acórdãos de 14 de dezembro, Denkavit International e Denkavit France, C-170/05, parágrafo 35; de 20 de outubro de 2011, Comissão/Alemanha, C-284/09, parágrafo 56, de 17 de setembro de 2015, Miljoen e o., C-10/14, C-14/14 e C-17/14, parágrafo 67 e de 17 de março de 2022, AlliaznGI-Fonds AEVN, C-545/19);
  10. De facto, embora residentes e não residentes não estejam sempre numa situação comparável, são colocados nessa posição a partir do momento em que um EM opte por exercer o seu poder de tributação sobre ambos;
  11. Efetivamente, a comparabilidade é aferida apenas tendo em consideração a extensão ou não da soberania tributária de um Estado aos contribuintes residentes num outro Estado, sendo irrelevante a eventual incidência de outros impostos, taxas ou tributos incidentes sobre os investimentos efetuados pelos OIC;
  12. Termos em que, nas palavras do TJUE, apenas se pode concluir que “[t]endo a República Portuguesa optado por exercer a sua competência fiscal sobre os rendimentos auferidos pelos OIC não residentes, estes encontram-se, por conseguinte, numa situação comparável à dos OIC residentes em Portugal no que respeita ao risco de dupla tributação económica dos dividendos pagos pelas sociedades residentes em Portugal (v., por analogia, Acórdão de 21 de junho de 2018, Fidelity Funds e o C-480/16, EU:C:2018:480, n.º 56 e jurisprudência referida)” (cfr. AllianzGI-Fonds AEVN, C-545/19, parágrafo 67.
  13. Ainda, no que respeita à justificação da existência de legislação interna restritiva, nomeadamente para assegurar a coerência do regime fiscal, entendeu o TJUE no referido processo AllianzGI-Fonds AEVN que haveria de averiguar se existia alguma vantagem fiscal suscetível de compensar o tratamento desfavorável concedido a determinados contribuintes, que transcrevemos:

 “a isenção da retenção na fonte dos dividendos em benefício dos OIC residentes não está sujeita à condição de os dividendos recebidos pelos organismos serem redistribuídos por estes e de a sua tributação na esfera dos detentores de participações sociais permitir compensar a isenção da retenção na fonte (v., por analogia, Acórdão de 10 de maio de 2012, Santander Asset Management SGIIC e o., C-338/11 a C-347/11, EU:C:2012:286, n.° 52, e de 10 de abril de 2014, Emerging Markets Series of DFA Investment Trust Company, C-190/12, EU:C:2014:249, n.° 93)” (cfr. AllianzGI-Fonds AEVN, C-545/19, parágrafo 79);

  1. Assim, em conclusão: “[a] necessidade de preservar a coerência do regime fiscal nacional não pode, por conseguinte, ser invocada para justificar a restrição à livre circulação de capitais induzida pela legislação nacional em causa no processo principal”, que é em tudo idêntico ao caso dos presentes autos arbitrais (cfr. AllianzGI-Fonds AEVN, C-545/19, parágrafo 81);
  2. É entendimento pacífico e unânime que o Direito da UE prevalece sobre o direito ordinário nacional, quer esteja em causa legislação adotada anteriormente, quer estejam em causa atos legislativos, entre outros, ver, o acórdão de 14 de julho de 1964, Costa vs Enel, C-65/64 e, ainda, acórdão do STA de 03.02.2016, tirado no processo n.º 01172/14).
  3. Nestes termos, tendo o regime interno que impõe a aplicação de retenção na fonte a dividendos distribuídos a um OIC não residente – como o Requerente – (enquanto se prevê que os dividendos distribuídos a OIC residentes estão isentos dessa retenção) sido expressamente e sem reservas julgado incompatível com o Direito da UE no passado dia 17 de março de 2022, pelo que se impõe a anulação dos atos de retenção na fonte sindicados, por força do princípio do primado consagrado no artigo 8.º, n.º 4, da CRP.
  4. Em sede de alegações, em 14 de janeiro de 2025, o Requerente vem ainda enfatizar, e em conclusão, o seguinte:

“O artigo 63.° TFUE [relativo à liberdade de circulação de capitais] deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado‑Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um organismo de investimento coletivo (OIC) não residente são objeto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção”.

  1.  Significa isto que o regime previsto nos artigos 94.º n.º 1 alínea c), 94.º n.º 3 alínea b), 94.º n.º 4 e 87.º n.º 4, todos do CIRC, ao prever que os rendimentos obtidos em Portugal estão sujeitos a retenção na fonte liberatória a uma taxa de 25%, enquanto se prevê uma isenção de tributação em IRC, nos termos do n.1 e 10 do artigo 22.º do EBF, a dividendos auferidos por OIC residentes, não é compatível com o princípio da livre circulação de capitais, tal como resulta expresso e inequívoco do acórdão do TJUE de 22 de março, AlliaznGI-Fonds AEVN, C-545/19).

 

 

Em 9 de Outubro de 2024, a Requerida apresentou a sua Resposta e juntou aos autos o processo administrativo, defendendo-se por impugnação.

 

II. ARGUMENTO DAS PARTES

 §. 2 Resposta da Requerida

 

  1. Quanto aos factos com interesse para a boa decisão da causa, os mesmos já foram devidamente apreciados em sede de reclamação graciosa, inexistindo novas questões quanto aos factos ou quanto ao direito que justifiquem uma nova apreciação.

 No entanto, sucintamente,

  1.  Através do Decreto-Lei n.º 7/2015, de 13 de janeiro procedeu-se à reforma do regime de tributação dos Organismos de Investimento Coletivo (OIC), alterando, com interesse para o caso em apreço, a redação do art.º 22.º do EBF, aplicável aos rendimentos obtidos por fundos de investimento mobiliário e imobiliário e sociedades de investimento mobiliário e imobiliário, que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional, conforme resulta do n.º 1 do art.º 22.º do EBF, e Circular n.º 6/2015.
  2. Com a nova redação, o legislador estabeleceu que, para esses sujeitos passivos de IRC - residentes - (i) não são considerados, na determinação do lucro tributável, os rendimentos de capitais, prediais e mais-valias referidos nos art.º 5.º, 8.º e 10.º do CIRS, conforme resulta do n.º 3 do referido art.º 22.º do EBF; (ii) estão isentos das derramas municipal e estadual; e, (iii) estabeleceu ainda uma dispensa da obrigação de efetuar a retenção na fonte de IRC relativamente aos rendimentos por si obtidos (art.º 22.º n.º 10 do EBF).
  3. Tal regime não é aplicável à reclamante - pessoa coletiva constituída de acordo com a legislação norte-americana -, por falta de enquadramento com o disposto no n.º 1 do art.º 22.º do EBF, conforme entendimento sancionado superiormente.
  4. Efetivamente, o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) pronunciou-se sobre tal exclusão, através do acórdão proferido no processo n.º C – 545/19 de 17 de março de 2022, do qual resulta que « O artigo 63.º TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um organismo de investimento coletivo (OIC) não residente são objeto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção», ver, articulado 6.4 da impugnação da Requerida.
  5. De notar que, o legislador prevê no n.º 10 do art.º 22.º do EBF uma dispensa (e não uma isenção) da obrigação de efetuar a retenção na fonte de IRC relativamente aos rendimentos obtidos pelos OIC constituídos residentes e que operem de acordo com a legislação nacional (n.º 1).
  6.  Todavia, não cabe à AT invalidar ou desaplicar o direito nacional em consequência de decisões do TJUE, substituindo-se ao legislador para além daquilo que possa considerar-se uma interpretação razoável.
  7. Evidenciando-se que, a interpretação do direito europeu constante das decisões jurisprudenciais é vinculativa para os órgãos jurisdicionais, mas não afastam a vigência legal das normas consideradas pelo TJUE como contrárias ao direito europeu.
  8. A situação dos residentes e dos não residentes não é, por regra, comparável e a discriminação só acontece quando estamos perante a aplicação de regras diferentes a situações comparáveis ou de uma mesma regra a situações distintas.
  9. No caso em apreço, as alegadas diferenças de tratamento encontram-se plenamente justificadas dentro da sistematização e coerência do sistema fiscal português;
  10. De acordo com o Supremo Tribunal Administrativo (STA), no âmbito do Processo nº 0654/13, de 27 de Novembro,“Resulta da jurisprudência comunitária que embora da legislação nacional decorra, em abstracto, uma restrição à livre circulação de capitais não consentida pelo art.º 56º do Tratado da Comunidade Europeia (actual artigo 63º TFUE), importa averiguar se essa restrição, consubstanciada em maior tributação de entidade não residente, será neutralizada, em concreto, por via da Convenção celebrada entre os Estados para Evitar a Dupla Tributação.”;
  11. No entanto, e no que diz respeito aos OIC não residentes (que não disponham de um estabelecimento estável em território português), os mesmos não têm enquadramento na atual previsão do n.º 1 do art.º 22.º do EBF e, consequentemente, dos n.ºs 2, 3 e 10 da referida norma legal.
  12. Também não existe nos autos qualquer prova de que o Requerente tenha a mesma natureza que os OIC portugueses e que cumprem as exigências equivalentes às contidas na lei interna, para efeitos de eventual aplicação do regime de tributação do art.º 22.º do EBF;
  13. Pelo que o direito interno optou, para os OIC residentes, por uma tributação na esfera do Imposto do Selo, tendo sido aditada à Tabela Geral do Imposto do Selo (TGIS) a Verba 29, de que resulta uma tributação, por cada trimestre, à taxa de 0,0025% do valor líquido global dos OIC aplicado em instrumentos do mercado monetário e depósitos, e à taxa 0,0125%, sobre o valor líquido global dos restantes OIC residentes, sendo que, neste caso, a base tributável pode incluir dividendos distribuídos;
  14. Refira-se também que estas entidades estão sujeitas a tributação autónoma nos termos previstos no artigo 88.º do Código do IRC, conforme estipulado no n.º 8 do artigo 22.º do EBF;
  15.  Ou seja, a sujeição a Imposto do Selo, a par da tributação autónoma prevista no artigo 88.º n.º 11 do CIRC (ex vi do artigo 22.º, n.º 8, do EBF), serão então a contrapartida da não sujeição a IRC dos lucros distribuídos prevista no n.º 3 do artigo 22.º do EBF;
  16. Por isso, no presente caso, não parece estarmos em presença de situações objetivamente comparáveis, porquanto a tributação dos dividendos opera segundo modalidades diferentes e nada indica que a carga fiscal que onera os dividendos auferidos pelos OIC abrangidos pelo artigo 22.º, do EBF, possa ser mais reduzida do que a que recai sobre os dividendos auferidos em Portugal pelo Requerente;
  17. E ainda que, por mera hipótese, o Requerente não conseguisse recuperar o imposto retido na fonte em Portugal, no seu estado de residência também não está demonstrado que o imposto não recuperado não possa vir a ser recuperado pelos investidores;
  18. No âmbito da apreciação da conformidade das normas do Código do IRC e do EBF, atinentes aos dividendos com o princípio da liberdade de circulação de capitais, o Requerente convoca a seu favor o artigo 63.º do TFUE que estabelece o seguinte:

“1. No âmbito das disposições do presente capítulo, são proibidas todas as restrições aos movimentos de capitais entre Estados-Membros e entre Estados-Membros e países terceiros”. «2. No âmbito das disposições do presente capítulo, são proibidas todas as retenções aos pagamentos entre Estados-Membros e países terceiros.”

  1. Por sua vez, prescreve o Artigo 65.º do TFUE:

. O disposto no artigo 63.º não prejudica o direito de os Estados-Membros:

A aplicarem as disposições pertinentes do seu direito fiscal que estabeleçam uma distinção entre contribuintes que não se encontrem em idêntica situação no que se refere ao seu lugar de residência ou ao lugar em que o seu capital é investido; b) Tomarem todas as medidas indispensáveis para impedir infrações às suas leis e regulamentos, nomeadamente em matéria fiscal e de supervisão prudencial das instituições financeiras, preverem processos de declaração dos movimentos de capitais para efeitos de informação administrativa ou estatística, ou tomarem medidas justificadas por razões de ordem pública ou de segurança pública.2). (…) 3) As medidas e procedimentos a que se referem os n.ºs 1 e 2 não devem constituir um meio de discriminação arbitrária, nem uma restrição dissimulada à livre circulação de capitais e pagamentos, tal como definida no artigo 63.º”.

E continua a Requerida AT:

  1. Para se avaliar se o tratamento fiscal aplicado aos dividendos obtidos em Portugal é menos vantajoso do que o tratamento fiscal atribuído aos dividendos obtidos pelos OIC abrangidos pelo artigo 22.º do EBF, e se tal diferenciação é susceptível de afetar o investimento em ações emitidas por sociedades residentes, teria de ser colocado em confronto o imposto retido na fonte, com carácter definitivo, à taxa de 15%, e os impostos  IRC e Imposto do Selo - que incidem sobre os segundos, e que, em conjunto, podem, em certos casos, exceder 23% do valor bruto dos dividendos;
  2.  Além do mais, o imposto retido ao Requerente poderá eventualmente dar lugar a um crédito de imposto por dupla tributação internacional tanto na esfera do Requerente, bem como na esfera dos investidores;
  3. Assim sendo, considera a AT que, à luz do disposto no artigo 348.º do Código Civil, aquele que invocar direito estrangeiro, compete-lhe fazer prova da sua existência e conteúdo;
  4.  O Requerente não fez prova da discriminação proibida, pelo que só se pode defender a improcedência do pedido, por falta de prova da impossibilidade de neutralização da discriminação contestada;
  5. É manifesto que os atos de retenção na fonte de IRC, ora mediatamente controvertidos, devem ser mantidos na ordem jurídica, tendo ficado claramente demonstrado que a argumentação aduzida no pedido de pronúncia arbitral deverá improceder, não se reconhecendo, em consequência, o direito a quaisquer juros indemnizatórios.
  6.  A este propósito veja-se, ainda, o acórdão do STA, de 30/01/2019, no processo nº 0564/18.2BALSB, que uniformizou jurisprudência nos seguintes termos:

Para efeitos de pagamento de juros indemnizatórios ao contribuinte, nos termos do disposto no 43.º da LGT, não pode ser assacado aos serviços da AT qualquer erro que, por si, tenha determinado o pagamento de dívida tributária em montante superior ao legalmente devido, se não estava na disponibilidade da AT decidir de modo diferente daquele que decidiu por estar sujeita ao princípio da legalidade (cfr. art. 266.º, n.º 2, da CRP e art. 55.º da LGT) e não poder deixar de aplicar uma norma com fundamento em inconstitucionalidade, a menos que o TC já tenha declarado a inconstitucionalidade da mesma com força obrigatória geral (cfr. art. 281.º da CRP) ou se esteja perante violação de normas constitucionais directamente aplicáveis e vinculativas, como as que se referem a direitos, liberdades e garantias (cfr. art. 18.º, n.º 1, da CRP).

 

III. SANEAMENTO

 

  1. Em 12 de dezembro de 2024, ao abrigo dos princípios da autonomia do Tribunal Arbitral na condução do processo, da celeridade, simplificação e informalidade processuais previstos nos artigos 16.º, alínea c), 19.º e 29.º, n.º 2, todos do RJAT, foi proferido despacho arbitral, em 3 de Janeiro de 2025, a dispensar a realização da reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT e a conceder às partes a faculdade de apresentarem alegações finais escritas, no prazo simultâneo de 15 dias, o que a Requerida e o Requerente vieram a fazer em 14 de Janeiro de 2025, reiterando os argumentos já anteriormente apresentados.
  2.  Aliás a argumentação, sucintamente agora acabada de descrever, quer pelo Requerente, quer pela Requerida, já tinha sido deduzida de facto e de direito no decurso da reclamação graciosa apresentada pelo Requerente, em 20 de dezembro de 2022, estando agora em sede de PPA circunscrita apenas ao que diz respeito à controvertida retenção na fonte pela Requerida de uma taxa de 25% sobre o montante total dos dividendos, tal como o Requerente junto do CAAD e este tribunal arbitral coletivo o mencionou, por transposição, no  articulado h) do paragrafo primeiro, do titulo II, Argumentos das Partes, deste acórdão, situação circunscrita ao ano de 2021, sendo que a controvérsia, sobre o IRC se resolveu pelo reembolso da AT ao Requerente antes da interposição deste PPA junto do CAAD.
  3. Ficando em sede arbitral a sobredita questão relativa aos dividendos, não no montante de 15% uma vez que, por encontro de contas entre o reembolso do imposto já realizado em 25%, menos os 15%, nos indica que o reembolso do montante dos dividendos é igual a 187 589,98€, no valor de 10%   que o Requerente se arroga aqui em divida pela Requerida AT.

 

 

 

O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, nos termos n.º 1 do artigo 10.º do RJAT.

 

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 4.º, e 5.º, n.º 3, alínea b), todos do RJAT.

 

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, ambos do RJAT, e dos artigos 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.

 

O processo não padece de nulidades ou de quaisquer outros vícios que o invalidem, podendo prosseguir-se para a decisão sobre o mérito da causa.

 

 

IV. QUESTÃO DECIDENDA

 

A questão decidenda consiste em determinar a conformidade das normas relevantes do Código do IRC e do EBF em vigor à data dos factos tributários relativas ao regime de tributação dos dividendos auferidos por o OIC ora em causa, com os princípios estabelecidos no TFUE, em particular com o artigo 63.º do TFUE e da jurisprudência nacional e europeia que garante a liberdade de circulação de capitais entre Estados Membros e entre Estados Membros e países terceiros de acordo com o primado do direito europeu prevalecendo este sobre o direito interno dos Estados membros, cf. Costa vs. ENEL.

 

  V.1   DOS FACTOS PROVADOS

  1. Ficou provado que o ora Requerente é titular de um fundo de investimento constituído e a operar de acordo com direito norte americano, sendo sujeito passivo de IRC, não residente para efeitos fiscais em Portugal, e sem qualquer estabelecimento estável no país, sendo gerido pela B... LLC, sociedade residente para efeitos fiscais nos Estados Unidos da América (“EUA”). 
  2. O Requerente detém investimentos financeiros, consubstanciados na detenção de participações sociais em sociedades residentes para efeitos fiscais em Portugal, D..., SA e C... .
  3. O Requerente suportou em Portugal, nos anos de 2020 e 2021 a quantia total de imposto em IRC, no montante de €111.397,86 com retenção na fonte de imposto à taxa de 25%.
  4. O Requerente já obteve reembolso deste imposto retido na fonte em excesso (10%) nos termos do ADT entre Portugal e os EUA, no que diz respeito a 2020 em data anterior a este PPA.
  5. Pelo que em o que está em causa neste PPA diz respeito aos dividendos de 2021, e que
  6. Foram estes sujeitos a retenção na fonte à taxa de 25%, pela norma nacional.
  7. A 20 de dezembro de 2022, o Requerente apresentou reclamação graciosa dos atos de retenção na fonte identificados para apreciação da legalidade da retenção na fonte de IRC relativos aos anos de 2020 e 2021, tendo solicitado a anulação dos mesmos por vício de ilegalidade por violação direta do Direito da UE, bem como o reconhecimento do seu direito à restituição do imposto indevidamente suportado em Portugal, tendo a reclamação graciosa sido indeferida expressamente, em 24 de maio de 2024.
  8. No entretanto o Requerente já obteve o reembolso do imposto liquidado a mais no que se refere ao IRC, como se afirmou acima na alínea d.- factos provados.
  9. Fica provado que o que aqui está em causa é o reembolso dos dividendos retidos na fonte, em excesso, face à taxa prevista no ADT, correspondente a 10% da taxa prevista no ADT para os dividendos, que é de 15%,[viii] que foram entregues junto da AT, conforme formulário Modelo 21 RFI, referidos ao pagamento de dividendos no ano de 2021.

 

V.2 DOS FACTOS NÃO PROVADOS

Os factos dados como provados são aqueles que o Tribunal considera relevantes, não se considerando factualidade dada como não provada que tenha interesse para a decisão.

Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram assim selecionados e conformados em função da sua relevância jurídica, a qual é definida tendo em conta as várias soluções plausíveis das questões de direito para o objeto do litígio, tal como resulta do artigo 596.º, n.º 1 do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

 

Tendo em conta as posições assumidas pelas partes, o disposto nos artigos 110.º, n.º 7 e 115.º, n.º 1, ambos do CPPT, a prova documental e o PPA junto aos autos, consideraram-se provados com relevo para a decisão, os factos acima elencados.

 

 

V. 3 FUNDAMENTAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO DADA COMO PROVADA

 

 Relativamente à matéria de facto, o tribunal não tem de se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe sim o dever de selecionar os factos que importa, para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art.º 123.º, n.º 2 do CPPT e artigo 607.º, n.º 3, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e) do RJAT.

 

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. artigo 596.º do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT).

 

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes à luz do artigo 110.º, n.º 7 do CPPT, bem como o processo administrativo e a prova documental junta aos autos, consideram-se provados, com relevo para a decisão, os factos supra elencados.

 

VI. DO MÉRITO

 

No processo em análise cabe aferir da conformidade, ou não, da retenção na fonte em IRC de 25% sobre os dividendos a OIC’s estabelecido num país terceiro (EUA), quando simultaneamente se isenta de tributação a distribuição de dividendos a OIC’s estabelecidos e domiciliados em Portugal, em violação dos princípios estabelecidos no TFUE, em particular o artigo 63.º do TFUE que garante a liberdade de circulação de capitais entre Estados Membros e Países Terceiros.

Para tal começaremos por analisar as consequências do princípio do primado do direito da União Europeia e da sua aplicação direta, quer pelo Requerente, quer pela Requerida AT na análise do presente PPA.

Para tal, e no sentido de uniformização de jurisprudência do CAAD, pronunciada já em anteriores acórdãos sobre a questão decidenda, seguiremos de perto, entre outros, o Processo 727/2024-T, fazendo as alterações que se mostrarem adequadas no presente processo[ix].

 

 

 

 

VI.1 Do Princípio do Primado do Direito da União Europeia face à norma nacional.

 

1.É entendimento pacífico e unânime desde julho de 1964 que o Direito da UE, no que ao principio do primado da UE diz respeito é que o mesmo, prevalece sobre o direito ordinário nacional, quer esteja em causa legislação adotada anteriormente, quer estejam em causa atos legislativos (neste sentido, ver, o acórdão de 14 de julho de 1964, Costa vs Enel, C-65/64 e, ainda, acórdão do STA de 03.02.2016, tirado no processo n.º 01172/14).

2. O acórdão Simmenthal, TJUE, no processo 106/77, veio clarificar posteriormente que, o princípio do primado do Direito da União obriga todos os órgãos dos Estados Membros, incluindo as autoridades administrativas, a dar aplicação ao Direito da União e a não aplicar qualquer disposição contrária, sem necessidade de autorização prévia de um tribunal.

3. O primado do Direito da UE encontra ainda respaldo na CRP, cujo artigo 8.º, no n.º 4, estabelece que “[a]s disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respetivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático”.

4. A consequência jurídica do princípio do primado do Direito da UE é a não aplicação, em caso de conflito de leis, das disposições internas contrárias à disposição da norma comunitária, bem como a proibição da introdução de disposições de direito interno contrárias à legislação comunitária.

5. Sobre esta questão também já se pronunciou o STA, no seu acórdão (processo n.º 654/13), que transcrevemos parte

:  “(…) atento o primado do direito comunitário – que, aliás, a recorrente não questiona -, é vedado ao tribunal aplicar normas do direito nacional que afrontem o que naquele se impõe, sendo que, havendo acórdão interpretativo proferido pelo TJUE a decisão nele proferida retroage à data da entrada em vigor da respetiva norma (…).”., Comissão/Alemanha, C-284/09, parágrafo 56, de 17 de setembro de 2015, Miljoen e o., C-10/14, C-14/14 e C-17/14, parágrafo 67 e de 17 de março de 2022, AlliaznGI-Fonds AEVN, C-545/19).

5.Assim sendo, o entendimento sufragado por este tribunal arbitral coletivo não pode deixar de considerar que a haver colisão entre a norma nacional e a norma europeia sobre a mesma situação jurídica prevalece a norma europeia, jurisprudência acima citada e o acórdão do TJUE, AlliaznGI-Fonds AEVN, C-545/19, pelo que é neste entendimento jurídico que se analisará o mérito neste processo.

 

VI.2 Da Comparabilidade

 

6.  De facto, embora residentes e não residentes não estejam sempre numa situação comparável, são colocados nessa posição a partir do momento em que um Estado opte por exercer o seu poder de tributação sobre ambos.

7.  Efetivamente, a comparabilidade é aferida apenas tendo em consideração a extensão ou não da soberania tributária de um Estado aos contribuintes residentes num outro Estado, sendo irrelevante a eventual incidência de outros impostos, taxas ou tributos incidentes sobre os investimentos efetuados pelos OIC.

8 . Termos em que, nas palavras do TJUE, apenas se pode concluir que “[t]endo a República Portuguesa optado por exercer a sua competência fiscal sobre os rendimentos auferidos pelos OIC não residentes, estes encontram-se, por conseguinte, numa situação comparável à dos OIC residentes em Portugal no que respeita ao risco de dupla tributação económica dos dividendos pagos pelas sociedades residentes em Portugal (v., por analogia, Acórdão de 21 de junho de 2018, Fidelity Funds e o., C-480/16, EU:C:2018:480, n.° 56 e jurisprudência referida)” (cfr. AllianzGI-Fonds AEVN, C-545/19, parágrafo 67).

9.  Pelo que se impõe concluir em termos definitivos, em harmonia com o exposto pelo TJUE, que “a diferença de tratamento entre os OIC residentes e os OIC não residentes diz respeito a situações objetivamente comparáveis” (cfr. AllianzGI-Fonds AEVN, C-545/19, parágrafo 74).

10.  Ainda, no que respeita à justificação da existência de legislação interna restritiva, nomeadamente para assegurar a coerência do regime fiscal, entendeu o TJUE no referido processo AllianzGI-Fonds AEVN[x] que haveria de averiguar se existia alguma vantagem fiscal suscetível de compensar o tratamento desfavorável concedido a determinados contribuintes.

11Esclareceu o TJUE, no referido acórdão que “há que recordar que, embora o Tribunal de Justiça tenha declarado que a necessidade de preservar a coerência de um regime fiscal nacional pode justificar uma regulamentação nacional suscetível de restringir as liberdades fundamentais (v., neste sentido, Acórdão de 10 de maio de 2012, Santander Asset Management SGIIC e o., C-338/11 a C-347/11, EU:C:2012:286, n.° 50 e jurisprudência referida, e de 13 de março de 2014, Bouanich, C-375/12, EU:C:2014:138, n.° 69 e jurisprudência referida),

12Precisou, contudo, «para que um argumento baseado nessa justificação possa ser acolhido, é necessário que esteja demonstrada a existência de uma relação direta entre o benefício fiscal em causa e a compensação desse benefício por uma determinada imposição fiscal (v., neste sentido, Acórdão de 8 de novembro de 2012, Comissão/Finlândia, C-342/10, EU:C:2012:688), no local de residência da instituição beneficiária ( Portugal) poder ser justificado pelo facto de os OIC residentes estarem sujeitos a outra técnica de tributação e, por outro, se a apreciação da comparabilidade das situações dos OIC residentes e dos OIC não residentes para efeitos de determinar se existe uma diferença objetiva entre estes, de molde a justificar a diferença de tratamento instituída pela legislação desse Estado-Membro, deve ser efetuada apenas ao nível do veículo de investimento ou deve igualmente ter em conta a situação dos detentores de participações sociais” (cfr. AllianzGI-Fonds AEVN, C-545/19, parágrafo 29). para além daquilo que possa considerar-se uma interpretação razoável.”.

13.  No caso dos autos está provado que, em 2021, o Requerente auferiu dividendos distribuídos por sociedades comerciais com residência fiscal em território português, que foram sujeitos a uma taxa efetiva de IRC de 25%.

14. Resulta da legislação fiscal portuguesa, em especial do artigo 22.º, n.º 1, 3 e 10 do Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF), que os dividendos de fonte portuguesa pagos a OIC´S residentes em Portugal não são sujeitos nem a retenção na fonte, nem a tributação em sede de IRC.

15. Deste modo e também à luz da mais recente jurisprudência europeia foi confirmada pelo TJUE, em acórdão proferido em 17 de março de 2022, no processo n.º C-545/19 (AllianzGI-Fonds AEVN) –, Portugal ao sujeitar, à data dos factos tributários em análise, a retenção na fonte em IRC os dividendos distribuídos por sociedades residentes em Portugal aos OIC não residentes (in casu residentes nos Estados Unidos da América), simultaneamente isentando de tributação a distribuição de dividendos a OIC estabelecidos e domiciliados em Portugal viola, de forma frontal, o artigo 63.º do Tratado para o Funcionamento da União Europeia, pelo que não pode deixar de se entender que esta diferença de tratamento entre OIC´S residentes e não residentes tem por efeito dissuadir os OIC´S não residentes de investir em sociedades portuguesas.

16. Esta diferença de tratamento entre OIC´S residentes e não residentes tendo por efeito dissuadir os OIC´S não residentes de investir em sociedades portuguesas unicamente em função do lugar de residência dos OIC beneficiários, pelo que a situação fiscal dos detentores de participações destes últimos é desprovida de pertinência para efeitos de apreciação do carácter discriminatório ou não da referida regulamentação– Cfr. Casos C-338/11 a C-347/11, Santander Asset Management SGIIC SA, 10.05.2012

17. Mais se tem entendido que a comparabilidade das situações – entre OIC´S Residentes e Não Residentes relativamente a uma retenção na fonte de 25% sobre dividendos distribuídos a não residentes, reduzida a 15% por uma CDT, há-de ter em conta o exercício fiscal de distribuição dos dividendos para comparar a carga fiscal que incide sobre esses dividendos e a que incide sobre os dividendos distribuídos a uma sociedade residente – Cfr. Caso C-575/17, Sofina, Rebelco e Sidro, 22.11.2018;

18. À luz da jurisprudência europeia e nacional, a situação do Requerente e a de um fundo de investimento com sede em Portugal é comparável, na medida em que, em ambos os casos, os lucros realizados podem, em princípio, ser objeto de uma dupla tributação económica e de uma tributação fiscal (v., neste sentido, acórdãos de 12 de dezembro de 2006, Test Claimants in the FII Group Litigation, já referido, n.° 62; Haribo Lakritzen Hans Riegel e Österreichische Salinen, já referido, n.° 113; de 20 de outubro de 2011, Comissão/Alemanha, C-284/09, Colet., p. I-9879, n.° 56; e Santander Asset Management SGIIC;

19. Mais se tem entendido, contrariamente ao defendido pela AT, que para efeitos de comparabilidade, não é relevante a situação fiscal, mais ou menos vantajosa, que os fundos não residentes possam gozar nos respetivos Estados da residência ou ainda a situação fiscal individual dos respetivos investidores, já que do ponto de vista do Estado Membro os fundos residentes e não residentes estão numa situação comparável se ambos estão sujeitos à respetiva tributação (Vide Acórdão do STA, n.º 7/2024, de 26.02.2024).

20. Assim, não obstante o interesse que a tributação incidente sobre os investidores e não sobre os OIC´s possa ter, para efeitos de garantia da liberdade de circulação de capitais, em especial, para determinar se existe ou não discriminação em função da residência, a comparação tem de ser estabelecida entre OIC´S e não entre investidores individuais.

21.  Decorre da Lei comunitária que as liberdades de circulação de capitais e de estabelecimento requerem a igualdade de tratamento fiscal dos dividendos pagos a residentes e não residentes pelo Estado-Membro anfitrião, no caso de ambos estarem sujeitos a tributação de dividendos, como sucede no caso em análise.

22. No caso de fundos de investimento residentes nos EUA, país terceiro, de acordo com a CDT estabelecida entre Portugal e os EUA, o imposto retido na fonte, com carácter definitivo pode ser à taxa de 15%.

 E ainda se esclarece que,

23. O Requerente pode ter investidores estrangeiros, incluindo portugueses, e os fundos fiscalmente residentes em Portugal podem ter investidores estrangeiros, pelo que, o que deve relevar é o impacto direto que as normas tributárias têm na atividade dos fundos e não o efeito indireto na situação fiscal dos investidores individualmente considerados.

24. Acresce que o Requerente é o Fundo e não os investidores, sendo certo que a própria base legal portuguesa em análise (artigo 22.º do EBF) não estabelece nenhuma ligação entre o tratamento fiscal dos dividendos de origem nacional recebidos pelos OIC — residentes ou não residentes — e a situação fiscal dos seus detentores de participações.

25.É certo, como é o caso em analise, em que um OIC americano investiu em sociedades portuguesas, C...– SGPS, S.A. e na D... S.A.

26. Ora, o TJUE no acórdão que decorreu do processo de reenvio pelo CAAD relatou,

“o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se os artigos 56.° e 63.° TFUE devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma legislação de um Estado-Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes, a um OIC não residente, são objeto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção.

27. O TJUE interroga-se, por um lado, sobre a questão de saber se esse tratamento fiscal diferente em função do local de residência da instituição beneficiária pode ser justificado pelo facto de os OIC residentes estarem sujeitos a outra técnica de tributação e, por outro, se a apreciação da comparabilidade das situações dos OIC residentes e dos OIC não residentes para efeitos de determinar se existe uma diferença objetiva entre estes é  de molde a justificar a diferença de tratamento instituída pela legislação desse Estado-Membro, deve ser efetuada apenas ao nível do veículo de investimento ou deve igualmente ter em conta a situação dos detentores de participações sociais” (cfr. AllianzGI-Fonds AEVN, C-545/19, parágrafo 29).

Em resposta a esta questão o TJUE argumenta o seguinte:

 

VI. 3 Da Liberdade de circulação de Capitais

 

28. “O artigo 63.° TFUE [relativo à liberdade de circulação de capitais] deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado-Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um organismo de investimento coletivo (OIC) não residente serem objeto de retenção na fonte, ao passo que, os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção”.

29. Neste mesmo sentido vinham os tribunais arbitrais emitindo pronúncia de forma uniforme, designadamente, nos processos n.ºs 528/2019-T, 548/2019-T, 11/2020-T, 68/2020-T, 926/2019-T, 922/2019-T e 32/2021-T e reproduzimos:

30. O mesmo entendimento foi seguido pelos tribunais arbitrais em todos os processos que se encontravam suspensos a aguardar o veredito do TJUE que veio a ocorrer em março de 2022, e cuja suspensão foi, entretanto, levantada aquando da publicação do acórdão, AllianzGI-Fonds AEVN, C-545/19 que veio dar razão a Portugal sobre as questões de mérito que também aqui vão estar em juízo.

31. Em termos nacionais esta linha de entendimento foi mais recentemente firmada, em definitivo, por decisão uniformizadora de jurisprudência, proferida no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 28 de setembro de 2023, no âmbito do processo n.º 93/19.7BALSB, que transcreveremos, por neste processo se estar a avaliar as relações entre um Estado Membro (Portugal) e um país terceiro, (USA) para a qual solução desta jurisprudência se destina. E citamos:

Em particular no acórdão FII Group Litigation o TJUE deixou claro, que “(…) não pode ser aplicada uma restrição aos movimentos de capitais proibida pelo artigo 56.º CE, nem mesmo nas relações com os países terceiros” (cfr. processo C-446/04, de 12.12.2006).

32. No caso em tudo idêntico ao do presente pedido de pronúncia arbitral, o coletivo de árbitros do CAAD, em acórdão de 31.08.2023, processo n.º 11/2023-T, considerou, de forma unânime, que - a questão dos outros está suficientemente tratada e que tanto a jurisprudência nacional quanto a do TJUE fornecem indicações seguras quanto à desconformidade com o direito da União da disparidade do regime de tributação dos dividendos auferidos por organismos de investimento coletivo residentes e não residentes, que tem consagração nos n.ºs 1 e 10 do artigo 22.º do EBF.”.

33. Conforme tem sido entendido pelos Tribunais arbitrais constituídos no CAAD, e entre outros, o 727/2024-T, que seguimos de perto, transcrevemos:

A liberdade de circulação de capitais é garantida pelo artigo 63.º do TFUE como uma liberdade fundamental do mercado interno, dotada de relevância constitucional no âmbito do Direito da União Europeia, que impõe a proibição de todas as restrições aos movimentos de capitais entre Estados-membros e Estados membros e Países Terceiros;

34. Enquanto liberdade fundamental, a liberdade de circulação de capitais goza da primazia normativa sobre o direito interno, cabendo aos poderes públicos legislativos e administrativos a tomada das medidas internas de transposição, execução e aplicação, consoante os casos, do direito primário e secundário relevante, de forma a assegurar a efetividade da livre circulação de capitais.

35. Assim e em conclusão, transcrevemos pelo menos quatro aspetos fundamentais deste regime jurídico que se revestem de grande relevância hermenêutica e metódica para a correta interpretação do que se vem deixando dito e da sua concordância por este coletivo arbitral, que devem ser salientados a seguir:

O primeiro diz respeito à aplicabilidade direta do artigo 63.º TFUE e da inerente proibição de restrições injustificadas da liberdade de circulação de capitais.

 O segundo refere-se ao facto de as liberdades fundamentais do mercado interno terem como principais destinatários os Estados Membros, e Países Terceiros, como é o caso, que devem abster-se de adotar medidas legislativas, administrativas e jurisdicionais de restrição das mesmas.

 O terceiro aspeto prende-se com a relação de complementaridade – e por vezes de sobreposição – que a liberdade de circulação de capitais estabelece com as liberdades de circulação de mercadorias e de pessoas, a liberdade de estabelecimento e a liberdade de prestação de serviços.

Um quarto ponto tem que ver com o reforço progressivo da importância da liberdade de circulação de capitais no mercado interno, especialmente a partir da criação da União Económica e Monetária (UEM) em que um dos principais objetivos da UEM consiste, precisamente, em facilitar a livre transferência de capital entre os Estados-Membros e entre Estados Membros e países Terceiros, no quadro do mercado interno e das relações económicas e financeiras destes com Estados terceiros.

 A criação de um mercado interno supõe, por definição, a gradual e efetiva abolição dos diferentes mercados nacionais, em favor de um único mercado interno, de forma a potenciar o crescimento económico à escala europeia, através da mais fácil disponibilização de capital.

 

VI. 4 Da Discriminação Proibida

36. Concluindo-se pela comparabilidade da situação do Requerente e a de um OIC residente em Portugal, importa agora saber se a discriminação efetuada pela Lei portuguesa pode ser justificada, à luz da alínea b) do n.º 1 do artigo 65.º do TFUE, nomeadamente por se tratar de uma medida indispensável para impedir infrações às leis e regulamentos nacionais, nomeadamente, em matéria fiscal e de supervisão prudencial das instituições financeiras.

37. Ora, a alínea a) do artigo 65.º do TFUE prevê a possibilidade de os Estados-Membros aplicarem disposições pertinentes de direito fiscal que estabeleçam uma distinção entre contribuintes que não se encontrem em idêntica situação no que se refere ao lugar de residência ou ao lugar onde o capital é investido.

38. No entanto, essa previsão deve ser atenuada pelo requisito do artigo 65.º, n.º 3, do mesmo Tratado, segundo o qual qualquer exceção não pode constituir um meio de discriminação arbitrária nem uma restrição dissimulada à livre circulação de capitais e pagamentos, tal como definida pelo artigo 63.º do TFUE.

39. Ora, é o Estado português que no exercício da sua jurisdição fiscal, opta deliberadamente por diferenciar entre fundos residentes e fundos não residentes, isentando os primeiros da retenção de imposto sobre a distribuição de dividendos e sujeitando à mesma os segundos, colocando-os numa situação comparável, e em seguida tratando-os de forma diferente.

40. Essa diferenciação não é justificável à luz da prevenção da evasão fiscal, não é necessária, podendo ser conferido o mesmo tratamento aos residentes e não residentes, sendo certo que existem alternativas de tributação menos restritivas e potencialmente aplicáveis.

41. Neste caso, está-se perante uma discriminação arbitrária, pois não se vislumbra qualquer fundamento para o fazer, sendo certo que é a AT que defende que um OIC constituído ao abrigo da lei portuguesa e um Fundo de Investimento constituído ao abrigo das normas de outro Estado, não estão em situações comparáveis para efeitos de averiguar se existe um tratamento discriminatório em termos fiscais e uma clara restrição à liberdade de circulação de capitais;

42. Sucede que, atuando o ora Requerente segundo a legislação nacional, encontra-se, quanto à sua atividade geradora de tributação em IRC, em situação idêntica à das sociedades constituídas segundo o direito nacional.

43. Como entendeu o Supremo Tribunal Administrativo no acórdão de 08.02.2017, proferido no processo n.º 0678/16, “para que uma regulamentação fiscal possa ser considerada compatível com as disposições do Tratado relativas à livre circulação de capitais, é necessário que a diferença de tratamento diga respeito a situações não comparáveis objetivamente ou se justifique por razões imperiosas de interesse geral” e se “aquela restrição, substanciada em maior tributação de entidade não residente, não pode ser neutralizada, em concreto, por via da Convenção celebrada entre os Estados para evitar a dupla tributação”.

44. Alega a AT, mas não demonstra, no ato que fundamenta os atos de liquidação impugnados, isto é, na Decisão sobre a Reclamação Graciosa e agora na sua Resposta ao presente PPA que a não aplicação do regime do artigo 22.º do EBF se deve ao facto de ser possível ao Requerente neutralizar o efeito através da CDT entre Portugal e os EUA.

45. Na verdade, na decisão de indeferimento expresso impugnada, fundamenta a improcedência da reclamação graciosa pela não aplicação do artigo 22.º, n.º 1 do EBF ao Requerente, por falta de comparabilidade entre a situação do Requerente e de um residente em Portugal.

46. De harmonia com o exposto, não se considera possível a discriminação efetuada pela lei portuguesa entre OIC´S residentes e não residentes, com base no artigo 22.º, n.º 1, do EBF na parte em que limita o regime nele previsto a sociedades constituídas segundo a legislação nacional, excluindo das sociedades constituídas segundo legislações entre os Estados Membros da União Europeia e Países Terceiros.

47. Assim, tem de se concluir que os atos tributários subjudice enfermam de vício de violação de lei, que justifica a sua anulação, de harmonia, com o disposto no artigo 163.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo, subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 2.º, alínea c), da LGT.

48. Nestes termos, conforme resulta de tudo o exposto, verifica-se a desconformidade da aplicação da norma constante do artigo 87.º, n.º 4, do Código do IRC – da qual resultou uma retenção na fonte em IRC de 25%[xi] – sobre os dividendos distribuídos pelas sociedades, D... e H... residentes em Portugal ao Requerente (OIC residente nos EUA), com os princípios estabelecidos no TFUE, em particular com o artigo 63.º do TFUE que garante a liberdade de circulação de capitais.

49. Os deveres resultantes do primado do direito da União Europeia vinculam todas as entidades públicas, incluindo toda a administração pública e os tribunais nacionais.

50. Porque, na sua atuação, a AT aplicou as normas jurídicas nacionais em vigor, a despeito de as mesmas violarem o direito da União Europeia tal como vem sendo interpretado pelo TJUE, sendo a primazia do direito da União Europeia relativamente ao direito nacional uma primazia de aplicação e não uma primazia de validade, cabe a este tribunal arbitral coletivo desaplicar o direito nacional contrário ao direito da União Europeia, declarando a respetiva ilegalidade.

51. Julga-se, assim, procedente a pretensão do Requerente estando a AT obrigada à imediata e plena reconstituição da legalidade do ato ou situação objeto do litígio.

 

VII.     JUROS INDMINIZATÓRIOS

 

52. Nos termos do disposto na alínea b) do artigo 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a AT a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”, de acordo com o preceituado no artigo 100.º da LGT [aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT] que estabelece, que “a administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamação, impugnação judicial ou recurso a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da legalidade do ato ou situação objeto do litígio, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, se for caso disso, a partir do termo do prazo da execução da decisão”.

53. O n.º 5 do artigo 24.º do RJAT, ao estabelecer que “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”, deve ser entendido como permitindo o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios no processo arbitral.

54. Este entendimento decorre do princípio da tutela jurisdicional efetiva e da correspondente ampliação dos poderes conformadores da jurisdição administrativa e tributária.

55. No caso em apreço o Requerente tem o direito de ser reembolsado do imposto pago e juros indemnizatórios por força dos referidos artigos 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e 100.º da LGT, pois tal é essencial para “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado”.

56.Tendo sido apresentada reclamação graciosa dos atos subjudice em 20.12.2022, a data da notificação do indeferimento expresso da reclamação graciosa ocorreu em 28 de maio de 2024 e o PPA entrou na plataforma do CAAD em 26 de agosto de 2024.

57. No que concerne aos juros indemnizatórios, cabe ainda apreciar esta pretensão à luz do artigo 43.º da Lei Geral Tributária.

Dispõe o n.º 1 daquele artigo que “São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”.

Considerou-se no acórdão do STA de 8 de março de 2017, proferido no proc. 01019/14, em sintonia com jurisprudência constante do mesmo Tribunal, o seguinte:

“Sobre o denominado “erro imputável aos serviços” tem a jurisprudência desta secção, uniforme e reiteradamente afirmado que o respetivo conceito compreende não só o lapso, o erro material ou o erro de facto, como também o erro de direito, e que essa imputabilidade é independente da demonstração da culpa dos funcionários envolvidos na liquidação afetada pelo erro (Vide, entre outros, os seguintes Acórdãos da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo: de 12.02.2001, recurso nº 26.233, de 11.05.2005, recurso 0319/05, de 26.04.2007, recurso 39/07, de 14.03.2012, recurso 01007/11 e de 18.11.2015, recurso 1509/13, todos in www.dgsi.pt.).”

58. Por outro lado, consta do acórdão TJUE de 4 de dezembro de 2018, no processo C-378/17, em linha com a jurisprudência do mesmo Tribunal aí referida:

38Como diversas vezes afirmou o Tribunal de Justiça, a referida obrigação de não aplicar uma legislação nacional contrária ao direito da União incumbe não só aos órgãos jurisdicionais nacionais mas também a todos os órgãos do Estado, incluindo as autoridades administrativas, encarregados de aplicar, no âmbito das respetivas competências, o direito da União (v., neste sentido, Acórdãos de 22 de junho de 1989, Costanzo, 103/88, EU:C:1989:256, n.o31; de 9 de setembro de 2003, CIF, C‑198/01, EU:C:2003:430, n.o 49; de 12 de janeiro de 2010, Petersen, C‑341/08, EU:C:2010:4, n.o 80; e de 14 de setembro de 2017, The Trustees of the BT Pension Scheme, C‑628/15, EU:C:2017:687, n.o 54).

Daqui resulta que o princípio do primado do direito da União impõe-se, não só, aos órgãos jurisdicionais mas a todas as instâncias do Estado-Membro que confiram plena eficácia às normas da União.”

Na decisão do processo The Trustees of the BT Pension Scheme, C‑628/15, pode também ler-se:

há que recordar que, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, tanto as autoridades administrativas como os órgãos jurisdicionais nacionais encarregados de aplicar, no âmbito das respetivas competências, as disposições do direito da União têm a obrigação de garantir a plena eficácia dessas disposições e de não aplicar, se necessário pela sua própria autoridade, qualquer disposição nacional contrária, sem pedir nem aguardar pela eliminação prévia dessa disposição nacional por via legislativa ou por qualquer outro procedimento constitucional (v., neste sentido, relativamente às autoridades administrativas, acórdãos de 22 de junho de 1989, Costanzo, 103/88, EU:C:1989:256, n.o 31, e de 29 de abril de 1999, Ciola, C-224/97, EU:C:1999:212, n.os 26 e 30, e, relativamente aos órgãos jurisdicionais, acórdãos de 9 de março de 1978, Simmenthal, 106/77, EU:C:1978:49, n.º 24, e de 5 de julho de 2016, Ognyanov, C‑614/14, EU:C:2016:514, n.o 34).»

 

59. Na doutrina nacional, refere Fausto de Quadros:

“(…) temos a obrigação para a Administração Pública de recusar a aplicação de normas ou actos nacionais contrários ao Direito Comunitário, e de aplicar este mesmo contra Direito nacional de sentido contrário, conforme doutrina acolhida, de forma modelar no caso Factortame, já referido neste livro por diversas vezes. A Administração Pública vai ter, ainda mais do que o legislador, a necessidade de levar essa doutrina em conta no desempenho da sua missão de aplicar o Direito.”

No mesmo sentido, vai Miguel Gorjão-Henriques, que sobre o princípio do primado do direito comunitário escreve:

”(…) indubitavelmente, a dimensão clássica do princípio é aquela que, com clareza, nos enuncia Rostane MEHDII, ao salientar que o juiz e a administração têm a obrigação de «excluir as regras internas adoptadas em violação da legalidade comunitária”

60. Nesta conformidade, estando a Requerida obrigada a desaplicar o direito nacional contrário ao direito da União, a não observância de tal dever consubstancia de erro de direito imputável aos serviços.

61. Assim tem concluído, pacificamente, a jurisprudência nacional, pois, como se pode ler no acórdão do STA proferido em 19.11.2014, no processo 0886/14:

“desde há muito entendido este Supremo Tribunal de forma pacífica que existindo um erro de direito numa liquidação efetuada pelos serviços da administração tributária, e não decorrendo essa errada aplicação da lei de qualquer informação ou declaração do contribuinte, o erro em questão é imputável aos serviços, pois tanto o n.º 2 do artigo 266° da Constituição como o artigo 55° da Lei Geral Tributária estabelecem a obrigação genérica de a administração tributária atuar em plena conformidade com a lei, razão por que qualquer ilegalidade não resultante de uma atuação do sujeito passivo será imputável à própria Administração, sendo que esta imputabilidade aos serviços é independente da demonstração da culpa de qualquer um dos funcionários envolvidos na emissão do ato afectado pelo erro, conforme se deixou explicado, entre outros, no acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Administrativo em 12/12/2001, no recurso n.º 026233, pois «havendo erro de direito na liquidação, por aplicação de normas nacionais que violem o direito comunitário e sendo ela efectuada pelos serviços, é à administração tributária que é imputável esse erro, sempre que a errada aplicação da lei não tenha por base qualquer informação do contribuinte. Por outro lado, esta imputabilidade aos serviços é independente da culpa de qualquer dos seus funcionários ao efectuar liquidação afectada por erro» já que «a administração tributária está genericamente obrigada a actuar em conformidade com a lei (arts. 266°, n.° 1 da CRP e 55° da LGT), pelo que, independentemente da prova da culpa de qualquer das pessoas ou entidades que a integram, qualquer ilegalidade não resultante de uma actuação do sujeito passivo será imputável a culpa dos próprios serviços. - cfr., por todos, o Acórdão deste STA de 14 de Março de 2012, rec. n.º 1007/11, e numerosa jurisprudência aí citada.”

62. Deste modo, no caso sub judice, à luz da jurisprudência e doutrina referidas, não estando a Requerida exonerada do dever de aplicação do primado do direito europeu, não poderá deixar de proceder o pedido de condenação quanto aos juros indemnizatórios, com fundamento em erro imputável aos serviços que se verificou, pelo menos, na data da decisão que indeferiu a reclamação graciosa.

 

VIII – DECISÃO

 

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:

1) Anular os atos tributários de retenção na fonte, por violação da liberdade de circulação de capitais consagrada no artigo 63.º do TFUE;

2) Condenar a Requerida à restituição da quantia de €187 589,98 relativa a retenções na fonte de IRC suportadas em Portugal sobre dividendos distribuídos no ano de 2021, ao abrigo do disposto nos artigos 87.º n.º 4) e 94.º, ambos, do Código do IRC e 22.º do EBF;

3) Condenar a Requerida no pagamento de juros indemnizatórios, contados nos termos conjugados dos artigos 43.º n.º 1 da LGT e artigo 61.º, n.º 5 do CPPT, ex vi  artigo 29.º do RJAT.

 

IXVALOR DO PROCESSO

Fixa-se o valor do processo em 187 589,98€, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 3 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

XCUSTAS

 

Nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, as custas são no valor de 3.672,00€, a cargo da Requerida, conforme o disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 4, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem.

 

Lisboa, 31 de março de 2025

 

O Tribunal Arbitral Coletivo,

 

José Poças  Falcão

(Presidente)

 

Maria Alexandra Mesquita

(Árbitra Adjunta e Relatora)

 

 

Fernando Miranda Ferreira

(Árbitro Adjunto)

 



 

 

[i] Do ano 2020 e 2021. Aqui trataremos da questão posta pelo Requerente relativamente aos dividendos (2021) sendo que relativamente ao imposto foi o mesmo reembolsado, em tempo, pela Requerida AT.

[ii]25%+15%=30%. Devolvido os 25% do imposto, por encontro de contas dá que 25% - 15% da taxa de ADT a liquidar e pagar = 10%, que corresponde ao montante a pagar no processo ora em juízo = 187.589,98 euros.

[iii] Os sublinhados longos, são nossos.

[iv]Acordo de Dupla Tributação, decorrente da CDT ou ADT.

[v] : Acórdão do STA de 28 de setembro de 2023, no Processo n.º 93/19.7BALSB — Pleno da 2.ª Secção Uniformiza a Jurisprudência nos seguintes termos: «1 — Quando um Estado Membro escolhe exercer a sua competência fiscal sobre os dividendos pagos por sociedades residentes unicamente em função do lugar de residência dos Organismos de Investimento Coletivo (OIC) beneficiários, a situação fiscal dos detentores de participações destes últimos é desprovida de pertinência para efeitos de apreciação do carácter discriminatório, ou não, da referida regulamentação; 2 — O art.º 63, do TFUE, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado -Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um OIC não residente são objeto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção; 3 — A interpretação do art.º 63, do TFUE, acabada de mencionar é incompatível com o art.º 22, do E.B.F., na redação que lhe foi dada pelo Decreto -Lei n.º 7/2015, de 13/01, na medida em que limita o regime de isenção nele previsto aos OIC constituídos segundo a legislação nacional, dele excluindo os OIC constituídos segundo a legislação de outros Estados Membros da União Europeia.» Acórdão do STA de 28 de setembro de 2023.

[vi] Estatuto dos Benefícios Fiscais.

[vii]Diretiva OICVM – transposta para o direito interno pelo Decreto-lei n.º 63-A, de 10 de maio 2013.

[viii] 25%-10%=15% - valor da percentagem a reter na fonte desde que comprovada a residência do Requerente nos EUA através da entrega do modelo 21-RFI, previsto na Convenção para Evitar a Dupla Tributação, celebrada entre Portugal e os EUA, assinada em 6 de outubro de 1974 e aprovada pelo Decreto Lei n. 39/96 de 26 de setembro. Total dos dividendos a recuperar, 10%.  Valor do processo ora em causa.

[ix] Ver, entre outros: Processos CAAD nºs 297/2024-T, 28/2021-T, 528/2019-T, 926/2019-T, 12/2023-T e 816/2023-T.

 

[x] Ver, neste sentido, Acórdão de 10 de maio de 2012, Santander Asset Management SGIIC e o., C-338/11 a C-347/11, EU:C:2012:286, n.° 50 e jurisprudência referida, e de 13 de março de 2014, Bouanich, C-375/12, EU:C:2014:138, n.° 69 e jurisprudência referida.

Entre outros, ver,  Processos CAAD nºs 297/2024-T,  28/2021-T,  528/2019-T,  926/2019-T, 12/2023-T e 816/2023-T.