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SUMÁRIO:
I - O artigo 63.° do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE) deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado-Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um organismo de investimento coletivo (OIC) não residente são objeto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção.
II - Os nºs. 1 e 10 do artigo 22.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais, ao limitarem o regime neles previsto a Organismos de Investimento Coletivo constituídos segundo a legislação nacional, estabelecem uma discriminação arbitrária, configurando uma restrição à livre circulação de capitais no espaço da União Europeia, proibida pelo artigo 63.º do TFUE.
DECISÃO ARBITRAL
I. RELATÓRIO
A... SICAV, sociedade de direito luxemburguês, com sede em ..., ..., Grão-Ducado do Luxemburgo, titular do número de identificação fiscal português (adiante designada “Requerente”), que tem como sociedade gestora F... S.A., sociedade de direito luxemburguês, com sede em ..., ..., Grão-Ducado do Luxemburgo, vem, ao abrigo do disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20/01 (adiante abreviadamente designado por RJAT) e nos artigos 1.º, alínea a) e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22/03, requerer a constituição de tribunal arbitral tendo por objeto a decisão de indeferimento proferida pelo Chefe de Divisão da Direção de Finanças de Lisboa, sobre a Reclamação Graciosa apresentada pela Requerente, contra os Atos de Retenção na Fonte do ano de 2022, adiante melhor identificados, tendo igualmente por objeto estes atos propriamente ditos.
O pedido é de que seja anulada a decisão de indeferimento que recaiu sobre a Reclamação Graciosa referente aos atos de retenção na fonte de IRC praticados no ano 2022, sejam anulados os próprios atos de retenção na fonte, no montante de € 40.948,45, por manifesta violação de lei e, em concreto, do disposto no artigo 22.º do EBF e dos artigos 49.º e 63.º do TFUE e que, em face dessas anulações, seja a Requerente reembolsada do valor das retenções na fonte indevidamente suportadas (€ 40.948,45), acrescido do pagamento de juros indemnizatórios, calculados sobre esse montante, desde a data do pagamento, à taxa de 4% ao ano, nos termos do disposto nos artigos 35.º, n.º 10 e 43.º, n.º 4 da LGT, 559.º do Código Civil e da Portaria n.º 291/03, de 8 de abril.
É demandada a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA, doravante referida por “AT” ou “Requerida”.
Em 21 de Agosto de 2024, o pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e, automaticamente, notificado à AT.
Em conformidade com o disposto nos artigos 5.º, n.º 2, alíneas a) e b), 6.º, n.º 1, e 11.º, n.º 1, alínea a), todos do RJAT, o Exmo. Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou o árbitro deste Tribunal Arbitral, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável. As Partes, notificadas dessa designação, não manifestaram vontade de a recusar (artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e c), do RJAT e artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD).
O Tribunal Arbitral ficou constituído em 28 de Outubro de 2024.
Notificada para o efeito, a Requerida apresentou Resposta, em 02-12-2024, na qual se defende por impugnação, e juntou o Processo Administrativo (PA), bem assim quatro documentos (Declaração M30 e Guias de Retenção na Fonte), mencionados nos arts 6.º a 10.º daquele articulado.
Em 11-12-2024, proferiu-se despacho a dispensar a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, facultando às partes a apresentação de alegações escritas, com a menção de que nelas poderia a Requerente exercer o contraditório, quanto ao alegado nos itens 6 a 10 da Resposta oferecida pela AT.
Requerente e Requerida apresentaram alegações, em 13-01-2025 e em 14-01-2025, respectivamente, nas quais mantiveram e / ou desenvolveram as posições já anteriormente defendidas.
II. Saneamento
O Tribunal foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria para conhecer das pretensões aqui formuladas, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 2, alíneas a) e b), 6.º, n.º 1, e 11.º, n.º 1, alínea a), b) e c) todos do RJAT.
As partes estão devidamente representadas, gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
A acção é tempestiva, tendo o pedido de pronúncia arbitral sido apresentado no prazo de 90 dias previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, de acordo com a remissão operada para o artigo 102.º, n.º 1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”).
III. Fundamentação de Facto
1. Matéria de Facto Provada
Com relevo para a decisão, importa atender aos seguintes factos que se julgam provados:
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A Requerente é uma sociedade anónima constituída em 2002 ao abrigo das leis do Grão-Ducado do Luxemburgo e com sede neste Estado-Membro da União Europeia, a qual reveste a forma de Société d’Investissement à Capital Variable ou simplesmente SICAV (Doc. n.º 2 junto com o PPA, que aqui se dá por reproduzido).
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A Requerente é uma sociedade residente, para efeitos fiscais, no Luxemburgo, conforme resulta expresso do certificado de residência fiscal, datado de 20 de dezembro de 2023, emitido pelas autoridades competentes daquele Estado-Membro (Doc. n.º 3 junto com o PPA, que aqui se dá por reproduzido).
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A Requerente segue, na sua constituição e funcionamento, as regras previstas na Diretiva 2009/65/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de julho, relativa a Organismos de Investimento Coletivo em Valores Mobiliários, que foi transposta para o ordenamento jurídico luxemburguês por intermédio da Lei de 17 de dezembro de 2010 (não controvertido).
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No Estado-Membro de residência (Luxemburgo), a Requerente beneficia de uma isenção em matéria de impostos sobre o rendimento, a qual se encontra prevista no artigo 173.º, n.º 1, da referida Lei de 17 de dezembro de 2010 (Facto não controvertido que resulta diretamente da lei aplicável e § 12.1 do Doc. n.º 15 junto com o PPA, que aqui se dá por reproduzido).
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No exercício da sua atividade, a Requerente realiza investimentos e detém participações sociais em entidades consideradas residentes, para efeitos fiscais, em Portugal, os quais, no ano de 2022, geraram o pagamento à Requerente dos dividendos melhor identificados no quadro infra:
(Docs. n.ºs 4 a 10 juntos com o PPA, que aqui se dão por reproduzidos).
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Os dividendos pagos à Requerente por essas sociedades, no ano de 2022, foram sujeitos a tributação, em sede de IRC, por meio de retenção na fonte, a título liberatório ou definitivo, à taxa de 15% prevista no artigo 10.º, n.º 2, da Convenção celebrada entre Portugal e o Grão-Ducado do Luxemburgo para Evitar a Dupla Tributação e Prevenir a Evasão Fiscal em Matéria de Impostos sobre o Rendimento e o Património (“CDT”), tendo sido então apurado e entregue ao Estado Português um total de imposto de € 40.948,45 (cits. Docs. n.ºs 4 a 10 juntos com o PPA e não controvertido).
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A efetiva retenção na fonte e entrega do imposto nos cofres do Estado Português foi efetuada pela entidade detentora da custódia dos títulos, o E...– Sucursal em Portugal (NIF...), através do mecanismo da substituição tributária, tendo o montante de imposto retido sido entregue através das guias n.ºs n.º ... ... ..., referentes a abril, maio e setembro de 2022 (cit. Doc. n.º 10[1] junto com o pedido de pronúncia arbitral e não controvertido).
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A isenção de impostos sobre o rendimento de que a Requerente goza no seu Estado de residência (Luxemburgo) obstou a que pudesse neutralizar, seja por via do reembolso, de um crédito de imposto ou de qualquer outro mecanismo, a tributação sofrida em Portugal (cits. Docs. 10 e 15, juntos com o PPA).
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Em 16.02.2024, a Requerente apresentou uma Reclamação Graciosa, junto do Serviço de Finanças de Lisboa-..., contra os Atos de Retenção na Fonte relativos ao ano de 2022 e acima identificados, pugnando pela anulação dos mesmos, bem como pela restituição do imposto indevidamente retido/pago (Doc. n.º 11 junto com o PPA e PA, que aqui se dão por reproduzidos).
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Tal Reclamação Graciosa viria a ser indeferida, com os fundamentos constantes do Projecto de Decisão, transpostos para Despacho do Chefe de Divisão da Direção de Finanças de Lisboa, datado de 17-05-2024 e notificado a 21-05-2024 (Docs n.ºs 1 e 12 juntos com o PPA, que aqui de dão por reproduzidos).
-
Da Decisão de indeferimento da Reclamação Graciosa ficou a constar, além do mais, o seguinte:
“(...)
V – ANÁLISE DO PEDIDO E PARECER
Fazendo um enquadramento tributário da matéria controvertida dir-se-á que:
1. O Reclamante, não residente fiscal em Portugal e sem estabelecimento estável, é sujeito passivo de IRC, nos termos do disposto na al. c) do n.º 1 do art.º 2.º do CIRC, incidindo o imposto apenas sobre os rendimentos obtidos em território nacional (país da fonte), nos termos da al. d) do n.º 1 do art.º 3 e n.º 2 do art.º 4.º, ambos do CIRC, objeto de retenção na fonte a título definitivo ou liberatório, na data da verificação do facto tributário (pagamento ou colocação à disposição dos rendimentos), cujas importâncias retidas devem ser entregues nos cofres do Estado até ao dia 20 do mês seguinte àquele em que forem deduzidas, nos termos da al. c) do n.º 1, al. b) do n.º 3, n.º 5 e n.º 6, todos do art.º 94.º do CIRC.
2. Quanto à desconformidade do regime previsto no art.º 22.º do EBF com o Direito da União Europeia, cumpre dizer o seguinte:
3. Através do Decreto-Lei n.º 7/2015, de 13 de janeiro, procedeu-se à reforma do regime de tributação dos Organismos de Investimento Coletivo (OIC), alterando, com interesse para o caso em apreço, a redação do art.º 22.º do EBF, aplicável aos rendimentos obtidos por fundos de investimento mobiliário e imobiliário e sociedades de investimento mobiliário e imobiliário, que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional, conforme resulta do n.º 1 do art.º 22.º do EBF, e Circular n.º 6/2015.
4. Com a nova redação, o legislador estabeleceu que, para esses sujeitos passivos de IRC, (i) não são considerados, na determinação do lucro tributável, os rendimentos de capitais, prediais e mais-valias referidos nos art.ºs 5.º, 8.º e 10.º do CIRS, conforme resulta do n.º 3 do referido art.º 22.º do EBF, (ii) estão isentos das derramas municipal e estadual (n.º 6) e, (iii) estabeleceu ainda uma dispensa da obrigação de efetuar a retenção na fonte de IRC relativamente aos rendimentos por si obtidos (art.º 22.º n.º 10 do EBF).
5. Tal regime não é aplicável ao Reclamante - pessoa coletiva constituída de acordo com a legislação do Luxemburgo, por falta de enquadramento com o disposto no n.º 1 do art.º 22.º do EBF, conforme entendimento sancionado superiormente.
6. A consagração da liberdade de circulação dos capitais e, consequentemente, a proibição de adoção de medidas restritivas da mesma, encontra-se consagrada nos art.ºs 63.º e seguintes do TFUE, concretização do art.º 18.º do TFUE, e é aplicável tanto entre Estados-membros como entre Estados-membros e Estados-terceiros, ou seja, que não integram a UE.
Vejamos;
7. Efetivamente, o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) pronunciou-se sobre tal exclusão, através do acórdão proferido no processo n.º C – 545/19 de 17 de março de 2022, do qual resulta que «O artigo 63.º TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um organismo de investimento coletivo (OIC) não residente são objeto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção.»
8. De notar que, o legislador prevê no n.º 10 do art.º 22.º do EBF uma dispensa (e não uma isenção) da obrigação de efetuar a retenção na fonte de IRC relativamente aos rendimentos obtidos pelos OIC constituídos e que operem de acordo com a legislação nacional (n.º 1).
9. Todavia, não cabe à AT invalidar ou desaplicar o direito nacional em consequência de decisões do TJUE, substituindo-se ao legislador para além daquilo que possa considerar-se uma interpretação razoável.
10. Evidenciando-se que, a interpretação do direito europeu constante das decisões jurisprudenciais é vinculativa para os órgãos jurisdicionais, mas não afastam a vigência legal das normas consideradas pelo TJUE como contrárias ao direito europeu.
11. E, no que diz respeito aos OIC não residentes (que não disponham de um estabelecimento estável em território português), os mesmos não têm enquadramento na atual previsão do n.º 1 do art.º 22.º do EBF e, consequentemente, dos n.ºs 2, 3 e 10 da referida norma legal.
12. Na esteira do Acórdão do TJUE, no âmbito do n.º 10 do art.º 22.º do EBF, estão incluídos OIC constituídos nos demais Estados-membros e, por maioria de razão, os OIC constituídos nos demais Estados-Membros da UE e que operem em território português através de um estabelecimento estável aqui situado.
13. Pelo que, nos parece viável uma interpretação jurídica conforme ao direito europeu, segundo a qual no âmbito da dispensa de retenção, estarão incluídos os OIC constituídos nos demais Estados-Membros da UE e que operem em território português através de um estabelecimento estável aqui situado.
14. Ora, no caso em apreço, conforme informado, o Reclamante é não residente fiscal (Luxemburgo) e não dispõe de estabelecimento estável em Portugal, pelo que, não se encontra enquadrado no n.º 1 do art.º 22.º do EBF.
15. Pelo exposto, é de indeferir o pedido.
(...)”
-
O presente PPA foi apresentado em 19 de Agosto de 2024 (SGP do CAAD).
2. Factos não Provados
Não há factos relevantes para decisão da causa que não se tenham provado.
3. Motivação da Decisão de Facto
Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, em face das soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2 do CPPT, 596.º, n.º 1 e 607.º, n.º 3 do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e) do RJAT, não tendo o Tribunal de se pronunciar sobre todas as alegações das Partes.
Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja validade terá de ser aferida em relação à concreta matéria de facto consolidada.
A convicção do Tribunal fundou-se na análise do Processo Administrativo (PA), mormente em documentos dele constantes, e nos documentos juntos pela Requerente, conforme está refectido em relação a cada facto considerado provado.
IV. FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
1. QUESTÃO A DECIDIR
O objeto do litígio é, conforme enunciado, a decisão de indeferimento proferida pelo Chefe de Divisão da Direção de Finanças de Lisboa sobre a Reclamação Graciosa apresentada pela Requerente contra os Atos de Retenção na Fonte do ano de 2022 e, também, contra estes atos propriamente ditos.
A questão a decidir é a de saber se o entendimento da AT, segundo o qual o disposto no artigo 22.º, n.º 10 do EBF apenas é aplicável aos Organismos de Investimento Colectivo residentes em Portugal e aos que, não sendo residentes, operem através de estabelecimento estável aqui situado, consubstancia um tratamento discriminatório injustificado e, nessa medida, uma restrição à livre circulação de capitais, nos termos em que se encontra proibida pelo artigo 63.º do TFUE.
A AT sustenta a sua posição com os fundamentos exarados no Despacho de indeferimento da Reclamação Graciosa (RG), que se transcrevem no Facto Provado K) e que traduz para a Resposta, alegando e concluindo, sucintamente:
- Assim, um OIC constituído ao abrigo da lei portuguesa e um Fundo de Investimento constituído ao abrigo das normas de outro Estado Membro, não estão em situações comparáveis para efeitos de averiguar se existe um tratamento discriminatório em termos fiscais e uma clara restrição à liberdade de circulação de capitais.
- O regime fiscal aplicável aos OIC constituídos ao abrigo da legislação nacional, embora consagre a isenção dos dividendos distribuídos por sociedades residentes, não afasta a tributação desses rendimentos por outras formas, seja por tributação autónoma, seja em imposto do selo, quando os mesmos rendimentos integram o valor líquido destes organismos, logo, não pode afirmar-se que, em substância, as situações em que se encontram aqueles OIC e os Fundos de Investimentos constituídos e estabelecidos noutros Estados-Membros que auferem dividendos com fonte em Portugal, sejam objetivamente comparáveis.
- Assim, não pode concluir-se que o regime fiscal dos OIC – que não se contém em exclusivo no n.º 3 do artigo 22.º do EBF – esteja em conformidade com as obrigações que decorrem do artigo 63.º do TFUE.
- Por conseguinte, a retenção na fonte efetuada sobre os dividendos pagos à Requerente respeita o disposto na legislação nacional e na convenção para evitar a dupla tributação, devendo
ser mantida na ordem jurídica.
Por seu turno, a Requerente pugna pelo entendimento contrário, argumentando em resumo:
- Os dividendos de fonte portuguesa auferidos no ano de 2022 deveriam ter sido sujeitos ao regime previsto no artigo 22.º do EBF, ao abrigo do qual tais rendimentos não seriam sujeitos a tributação em sede de IRC.
- A tese sustentada pela AT, a prevalecer, geraria um tratamento discriminatório injustificado entre residentes e não residentes, consubstanciando, nessa medida, uma entrave à concretização do princípio da livre de circulação de capitais, consagrado com caráter erga omnes no artigo 63.º do TFUE.
- Assim, um organismo de investimento coletivo constituído e a operar em conformidade com a legislação portuguesa – rectius, um residente – não é tributado “à entrada” pelos dividendos resultantes de investimentos realizados em sociedades residentes em Portugal, nem tão-pouco serão tributados “à saída” os respetivos investidores não residentes (salvo determinadas exceções, in casu inaplicáveis) na medida em que se trata de um organismo de investimento coletivo de natureza mobiliária.
- Em sentido inverso, um organismo de investimento coletivo constituído e domiciliado noutro Estado-Membro – como o Grão-Ducado do Luxemburgo – ou num país terceiro que realize investimentos do mesmo tipo em Portugal será objeto de tributação “à entrada” – por retenção na fonte de IRC a título liberatório ou definitivo – quanto aos rendimentos aqui obtidos (cf. artigos 87.º, n.º 4, e 94.º, n.ºs 3, alínea b), e 5, do CIRC).
2 – APRECIAÇÃO
Convocam-se para decidir, basicamente, as seguintes normas:
DO TRATADO SOBRE O FUNCIONAMENTO DA UNIÃO EUROPEIA (TFUE),
Artigo 63.º
“1. No âmbito das disposições do presente capítulo, são proibidas todas as restrições aos movimentos de capitais entre Estados-Membros e entre Estados-Membros e países terceiros.
2. No âmbito das disposições do presente capítulo, são proibidas todas as retenções aos pagamentos entre Estados-Membros e países terceiros.”
Artigo 65.º
“1. O disposto no artigo 63.º não prejudica o direito de os Estados-Membros:
a) Aplicarem as disposições pertinentes do seu direito fiscal que estabeleçam uma distinção entre contribuintes que não se encontrem em idêntica situação no que se refere ao seu lugar de residência ou ao lugar em que o seu capital é investido;
b) Tomarem todas as medidas indispensáveis para impedir infrações às suas leis e
regulamentos, nomeadamente em matéria fiscal e de supervisão prudencial das instituições
financeiras, preverem processos de declaração dos movimentos de capitais para efeitos de
informação administrativa ou estatística, ou tomarem medidas justificadas por razões de ordem
pública ou de segurança pública.
2 - O disposto no presente capítulo não prejudica a possibilidade de aplicação de restrições ao direito de estabelecimento que sejam compatíveis com os Tratados.
3. As medidas e procedimentos a que se referem os n.ºs 1 e 2 não devem constituir um meio de discriminação arbitrária, nem uma restrição dissimulada à livre circulação de capitais e pagamentos, tal como definida no artigo 63.º.
(...)”
DO ESTATUTO DOS BENEFÍCIOS FISCAIS (EFB),
Artigo 22.º - Organismos de Investimento Coletivo (Redação do artigo 2.º do DL n.º 7/2015, de 13 de janeiro)
1 - São tributados em IRC, nos termos previstos neste artigo, os fundos de investimento mobiliário, fundos de investimento imobiliário, sociedades de investimento mobiliário e sociedades de investimento imobiliário que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional.
(...)
3 - Para efeitos do apuramento do lucro tributável, não são considerados os rendimentos referidos nos artigos 5.º, 8.º e 10.º do Código do IRS, exceto quando tais rendimentos provenham de entidades com residência ou domicílio em país, território ou região sujeito a um regime fiscal claramente mais favorável constante de lista aprovada em portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças, os gastos ligados àqueles rendimentos ou previstos no artigo 23.º-A do Código do IRC, bem como os rendimentos, incluindo os descontos, e gastos relativos a comissões de gestão e outras comissões que revertam para as entidades referidas no n.º 1.
(...)
10 - Não existe obrigação de efetuar a retenção na fonte de IRC relativamente aos rendimentos obtidos pelos sujeitos passivos referidos no n.º 1.
(...)”
No âmbito do processo C-545/19 (AllianzGI-Fonds AEVN), de 17 de Março de 2022, por sinal originado num pedido de reenvio prejudicial formulado pelo tribunal arbitral constituído no CAAD para o processo n.º 93/2019-T, no qual estava em causa um pedido de anulação de atos de retenção na fonte de IRC sobre dividendos pagos entre 2015 e 2016 a um organismo de investimento coletivo constituído ao abrigo da legislação alemã, estando este isento de imposto sobre o rendimento na jurisdição de residência e, por isso, não podendo neutralizar a tributação sofrida em Portugal por meio de retenção na fonte, como sucede no caso em apreço, o TJUE pronunciou que
“O artigo 63.º TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado-Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um organismo de investimento coletivo (OIC) não residente são objeto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção”.
O Pleno da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo proferiu, em 28 de setembro de 2023, o acórdão n.º 093/19.7BALSB, a uniformizar jurisprudência nos seguintes termos:
“I - Quando um Estado Membro escolhe exercer a sua competência fiscal sobre os dividendos pagos por sociedades residentes unicamente em função do lugar de residência dos Organismos de Investimento Coletivo (OIC) beneficiários, a situação fiscal dos detentores de participações destes últimos é desprovida de pertinência para efeitos de apreciação do caráter discriminatório, ou não, da referida regulamentação.
II - O artº.63, do TFUE, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado-Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um OIC não residente são objeto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção.
III - A interpretação do artº.63, do TFUE, acabada de mencionar é incompatível com o artº.22, do E.B.F., na redação que lhe foi dada pelo Decreto-Lei 7/2015, de 13/01, na medida em que limita o regime de isenção nele previsto aos OIC constituídos segundo a legislação nacional, dele excluindo os OIC constituídos segundo a legislação de outros Estados Membros da União Europeia.”
Nesta senda, são plúrimos os exemplos de decisões arbitrais (DA) prolatadas por tribunais constituídos sob a égide do CAAD, como evidencia a Requerente (art. 45.º do PPA) e pode ilustrar-se com a proferida no P. 194/2019-T, em 19-09-2019.
Referindo o acórdão do TJUE de 10-04-2014, proferido no processo n.º C-190/12, “(...) resulta de jurisprudência constante do Tribunal de Justiça que as medidas proibidas pelo artigo 63.º, n.º 1, TFUE, enquanto restrições aos movimentos de capitais, incluem as que são de molde a dissuadir os não residentes de investirem num Estado Membro ou a dissuadir os residentes desse Estado Membro de investirem noutros Estados (acórdãos de 18 de dezembro de 2007, A, C-101/05, Colet., p. I-11531, n.º 40; de 10 de fevereiro de 2011, Haribo Lakritzen Hans Riegel e Österreichische Salinen, C-436/08 e C-437/08, Colet., p. I-305, n.º 50; e Santander Asset Management SGIIC e o., já referido, n.º 15).”
Acentuando que a diferença de tratamento fiscal dos dividendos, entre os fundos de investimento residentes e os fundos de investimento não residentes, baseada apenas nesse critério (residência), “é suscetível de dissuadir, por um lado, os fundos de investimento estabelecidos num país terceiro de adquirirem participações em sociedades estabelecidas na Polónia [naquele caso] e, por outro, os investidores que residem nesse Estado Membro de adquirirem participações em fundos de investimento não residentes (v., neste sentido, acórdão Santander Asset Management SGIIC e o, já referido, n.º 17)”, para concluir que daí resulta “uma restrição à livre circulação de capitais proibida, em princípio, pelo artigo 63.º TFUE.”
Confrontando o artigo 22.º , n.º 1, do EBF com o artigo 63.º do TFUE, observa ainda esse Tribunal Arbitral: “Na verdade, as sociedades constituídas noutro Estado Membro serão tendencialmente não residentes em Portugal (como sucede no caso em apreço), pelo que este artigo 22.º, n.º 1, impondo-lhes um regime de tributação consideravelmente mais gravoso do que o aplicável às sociedades constituídas segundo a legislação nacional, tem potencialidade para «dissuadir os não residentes de investirem num Estado Membro», desde logo porque tem de enfrentar a concorrência das de sociedades que usufruem do benefício fiscal, ficam em melhores condições para comercialização os seus produtos de investimento.”
E prossegue:
“É certo que, como diz a Autoridade Tributária e Aduaneira, «a alínea a) do n. 1 do Art.º 65.º do TFUE, permite que os Estados-membros apliquem "(...) as disposições pertinentes do seu direito fiscal que estabeleçam uma distinção entre contribuintes que não se encontrem em idêntica situação no que se refere ao seu lugar de residência ou ao lugar em que o seu capital é investido", tendo em conta a sua soberania fiscal, desde que, verificado o n.º 3 da mencionada disposição legal».
Mas, como se refere no n.º 3 deste artigo 65.º, «as medidas e procedimentos a que se referem os n.ºs 1 e 2 não devem constituir um meio de discriminação arbitrária, nem uma restrição dissimulada à livre circulação de capitais e pagamentos, tal como definida no artigo 63.º».
Neste caso, está-se perante uma discriminação arbitrária, pois não se vislumbra qualquer fundamento para a fazer, como ressalta da decisão da reclamação graciosa e da posição assumida no presente processo pela Autoridade Tributária e Aduaneira, em que não é aventada qualquer justificação para a diferença de tratamento.
Por outro lado, se é certo que, como diz a Autoridade Tributária e Aduaneira, «o tratamento fiscal diferenciado de residentes e não residentes não é discriminatório, desde que uns e outros se encontrem em situações diferentes (...)", também o é que no caso presente, actuando a Requerente segundo a legislação nacional, encontra-se, quanto à sua actividade geradora de tributação em IRC, em situação idêntica à das sociedades constituídas segundo o direito nacional.
Como entendeu o Supremo Tribunal Administrativo no acórdão de 08-02-2017, proferido no processo n.º 0678/16, «para que uma regulamentação fiscal possa ser considerada compatível com as disposições do Tratado relativas à livre circulação de capitais, é necessário que a diferença de tratamento diga respeito a situações não comparáveis objectivamente ou se justifique por razões imperiosas de interesse geral», se «aquela restrição, substanciada em maior tributação de entidade não residente, não pode ser neutralizada, em concreto, por via da Convenção celebrada entre os Estados para evitar a dupla tributação».
Neste caso, como naquele sobre o qual se debruçou a DA a que se vem aludindo, não há qualquer norma da Convenção celebrada entre a República Portuguesa e o Grão-Ducado do Luxemburgo para Evitar as Duplas Tributações e Prevenir a Evasão Fiscal em Matéria de Impostos sobre o Rendimento e o Património, concluída em Bruxelas, a 25-09-1999, ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 29/2000, publicada no Diário da República I-A, n.º 149, de 30/06/2000, e modificada pelos Protocolos aprovados pela Resolução da Assembleia da República n.º 45/2012 - DR I, n.º 73, de 12/04/2012, que permita neutralizar a maior tributação da Requerente em relação às sociedades constituídas segundo a legislação nacional.
Ainda sobre o argumento de não estarmos perante situações comparáveis, vem a propósito o que se fez constar DA prolatada no P. 621/2024-T, de 12-11-2024, ademais transcrevendo em parte a já mencionada jurisprudência do TJUE:
“Acresce que, tal como concluiu o TJUE, “a circunstância de os OIC não residentes não estarem sujeitos ao imposto do selo e ao imposto específico previsto no artigo 88.°, n.º 11, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas [tributações autónomas] não os coloca numa situação objetivamente diferente em relação aos OIC residentes no que se refere à tributação dos dividendos de origem portuguesa.” (cfr. Caso AllianzGI-Fonds AEVN, Proc-545/19, parágrafo 57).
(...)
De notar ainda que, como o TJUE concluiu, “a isenção da retenção na fonte dos dividendos em benefício dos OIC residentes não está sujeita à condição de os dividendos recebidos pelos organismos serem redistribuídos por estes e de a sua tributação na esfera dos detentores de participações sociais permitir compensar a isenção da retenção na fonte (v., por analogia, Acórdão de 10 de maio de 2012, Santander Asset Management SGIIC e o., C 338/11 a C 347/11, EU:C:2012:286, n.º 52, e de 10 de abril de 2014, Emerging Markets Series of DFA Investment Trust Company, C 190/12, EU:C:2014:249, n.º 93)” (cfr. Caso AllianzGI-Fonds AEVN, Proc. C-545/19, parágrafo 79).
Como conclui, “[a] necessidade de preservar a coerência do regime fiscal nacional não pode, por conseguinte, ser invocada para justificar a restrição à livre circulação de capitais induzida pela legislação nacional em causa no processo principal”, que é em tudo idêntico ao caso dos presentes autos arbitrais (cfr. Caso AllianzGI-Fonds AEVN, Proc. C-545/19, parágrafo 81).”
Aliás, como já se tinha notado nesse Aresto do TJUE “(…) um OIC não residente pode ter detentores de participações sociais que tenham residência fiscal em Portugal e sobre cujos rendimentos este Estado-Membro exerce o seu poder de tributação. Nesta perspetiva, um OIC não residente encontra-se numa situação objetivamente comparável à de um OIC residente em Portugal (v., por analogia, Acórdão de 21 de junho de 2018, Fidelity Funds e o., C-480/16, EU:C:2018:480, n.º 61)”.
Focando no caso concreto, encontra-se provado que:
“No Estado-Membro de residência (Luxemburgo), a Requerente beneficia de uma isenção em matéria de impostos sobre o rendimento a qual se encontra prevista no artigo 173.º, n.º 1, da referida Lei de 17 de dezembro de 2010 (Facto não controvertido que resulta diretamente da lei aplicável e § 12.1 do Doc. n.º 15 junto com o PPA, que aqui se dá por reproduzido).” - Facto D).
“A isenção de impostos sobre o rendimento de que a Requerente goza no seu Estado de residência (Luxemburgo) obstou a que pudesse neutralizar, seja por via do reembolso, de um crédito de imposto ou de qualquer outro mecanismo, a tributação sofrida em Portugal (cits. Docs. 10 e 15, juntos com o PPA) – Facto H).
Enquanto tal, está coberta de razão quando conclui que a discriminação fiscal negativa dos organismos de investimento coletivo não residentes diz respeito a situações objetivamente comparáveis, a qual, no caso particular da Requerente, não pode ser neutralizada no seu Estado de residência (Luxemburgo) devido à isenção de tributação sobre o rendimento de que aí goza, tornando-se evidente que não beneficiou de qualquer crédito de imposto por dupla tributação.
Por outro lado, não faz sentido dizer-se que a AT, por estar vinculada ao princípio da legalidade, está impedida de desaplicar uma norma interna com fundamento na violação do direito da União Europeia.
Pelo contrário, conforme evidenciou a DA proferida no P. n.º 951/2019- T, de 18-09-2020, “a Constituição estabelece o princípio do primado do direito da União Europeia, como decorre do n.º 4 do artigo 8.º (…) Sendo que as normas e princípios de direito internacional comum são parte integrante do direito português com o conteúdo e extensão que possuem no plano jurídico-constitucional e vinculam o Estado Português, e, encontrando-se a Administração subordinada ao princípio da legalidade (artigo 266.º, n.º 2, da CRP), não pode deixar o cumprir o disposto nas disposições convencionais”.
Pelo mesmo trilho seguira o já mencionado Acórdão do Tribunal do CAAD, constituído no P. 194/2019, de 19-09-2019, ao exarar que
“De harmonia com o disposto no artigo 8.º, n.º 4, da CRP, «as disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respectivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático».
A Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo tem decidido pacificamente no sentido da primazia do direito internacional convencional sobre o direito interno, como pode ver-se pelos acórdãos de 01-07-2015, proferido no processo n.º 0188/15, 17-06-2015, proferido no processo n.º 0187/15, e de 25-06-2015, proferido no processo n.º 0464/15, em que se entendeu que «nos termos do art. 8.º, n.º 2, da CRP, as normas de convenção internacional, quando regularmente adoptadas pelo Estado Português e publicadas na forma legal, prevalecem sobre o direito interno infraconstitucional, em tudo que seja conflituante com este, motivo por que os tribunais devem recusar a aplicação de lei ou norma jurídica que viole tratado internacional a que Portugal se tenha vinculado", na esteira de GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4.ª edição, página 261. (1)[2]
Volvendo novamente ao caso em apreço, alega a AT que não é possível a confirmação do montante de IRC efetivamente retido e entregue ao Estado pelo substituto tributário, dado que as guias de pagamento n.ºs..., ... e 8 ..., respeitantes ao período em questão, refletem valores muito superiores. Porém, tal asserção não está correcta, porquanto resulta da prova, entre o mais, o seguinte:
“No exercício da sua atividade, a Requerente realiza investimentos e detém participações sociais em entidades consideradas residentes, para efeitos fiscais, em Portugal, os quais, no ano de 2022, geraram o pagamento à Requerente dos dividendos melhor identificados no quadro infra:
(Docs. n.ºs 4 a 10 juntos com o PPA, que aqui se dão por reproduzidos) – Facto E).
“Os dividendos pagos à Requerente por essas sociedades, no ano de 2022, foram sujeitos a tributação, em sede de IRC, por meio de retenção na fonte, a título liberatório ou definitivo, à taxa de 15% prevista no artigo 10.º, n.º 2, da Convenção celebrada entre Portugal e o Grão-Ducado do Luxemburgo para Evitar a Dupla Tributação e Prevenir a Evasão Fiscal em Matéria de Impostos sobre o Rendimento e o Património (“CDT”), tendo sido então apurado e entregue ao Estado Português um total de imposto de € 40.948,45 (cits. Docs. n.ºs 4 a 10 juntos com o PPA e não controvertido) – Facto F).
A efetiva retenção na fonte e entrega do imposto nos cofres do Estado Português foi efetuada pela entidade detentora da custódia dos títulos, o E...– Sucursal em Portugal (NIF...), através do mecanismo da substituição tributária, tendo o montante de imposto retido sido entregue através das guias n.ºs ..., ... e ..., referentes a abril, maio e setembro de 2022 (cit. Doc. n.º 10 junto com o pedido de pronúncia arbitral e não controvertido) – Facto G).
Donde, emerge como incontroverso o valor de € 40.948,45 como apurado e entregue ao Estado Português, no ano de 2022, em sede de IRC, por meio de retenção na fonte, a título de tributação sobre dividendos, pagos à Requerente. Acresce que a própria AT reconhece, no artigo 9.º da sua Resposta, que tal valor coincide com o indicado na Declaração Modelo 30 entregue pelo substituto tributário, E... SA, e que se encontra na sua posse.
Concluindo, as retenções na fonte de IRC efetuadas à aqui Requerente sobre dividendos distribuídos por sociedades portuguesas, no ano de 2022, bem assim a decisão de indeferimento da reclamação graciosa contra eles apresentada são ilegais por assentarem em disposição legal que viola o princípio da livre circulação de capitais consagrado no artigo 63.º, n.º 1, do TFUE. Bem assim, impõe-se reconhecer ilegal o artigo 22.º, n.º 1, do EBF na parte em que limita o regime nele previsto a sociedades constituídas segundo a legislação nacional, excluindo do mesmo as sociedades constituídas segundo legislações de Estados Membros da União Europeia. Nesse medida, os mencionados actos de retenção na fonte e a decisão da reclamação graciosa que os confirmou enfermam de vício de violação de lei, que justifica a sua anulação, de harmonia com o disposto no artigo 163.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo, subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 2.º, alínea c), da LGT.
Em suma, procede o pedido de pronúncia arbitral formulado pela Requerente.
V. DEVOLUÇÃO DO IMPOSTO INDEVIDAMENTE COBRADO E JUROS INDEMNIZATÓRIOS
Na sequência da anulação das aludidas retenções na fonte, a Requerente tem direito a ser reembolsada das quantias indevidamente pagas e não reembolsadas, consoante o supra exposto, o que é consequência da anulação.
Atento o disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a Administração Tributária, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo, cabendo-lhe “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”
De harmonia com o n.º 5 do artigo 24.º do RJAT, “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”, o que nos remete para o disposto nos artigos 43.º, n.º 1, da LGT e 61.º, n.º 5, do CPPT, implicando o pagamento de juros indemnizatórios desde a data do pagamento indevido do imposto até à data do processamento da respetiva nota de crédito, em que são incluídos.
Nos termos do n.º 1 do artigo 43.º da LGT, “são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”.
O conceito de “erro imputável aos serviços” tem sido abundantemente interpretado pelos tribunais, entendendo-se que a actuação ilegal da Administração constitui sempre erro imputável aos serviços (acórdão STA, de 21-01-2015, proc. n.º 632/14). Assim, tendo a Administração Tributária errado nos pressupostos de facto e de Direito, como ficou demonstrado no caso presente, tal erro é imputável aos serviços, para efeitos da citada norma.
Em plena sintonia, o artigo 100.º da LGT estabelece que “A administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei.”
Tem, portanto, a Requerente o direito a ser reembolsada da quantia de € 40.948,45 e ainda a ser indemnizada, através de juros indemnizatórios calculados sobre aquela quantia, desde as datas dos pagamentos indevidos das retenções supra mencionadas até à data do processamento da respectiva nota de crédito, em que são incluídos, à taxa legal supletiva, nos termos dos artigos 43.º, n.ºs 1 e 4, e 35.º, n.º 10, da LGT, 61.º, n.º 5, do CPPT, 559.º do Código Civil e Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril.
VI. Decisão
Em face do exposto, o Tribunal julga procedente o pedido arbitral, decidindo:
-
Anular a impugnada decisão de indeferimento que recaiu sobre a Reclamação Graciosa referente aos atos de retenção na fonte de IRC praticados no ano 2022;
-
Anular os atos de retenção na fonte impugnados, no montante de € 40.948,45;
-
Condenar a Requerida a reembolsar a Requerente do valor das retenções na fonte indevidamente suportadas (€ 40.948,45), acrescido do pagamento de juros indemnizatórios, calculados sobre esse montante, nos termos acima expostos;
-
Condenar a Requerida nas custas do processo.
VI. Valor da Causa
Fixa-se o valor da causa em € 40.948,45 (quarenta mil novecentos e quarenta e oito euros e quarenta e cinco cêntimos), nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e do artigo 306.º, n.º 2, do CPC, ex vi artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”).
VII. Custas
Custas no montante de 2.142,00 (dois mil cento e quarenta e dois euros), a cargo da Requerida, de acordo com a Tabela I anexa ao RCPAT e com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT, 4.º, n.º 5, do RCPAT e 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.
Notifique-se.
Lisboa, 02 de Abril de 2025.
O Árbitro,
(A. Sérgio de Matos)
[1] A declaração final emitida pelo E... contém uma discrepância, relativamente a algumas das declarações individuais juntas como Docs. n.ºs 4 a 9, mas deverá ter-se em consideração, para efeito do presente pedido de pronúncia arbitral, apenas os valores constantes destas últimas.
[2] Na mesma linha, podem ver-se os acórdãos da Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo de 24-04-2002, proferido no processo n.º 0159/02. de 10-07-2002, proferido no processo n.º 0160/02. de 05-02-2009, proferido no processo n.º 491/08. Embora haja divergências doutrinais e jurisprudenciais, a primazia do direito internacional convencional sobre o direito interno tem sido maioritariamente reconhecida, como se refere, entre muitos, no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 242/2009, de 12-05-2009, proferido no processo n.º 250/09.