SUMÁRIO
A revogação do ato tributário impugnado após constituição do Tribunal
Arbitral, dando satisfação à pretensão formulada pelo Requerente quanto à sua anulação parcial, constitui causa de extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, nos termos do artigo 277º, alínea e) do Código de Processo Civil (CPC), subsidiariamente aplicável ao processo arbitral tributário, ex vi do artigo 29º, nº 1, alínea e) do RJAT, que se verifica quando por facto ocorrido na pendência da instância, a pretensão do autor não se pode manter, por ter encontrado satisfação fora do esquema da providência pretendida.
DECISÃO ARBITRAL
Os Árbitros, Conselheira Fernanda Maças (Presidente), Dra. Adelaide Moura (Relatora) e Dr. Paulo Ferreira Alves (Adjunto), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formar o Tribunal Arbitral Coletivo, constituído em 21.10.2024, com respeito ao processo acima identificado, decidiram o seguinte:
I. Relatório
1. A…, contribuinte n.º … , com residência fiscal na Avenida …, Lisboa (de ora em diante abreviadamente designado por “Requerente”), apresentou pedido de pronúncia arbitral (PPA) e de constituição de Tribunal Arbitral Coletivo em 09.082024, ao abrigo do disposto no Decreto-lei nº 10/2011, de 20 Janeiro [Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT)], em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante designada por “AT” ou “Requerida”).
2. O Requerente apresentou pedido de pronúncia arbitral na sequência do despacho de indeferimento proferido pela Chefe de Divisão da Direção de Finanças de Lisboa, datado de 21.05.2024, no âmbito do processo de reclamação graciosa n.º …, relativo ao ato de liquidação nº 2023.… de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) de 2022, no montante de 172 076,24 EUR, solicitando que o Tribunal determine a sua anulação parcial pelo montante de 86 038.00 EUR, com o consequente reembolso deste montante por ter sido pago indevidamente, acrescido de juros indemnizatórios, bem como a anulação da decisão de indeferimento da reclamação graciosa que sobre ele recaiu.
3. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD em 12.08.2024 e notificado, na mesma data, à Requerida.
4. Em 01.10.2024 foram os signatários designados como árbitros pelo Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, ao abrigo do disposto no artigo 6º, nº 2 do RJAT, tendo as nomeações sido aceites, no prazo e termos legalmente previstos.
5. Na mesma data, foram as Partes devidamente notificadas dessas designações, não tendo manifestado vontade de as recusar, nos termos do disposto no artigo 11º nº 1 alíneas a) e b) do RJAT e nos artigos 6º e 7º do Código Deontológico.
6. Em 21.10.2024, em conformidade com o preceituado na alínea c) do nº 1 do artigo 11º do RJAT, o Tribunal Arbitral Coletivo foi constituído, tendo sido proferido despacho arbitral em 26.10.2024, no sentido de notificar a Requerida para nos termos do disposto no artigo 17º, nº 1 do RJAT, apresentar Resposta, no prazo máximo de 30 dias e, caso quisesse, solicitar a produção de prova adicional.
7. Adicionalmente, foi ainda referido naquele despacho arbitral que a Requerida deveria remeter ao Tribunal Arbitral, dentro do prazo da Resposta, cópia do processo administrativo.
8. Na ausência de Resposta da AT, em 17-12-2024, em conformidade com o nº 1 do artigo 19º do RJAT, o Tribunal Arbitral proferiu despacho dispensando a realização da reunião prevista no artigo 18º do RJAT, e concedendo às partes prazo para produzirem alegações escritas.
9. Em 23.01.2025 a AT apresentou requerimento informando o Tribunal Arbitral que por despacho da Senhora Subdiretora Geral de 19.01.2024 foi revogado parcialmente o ato objeto do PPA.
10. Em 24.01.2025 o Tribunal Arbitral proferiu despacho para o Requerente exercer contraditório ante a notificação superveniente da AT no sentido da revogação do ato tributário impugnado, dando sem efeito o despacho de 17.12.2024.
11. Em 11.02.2025 o Requerente informou o CAAD que ficaria a aguardar a revogação do ato tributário.
12. Em 12.02.2025 o Tribunal Arbitral proferiu despacho dispensando a reunião prevista no artigo 18º do RJAT e designando o dia 21.04.2025 como prazo limite para a prolação da decisão arbitral.
II. Posição das Partes
1. O Requerente peticiona a declaração de ilegalidade e a consequente anulação parcial da liquidação de IRS n.º 2023.…, referente ao ano de 2021, na qual se apurou imposto no montante de 172 076,24 EUR.
2. O Requerente considera que foi liquidada a mais a quantia de 86 038.00 EUR, pedindo em consequência o reembolso deste montante porque foi pago indevidamente, acrescido de juros indemnizatórios.
3. O Requerente, de nacionalidade estónia, foi residente em Portugal na totalidade do ano de 2022.
4. Fundamenta o pedido de pronúncia arbitral com o facto de, no seu entender, a AT ter tributado a totalidade da mais-valia realizada em setembro de 2022 com a venda da sua participação social na sociedade de direito estónio denominada B…, registada para efeitos fiscais nesse país sob o número 12671900 e o número fiscal EE….
5. Da referida alienação de partes sociais resultou a geração de mais-valias, rendimento qualificado como Categoria G para efeitos de IRS, conforme se descreve na tabela abaixo:
6. O Requerente procedeu à apresentação da Declaração de Rendimentos Modelo 3, referente ao ano de 2022, através da qual efetuou o reporte dos rendimentos de mais-valias que obteve em resultado da acima referida alienação no Anexo J.
7. Tendo sido emitida a respetiva liquidação de IRS, da qual resultou o valor total a pagar de 172 076,24 EUR
8. Uma vez notificado do referido ato de liquidação de IRS, o Requerente constatou que as mais-valias realizadas foram consideradas, para efeitos de tributação, pela sua totalidade, sobre a qual foi liquidado imposto à taxa de 28%, em vez de ser considerado apenas 50% daquele valor, nos termos do nº 3 do artigo 43º do Código do IRS (CIRS).
9. Pese embora não concorde com o referido ato de liquidação, o Requerente procedeu ao pagamento da totalidade do valor de imposto liquidado.
10. O Requerente defende que o nº 3 do artigo 43º, do CIRS, aplicado no sentido de negar aos não residentes a consideração de apenas 50% do valor das mais-valias na determinação do seu rendimento coletável, concedendo-a apenas aos residentes em Portugal, torna menos favorável aos primeiros o exercício do seu direito de livre circulação de capitais, consagrado no artigo 63º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE).
11. Cita também o Requerente vários dispositivos, designadamente do Decreto-Lei nº 327/2007, de 6 de novembro e da Recomendação da Comissão da UE de 6 de maio de 2003, no sentido de demonstrar que em 2022 a B… era uma “pequena empresa” na aceção do nº 4 do artigo 15º do CIRS.
12. Notificada nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 17.º, do RJAT, a Requerida remeteu aos autos requerimento de junção do Despacho da Senhora Subdiretora Geral da Autoridade Tributária e Aduaneira, de 19.01.2025 nos termos do qual se procedeu à revogação parcial do ato tributário impugnado, na medida do peticionado, e se reconheceu o direito do Requerente a juros indemnizatórios.
13. Por requerimento de 11.02.2025, veio o Requerente informar que aguardava a revogação do ato tributário.
III. Saneamento
1. O Tribunal Arbitral é materialmente competente, encontra-se regularmente constituído e o pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, nos termos dos artigos 2º, nº 1, alínea a), 5º e 6º, nº 2 e 10º do RJAT.
2. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4º e 10º, nº 2 do RJAT e artigo 1º da Portaria nº 112-A/2011, de 22 de março.
3. O processo não enferma de nulidades nem foram suscitadas exceções.
4. Não há assim qualquer obstáculo à apreciação da causa. Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
IV. MATÉRIA DE FACTO
IV. A - Factos Provados
1. O Requerente era titular desde 2014 de participações na sociedade de direito estónio B… .
2. O Requerente alienou por venda as participações que detinha na referida sociedade.
3. No ano de 2022 o Requerente era residente fiscal em Portugal.
4. O Requerente procedeu à apresentação da Declaração de Rendimentos Modelo 3, referente ao ano de 2022, através da qual efetuou o reporte dos rendimentos de mais-valias que obteve em resultado da acima referida alienação no Anexo J.
5. Em 28.07.2023, a Autoridade Tributária e Aduaneira emitiu ao Requerente a liquidação de IRS n.º 2023.…, referente ao ano de 2022, na qual apurou imposto no montante de 172 076,24 EUR, com data limite para pagamento voluntário em 06.09.2023.
6. Em 23.01.2025 deu entrada nos autos requerimento da AT, de junção do Despacho proferido pela Senhora Subdiretora Geral da Autoridade Tributária e Aduaneira de concordância com a informação da Direção de Serviços do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, nos termos da qual a AT revoga parcialmente a liquidação de IRS em crise.
IV. B - Factos Não Provados
7. Não se verificaram outros factos com relevância para a decisão da causa que não tenham sido considerados provados.
IV. C - Fundamentação da matéria de facto
8. Relativamente à matéria de facto, o Tribunal Arbitral não tem de se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe apenas apreciar e selecionar os factos que importam para a boa decisão da cauda, e discriminar a respetiva matéria provada, nos termos do artigo 123º, nº 2 do CPPT e artigo 607º, nº 3 do CPC, aplicáveis por força do artigo 29º, nº 1, alíneas a) e e) do RJAT.
9. Segundo o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal Arbitral baseia a sua decisão em relação às provas produzidas na sua convicção formada a partir do exame e avaliação dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com a sua experiência e conhecimento, conforme nº 5 do artigo 607º do CPC e regras gerais do Código Civil. Somente quando a força probatória de certos meios se encontra estabelecida na lei é que o princípio da livre apreciação não domina na apreciação das provas produzidas.
10. Em concreto, a convicção do Tribunal fundou-se nos factos alegados e não contestados pelas partes e na prova documental produzida nos autos.
V. Matéria de Direito
V. A – Da inutilidade superveniente da lide
1. O objeto da presente ação arbitral enquadra-se na previsão do artigo 2º, nº 1, alínea a) do RJAT, já que a pretensão do Requerente era a da “declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos”, da competência dos Tribunais Arbitrais constituídos sob a égide do CAAD.
2. Nos termos do nº 1 do artigo 13º do RJAT, a Autoridade Tributária e Aduaneira dispõe de 30 dias a contar do conhecimento do pedido de constituição do tribunal arbitral, para proceder à revogação, ratificação, reforma ou conversão do ato tributário cuja ilegalidade foi suscitada, iniciando-se então a contagem do prazo para constituição do tribunal arbitral, de acordo com o artigo 11º, nº 1, alínea c) do RJAT.
3. A revogação do ato tributário impugnado após constituição do Tribunal Arbitral, dando satisfação à pretensão formulada pelo Requerente quanto à sua anulação parcial, constitui causa de extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, nos termos do artigo 277º, alínea e) do Código de Processo Civil (CPC), subsidiariamente aplicável ao processo arbitral tributário, ex vi do artigo 29º, nº 1, alínea e) do RJAT, e que, de acordo com a doutrina e a jurisprudência, se verifica quando, “por facto ocorrido na pendência da instância, a pretensão do autor não se pode manter, por ter encontrado satisfação fora do esquema da providência pretendida”.[1]
4. Na situação concreta dos autos, para além do pedido de anulação parcial da liquidação de IRS n.º 2023.…, referente ao ano de 2021, o Requerente formulou o pedido acessório de condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43º, nº 1, da Lei Geral Tributária.
5. Pelo Despacho 19.01.2025 da Senhora Subdiretora Geral da Autoridade Tributária e Aduaneira, foi revogada parcialmente a liquidação de IRS impugnada, na medida da pretensão do Requerente, tendo-lhe igualmente sido reconhecido o direito a juros indemnizatórios.
6. Obtida a integral satisfação do pedido, em virtude de novos factos ocorridos na pendência do processo, conclui-se que a decisão a proferir já não tem qualquer efeito útil, porquanto o fim visado pelo Requerente com a presente ação arbitral foi atingido por outro meio (anulação administrativa), encontrando-se, assim, verificados os pressupostos de extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide.
V. B – Da responsabilidade pelo pagamento das custas arbitrais
7. Tal como acima referido, a inutilidade superveniente da lide decorre da verificação de um facto, na pendência da instância judicial (ou arbitral), mediante o qual a solução do litígio deixa de ter interesse e utilidade, designadamente por ter sido satisfeita a pretensão deduzida pelo autor, por meios extrajudiciais.
8. Na situação concreta dos autos, verifica-se que a pretensão do Requerente foi voluntariamente satisfeita pela Requerida, por meios administrativos (extrajudiciais), à margem da prolação de qualquer julgado anulatório, devendo-lhe, portanto, ser imputável a inutilidade superveniente da lide.
9. Nestes casos, a repartição das custas, a efetuar na decisão final, é feita de acordo com os nºs 3 e 4 do artigo 536º do CPC, o qual dispões:
“Artigo 536º Repartição das custas
1 – (…)
2 – (…)
3 – Nos restantes casos de extinção da instância por impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide, a responsabilidade pelas custas fica a cargo do autor ou requerente, salvo se tal impossibilidade ou inutilidade for imputável ao réu ou requerido, caso em que é este o responsável pela totalidade das custas.
4 – Considera-se, designadamente, que é imputável ao réu ou requerido a inutilidade superveniente da lide quando esta decorra da satisfação voluntária, por parte deste, da pretensão do autor ou requerente, fora dos casos previstos no n.º 2 do artigo anterior e salvo se, em caso de acordo, as partes acordem a repartição das custas.”
10. Termos em que não pode a Requerida deixar de ser condenada no pagamento da totalidade da taxa de arbitragem.
VI. Decisão
Face ao exposto, decide este Tribunal Arbitral:
a) Declarar extinta a presente instância arbitral, por inutilidade superveniente da lide;
b) Condenar a Requerida no pagamento das custas do processo.
VII. Valor
Fixa-se o valor do processo em 86 038,12 EUR, nos termos do artigo 97º-A, nº 1, alínea a) do CPPT, aplicável por força da alínea a) do nº 1 do artigo 29º do RJAT e do nº 2 do artigo 3º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, interpretados em conformidade com o artigo 10º, nº 2, alínea e) do RJAT
VIII. Custas
Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em 2 754,00 EUR, nos termos da Tabela I do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Requerida, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 4 e 5 do citado Regulamento.
Notifique-se.
Lisboa, 09 de abril de 2025
Os Árbitros
(Fernanda Maças - Presidente)
(Adelaide Moura - Relatora)
(Paulo Ferreira Alves - Adjunto)
[1] Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 08/06/2022, Processo 02321/17.4BEPRT.