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SUMÁRIO
I- Quando o sujeito passivo optou, no âmbito da sua autonomia, por um dos métodos de dedução previstos no Código do IVA, não pode, com efeitos retroactivos, alterar o método utilizado quando se constituiu o direito à dedução.
II - Encontra-se vedada a possibilidade de correcção da metodologia de cálculo da dedução de IVA, por aplicação do n.º 6 do artigo 23.º do Código do IVA, porquanto esta norma não contempla a possibilidade de um sujeito passivo, que tenha optado por um método de cálculo de direito à dedução do imposto suportado em bens ou serviços de utilização mista, poder alterar retroactivamente o método utilizado, recalculando a dedução inicial efectuada.
III - Não houve qualquer equívoco na interpretação do regime jurídico aplicável que tenha implicado a não dedutibilidade do IVA, num primeiro momento, em virtude de um errado enquadramento em sede de IVA, confirmado por instruções administrativas.
DECISÃO ARBITRAL
I – Relatório
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A Sociedade A..., S.A., NIPC ..., apresentou, no dia 5 de Agosto de 2024, um pedido de constituição de Tribunal Arbitral Colectivo, nos termos dos artigos 2º, 1, a), e 10º, 1 e 2 do Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro, com as alterações por último introduzidas pela Lei nº 7/2021, de 26 de Fevereiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante “RJAT”), e dos arts. 1º e 2º da Portaria nº 112-A/2011, de 22 de Março, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante “AT” ou “Requerida”).
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A Requerente pediu a pronúncia arbitral sobre a ilegalidade do despacho de indeferimento da Reclamação Graciosa (procedimento n.º ...2024...) apresentada contra os actos de autoliquidação de IVA referentes aos anos 2021 e 2022, materializados na declaração periódica de imposto com referência a dezembro dos referidos anos, no montante de € 187.655,13; e, mediatamente, aqueles actos de autoliquidação de IVA.
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O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT.
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O Conselho Deontológico designou os árbitros do Tribunal Arbitral Colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável, e notificou as partes dessa designação.
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As partes não se opuseram, para efeitos dos termos conjugados dos arts. 11º, 1, b) e c), e 8º do RJAT, e arts. 6º e 7º do Código Deontológico do CAAD.
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O Tribunal Arbitral Colectivo ficou constituído em 15 de Outubro de 2024.
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Por Despacho de 15 de Outubro de 2024, foi a AT notificada para, nos termos do art. 17º do RJAT, apresentar resposta.
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A AT apresentou a sua Resposta em 18 de Novembro de 2024, juntamente com o processo administrativo.
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Por Despacho de 3 de Dezembro de 2024, foi dispensada a reunião prevista no art. 18º do RJAT, e convidadas as partes a apresentar alegações escritas.
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Só a Requerente apresentou alegações, em 13 de Dezembro de 2024.
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O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é competente, atenta a conformação do objecto do processo.
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O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo.
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As Partes têm personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade.
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A AT procedeu à designação dos seus representantes nos autos e a Requerente juntou procuração, encontrando-se assim as Partes devidamente representadas.
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O processo não enferma de nulidades.
II – Matéria de Facto
II. A. Factos provados
Com relevo para a decisão, consideram-se provados os seguintes factos:
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A Requerente é uma instituição de crédito, cujo objecto social consiste na realização das operações descritas no art. 4.º, 1 do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro, e no art. 1.º do Decreto-Lei n.º 186/2002, de 21 de Agosto.
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A Requerente realiza operações financeiras enquadráveis na isenção constante do art. 9.º, 27) do CIVA, que não conferem direito à dedução, bem como operações que conferem direito à dedução de IVA (art. 20.º, 1, b) do CIVA), adquirindo, para o efeito, recursos que são afectos, simultaneamente, a ambas as tipologias de operações, assumindo, portanto, a natureza de sujeito passivo misto.
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Adquirindo recursos que são afectos a operações que conferem direito à dedução de IVA e a operações que não conferem tal direito, a Requerente dispõe de dois métodos de determinação da medida do imposto dedutível nos recursos de utilização mista: o método do pro rata e o método da afetação real.
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Nos recursos “de utilização mista”, a Requerente aplicou o método geral e supletivo da percentagem de dedução, conforme previsto no art. 23.º, 1, b) do CIVA.
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A Requerente autoliquidou o IVA assente em determinados rácios dos critérios de dedução referentes aos montantes de IVA incorridos por ela no serviço de disponibilização de terminais de pagamento automático (TPAs), permitindo aos comerciantes, seus clientes, a utilização de soluções de pagamento automático dos bens transmitidos, ou serviços prestados, através de cartões de crédito ou débito, no âmbito da sua actividade.
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Considerando que, nas declarações periódicas de IVA referentes aos períodos de Dezembro de 2021 e 2022, teria sido (auto)liquidado IVA em excesso, no montante de € 187.655,13 (alegadamente por erro quanto ao regime jurídico do direito à dedução do imposto incorrido nos recursos de utilização mista adquiridos pela Requerente naquele período), a Requerente decidiu apresentar Reclamação Graciosa, ao abrigo do disposto no art. 131.º do CPPT e do art. 97.º do CIVA.
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Nela alegou, fundamentalmente, que disponibilizando TPAs aos seus clientes, cobra uma mensalidade a alguns, e não a outros, por razões de política comercial – o que, nos termos do art. 20.º do CIVA, não permite recuperar a totalidade do IVA incorrido, nomeadamente na aquisição de bens e serviços aos seus fornecedores. E que só tardiamente se apercebeu de que a dedução de IVA através da aplicação do método de afectação real, que praticava quanto ao IVA incorrido com os recursos adquiridos aos seus fornecedores, não traduzia a efectiva utilização dos recursos adquiridos; e que, em contrapartida, verificou também que, para parte das despesas, apenas deduziu o IVA incorrido nos recursos adquiridos utilizando o critério pro rata, quando deveria ter sido aplicado o método de afectação real – o que permitiria concluir, segundo ela, o direito a deduzir mais IVA do que aquele que deduziu, até por obediência ao princípio da neutralidade que rege o sistema comum de IVA.
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Essa Reclamação Graciosa mereceu despacho de indeferimento de 24 de Maio de 2024, notificado em 31 de Maio de 2024, com o fundamento de que a alteração retroactiva do método de dedução aplicado não seria subsumível na norma indicada para fundamento, já que, tendo sido exercido o direito a deduzir o IVA relativamente a cada bem ou serviço, o direito acautelado pela norma já teria sido exercido pela Requerente; e com o fundamento de não ser legítimo vir invocar a ocorrência de um erro quando a declaração periódica apresentada materializa uma opção por deduzir o IVA de uma forma que já é, em si mesma, legítima.
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Reagindo a tal decisão, em 5 de Agosto de 2024 a Requerente apresentou o pedido de pronúncia que deu origem ao presente processo.
II. B. Matéria não-provada
Entre os factos relevantes para esta Decisão Arbitral, nada ficou por provar.
II. C. Fundamentação da matéria de facto
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Os factos elencados supra foram dados como provados, ou não-provados, com base nas posições assumidas pelas partes nos presentes autos e nos documentos juntos ao PPA.
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Cabe ao Tribunal Arbitral seleccionar os factos relevantes para a decisão, em função da sua relevância jurídica, considerando as várias soluções plausíveis das questões de Direito, bem como discriminar a matéria provada e não provada (cfr. art. 123º, 2, do CPPT e arts. 596º, 1 e 607º, 3 e 4, do CPC, aplicáveis ex vi art. 29º, 1, a) e e) do RJAT), abrangendo os seus poderes de cognição factos instrumentais e factos que sejam complemento ou concretização dos que as Partes alegaram (cfr. arts. 13.º do CPPT, 99º da LGT, 90º do CPTA e arts. 5º, 2 e 411.º do CPC).
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Segundo o princípio da livre apreciação dos factos, o Tribunal baseia a sua decisão, em relação aos factos alegados pelas partes, na sua íntima e prudente convicção formada a partir do exame e avaliação dos meios de prova trazidos ao processo, e de acordo com as regras da experiência (cfr. art. 16º, e) do RJAT, e art. 607º, 4, do CPC, aplicável ex vi art. 29º, 1, e) do RJAT).
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Somente relativamente a factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, a factos que só possam ser provados por documentos, a factos que estejam plenamente provados por documentos, acordo ou confissão, ou quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (por exemplo, quanto aos documentos autênticos, por força do artigo 371.º do Código Civil), é que não domina, na apreciação das provas produzidas, o referido princípio da livre apreciação (cfr. art. 607º, 5 do CPC, ex vi art. 29º, 1, e) do RJAT).
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Além do que precede, não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada, nem os factos incompatíveis ou contrários aos dados como provados.
III. Sobre o Mérito da Causa
III. A. Posição da Requerente
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A Requerente começa por referir o entendimento da AT, que fundamentou o indeferimento da Reclamação Graciosa com o argumento de se tratar de uma situação de alteração retroactiva dos critérios que presidiram à escolha do método de dedução relativamente às despesas em causa, relativas a recursos de utilização mista, entendendo ainda a AT que, de acordo com o Ofício-Circulado n.º 30082/2005, de 17 de Novembro, se trata de um caso insusceptível de enquadramento nos casos de regularização previstos no artigo 78.º do CIVA, identificando o n.º 8 da mencionada instrução administrativa as situações que se encontram excluídas do respectivo âmbito – não porque a situação não se pudesse aí incluir, mas porque a sua disciplina estará regulamentada noutros normativos legais, como os arts. 23.º a 25.º do CIVA. Acrescentando a AT, no indeferimento da Reclamação Graciosa, que o exercício do direito à dedução está na disponibilidade dos sujeitos passivos, assim como a opção por um dos métodos previstos no CIVA, tornando inconcebível que os mesmos sujeitos passivos venham invocar a ocorrência de erros, quando não tenham deduzido aquilo que poderiam deduzir.
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E assim, ainda no entendimento da AT que conduziu ao indeferimento da Reclamação Graciosa, não existiria qualquer norma no CIVA, nem na Directiva IVA (Directiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de Novembro), que servisse de suporte legal à alteração retroactiva do método de dedução pretendido pela Requerente, já que esta escolha pode ser realizada para cada aquisição de bens ou de serviços, no momento em que se constitui o direito à dedução, nas condições previstas no arts. 20.º, 1, 22.º, 1 e 23.º do CIVA.
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A Requerente refere ainda que, no indeferimento da Reclamação Graciosa, a AT invocou o entendimento vertido no Acórdão proferido pelo TJUE em 30 de abril de 2020 (Proc. n.º C-661/18), o “Acórdão CTT”, para concluir que, ao contrário do que se verificou nesses autos, não está agora em causa, neste processo, a alteração do método de dedução em virtude da consideração, como isentas, de operações que não o estavam, mas antes uma diferente avaliação, feita pelo sujeito passivo, sobre o melhor método a aplicar para o cálculo das deduções relativas a bens de utilização mista – para concluir que, no caso presente, os factos e valores eram perfeitamente conhecidos da ora Requerente, encontravam-se registados na sua contabilidade, não resultando de qualquer circunstância que lhe fosse alheia – pelo que o direito à dedução, ou regularização da dedução inicial, não poderia ser efectuado no prazo previsto no art. 98.º, 2 do CIVA, mas apenas no prazo do artigo 23.º, 6 do CIVA – concluindo pela inexistência de qualquer ilegalidade na liquidação objecto da Reclamação Graciosa.
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A isto, contrapõe a Requerente que este entendimento da AT configura um erro sobre os pressupostos de facto e de direito que regem a situação em apreço.
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A Requerente refere que, no âmbito da sua actividade, adquire recursos necessários para o desenvolvimento da actividade de disponibilização de TPA’s aos seus clientes, a qual é tributada em IVA à taxa normal; sendo que tais recursos são utilizados, simultaneamente, para operações que conferem o direito à dedução do imposto (como o é a remuneração mensal cobrada pela Requerente, a qual é objecto de tributação em IVA), bem como para operações que não conferem este direito à dedução (como situações em que a disponibilização de TPA’s se realiza a título gratuito).
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Daqui resulta que apenas o imposto incorrido para a realização de operações tributadas confere direito à dedução, pelo que não poderá ser recuperada a totalidade do imposto incorrido na aquisição dos bens e serviços no âmbito da referida actividade – pelo que a Requerente deduz os montantes de IVA incorridos através do método de afetação real.
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Como o fizera na Reclamação Graciosa, a Requerente reitera que, no âmbito de uma revisão de procedimentos da metodologia de dedução do IVA, ela veio a redefinir os critérios adoptados, tentando que estes traduzissem a efectiva utilização dos recursos adquiridos na actividade de disponibilização de TPA’s. Isto porque a Requerente apura, no final de cada ano, um conjunto de critérios de dedução de IVA susceptíveis de traduzir o grau de utilização de recursos afectos aos TPA’s para os períodos em análise, tendo em consideração as características e os recursos utilizados – tendo presente, essencialmente, aspectos particulares de cada negócio de disponibilização dos TPA’s.
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Refere ainda a Requerente que foram considerados equipamentos em que não foi registada qualquer actividade durante os períodos em análise, em resultado da circunstância de alguns TPA’s estarem incorrectamente registados como “activos” no sistema da Requerente, o que provocou um apuramento incorreto do consumo de recursos – o que determinou a decisão de actualizar os critérios de dedução, passando a desconsiderar, dos mesmos, os TPA’s sem actividade registada, e para os quais não houve afectação de qualquer consumo de inputs. E refere ainda que também se verificou que o IVA de uma parte dos recursos utilizados exclusivamente para a actividade dos TPA’s estava a ser, incorretamente, deduzida pelo critério pro rata.
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Para sanear tal situação, e na medida em que estes recursos estão relacionados com a disponibilização dos TPA’s, entendeu a Requerente que o IVA afecto a tais recursos deveria ser deduzido através do método da afectação real, e não pelo critério do pro rata.
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Procedeu-se, assim, a uma revisão de critérios, que se traduziu, em primeira linha, numa melhoria dos rácios de afectação real aplicados, assim como a alteração do método de dedução – o que se traduziria, em última instância, em deduções adicionais no IVA incorrido, seja por aplicação do método de afectação real (agora adaptado aos valores do efectivo consumo de recursos), seja com base na percentagem da dedução pro rata (agora substituída pelo método da afectação real), tudo no montante global de € 187.655,13.
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Referindo-se ao direito aplicável, a Requerente invoca os arts. 19.º, 1 e 22.º, 2 do CIVA para concluir que a lei prevê a possibilidade de dedução do IVA na declaração periódica do período actual ou de qualquer período posterior, sem restrição, até ao limite do prazo de caducidade.
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E recorda o quadro geral dos métodos “de afectação real” (art. 23.º, 1, a) e 2 do CIVA), versus os métodos de “pro rata de dedução” (art. 23.º, 1, b) e 4 do CIVA), no que respeita ao IVA incorrido na utilização de recursos de utilização mista – com a referência de que se trata essencialmente da recuperação, pelos sujeitos passivos, do imposto incorrido a montante, na estrita medida do volume de operações tributadas com direito à dedução realizadas a jusante, como define o TJUE (Acórdão de 8 de Novembro de 2012, Proc. C-511/10) e fica consagrado no art. 23.º, 6 do CIVA.
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Lembrando que os sujeitos passivos que apuram o montante de IVA dedutível, de acordo com os métodos do pro rata ou da afectação real, utilizam provisoriamente, ao longo do ano, os valores apurados no ano anterior, e devem, na última declaração periódica de IVA de cada ano, corrigir a sua dedução provisória, em função dos valores apurados no final do ano (caso haja divergência entre a dedução provisória e os valores definitivos), infere a Requerente que o prazo para o apuramento do montante definitivo de IVA dedutível é o da última declaração periódica do ano a que tal imposto respeita.
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Só que, sublinha a Requerente, essa solução do art. 23.º, 6 do CIVA reporta-se somente à determinação do montante de imposto definitivo de cada ano, não regulamentando o regime do direito à regularização do imposto já deduzido.
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Por exigência do princípio da neutralidade, princípio basilar do sistema comum do IVA, diversas normas do CIVA prevêem a possibilidade de regularização do imposto, tanto a favor do Estado como a favor do sujeito passivo: começando pelo art. 98.º, 2 do CIVA, passando pelo art. 78.º, 6.
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Mas, assinala a Requerente, nenhuma das normas especiais previstas no CIVA se aplica à regularização de imposto motivada por erro de enquadramento das operações tributáveis dos sujeitos passivos – pelo que sustenta que terá de se recorrer ao art. 98.º, 2 do CIVA, como norma geral em matéria de direito à dedução e regularização da dedução, em sede deste imposto.
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E sustenta também que, para se respeitar a harmonia sistemática de todo o sistema comum do IVA, se deve interpretar conjugadamente os arts. 23.º, 6, 78.º, 6 e 98º, 2 do CIVA.
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Daqui decorre, no seu entender, o seu direito a alterar o método de dedução inicialmente escolhido, que é aquilo que a AT fundamentalmente contesta, até por causa da retroactividade que uma tal alteração acarretaria (entendendo a AT inexistir uma norma do sistema comum do IVA ou da legislação nacional que viabilize uma modificação retroactiva do método de dedução usado inicialmente pelo sujeito passivo, e estar vedada uma tal alteração retroactiva pela própria aplicação do art. 23.º, 6 do CIVA).
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A Requerente sublinha que as modificações que pretende visam conferir mais peso ao critério de afectação real, que ela sustenta ser o critério mais objectivo, o mais adequado à determinação do grau de utilização dos bens ou serviços. Além disso, sustenta que a retroactividade não só não está vedada, como pelo contrário é corolário do princípio da neutralidade fiscal do imposto, que é um princípio proeminente: traduzindo-se na regra de que o sujeito passivo apenas deve ser onerado com o imposto que, na estrita medida da sua actividade, não tenha o direito a deduzir, e não com imposto que, por erro, não deduziu.
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Assinalando, ao mesmo tempo, a incongruência que consistiria em conceder-se ao sujeito passivo o direito à rectificação, com efeitos retroactivos, da dedução de uma dada fatura (por exemplo, por ter ocorrido um lapso na sua contabilização), mas não o direito à rectificação retroactiva do método por si escolhido para exercer esse mesmo direito, caso apure, entretanto, não ter sido usado o método mais adequado à desoneração do seu encargo com o imposto pago.
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E entendendo que essa rectificação retroactiva do método é mesmo um imperativo legal que resulta do art. 184.º da Directiva IVA, norma que prevê que a dedução inicialmente efectuada seja objecto de regularização quando for superior ou inferior à dedução a que o sujeito passivo tivesse direito (conjugado com o art. 185.°, 1 da Directiva, que determina que a regularização deve ser feita, designadamente em caso de alteração dos elementos inicialmente considerados para determinar o montante da dedução).
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A Requerente insiste que se está na presença de um verdadeiro erro de direito (apoiando-se no entendimento do STA, veiculado no acórdão de 28 de Junho de 2017, Proc. n.º 01427/24[1]) – não obstante a AT não admitir sequer que se esteja na presença de um erro, apenas porque não é nenhum dos erros subsumíveis ao art. 78.º da LGT. E, sendo um erro de direito, sustenta que se aplica genericamente o art. 98º, 2 do CIVA (invocando em apoio deste entendimento as decisões arbitrais n.os 15/2020-T e 493/2021-T).
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A Requerente convoca em apoio do seu entendimento o acórdão do STA de 12 de Maio de 2021 (Proc. 01023/15.0BELRS), que identifica dois prazos distintos, no CIVA, para o exercício do direito à dedução, consoante tal exercício se processe em termos normais ou patológicos: nos casos normais, os arts. 22.º e seguintes, e mormente o art. 23.º, 6, do CIVA; nos casos “patológicos”, os arts. 78.º, 6 e 98.º, 2 do CIVA - sendo “patológicos” os casos em que o exercício do direito à dedução foi inquinado por erros, falhas ou lapsos, o que por sua vez pressupõe prazos mais longos para a respectiva correcção (2 e 4 anos, respectivamente), mais adequados às circunstâncias imponderadas que estejam na sua base.
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Assim, as normas dos arts. 23.º, 6 e 98.º, 2 do CIVA não se excluem mutuamente, sendo uma aplicável a situações “normais” (mecanismo de correção dos critérios de dedução provisórios após apuramento, no final de cada ano, dos valores definitivos) e a outra a situações “patológicas” (rectificação e regularização de situações inicialmente inquinadas por erro).
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Nesse sentido, a Requerente invoca os precedentes das decisões arbitrais proferidas nos Processos n.º 573/2023-T e n.º 457/2023-T, que validaram a possibilidade de os sujeitos passivos alterarem o método de dedução originariamente escolhido, quando posteriormente apurem um outro critério de dedução que se revele mais adequado, não vislumbrando nenhum obstáculo legal à alteração do pro rata definitivo, designadamente através de regularização, tanto baseada em erro de facto (art. 23.º, 6 do CIVA), como em erro de enquadramento ou de direito (art. 98.º, 2 do CIVA) – embora um erro de enquadramento das operações tributáveis, manifestamente, por não ser um erro de facto, por não ser um erro de natureza aritmética, não possa ser abrangido pelo art. 78.º, 6 do CIVA.
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Quanto à aplicação, ao caso concreto, do “Acórdão CTT” (acórdão de 30 de Abril de 2020 do TJUE, Proc. n.º C-661/18, por reenvio prejudicial do Proc. arbitral n.º 136/2018-T), a Requerente lembra que o TJUE concluiu que o art. 173.º, 2, c) da Directiva IVA permite que um Estado-Membro proíba os seus sujeitos passivos de alterarem o método de dedução do IVA incorrido na aquisição de recursos de utilização mista, após a fixação do pro rata definitivo. Mas lembra também que, posteriormente, as decisões arbitrais dos Procs. n.º 573/2023-T e n.º 457/2023-T vieram reconhecer o direito a promover uma alteração retroactiva do método de dedução inicialmente utilizado, baseando-se no facto de tal alteração não ser directamente proibida pela Directiva IVA, a qual se limita a conceder poderes aos Estados-Membros para, querendo, optarem por essa proibição; proibição que, por sua vez, não viram consagrada na legislação nacional.
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O ponto, segundo a Requerente, é que o TJUE, através da interpretação da Directiva IVA, aceita que os Estados Membros prevejam, no seu ordenamento jurídico nacional, uma proibição de que tais sujeitos passivos alterem o método de dedução do imposto após a fixação do pro rata definitivo, mas não é a constatação de que o legislador português tenha optado por incluir qualquer norma proibitiva do género no CIVA português – o que, segundo a Requerente, não aconteceu.
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Por outro lado, aproveitando conclusões a que se chegou na decisão do Proc. arbitral n.º 573/2023-T, a Requerente assinala que se trata de utilizar o método do pro rata, numa situação em que era viável a utilização do método da afectação real, e que é a própria AT que, no Ofício-Circulado n.º 30.108, de 30 de Janeiro de 2009, exprime a sua preferência pela afectação real, ressalvando que sempre que não seja possível a aplicação de critérios objectivos de imputação dos custos comuns, deve ser utilizado um coeficiente de imputação específico – pelo que prosseguir com um coeficiente de imputação específico quando estejam disponíveis critérios objectivos seria, segundo a Requerente, um erro de direito – que autorizaria a condenação da AT na revisão do acto de autoliquidação de IVA que teve por base um critério de dedução diferente, permitindo à Requerente a melhoria de critérios no cálculo de dedução do IVA incorrido na aquisição de recursos de utilização mista, com efeitos retroactivos.
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Quanto ao prazo para efectuar a alteração do método de dedução de IVA de recursos de utilização mista, a Requerente invoca que, tendo ocorrido erro no regime jurídico aplicável à dedução do imposto por si incorrido no passado, de que resultou dedução de menos imposto do que aquele exigido pela legislação do IVA, e na ausência de uma norma específica para casos de “erro de direito”, as regularizações a efectuar deverão respeitar o prazo de caducidade estatuído no art. 98.º, 2 do CIVA – o que resultaria, desde logo, da jurisprudência do TJUE (casos Ecotrade SpA, Acórdão de 8 de Maio de 2008, Procs. apensos C-95/07 e C-96/07, EMS Bulgaria, Acórdão de 12 de Julho de 2012, Proc. C-284/11, e Giuseppe Astone, Acórdão de 28 de Julho de 2016, Proc. C-332/15), na qual se sustenta que o próprio prazo de caducidade, não obstante a sua relevância para a consagração do princípio da segurança jurídica, pode e deve ceder, por se tornar excessiva e sancionatória, quando conflitue com princípios fundamentais do sistema comum do IVA, em particular com o princípio da neutralidade.
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A Requerente invoca em especial o estabelecido no acórdão do caso Giuseppe Astone (TJUE, Acórdão de 28 de Julho de 2016, Proc. C-332/15):
“um prazo de preclusão cujo termo conduz a que se puna o contribuinte não suficientemente diligente, que não reclamou a dedução do IVA a montante, fazendo‑lhe perder o direito a dedução, não se pode considerar incompatível com o regime fixado pela diretiva IVA, desde que, por um lado, esse prazo se aplique de igual modo aos direitos análogos em matéria fiscal que se baseiam no direito interno e aos que se baseiam no direito da União (princípio da equivalência) e, por outro, não torne impossível na prática ou excessivamente difícil o exercício do direito a dedução (princípio da efetividade)”
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O que, na leitura da Requerente, deixa inequívoco o afastamento, pelo TJUE, da regra da caducidade sempre que ela se converta numa sanção à luz da Directiva IVA e dos princípios da neutralidade, equivalência e efectividade.
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Ressalva que, no caso, a aplicação do art. 98.º, 2 do CIVA, com o seu prazo de quatro anos, significa que não está em causa a caducidade e a extemporaneidade. E lembra que a aplicabilidade dessa norma já resulta de jurisprudência, sempre a partir do argumento da verificação de um “erro de direito”: por exemplo, no Acórdão do STA de 28 de Junho de 2017 (Proc. n.º 01427/14), ou nas decisões arbitrais proferidas nos Procs. n.º 117/2013-T, n.º 502/2014-T e n.º 252/2017-T. E invoca ainda, em seu apoio, passagens da doutrina.
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Assim, considera a Requerente que se encontra ainda dentro do prazo para proceder à dedução adicional do IVA por si incorrido, no montante global de € 187.655,13, seja o imposto por si incorrido na aquisição de serviços afectos à actividade de disponibilização de TPA’s, e que apenas foi deduzido com base na percentagem da dedução pro rata quando deveria ter sido aplicado o método da afectação real, que corresponde a uma dedução adicional no montante de € 25.568,30; seja o imposto por si incorrido, deduzido por aplicação do método de afectação real, mas cujos critérios adoptados não traduziam o efectivo consumo de recursos, correspondente a uma dedução adicional no montante de € 162.086,83.
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Em alegações, a Requerente reitera, sumariamente, o que argumentou no pedido de pronúncia.
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Sublinhando que foi no âmbito de uma revisão de procedimentos da metodologia de dedução do IVA que ela veio a redefinir os critérios adoptados, com vista a permitirem que estes traduzissem a efectiva utilização dos recursos adquiridos na actividade de disponibilização de TPA’s.
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Para isso, a Requerente procedeu a uma actualização dos critérios de dedução, passando a desconsiderar dos mesmos os TPA’s sem actividade registada, e para os quais não houve afectação de qualquer consumo de inputs; tendo ainda a Requerente verificado que o IVA de uma parte dos recursos utilizados exclusivamente para a atividade dos TPA’s estava a ser, incorrectamente, deduzido pelo critério do pro rata.
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Daqui terá resultado uma melhoria dos rácios de afectação real aplicados, assim como a alteração do método de dedução, implicando deduções adicionais.
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Voltando a sustentar que, na ausência de normas especiais no CIVA que prevejam a regularização de imposto motivada por erro de enquadramento das operações tributáveis dos sujeitos passivos, será de aplicar o disposto no art. 98.º, 2 desse Código, norma geral que prevê o prazo 4 de anos para a dedução ou regularização do IVA
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Referindo-se à posição da AT, na sua resposta, de defesa de que o art. 98.º, 2 do CIVA não seria aplicável por já ter sido exercido o direito a deduzir o imposto contido nas facturas registadas, relativamente a cada bem ou serviço, não havendo cobertura legal a modificações retroactivas, e por não estar demonstrado que esteja em causa um erro de direito – além de ter sido aplicado, sem qualquer erro, um método disponível e totalmente legítimo – a Requerente insiste que o princípio da neutralidade deve prevalecer sobre os obstáculos à rectificação, com efeitos retroactivos, do exercício do direito à dedução.
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E acrescenta que, não obstante a posição plasmada no “Acórdão CTT” do TJUE, continua a não se vislumbrar qualquer norma, na legislação de IVA portuguesa, que proíba a alteração da metodologia de dedução do IVA, após a fixação do pro rata definitivo, por parte dos sujeitos passivos que adquiram recursos de utilização mista.
III. B. Posição da Requerida
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Na sua resposta, a Requerida começa por caracterizar a posição da Requerente, indicando que ela se subdivide:
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na pretensão de rectificação dos critérios que foram utilizados no âmbito da aplicação do método da afectação real, na actividade relativa ao aluguer de TPA’s;
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na pretensão de substituição retroactiva do método utilizado, face a algumas despesas incorridas nessa mesma actividade.
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Observando que não se trata de exercício do direito à dedução de IVA contido em facturas registadas, e que nunca foi deduzido, mas sim da regularização de imposto deduzido nas declarações periódicas dos anos de 2021 e 2022.
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Pelo que, conclui a Requerida, se afigura estar em causa uma situação de alteração dos critérios e de uma substituição retroactiva do método aplicado de cálculo do direito à dedução do imposto suportado em bens e serviços de utilização mista, visto que foi inicialmente definido, e aplicado, um método de determinação da dedução escolhido pela própria Requerente.
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Ou seja, conclui que o sujeito passivo misto que optou pelo método de cálculo do IVA dedutível que reputou de mais adequado, exerceu, de forma plena, o seu direito à dedução do imposto. E que agora pretende uma mera alteração da metodologia de cálculo, de forma a obter uma vantagem económica, e não rectificar qualquer erro.
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Como foi exercido plenamente o direito a deduzir o imposto contido nas facturas registadas, relativamente a cada bem ou serviço, e como não se vislumbra que tenha ocorrido qualquer tipo de erro, de direito ou outro, não há lugar à aplicação do art. 98.º, 2 do CIVA.
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Trata-se, como a própria Requerente admite, de mera revisão interna de procedimentos, com vista à obtenção de uma vantagem adicional através da adopção de outros métodos de dedução do IVA.
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No entender da Requerida, nada existe no CIVA ou na Directiva IVA, ou no sistema comum do IVA, que fundamente a pretensão de alteração retroactiva do método de dedução aplicado, considerando que o imposto dedutível foi já calculado nos termos do art. 23.º do CIVA, tendo o imposto sido apurado segundo o método escolhido, sem se comprovar que tenha existido qualquer erro de direito na interpretação e aplicação daquela norma. E menos ainda o recurso a alterações retroactivas dos critérios ou do método de cálculo do direito à dedução inicial dos bens e serviços de utilização comum em actividades isentas e tributadas, quando nem sequer existem indícios de erro jurídico-tributário, pois isso traduzir-se-ia em sacrifício imediato do princípio da segurança jurídica.
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A Requerida também não aceita que o art. 98.º, 2 do CIVA possa ser mobilizado através do argumento de que, no silêncio da lei, ele serve de norma residual – mais ainda quando já houve um método escolhido para a dedução do IVA, e essa dedução já foi realizada – não ocorrendo qualquer equívoco na interpretação do regime jurídico aplicável que tivesse resultado em inadequado enquadramento em sede de IVA.
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Por essa razão a Requerida refuta a invocabilidade do acórdão do STA de 28 de Junho de 2017 (Proc. n.º 01427/14), porque, ao contrário do caso presente, se tratava de uma situação na qual ocorrera uma omissão total de determinação da dedução do imposto relativo aos inputs mistos, por complexidade da interpretação do regime jurídico aplicável.
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No caso vertente, a Requerente limita-se a alegar que deseja aplicar retroactivamente outra metodologia de dedução, por entender que desse modo conseguirá deduzir um montante superior do que aquele que deduziu com o método que oportunamente escolheu.
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Por outro lado, a Requerida alega a inaplicabilidade da jurisprudência invoicada pela Requerente, no que respeita a extemporaneidade e caducidade, porque tal jurisprudência se referiu sempre a situações em que os sujeitos passivos mistos não exerceram o seu direito à dedução dentro do prazo fixado pela legislação nacional, o que não é de todo o caso do actual processo.
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Pelo contrário, a Requerida invoca em apoio do seu entendimento o “Acórdão CTT” do TJUE (30 de Abril de 2020, Proc. C-661/18), lembrando quais as questões prejudiciais submetidas ao TJUE:
1) Os princípios da neutralidade, da efetividade e da equivalência e da proporcionalidade opõem-se a uma interpretação do artigo 98. °, n.° 2, do CIVA no sentido de que não se aplica a situações de alteração ou regularização de deduções já efectuadas?
2) Os referidos princípios opõem se a uma legislação como o artigo 23.°, n.ºs 1, alínea b), e 6, do CIVA, interpretados no sentido de que um sujeito passivo que tenha optado por um método de coeficiente e/ou chave de repartição para cálculo do direito à dedução do imposto suportado em bens e serviços de utilização mista e tenha efetuado a correção com base nos valores definitivos referentes ao ano a que se reporta a dedução, nos termos daquele n.° 6, não pode alterar retroativamente tais elementos, recalculando a dedução inicial já regularizada nos termos dessa norma, na sequência de liquidação retroativa de IVA relativamente a uma atividade que inicialmente considerara isenta?
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E lembrando as conclusões do TJUE nesse “Acórdão CTT”:
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De que o art. 173.°, 2, c), da Directiva IVA não se opõe a que a legislação nacional proíba a alteração, pelos sujeitos passivos, do método de dedução após a fixação do pro rata definitivo – opondo-se somente a proibições dessas em casos de ignorância, de boa fé, de que uma operação não estava isenta, quando não tenha terminado o prazo de caducidade e a alteração do método de dedução permita estabelecer com maior precisão a parte do IVA referente a operações com direito à dedução (sendo esta ressalva determinada pelas circunstâncias concretas do processo que originou o reenvio prejudicial, que tinha por base um incorrecto apuramento derivado de um erro de direito na qualificação de operações que deveriam ter sido consideradas como conferindo o direito à dedução do imposto suportado, com impacto ao nível do imposto a recuperar, determinado por uma situação de ignorância, de boa fé, por desconhecimento da alteração de entendimento vertido numa informação vinculativa da AT).
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De que relativamente ao princípio da proporcionalidade, uma legislação nacional como a que estava em causa no processo principal, que recusa aos sujeitos passivos a possibilidade de aplicar, após a fixação do pro rata definitivo, o regime de dedução por afectação, não vai além do que é necessário à cobrança exacta do IVA.
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De que o princípio da neutralidade fiscal não pode ser interpretado no sentido de que, em cada situação, deve ser procurado o método de dedução mais preciso, a ponto de exigir que se ponha sistematicamente em causa o método de dedução aplicado inicialmente, mesmo após a fixação do pro rata definitivo.
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De que o princípio da segurança jurídica exige que a situação fiscal do sujeito passivo não possa ser indefinidamente posta em causa – não se afigurando razoável exigir às autoridades fiscais que aceitem, em qualquer circunstância, que um sujeito passivo possa modificar unilateralmente o método de dedução utilizado para a determinação dos montantes de IVA a deduzir – mormente porque não se encontra estabelecido em nenhuma disposição do sistema comum do imposto, e porque a eventual obrigatoriedade de aceitação de um tal procedimento não se coaduna com o princípio da segurança jurídica, o qual protege em simultâneo, os direitos e obrigações dos sujeitos passivos e das Administrações Fiscais.
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A Requerida conclui que, não se afigurando ser de reconhecer a existência de um erro de direito que tenha conduzido à aplicação de uma metodologia errónea no apuramento do IVA dedutível, a dedução operada pela Requerente não é passível de correcção no prazo de quatro anos previsto no art. 98.º, 2, do CIVA – e, portanto, deve improceder o pedido da Requerente.
III. C. Fundamentação da decisão
III. C. 1. Quadro normativo
Sobre este assunto há a considerar o seguinte enquadramento normativo:
Artigo 173.º da Directiva n.º 2006/112/CE do Conselho, de 28-11-2006
1. No que diz respeito aos bens e aos serviços utilizados por um sujeito passivo para efetuar tanto operações com direito à dedução, referidas nos artigos 168.º, 169.º e 170.º, como operações sem direito à dedução, a dedução só é admitida relativamente à parte do IVA proporcional ao montante respeitante à primeira categoria de operações. O pro rata de dedução é determinado, em conformidade com os artigos 174.º e 175.º, para o conjunto das operações efetuadas pelo sujeito passivo.
2. Os Estados-Membros podem tomar as medidas seguintes:
a) Autorizar o sujeito passivo a determinar um pro rata para cada sector da respetiva atividade, se tiver contabilidades distintas para cada um desses sectores;
b) Obrigar o sujeito passivo a determinar um pro rata para cada sector da respetiva atividade e a manter contabilidades distintas para cada um desses sectores;
c) Autorizar ou obrigar o sujeito passivo a efeituar a dedução com base na afetação da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços;
d) Autorizar ou obrigar o sujeito passivo a efectuar a dedução, em conformidade com a regra estabelecida no primeiro parágrafo do n.º 1, relativamente a todos os bens e serviços utilizados nas operações aí referidas;
e) Estabelecer que não seja tomado em consideração o IVA que não pode ser deduzido pelo sujeito passivo, quando o respetivo montante for insignificante.
Artigo 175.º da Directiva n.º 2006/112/CE do Conselho, de 28-11-2006
1. O pro rata de dedução é determinado anualmente, fixado em percentagem e arredondado para a unidade imediatamente superior.
2. O pro rata aplicável provisoriamente a determinado ano é calculado com base nas operações do ano anterior. Na falta de tal referência, ou quando esta não seja significativa, o pro rata é estimado provisoriamente, sob controlo da administração, pelo sujeito passivo, de acordo com as suas previsões. Todavia, os Estados–Membros podem continuar a aplicar a sua regulamentação em vigor em 1 de Janeiro de 1979 ou, no que respeita aos Estados–Membros que tenham aderido à Comunidade após essa data, na data da respectiva adesão.
3. A fixação do pro rata definitivo, que é determinado para cada ano durante o ano seguinte, implica a regularização das deduções operadas com base no pro rata aplicado provisoriamente.
Artigo 184.º da Directiva n.º 2006/112/CE do Conselho, de 28-11-2006
A dedução inicialmente efectuada é objecto de regularização quando for superior ou inferior à dedução a que o sujeito passivo tinha direito.
Artigo 185.º da Directiva n.º 2006/112/CE do Conselho, de 28-11-2006
1. A regularização é efectuada nomeadamente quando se verificarem, após a declaração de IVA, alterações dos elementos tomados em consideração para a determinação do montante das deduções, por exemplo no caso de anulação de compras ou de obtenção de abatimentos nos preços.
2. Em derrogação do disposto no n.º 1, não é efectuada qualquer regularização no caso de operações total ou parcialmente por pagar, no caso de destruição, perda ou roubo devidamente comprovados ou justificados, bem como no caso das afectações de bens a ofertas de pequeno valor e a amostras referidas no artigo 16.º.
No caso de operações total ou parcialmente por pagar e nos casos de roubo, os Estados-Membros podem, todavia, exigir a regularização.
Artigo 186.º da Directiva n.º 2006/112/CE do Conselho, de 28-11-2006
Os Estados-Membros determinam as normas de aplicação dos artigos 184.º e 185.º.
Artigo 22.º do Código do IVA (Momento e modalidades do exercício do direito à dedução)
1 - O direito à dedução nasce no momento em que o imposto dedutível se torna exigível, de acordo com o estabelecido pelos artigos 7.º e 8.º, efectuando-se mediante subtracção ao montante global do imposto devido pelas operações tributáveis do sujeito passivo, durante um período de declaração, do montante do imposto dedutível, exigível durante o mesmo período.
2 - Sem prejuízo do disposto no artigo 78.º, a dedução deve ser efetuada na declaração do período ou de período posterior àquele em que se tiver verificado a receção das faturas ou de recibo de pagamento do IVA que fizer parte das declarações de importação. (Redacção do Decreto-Lei n.º 197/2012, de 24 de Agosto)
3 - Se a recepção dos documentos referidos no número anterior tiver lugar em período de declaração diferente do da respectiva emissão, pode a dedução efectuar-se, se ainda for possível, no período de declaração em que aquela emissão teve lugar.
(...)
Artigo 23.º do Código do IVA (Métodos de dedução relativa a bens de utilização mista)
1 - Quando o sujeito passivo, no exercício da sua actividade, efectuar operações que conferem direito a dedução e operações que não conferem esse direito, nos termos do artigo 20.º, a dedução do imposto suportado na aquisição de bens e serviços que sejam utilizados na realização de ambos os tipos de operações é determinada do seguinte modo:
a) Tratando-se de um bem ou serviço parcialmente afecto à realização de operações não decorrentes do exercício de uma actividade económica prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º, o imposto não dedutível em resultado dessa afectação parcial é determinado nos termos do n.º 2;
b) Sem prejuízo do disposto na alínea anterior, tratando-se de um bem ou serviço afecto à realização de operações decorrentes do exercício de uma actividade económica prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º, parte das quais não confira direito à dedução, o imposto é dedutível na percentagem correspondente ao montante anual das operações que dêem lugar a dedução.
2 - Não obstante o disposto da alínea b) do número anterior, pode o sujeito passivo efectuar a dedução segundo a afectação real de todos ou parte dos bens e serviços utilizados, com base em critérios objectivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços em operações que conferem direito a dedução e em operações que não conferem esse direito, sem prejuízo de a Direcção Geral dos Impostos lhe vir a impor condições especiais ou a fazer cessar esse procedimento no caso de se verificar que provocam ou que podem provocar distorções significativas na tributação.
3 - A administração fiscal pode obrigar o sujeito passivo a proceder de acordo com o disposto no número anterior:
a) Quando o sujeito passivo exerça actividades económicas distintas;
b) Quando a aplicação do processo referido no n.º 1 conduza a distorções significativas na tributação.
4 - A percentagem de dedução referida na alínea b) do n.º 1 resulta de uma fracção que comporta, no numerador, o montante anual, imposto excluído, das operações que dão lugar a dedução nos termos do n.º 1 do artigo 20.º e, no denominador, o montante anual, imposto excluído, de todas as operações efectuadas pelo sujeito passivo decorrentes do exercício de uma actividade económica prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º, bem como as subvenções não tributadas que não sejam subsídios ao equipamento.
5 - No cálculo referido no número anterior não são, no entanto, incluídas as transmissões de bens do activo imobilizado que tenham sido utilizadas na actividade da empresa nem as operações imobiliárias ou financeiras que tenham um carácter acessório em relação à actividade exercida pelo sujeito passivo.
6 - A percentagem de dedução referida na alínea b) do n.º 1, calculada provisoriamente com base no montante das operações realizadas no ano anterior, assim como a dedução efectuada nos termos do n.º 2, calculada provisoriamente com base nos critérios objectivos inicialmente utilizados para aplicação do método da afectação real, são corrigidas de acordo com os valores definitivos referentes ao ano a que se reportam, originando a correspondente regularização das deduções efectuadas, a qual deve constar da declaração do último período do ano a que respeita.
7 - Os sujeitos passivos que iniciem a actividade ou a alterem substancialmente podem praticar a dedução do imposto com base numa percentagem provisória estimada, a inscrever nas declarações a que se referem os artigos 31.º e 32.º
8 - Para determinação da percentagem de dedução, o quociente da fracção é arredondado para a centésima imediatamente superior.
9 - Para efeitos do disposto neste artigo, pode o Ministro das Finanças, relativamente a determinadas actividades, considerar como inexistentes as operações que dêem lugar à dedução ou as que não confiram esse direito, sempre que as mesmas constituam uma parte insignificante do total do volume de negócios e não se mostre viável o procedimento previsto nos n.os 2 e 3.
Artigo 78.º do Código do IVA (Regularizações)
(...)
6 - A correcção de erros materiais ou de cálculo no registo a que se referem os artigos 44.º a 51.º e 65.º, nas declarações mencionadas no artigo 41.º e nas guias ou declarações mencionadas nas alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 67.º é facultativa quando resultar imposto a favor do sujeito passivo, mas só pode ser efectuada no prazo de dois anos, que, no caso do exercício do direito à dedução, é contado a partir do nascimento do respectivo direito nos termos do n.º 1 do artigo 22.º, sendo obrigatória quando resulte imposto a favor do Estado.
(...)
Artigo 98.º do Código do IVA (Revisão oficiosa e prazo do exercício do direito à dedução)
(...)
2 - Sem prejuízo de disposições especiais, o direito à dedução ou ao reembolso do imposto entregue em excesso só pode ser exercido até ao decurso de quatro anos após o nascimento do direito à dedução ou pagamento em excesso do imposto, respectivamente.
III. C. 2. Delimitação do objeto do litígio
A questão que se suscita no presente processo arbitral é a de saber se, após dedução do IVA incorrido, a Requerente pode alterar o método de dedução utilizado, por ter descoberto um meio de apuramento que aumentaria os valores deduzidos – tratando-se, portanto, de uma alteração retroactiva dos critérios que presidiram à escolha do método de dedução relativamente às despesas em causa, à data da entrega das declarações periódicas em análise.
Por outras palavras, a Requerente alega, na essência, que deseja aplicar retroactivamente outra metodologia de dedução, por entender que, desse modo, conseguirá deduzir um montante superior àquele que deduziu com o método que oportunamente escolheu.
A situação em apreço não envolve, portanto:
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Nem o exercício de um direito à dedução de IVA que nunca tenha sido deduzido, porque essa dedução já se deu;
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Nem uma verdadeira correcção da dedução do IVA incorrido nos recursos de utilização mista; mas, antes, a alteração de pressupostos e métodos de cálculo dessa dedução.
Afigura-se, assim, que o que está em causa é, muito simplesmente, a obtenção da vantagem económica que resultaria da substituição de metodologias de cálculo da dedução de IVA, aquela que foi licitamente utilizada por uma outra que resultaria em valores superiores de dedução – mas ambas igualmente lícitas e ambas ao dispor da opção do sujeito passivo.
Não está em causa a correcção de liquidações assentes em falta de dedução ou cumulação de deduções, ou assentes em incorrecta interpretação ou aplicação de regimes de dedução, das quais tivesse resultado uma entrega de imposto que, em termos gerais e abstractos, não fosse exigível de ninguém – tornando-se objectivamente excessiva.
Está somente em causa, ao invés, o arrependimento do sujeito passivo relativamente à escolha que lhe coube fazer, e que ele fez dentro do quadro aplicável do art. 23.º do CIVA, com os resultados legitimados pela aplicação dessa norma – gerando, pois, um resultado que é normal e legítimo; ou seja, que, à luz do quadro normativo aplicável, podia ser exigido, com generalidade e abstracção, de qualquer sujeito passivo nas mesmas condições.
Cabe lembrar que o regime de deduções instituído pela Directiva IVA tem por objectivo desonerar por completo o empresário do encargo do IVA devido ou pago no quadro de todas as suas actividades económicas – já que o sistema comum do IVA visa garantir a neutralidade quanto à carga fiscal de todas as actividades económicas, independentemente dos respectivos fins ou resultados, desde que essas actividades estejam, em princípio, elas próprias sujeitas a IVA.
Resulta do quadro normativo que quaisquer correcções ao cálculo do montante de dedução, apurado provisoriamente durante um determinado ano civil, devem ser efectuadas no final desse mesmo ano, tendo por base os valores definitivos das operações realizadas.
Compreende-se que o mesmo art. 23.º do CIVA não viabilize, por isso, e salvo erro ou vício, qualquer alteração posterior do método de dedução, a qual teria óbvias implicações em matéria de segurança jurídica; e, pela mesma razão, percebe-se que nenhuma norma do sistema comum do IVA, ou da legislação interna portuguesa, viabilize a alteração retroactiva do método de dedução, por iniciativa de um sujeito passivo que, após ter determinado o imposto dedutível e procedido à autoliquidação do IVA de acordo com o método que lhe foi permitido escolher, venha, mais tarde, tentar derrogar retroactivamente a respectiva aplicação, procurando aplicar pressupostos diferentes, em execução dos quais constrói diversas variantes de metodologia e de imputação que lhe sejam mais favoráveis para o cálculo das deduções de IVA.
O art. 23.º do CIVA permite que a dedução efectuada ao longo do ano possa ser corrigida na última declaração periódica do ano, mas apenas pela natureza provisória da dedução do imposto realizada até esse momento – momento em que a dedução se consolida e se torna definitiva – salvo verificação de algum vício.
Assim, tendo o sujeito passivo optado, no âmbito da sua autonomia, por um dos métodos previstos no CIVA, não lhe é concedido alterar posteriormente o método de dedução utilizado, que é legitimado pelo exercício da opção – devendo presumir-se, salvo prova em contrário (de verdadeiros erros e vícios, objectivamente demonstrados), que, no exercício da aludida opção, o sujeito passivo tinha um perfeito conhecimento de toda a factualidade e da legislação aplicável, tendo tomado uma decisão consciente pela autoliquidação, nos precisos termos em que o fez.
Sendo que, por outro lado, os factos e a legislação aplicável não sofreram qualquer alteração posterior que pudesse legitimar objectivamente uma modificação dos pressupostos da opção do sujeito passivo, em termos de se poder alegar uma eventual alteração de circunstâncias.
Salvo essas hipóteses, e como se lê na doutrina:
“é incontroverso na jurisprudência que a dedução de IVA é um direito exclusivo dos sujeitos passivos e não um poder-dever, o qual pode ou não ser exercido, não podendo a AT substituir-se-lhes nesse direito, para além de, atento o caráter formalista do imposto, o direito à dedução estar sujeito ao cumprimento das formalidades previstas no CIVA, designadamente temporais. (...) na dedução relativa a bens mistos, os sujeitos passivos podem optar pelos métodos de dedução previstos no art.º 23.º do CIVA. A opção por um método em detrimento de outro é uma necessidade decorrente do regime aplicável, não sendo legítima a invocação de um erro quando o sujeito passivo se limitou a optar por um dos métodos que estava ao seu dispor (…) [quanto à segregação de custos associados a específicos sectores de actividade de um sujeito passivo misto, ela] tem de ser realizada no momento do exercício da dedução, não sendo aceitáveis alegações de erro com base em segregações de custos só posteriormente realizadas”[2].
Trata-se, em suma, na base do pedido que originou o presente processo, de uma avaliação subjectiva de vantagens comparativas de metodologias de cálculo e de dedução igualmente lícitas – percebendo-se perfeitamente que, consumada uma escolha, o sujeito passivo se arrependa de ter seguido por um caminho, em detrimento de outro, ambos legítimos mas com resultados diversos.
Mas essa situação, de “custo de oportunidade”, não corresponde – de modo algum – a um “erro de direito”: é, antes, uma consequência normal, não-patológica, de qualquer escolha, que acarreta benefícios e custos, ganhos e perdas.
Concluindo-se não haver “erro de direito”, soçobra uma grande parte da fundamentação apresentada pela Requerente – a qual usou esse alegado “erro de direito” como premissa para a maior parte dos seus argumentos.
É de notar que, no âmbito do Proc. n.º 01427/14 do STA, que a Requerente invoca a seu favor, estava em causa uma omissão total de determinação da dedução do imposto relativo aos inputs mistos, por complexidade de interpretação do regime jurídico aplicável; mas, no caso presente, não se descortina que tenha ocorrido qualquer equívoco na interpretação do regime jurídico aplicável, que tenha implicado a não-dedutibilidade integral do IVA que correspondia à opção exercida pelo sujeito passivo, nem se vislumbra qualquer errado enquadramento em sede de IVA, qualquer influência de instruções administrativas, que pudessem ter-se como indutores de um vício na liquidação de IVA.
Em contrapartida, com aplicação directa ao caso em apreço, o “Acórdão CTT” do TJUE, de 30 de Janeiro de 2020 (Proc. n.º C-661/18) esclarece muitas das dúvidas que poderiam subsistir:
“Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 173.º da Diretiva IVA, lido à luz dos princípios da neutralidade fiscal, da efetividade, da equivalência e da proporcionalidade, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a que um Estado-Membro que, ao abrigo dessa disposição, autoriza os sujeitos passivos a efetuar a dedução do IVA com base na afetação da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços utilizados para efetuar tanto operações com direito à dedução como operações sem direito à dedução proíba esses sujeitos passivos de alterar o método de dedução após a fixação do pro rata definitivo.
A fim de responder a esta questão, importa recordar que, por força do artigo 173.º, n.º 1, segundo parágrafo, da Diretiva IVA, o pro rata de dedução é determinado, em conformidade com os artigos 174.º e 175.º desta diretiva, para o conjunto das operações efetuadas pelo sujeito passivo por referência ao volume de negócios. No entanto, nos termos do artigo 173.º, n.º 2, alínea c), da referida diretiva, os Estados-Membros podem autorizar ou obrigar o sujeito passivo a efetuar a dedução com base na afetação da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços [v., neste sentido, Acórdão de 18 de outubro de 2018, Volkswagen Financial Services (UK), C-153/17, EU:C:2018:845, n.os 49 e 50].
No caso em apreço, é pacífico que, ao abrigo desta última disposição, o legislador português autorizou os sujeitos passivos mistos a efetuar a dedução com base na afetação da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços e que os CTT tinham, portanto, a opção de efetuar as suas deduções de IVA de bens e de serviços de utilização mista através do método do pro rata ou com base no método da afetação.
A este respeito, há que salientar que, em virtude do artigo 173.º, n.º 2, alínea c), da Diretiva IVA, a aplicação do regime de dedução do IVA por afetação da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços é uma opção facultativa de que os Estados-Membros dispõem na organização do seu regime de tributação. No entanto, embora os Estados-Membros gozem de margem de apreciação na escolha das medidas a adotar para assegurar a cobrança exata do IVA e evitar a fraude, estão obrigados a exercer a sua competência no respeito do direito da União e dos seus princípios gerais, designadamente dos princípios da proporcionalidade, da neutralidade fiscal e da segurança jurídica (v., neste sentido, Acórdãos de 8 de novembro de 2012, BLC Baumarkt, C-511/10, EU:C:2012:689, n.os 22 e 23, e de 17 de maio de 2018, Vámos,C-566/16, EU:C:2018:321, n.º 41 e jurisprudência referida).
(…)
Resulta do que precede que o artigo 173.º, n.º 2, alínea c), da Diretiva IVA, lido à luz dos princípios da neutralidade fiscal, da segurança jurídica e da proporcionalidade, deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a que um Estado-Membro que, ao abrigo dessa disposição, autoriza os sujeitos passivos a efetuar a dedução do IVA com base na afetação da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços utilizados para efetuar tanto operações com direito à dedução como operações sem direito à dedução proíba esses sujeitos passivos de alterar o método de dedução do IVA após a fixação do pro rata definitivo.”
Como acabámos de ver, no n.º 34 do referido acórdão, o TJUE sublinha que os Estados-Membros “estão obrigados a exercer a sua competência no respeito do direito da União e dos seus princípios gerais, designadamente dos princípios da proporcionalidade, da neutralidade fiscal e da segurança jurídica”. E desenvolve:
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Proporcionalidade: “relativamente ao princípio da proporcionalidade, que este não se opõe a que um Estado Membro que fez uso da faculdade de conceder aos seus sujeitos passivos o direito de optar por um regime especial de tributação adote uma regulamentação que faz depender a aplicação desse regime da obtenção prévia de uma aprovação, não retroativa, por parte da Administração Tributária, e que o facto de o procedimento de aprovação não ser retroativo não torna este procedimento desproporcionado. Por conseguinte, uma legislação nacional como a que está em causa no processo principal, que recusa aos sujeitos passivos a possibilidade de aplicar, após a fixação do pro rata definitivo, o regime de dedução por afetação, não vai além do que é necessário à cobrança exata do IVA.” (n.º 35).
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Neutralidade: “é certo que decorre da jurisprudência do Tribunal de Justiça que os Estados Membros podem, em conformidade com o artigo 173.º, n.º 2, alínea c), da Diretiva 2006/112, aplicar, relativamente a uma determinada operação, um método ou uma chave de repartição diferente do método baseado no volume de negócios, desde que, em virtude desse princípio da neutralidade fiscal, esse método garanta uma determinação do pro rata de dedução do IVA pago a montante mais precisa do que a resultante da aplicação do método baseado no volume de negócios. Assim, qualquer Estado Membro que decida autorizar ou obrigar o sujeito passivo a efetuar a dedução com base na afetação da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços deve garantir que as modalidades de cálculo do direito à dedução permitam estabelecer com a maior precisão a parte do IVA relativa às operações que conferem direito à dedução. Com efeito, o princípio da neutralidade fiscal inerente ao sistema comum do IVA exige que as modalidades de cálculo da dedução reflitam objetivamente a parte real das despesas ocasionadas pela aquisição de bens e serviços de utilização mista que pode ser imputada a operações que conferem direito à dedução (...) o princípio da neutralidade fiscal não pode ser interpretado no sentido de que, em cada situação, deve ser procurado o método de dedução mais preciso, a ponto de exigir que se ponha sistematicamente em causa o método de dedução aplicado inicialmente, mesmo após a fixação do pro rata definitivo.”. (n.os 36 a 38).
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Segurança jurídica: “exige que a situação fiscal do sujeito passivo, atentos os seus direitos e obrigações face à Administração Tributária, não possa ser indefinidamente posta em causa (v., neste sentido, Acórdãos de 6 de fevereiro de 2014, Fatorie, C 424/12, EU:C:2014:50, n.º 46, e de 17 de maio de 2018, Vámos, C 566/16, EU:C:2018:321, n.º 51). Ora, como recorda acertadamente o Governo português, não se afigura razoável exigir às autoridades fiscais que aceitem, em qualquer circunstância, que um sujeito passivo possa modificar unilateralmente o método de dedução utilizado para a determinação dos montantes de IVA a deduzir.” (n.º 41).
Retenhamos, do “Acórdão CTT”, que ele concluiu que, relativamente ao princípio da proporcionalidade, uma legislação nacional como a que estava em causa naquele processo principal, que recusava aos sujeitos passivos a possibilidade de aplicar, após a fixação do pro rata definitivo, o regime de dedução por afectação, que ela estava justificada por não ir além do que é necessário à cobrança exacta do IVA; relativamente ao princípio da neutralidade fiscal, que este não pode ser interpretado no sentido de que, em cada situação, deve ser procurado o método de dedução mais preciso, a ponto de exigir que se ponha sistematicamente em causa o método de dedução aplicado inicialmente, mesmo após a fixação do pro rata definitivo; e quanto ao princípio da segurança jurídica, que este exige que a situação fiscal do sujeito passivo não possa ser indefinidamente posta em causa – não se afigurando razoável exigir às autoridades fiscais que aceitem, em qualquer circunstância, que um sujeito passivo possa modificar unilateralmente o método de dedução utilizado para a determinação dos montantes de IVA a deduzir – mormente porque não se encontra estabelecido em nenhuma disposição do sistema comum do imposto, e porque a eventual obrigatoriedade de aceitação de um tal procedimento não se coaduna com o referido princípio da segurança jurídica, o qual protege, em simultâneo, tanto os direitos e obrigações dos sujeitos passivos como os das Administrações Fiscais.
Registe-se ainda que, no processo n.º C‑661/18, o TJUE acabou por admitir a alteração do método de dedução, porquanto no seu caso concreto (aquele que suscitou o reenvio prejudicial) estava subjacente um incorrecto apuramento derivado de um erro de direito na qualificação de operações, determinado por uma situação de ignorância, de boa fé, por desconhecimento da alteração de entendimento vertido numa informação vinculativa da AT. Mas o mesmo não se passa na situação em apreço, na qual a Requerente revela dispor de perfeito conhecimento de todos os pressupostos e métodos disponíveis, e se limita a pretender enveredar por novos pressupostos e métodos, por arrependimento das opções que oportunamente, e livremente, tomou.
Resulta assim que o quadro do direito da União reforça o regime segundo o qual, sendo o direito à dedução uma faculdade na disponibilidade dos sujeitos passivos, o exercício dessa faculdade está sujeito ao cumprimento de determinadas formalidades, designadamente, temporais – sendo uma delas, que a aplicação retroactiva de um método de dedução apenas pode ser realizada até à data constante do art. 23.º, 6 do CIVA, ou seja, até à última declaração periódica do ano a que respeita; sendo que, no caso, a Requerente fez uma opção no momento do nascimento do direito à dedução, conforme estabelecido no art. 22.º, 1 do CIVA – opção que se encontra no âmbito da autonomia de actuação permitida pelo imposto, e é materializada na autoliquidação efectuada pelo próprio sujeito passivo.
Devendo enfatizar-se que, no quadro normativo relevante, a escolha de um método de dedução constitui uma opção legítima do sujeito passivo, que, no momento da aquisição do bem ou serviço de utilização mista, escolheu o método de cálculo do direito à dedução do IVA, que, no seu entender, melhor se coadunava com a sua realidade empresarial, e nunca de um erro, pelo que não é passível de enquadramento no artigo 78.º, 6 do CIVA, o qual se reporta exclusivamente à correcção de “erros materiais ou de cálculo”, como a própria Requerente reconhece; mas também não cabendo na previsão do art. 98.º do CIVA, desde logo porque esta norma se aplica apenas a situações de exercício do direito à dedução, e não a regularizações de deduções já efectuadas, não tendo a vocação de “cláusula geral” ou de norma “supletiva” ou “residual” (uma alegada “norma geral em matéria de direito à dedução e regularização da dedução em sede de IVA”), vias que, aliás, nunca teriam cabimento nos domínios do direito público, dada a sua necessária adstrição ao «princípio da competência», diametralmente oposto ao «princípio da liberdade» que rege o direito privado.
A mesma dicotomia veda argumentos que presumem existir “habilitação” em direito público como consequência directa da “ausência de proibição”, como o argumento de que seria possível a modificação da metodologia de dedução de IVA apenas porque não existe nada que o proíba; porque tal argumento só pode ser válido nos domínios do direito privado, no qual é permitido tudo o que não for expressamente proibido – enquanto que, no direito público, o «princípio da competência» dita que seja proibido tudo o que não for expressamente permitido.
Além disso, da interpretação do art. 98.º, 2 do CIVA resulta que a ressalva inicial daquela norma, a expressão “Sem prejuízo de disposições especiais”, vem reforçar a ideia de que o artigo 23.º, 6 do CIVA é, em relação àquela, uma norma especial (uma “disposição especial”) – ficando o art. 98.º, 2 reservado àquelas situações em que não houve registo e contabilização da factura ao abrigo do art. 45.º do CIVA, concedendo-se essa possibilidade de exercer o direito à dedução por respeito ao princípio da neutralidade fiscal, não se inibindo o exercício, pelo sujeito passivo, do direito à dedução.
Fora desta hipótese, uma aplicação mais ampla do art. 98.º, 2, como se ela fosse uma “cláusula geral” ou uma norma “supletiva”, contenderia com a certeza jurídica que deve nortear a relação jurídico-tributária, nos domínios do Direito Público: pois, ao menos em termos de consequências práticas, não permitiria que o mecanismo do art. 23.º, 6 do CIVA conduzisse à consolidação, no fim de cada período anual, do pro rata pretensamente “definitivo”, expondo os quatro anos subsequentes a recálculos, regularizações, reembolsos.
Ora, é o próprio TJUE que, no “Acórdão CTT”, e como vimos, admite que a solução do art. 23.º, 6 do CIVA (consonante com o art. 173.º da Directiva IVA), tornando definitivo o pro rata (ressalvados erros e vícios comprovados), não põe em causa os princípios da proporcionalidade, da neutralidade e da segurança jurídica.
O que se compreende: no fundo, o art. 23.º, 6 do CIVA concede ao sujeito passivo um ano inteiro para confirmar a exactidão dos cálculos baseados em documentação fidedigna (como as facturas) e na substância das operações tituladas presumivelmente pelas facturas – um prazo extenso, mas justificado pela maior complexidade de situações em que o pro rata de dedução do imposto não é de 100%: procurando assegurar que quaisquer correcções ao cálculo do montante de dedução apurado provisoriamente durante um determinado ano civil sejam efectuadas no final desse mesmo ano, tendo por base os valores definitivos das operações realizadas.
Não será de mais recordar que o direito à dedução do IVA constitui a característica-chave que alicerça todo o mecanismo do sistema subjacente a este imposto, visando libertar o agente económico do ónus do IVA (devido ou pago) no âmbito da sua actividade económica, sob condição de tal actividade estar igualmente sujeita a IVA – sendo, portanto, o regime do direito à dedução do IVA a própria concretização e manifestação do princípio da neutralidade fiscal do imposto.
Uma razão mais, portanto – e esta nuclear – para impedir que o sujeito passivo que optou, no exercício da autonomia que lhe é concedida, por um dos métodos previstos no CIVA, tente alterar o método de dedução utilizado quando se constituiu o direito à dedução nos termos do CIVA, baseado apenas em preferências suas e não em qualquer tipo de erro objectivamente aferível. Com efeito, não se afigura razoável exigir às autoridades fiscais que aceitem, em qualquer circunstância, que, dentro do prazo de caducidade, e até eventualmente depois dele (com a invocação da proeminência do princípio da neutralidade), um sujeito passivo possa modificar unilateralmente o método de dedução utilizado para a determinação dos montantes de IVA a deduzir, na ausência de um erro ou vício que tenha relevância expressamente consagrada no quadro normativo aplicável.
Assim, não havendo erro de direito, antes simples mudança de preferências quanto aos pressupostos e métodos inerentes à opções legítimas disponíveis, com o pedido de aplicação retroactiva dessas novas opções ao método de dedução relativo à aquisição de serviços que a Requerente contabilizou como encargos de utilização mista, a pretensão da Requerente carece de base legal, devendo, por isso, considerar-se improcedentes os fundamentos invocados, com todas as consequências legais – designadamente, improcedendo o pedido de anulação da autoliquidação, devendo considerar-se correcta a decisão da AT em relação à Reclamação Graciosa, e devendo manter-se na ordem jurídica o acto de indeferimento dessa Reclamação Graciosa e a autoliquidação, na parte contestada e identificada no presente pedido.
III. C. 3. Aplicação uniforme do Direito.
Na fundamentação da decisão, e em obediência ao princípio geral consagrado no art. 8º, 3 do Código Civil, seguimos de perto as decisões arbitrais proferidas nos Processos n.os 136/2018-T, 804/2021-T, 611/2022-T, 649/2022-T, e 646/2023-T, todos do CAAD.
III. C. 4. Matérias de conhecimento prejudicado
Foram conhecidas e apreciadas as questões relevantes submetidas à apreciação deste Tribunal, não o tendo sido aquelas cuja decisão ficou prejudicada pela solução dada a outras, ou cuja apreciação seria, por isso, inútil – art. 608.º do CPC, ex vi art. 29º, 1, e) do RJAT.
IV. Decisão
Nos termos expostos, acordam neste Tribunal Arbitral em:
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Julgar totalmente improcedente o pedido de pronúncia arbitral, mantendo na ordem jurídica os actos tributários ora sindicados;
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Absolver do pedido a Requerida, Autoridade Tributária e Aduaneira;
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Condenar a Requerente no pagamento das custas do processo.
V. Valor do processo
Fixa-se o valor do processo em € 187.655,13 (cento e oitenta e sete mil, seiscentos e cinquenta e cinco euros e treze cêntimos), nos termos do disposto no art.º 97.º-A do CPPT, aplicável ex vi art.º 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT e art.º 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processo de Arbitragem Tributária (RCPAT).
VI. Custas
Custas no montante de € 3.672,00 (três mil, seiscentos e setenta e dois euros) a cargo da Requerente, nos termos da Tabela I do RCPAT e artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4, do RJAT.
Lisboa, 28 de Março de 2025.
Os Árbitros
Fernando Araújo
Marta Vicente
Ricardo Rodrigues Pereira
[1] Ou no acórdão do TCAS de 28 de Setembro de 2017 (Proc. n.º 263/16.0BELLE), ou no acórdão arbitral do Proc. n.º 447/2021-T.
[2] João Canelhas Duro, “Dedução de IVA, Regularizações e Revisão da Autoliquidação”, CADERNOS IVA 2015, Almedina, pp. 345 e seguintes.
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