SUMÁRIO:
1. A verba 2.23, da Lista I, anexa ao CIVA, na redação anterior à Lei n.º 56/2023, de 6 de outubro, tem aplicação quando se verifiquem as seguintes condições: (a) estarmos perante uma empreitada de reabilitação urbana, conforme legalmente definida e (b) a empreitada de reabilitação urbana realizar-se em imóvel ou espaço público localizados em Área de Reabilitação Urbana, legalmente delimitada.
2. Para além das condições referidas, nem da letra, nem do espírito da lei resultava qualquer outra exigência para a aplicação da taxa reduzida de IVA, ao abrigo da mencionada verba 2.23, na redação anterior à Lei n.º 56/2023, de 6 de outubro, designadamente, a prévia aprovação de uma operação de reabilitação urbana para o território em causa.
DECISÃO ARBITRAL
Os Árbitros Rui Duarte Morais, Cristina Coisinha e Francisco Nicolau Domingos, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formar o Tribunal Arbitral, acordam no seguinte:
I. RELATÓRIO
1. A..., LDA., com sede na Rua ..., n.º ..., ..., contribuinte n.º ..., vem, na sequência da decisão de indeferimento da reclamação graciosa n.º ...2023..., deduzida contra os atos de liquidação de Imposto sobre o Valor Acrescentado (“IVA”) n.º 2023 ... referente ao período 2022/02, no montante de 3856,24 euros; n.º 2023 ... referente ao período de 2022/03, no montante de 3931,15 euros; n.º 2023 ... referente ao período 2022/04, no montante de 3727,43 euros e que determina o montante, de 2 886,20 euros, a pagar; n.º 2023 ... referente ao período 2022/05, no montante de 7146,41 euros e que não determinou imposto a pagar (atendendo aos valores de IVA a favor do contribuinte nesse período); n.º 2023... referente ao período 2022/06, no montante de 16 864,41 euros e que não determinou imposto a pagar (atendendo aos valores de IVA a favor do contribuinte nesse período); n.º 2023... referente ao período 2022/07, no montante de 36 600,15 euros e que determina, o montante de 1018,08 euros a pagar; e de juros compensatórios (i) n.º 2023... referente ao período 2022/02, no valor de 109,45 euros; (ii) n.º 2023... referente ao período 2022/03, no valor de 99,08 euros; (iii) n.º 2023... referente ao período 2022/04, no valor de 62,31 euros; nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a), e 10.º, todos do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, na redação vigente, requerer a constituição de Tribunal Arbitral e apresentar pedido de pronúncia arbitral, com vista à declaração de ilegalidade da referida decisão de indeferimento e, mediatamente, dos atos tributários antecedentes que dela foram objeto.
2.O pedido de constituição do Tribunal Arbitral apresentado em 2 de agosto de 2024 foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD, no dia 6 de agosto de 2024, e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT” ou “Requerida”), no mesmo dia.
3. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a) e do artigo 11.º, n.º 1, alínea a), ambos do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do Tribunal Arbitral, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável. As partes foram notificadas dessa designação, em 24 de setembro de 2024, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.
4. O Tribunal Arbitral coletivo ficou constituído em 14 de outubro de 2024, tendo sido a Requerida notificada, no mesmo dia, para apresentar a sua resposta.
5. A Requerida apresentou, em 18 de novembro de 2024, resposta e juntou aos autos o processo administrativo (“PA”). Defendeu que as liquidações dever-se-ão manter na ordem jurídica, na medida em que a tributação da reabilitação urbana, com a taxa reduzida de IVA, exige uma Operação de Reabilitação Urbana (“ORU”).
6. O Tribunal Arbitral decidiu dispensar, por desnecessárias, a reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT e as alegações finais escritas, por despacho datado de 6 de março de 2025.
II. POSIÇÕES DAS PARTES
7. A Requerente defende que as liquidações impugnadas devem ser anuladas por erro na qualificação do facto tributário e por violação do artigo 14.º do Regime Jurídico da Reabilitação Urbana (“RJRU”) e do artigo 18.º, n.º 1, alínea a), do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado (“CIVA”).
8. A pretensão anulatória alicerça-se nos seguintes fundamentos:
-
A aplicação da taxa reduzida de IVA nos contratos de empreitada objeto dos autos é perfeitamente legal, na medida em que respeitam a reabilitação de prédios localizados em Área de Reabilitação Urbana (“ARU”) válida e eficaz;
-
A própria Requerida preconiza (em 2018) que, na sua doutrina, a aplicação da taxa reduzida de IVA nas empreitadas de reabilitação urbana se bastava com a existência da ARU (ficha doutrinária no processo n.º 13957, de 3 de agosto de 2018 e (ficha doutrinária) no processo n.º 13835, de 26 de julho de 2018, da Diretora de Serviços de IVA);
-
A Requerida alterou o seu entendimento - propugna agora que aplicação da taxa reduzida exige uma ORU - sem que a letra da lei tivesse sido alterada, circunstância que constitui uma violação do princípio da confiança que deve presidir às relações entre a Requerida e os contribuintes;
-
A Requerente cumpre, sem margem para dúvidas, dois requisitos, de verificação cumulativa, da verba 2.23, da Lista I, anexa ao CIVA: a existência de empreitadas e a localização de prédios em ARU;
-
Os artigos 2.º, 7.º, 15.º do RJRU não exigem (como a Requerida propugna), a existência de ORU para aceder aos benefícios fiscais, basta que a ARU esteja em vigor para que se possam executar ações (empreitadas) de reabilitação urbana;
-
As empreitadas objeto dos autos foram executadas em 2022, dentro dos três anos posteriores à aprovação das respetivas ARU’s.
9. Defende, ainda, que as liquidações de juros compensatórios devem ser expurgadas da ordem jurídica, perante a ilegalidade das liquidações de IVA.
10. Acrescenta que, se os atos tributários são ilegais, tem direito ao reembolso da quantia indevidamente paga. Arroga-se, ainda, no direito ao recebimento de juros indemnizatórios, perante a existência de erro “imputável aos serviços”.
11. A Requerida apresentou resposta, na qual sustenta, no essencial, que a utilização da taxa reduzida de IVA fica dependente da existência de ORU, relativamente às ARU onde se localizam os prédios.
12. Alega, em defesa da referida tese, o seguinte:
-
O conceito de “empreitada de reabilitação urbana” não se preenche somente com a localização em ARU, exige ainda a aprovação de uma ORU, por aplicação do artigo 7.º, n.º 1, do RJRU;
-
A referida interpretação é reforçada com o facto de uma ARU caducar se, no prazo de três anos, não tiver sido aprovada a correspondente ORU (artigo 15.º do RJRU);
-
No caso sub iudice, se não foi aprovada ORU respeitante à ARU, de cada um dos prédios, não podem as obras ser tributadas à taxa reduzida de 6% (prevista no artigo 18.º, n.º 1, alínea a), do CIVA), mas à taxa normal de 23%.
13.Conclui sustentando que: estando a pretensão anulatória votada ao insucesso, incluindo o pedido de condenação no pagamento de juros indemnizatórios, por não se verificar qualquer erro “imputável aos serviços”, os atos tributários manter-se-ão na ordem jurídica.
III. SANEAMENTO
O Tribunal Arbitral coletivo foi regularmente constituído e é materialmente competente para conhecer do pedido, que foi tempestivamente apresentado nos termos dos artigos 5.º e 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e estão regularmente representadas, em conformidade com o disposto nos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, ambos do RJAT.
Admite-se a cumulação de pedidos – estão em causa diversos atos tributários de IVA, sendo peticionada a declaração de ilegalidade e a anulação de cada um deles – em virtude de se verificar que a procedência dos pedidos formulados pela Requerente depende, essencialmente, da apreciação das mesmas circunstâncias de facto e da interpretação e aplicação dos mesmos princípios ou regras de direito (artigo 3.º, n.º 1, do RJAT).
O processo não enferma de nulidades, nem existem outras exceções ou questões prévias que cumpram conhecer e que obstem à apreciação do mérito da causa.
IV. MATÉRIA DE FACTO
i. Factos provados
-
A Requerente é uma sociedade que se dedica à prestação de serviços de construção civil em edifícios residenciais e não residenciais, novos ou reabilitados.
(PA)
-
A Requerente é um sujeito passivo enquadrado no regime normal, com periodicidade mensal, por opção.
(PA)
-
A Requerente prestou serviços de construção civil a B..., através de contrato de empreitada respeitante a trabalhos executados para construção de habitação unifamiliar, sita na Rua ..., n.º ..., freguesia de ..., ... .
(PA)
-
A empreitada referida na alínea anterior destinou-se a reabilitar o prédio, inserido na ARU do centro de ... e do centro de ..., Aviso n.º 11362/2015 do Município de ... e Aviso n.º 8883/2017 do Município de ..., publicados no Diário da República, 2.ª série, de 5 de outubro de 2015 e de 7 de agosto de 2017, respetivamente.
(PA)
-
A Câmara Municipal de ... emitiu certidão relativamente ao prédio suprarreferido e na qual consta que: “[a] empreitada destinada a obra de construção, poderá beneficiar da taxa reduzida de 6% de IVA, nos termos da alínea a), do n.º 1, do artigo 18.º do CIVA, Norma [verba] 2.23 da lista I anexa [ao CIVA]”.
(PA)
-
A Requerente prestou, ainda, serviços de construção civil a C... através de contrato de empreitada respeitante a trabalhos executados para reabilitação de edifício, localizado na Rua ..., ...-..., Porto.
(PA)
-
A empreitada referida no número anterior destinou-se a reabilitar o prédio descrito na alínea anterior, inserido na ARU, com delimitação aprovada com fonte no artigo 13.º, n.º 1, do RJRU, Aviso n.º 7763/2021 do Município do Porto, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 27 de abril de 2021.
(PA)
-
A Câmara Municipal do Porto lavrou certidão relativamente ao prédio suprarreferido e na qual consta que foi emitida para “[e]feitos de benefícios fiscais (aplicação da taxa reduzida de 6% prevista na verba 2.23 da Lista I anexa ao CIVA…”.
(PA)
-
A Requerente foi objeto de um procedimento de inspeção interno, com a Ordem de Serviço n.º OI2022..., no qual se concluiu que:
(…)
Deste modo, as obras em causa, dizem respeito a imóveis, inserido em ARU cujas ORU não se encontram aprovadas, pelo que, não existindo ORU aprovada, não se pode enquadrar as referidas obras numa empreitada de reabilitação urbana, “tal como definida em diploma específico”, pelo que, não será aplicável a taxa reduzida do imposto a que se refere a al. a) do n.º 1 do art.º 18.º do CIVA, mas sim a taxa normal (23%), definida na al. c) do mesmo preceito e normativo legal. Tendo em conta todo o exposto, é aqui proposto a correção ao IVA liquidado, nos períodos compreendidos entre 2022/01 a 2022/08, no montante total de 72.225,76 EUR, conforme se resume no quadro seguinte, por período de imposto:
Período
(1)
|
Base Tributável
(2)
|
Declarado
Tx reduzida
(3)
|
Corrigido
Taxa normal
(4=2x23%)
|
Correção
(5=4-3)
|
DP IVA 2022/02
|
22 683,73
|
1 361,02
|
5 217,26
|
3 856,24
|
DP IVA 2022/03
|
23 124,26
|
1 387,46
|
5 318,58
|
3 931,12
|
DP IVA 2022/04
|
21 926,09
|
1 315,57
|
5 043,00
|
3 727,43
|
DP IVA 2022/05
|
42 625,96
|
2 557,56
|
9 803,97
|
7 246,41
|
DP IVA 2022/06
|
99 202,45
|
5 952,15
|
22 816,56
|
16 864,41
|
DP IVA 2022/07
|
215 295,00
|
12 917,70
|
49 517,85
|
36 600,15
|
Total
|
424 857,49
|
25 491,46
|
97 717,22
|
72 225,76
|
Assim, em sede de IVA, nos termos do art.º 87.º do respetivo Código, deverá ser corrigido o imposto liquidado, conforme quadro supra, num montante global de 72.225,76 EUR.
(PA)
-
Do procedimento inspetivo resultou o apuramento de imposto em falta, correspondente à diferença entre a taxa de 6% autoliquidada pela Requerente e a taxa de 23% que a AT considera devida, tendo sido emitidas:
-
a liquidação adicional de IVA n.º 2023..., referente ao período 2022/02T, no valor de 3856,24 euros e a liquidação de juros compensatórios do mesmo período, no valor de 109,45 euros;
-
a liquidação adicional de IVA n.º 2023..., referente ao período 2022/03T, no valor de 3931,15 euros e a liquidação de juros compensatórios do mesmo período, no valor de 99,08 euros;
-
a liquidação adicional de IVA n.º 2023..., referente ao período 2022/04T, no valor de 3727,43 euros (com imposto a pagar de 2886,20 euros) e a liquidação de juros compensatórios do mesmo período, no valor de 62,31 euros;
-
a liquidação adicional de IVA n.º 2023..., referente ao período 2022/05T, no valor de 7146,41 euros (não determinou imposto a pagar, atendendo aos valores de IVA a favor da Requerente nesse período);
-
a liquidação adicional de IVA n.º 2023..., referente ao período 2022/06T, no valor de 16 864,41 euros (não determinou imposto a pagar, atendendo aos valores de IVA a favor da Requerente nesse período);
-
a liquidação adicional de IVA n.º 2023..., referente ao período 2022/07T, no valor de 36 600,15 euros (com o imposto a pagar de 1 018,08 euros, atendendo aos valores de IVA a favor da Requerente nesse período).
(PA)
-
As liquidações foram pagas no dia 6 de março de 2023.
(Documento junto pela Requerente, sob o n.º 1, com o pedido de pronúncia arbitral)
-
A Requerente apresentou reclamação graciosa das referidas liquidações.
(PA)
-
A reclamação graciosa foi indeferida por despacho datado de 8 de julho de 2024, com os seguintes fundamentos:
50. Para serem enquadráveis na verba 2.23 da Lista I anexa ao Código do IVA, os serviços de construção civil adquiridos, têm que cumprir três condições:
• Têm de ser prestados em regime de empreitada, de acordo com as disposições do Decreto-Lei n.º 41/2015, que estabelece o regime jurídico aplicável ao exercício da atividade da construção.
• O imóvel objeto de intervenção tem de se situar numa área de reabilitação definida pelo Município;
• A empreitada tem de ser qualificada de reabilitação urbana certificada.
51. Assim, a localização de um prédio em área de reabilitação urbana não constitui, por si só, condição suficiente para o enquadramento no conceito de reabilitação urbana, sendo esta certificação da competência da Câmara Municipal do concelho onde se localiza o imóvel.
52. Relativamente à empreitada localizada no Centro de ... e ..., não obstante a empreitada ter ocorrido na área delimitada por ARU aprovada pelo Município de..., não existia à data da realização da empreitada e da faturação aqui em discussão, ORU aprovada, facto que aquele Município veio reiterar na certidão emitida em 23-01-2023 e a Reclamante juntou a este pedido de reclamação como doc. 23, quando diz que “com ORU urbana em fase de conclusão”.
53. Ou seja, mesmo naquela data de 23-01-2023, a ARU em causa não tem ainda ORU aprovada.
54. Relativamente à empreitada localizada no Centro do Porto, não obstante a empreitada ter ocorrido na área delimitada por ARU da LAPA, aprovada pelo Município do Porto, não foi demonstrada a existência de ORU para a mesma, nem a Reclamante carreou para os autos quaisquer documentos relevantes para a certificação da empreitada de forma a atestar o seu enquadramento no conceito de reabilitação urbana.
55. A certidão emitida pela Câmara Municipal do Porto traduz apenas o enquadramento que a mesma faz da situação, ao considerar que “de acordo com o descrito na verba 2.23 da Lista I anexa ao CIVA. a aplicação da taxa reduzida de 6% apenas infere sobre imóveis localizados em ARU e não em ARU/ ORU”.
56. Deste modo, conforme a doutrina emanada pela AT e diversa jurisprudência já produzida sobre este tema, alguma dela aqui referida, concluímos que não podia ser aplicada a taxa reduzida de IVA de 6% às empreitadas aqui em discussão.
(PA)
-
A Requerente apresentou, no dia 2 de agosto de 2024, pedido de pronúncia arbitral.
(Sistema informático do CAAD)
ii) Factos não provados
Não há quaisquer outros factos com relevância para a decisão que não se tenham provado.
15. Fundamentação da fixação da matéria de facto provada
O Tribunal Arbitral tem o dever de selecionar os factos que interessam à decisão da causa e identificar os factos provados e não provados, não tendo de se pronunciar quanto a todos os elementos da matéria de facto alegados pelas partes, tal como decorre da aplicação conjugada do artigo 123.º, n.º 2, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”) e do artigo 607.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e), do RJAT.
Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram selecionados e conformados em função da sua relevância jurídica, determinada com base nas posições assumidas pelas partes e nas várias soluções plausíveis das questões de direito para o objeto do litígio, conforme decorre do artigo 596.º, n.º 1, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.
Tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, a prova documental junta aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, nos quais se descreve a fonte utilizada para que se os dê como assentes.
Não se deram como provadas, nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.
V. MATÉRIA DE DIREITO
A Requerente entende que a aplicação da taxa reduzida de IVA, prevista na verba 2.23, da Lista I, anexa do CIVA, na redação anterior à Lei n.º 56/2023, de 6 de outubro não exige a autorização prévia de uma ORU para a localização dos prédios.
Já a Requerida, pelo contrário, defende que inexistindo, no caso sub iudice, a aprovação de uma ORU para a localização dos prédios, a taxa de IVA aplicável é de 23%. Vejamos.
A verba 2.23, da Lista I, anexa ao CIVA, na redação vigente à data dos factos, dispunha que se aplicava a taxa reduzida de 6% nas “[e]mpreitadas de reabilitação urbana, tal como definida em diploma específico, realizadas em imóveis ou em espaços públicos localizados em áreas de reabilitação urbana (áreas críticas de recuperação e reconversão urbanística, zonas de intervenção das sociedades de reabilitação urbana e outras) delimitadas nos termos legais, ou no âmbito de operações de requalificação e reabilitação de reconhecido interesse público nacional”.
Já no Regime Jurídico da Reabilitação Urbana (“RJRU”), o artigo 2.º dispõe, nomeadamente, o seguinte:
b) «Área de reabilitação urbana» a área territorialmente delimitada que, em virtude da insuficiência, degradação ou obsolescência dos edifícios, das infraestruturas, dos equipamentos de utilização coletiva e dos espaços urbanos e verdes de utilização coletiva, designadamente no que se refere às suas condições de uso, solidez, segurança, estética ou salubridade, justifique uma intervenção integrada, através de uma operação de reabilitação urbana aprovada em instrumento próprio ou em plano de pormenor de reabilitação urbana;
(…)
h) «Operação de reabilitação urbana» o conjunto articulado de intervenções visando, de forma integrada, a reabilitação urbana de uma determinada área;
O artigo 7.º, com a epígrafe “Áreas de reabilitação urbana” tem a seguinte redação:
1 - A reabilitação urbana em áreas de reabilitação urbana é promovida pelos
municípios, resultando da aprovação:
a) Da delimitação de áreas de reabilitação urbana; e
b) Da operação de reabilitação urbana a desenvolver nas áreas delimitadas de acordo com a alínea anterior, através de instrumento próprio ou de um plano de pormenor de reabilitação urbana.
2 - A aprovação da delimitação de áreas de reabilitação urbana e da operação de reabilitação urbana pode ter lugar em simultâneo.
3 - A aprovação da delimitação de áreas de reabilitação urbana pode ter lugar em
momento anterior à aprovação da operação de reabilitação urbana a desenvolver
nessas áreas.
4 - A cada área de reabilitação urbana corresponde uma operação de reabilitação
urbana.
O artigo 14.º prevê o seguinte:
A delimitação de uma área de reabilitação urbana:
a) Obriga à definição, pelo município, dos benefícios fiscais associados aos impostos municipais sobre o património, designadamente o imposto municipal sobre imóveis (IMI) e o imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis (IMT), nos termos da legislação aplicável;
b) Confere aos proprietários e titulares de outros direitos, ónus e encargos sobre os edifícios ou frações nela compreendidos o direito de acesso aos apoios e incentivos fiscais e financeiros à reabilitação urbana, nos termos estabelecidos na legislação aplicável, sem prejuízo de outros benefícios e incentivos relativos ao património cultural.
O artigo 15.º, n.º 1, do mesmo diploma, estipula o seguinte:
No caso de a aprovação da delimitação de uma área de reabilitação urbana não ter lugar em simultâneo com a aprovação da operação de reabilitação urbana a desenvolver nessa área, aquela delimitação caduca se, no prazo de três anos, não for aprovada a correspondente operação de reabilitação.
Em resumo, a norma que prevê o facto tributário é, assim, composta pelos seguintes elementos: i) um contrato de empreitada; ii) que tenha por objeto uma obra de reabilitação urbana; iii) definida em diploma específico; iv) realizada em imóvel (ou espaço público) localizado numa ARU delimitada nos termos legais; ou v) no âmbito de operações de requalificação e reabilitação de reconhecido interesse público nacional.
Não é controvertido, nos autos, o conceito de empreitada, mas determinar, pelo contrário, se as empreitadas podem ser qualificadas como de “reabilitação urbana”.
A norma atrás mencionada (verba 2.23, da Lista I, anexa ao CIVA) assenta no conceito de “empreitada de reabilitação urbana”, mas não define este último conceito, assumindo, ao invés, que essa concretização será efetuada em “diploma específico”, o que nos remete para o RJRU e é nele que devemos tentar encontrar a noção de “empreitada de reabilitação urbana”.
A interpretação do referido quadro normativo não se tem revelado uniforme na jurisprudência, pois há uma linha que conclui que a “reabilitação urbana” resulta, cumulativamente, da aprovação da delimitação de ARU e da aprovação de ORU a desenvolver nas áreas delimitadas, através de instrumento próprio ou de um plano de pormenor de reabilitação urbana. Veja-se, neste sentido, por exemplo, a decisão arbitral n.º 517/2023-T, de 12 de dezembro de 2023.
A segunda linha jurisprudencial entende, no essencial, que basta que tenha sido devidamente delimitada uma ARU, sem necessidade de aprovação da respetiva ORU, para que uma empreitada ali inserida possa beneficiar da taxa reduzida de IVA, a que alude o artigo 18.º, n.º 1, alínea a), do CIVA. Fundamenta a posição com fonte no elemento literal e na razão de ser do conceito de reabilitação urbana, constante da alínea j), do artigo 2.º, do RJRU, em articulação com a remissão da verba 2.23, da Lista I, anexa ao CIVA.
Veja-se, por exemplo, neste sentido, as seguintes decisões arbitrais: 803/2023-T, de 28 de maio de 2024[1] e 947/2023, de 27 de junho de 2024.
A verba 2.23, da Lista I, anexa ao CIVA não alude ao conceito de “operação de reabilitação urbana” ou exige qualquer certificação municipal a justificar a operação, quando, por exemplo, o artigo 71.º, n.º 4, do EBF se refere à reabilitação de imóveis, localizados em “áreas de reabilitação urbana”. Ou, dito de outro modo, o elemento literal não exige a “operação de reabilitação urbana”.
O artigo 2.º, n.º 2, alínea j), do RJRU acolhe um conceito amplo de reabilitação urbana que corresponde, para este Tribunal Arbitral, ao elemento literal da norma. Assim, as regras da hermenêutica jurídica vedam ao intérprete acrescentar requisitos que não tenham na letra da lei qualquer correspondência.
Para além do mais, a teleologia da norma, em articulação, com a verba 2.23, da Lista I, anexa ao CIVA, também aponta para o referido conceito amplo.
O RJRU previa, na sua versão inicial, que as decisões de uma ARU e de uma ORU eram adotadas em simultâneo. Contudo, a Lei n.º 32/2023, de 14 de agosto legitimou que as operações fossem faseadas, primeiro, com a identificação dos concretos limites físicos da área a sujeitar a ARU e, posteriormente, aprovando-se a respetiva ORU.
A ratio legis da referida alteração legislativa encontrar-se-á na circunstância de o legislador pretender promover (e incentivar), em momento anterior à aprovação da ORU, ações de reabilitação promovidas por parte de privados ou entidades públicas. Deste modo, a delimitação de uma ARU tem as consequências diretas previstas no artigo 14.º do RJRU, onde se incluem as fiscais.
A interpretação efetuada pelo Tribunal Arbitral é reforçada pela circunstância de a aprovação dos procedimentos administrativos gizados à aprovação de uma ORU poder ultrapassar os três anos, por isso, a delimitação uma ARU tem aptidão para desencadear a reabilitação urbana, com todas as consequências que daí resultam, incluindo as fiscais.
O argumento de que ocorre a caducidade da ARU se não for, entretanto. aprovada a ORU não contende com os eventuais benefícios e vantagens alcançados para as empreitadas em curso, incluindo quando tenham beneficiado de taxas reduzidas de IVA. Veja-se, neste sentido, o facto de os municípios adotarem medidas gizadas à não verificação da caducidade da ARU, recorrendo, nomeadamente, à aprovação de um nova delimitação. Interpretação distinta retiraria qualquer efeito útil à previsão normativa de legitimação de uma ARU, sem a aprovação de uma ORU.
No caso sub iudice, como resulta da matéria de facto assente, não existe ORU respeitante às ARU onde se encontram os prédios. Sucede, no entanto, que considerando o elemento literal e a razão de ser do conceito de reabilitação urbana da alínea j), do artigo 2.º, do RJRU, em termos conjugados com a remissão da verba 2.23, da Lista I, anexa ao CIVA, conclui-se que basta que tenha sido delimitada uma ARU, sem necessidade de aprovação da respetiva ORU, para que se possa beneficiar da taxa reduzida de IVA, a que se refere a alínea a), n.º 1, do artigo 18.º, do CIVA.
O supra vertido é suficiente para se concluir pela ilegalidade do ato de indeferimento da reclamação graciosa, das liquidações de IVA e de juros compensatórios a estas subjacentes.
Questão da restituição do imposto pago e da condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios
A Requerente pediu ainda a restituição do imposto e a condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios, à taxa legal, calculados sobre o imposto, até ao reembolso integral da quantia devida.
Esta disciplina deriva do dever, que recai sobre a AT, de reconstituição imediata e plena da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, como resulta do disposto nos artigos 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e 100.º da Lei Geral Tributária (“LGT”), fazendo este último preceito referência expressa ao pagamento de juros indemnizatórios, compreendido nesse efeito repristinatório do statu quo ante. O que significa que, na execução do julgado anulatório, a AT deve reintegrar totalmente a ordem jurídica violada, restituindo as importâncias de imposto pagas em excesso e, neste âmbito, a privação ilegal dessas importâncias deve ser objeto de ressarcimento, por via do cálculo de juros indemnizatórios, por forma a reconstituir a situação atual hipotética que existiria se o ato anulado não tivesse sido praticado. Uma vez anuladas as liquidações de IVA impugnadas e, bem assim, dos juros compensatórios inerentes, cabe à Requerida, em observância do disposto no artigo 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT, restituir as importâncias de imposto e de juros compensatórios necessárias ao restabelecimento da situação que existiria se os atos tributários não tivessem sido praticados.
Sobre o direito aos juros indemnizatórios rege o disposto no artigo 43.º da LGT que, no seu número 1, o faz depender da ocorrência de erro imputável aos serviços, do qual tenha resultado o pagamento de prestação tributária superior à legalmente devida. Na situação vertente, está em causa a errada interpretação do artigo 18.º, n.º 1, alínea a), do CIVA e da verba 2.23, da Lista I, anexa ao CIVA, tendo ficado demonstrado que as liquidações de IVA em discussão padecem de erro substantivo imputável à AT, para o qual a Requerente não contribuiu, verificando-se o pressuposto de erro imputável aos serviços.
A jurisprudência arbitral tem reiteradamente afirmado a competência destes Tribunais para proferir pronúncias condenatórias emergentes do reconhecimento do direito a juros indemnizatórios originados em atos tributários ilegais que aí sejam impugnados, ao abrigo do disposto nos artigos 24.º, n.º 1, alínea b), e n.º 5, do RJAT, 43.º e 100.º da LGT.
Deste modo, a anulação das liquidações de IVA e de juros compensatórios é passível de constituir, na esfera da Requerente, o direito ao recebimento de juros indemnizatórios que a visa ressarcir da ilegal privação da quantia indevidamente paga pelo período de tempo que perdurar.
VI. DECISÃO
Termos em que se decide:
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Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral e, nessa medida, anular o ato de indeferimento expresso da reclamação graciosa e as liquidações oficiosas que dela foram objeto;
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Julgar procedente o pedido de restituição do imposto, com as legais consequências;
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Julgar procedente o pedido de condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios;
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Condenar a Requerida nas custas do processo.
VII. VALOR DO PROCESSO
Atendendo ao disposto no artigo 97.º-A do CPPT, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”), fixa-se ao processo o valor de 72 496,60 euros.
VIII. CUSTAS
Nos termos da Tabela I, anexa ao RCPAT, as custas são no valor de 2448 euros, a suportar pela Requerida, conforme o disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º do RCPAT.
Notifique-se.
21de março de 2025
O Árbitro Presidente,
Rui Duarte Morais
O Árbitro Adjunto,
Cristina Coisinha
O Árbitro Adjunto (Relator)
Francisco Nicolau Domingos
[1] Cuja fundamentação se acompanha de perto.