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DECISÃO ARBITRAL
SUMÁRIO:
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Os tribunais arbitrais constituídos junto do CAAD não são competentes para a decisão de processos relativos à CSR.
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Verifica-se a incompetência do Tribunal por falta da vinculação exigida pelo artigo 4.º do RJAT. A falta de vinculação não implica incompetência absoluta, em razão da matéria, a que alude o artigo 16.º do CPPT, aplicável aos processos arbitrais tributários por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, pois a competência para apreciação da generalidade de atos de liquidação de tributos insere-se nas competências dos tribunais arbitrais definidas no artigo 2.º do RJAT.
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Estamos, isso sim, perante uma incompetência relativa por falta do acordo necessário para a constituição de tribunal arbitral, a que se reporta o artigo 18.º da Lei de Arbitragem Voluntária [Lei n.º 63/2011, de 14 de Dezembro, aplicável aos processos arbitrais tributários por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT e artigo 181.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos], acordo esse que, relativamente à arbitragem tributária, é genericamente exigido e definido no que concerne à Autoridade Tributária e Aduaneira através da vinculação prevista no artigo 4.º do RJAT.
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Relatório
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No dia 17.07.2024, a Requerente, A..., LDA, pessoa coletiva com o n.º..., com sede na ..., ...-... ..., Viseu, veio requerer a anulação do ato de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa apresentado com vista à anulação dos actos tributários de liquidação de Contribuição de Serviço Rodoviário (CSR) no valor global de € 4.323,45 (quatro mil trezentos e vinte e três euros e quarenta e cinco cêntimos), correspondentes ao valor da referida contribuição liquidada por um sujeito passivo terceiro e que lhe foi repercutida, enquanto consumidora final, no período compreendido entre dezembro de 2019 e dezembro de 2022, para o efeito requerendo a constituição de tribunal arbitral singular ao abrigo do disposto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (“RJAT”), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, no artigo 102.º, n.º 1, alínea d) do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”) e, ainda, no artigo 109.º do Código do Procedimento Administrativo (“CPA”).
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O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira no dia 17.09.2024. Nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 1, do artigo 6.º, do RJAT, por decisão do Senhor Presidente do Conselho Deontológico, devidamente comunicada às partes, nos prazos legalmente aplicáveis, foi designada árbitra a signatária, que comunicou ao Conselho Deontológico e ao Centro de Arbitragem Administrativa a aceitação do encargo no prazo regularmente aplicável. O Tribunal Arbitral foi constituído a 27.09.2024.
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Os fundamentos apresentados pela Requerente, em apoio da sua pretensão, foram, sinteticamente, os seguintes:
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A Requerente é uma sociedade com sede em Portugal que se dedica à produção, apanha, transporte, desinfeção, calibragem, transformação, congelação, embalamento, comercialização, importação e exportação de castanha;
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No contexto daquelas atividades, necessita de adquirir gasóleo para abastecimento dos seus veículos, sendo que, nas faturas que titulam essas aquisições, ocorre a repercussão da CSR liquidada pelos respetivos sujeitos passivos aquando da introdução de produtos petrolíferos no consumo;
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Em consequência, a Requerente suportou, na qualidade de consumidora final, por repercussão legal e a título de CSR, o montante de € 4.323,45;
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A CSR foi considerada ilegal e desconforme ao Direito da União pelo TJUE, no âmbito do Processo n.º C-460/21, por violação da Diretiva 2008/118/CE do Conselho, de 16 de dezembro de 2008, pelo que, na sua ótica, todos os atos tributários praticados ao abrigo da referida lei consubstanciam uma violação do direito comunitário, padecendo do vício de ilegalidade, pelo que estava a AT obrigada a desaplicar as referidas normas desconformes ao direito da EU;
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Não tendo a AT anulado os atos sub judice por via do pedido de revisão oficiosa antecedente, defende a Requerente que a AT incorreu em erro imputável aos serviços, para efeitos do disposto na segunda parte do n.º 1 do artigo 78.º da LGT, mantendo na ordem jurídica atos tributários ilegais cuja anulação peticionam, com o consequente reembolso do valor suportado por via da repercussão legal da CSR, acrescido de juros indemnizatórios calculados nos termos da al. c) do n.º 1 do artigo 43.º da LGT.
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Entende a Requerida que:
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Se verifica a exceção de caducidade do direito de ação, por o pedido de pronúncia arbitral ter sido apresentado fora do prazo consagrado na lei para o efeito;
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O Tribunal é incompetente em razão da matéria, na medida em que a CSR constitui uma contribuição financeira e não um imposto;
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Se verifica a ilegitimidade processual e substantiva da Requerente por entender que apenas os sujeitos passivos que tenham procedido à introdução no consumo dos produtos em território nacional e que provem o pagamento dos respetivos ISP/CSR possuem legitimidade para solicitar o reembolso do valor pago;
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Se verifica a ineptidão da petição inicial;
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Impugnando, ainda, o vertido nos artigos 4.º, 5.º, 80.º, 91.º e 100.º do pedido arbitral, colocando em causa a alegada repercussão da CSR.
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Depois de apresentada a Resposta, o Tribunal proferiu despacho, em 04.11.2024, notificando a Requerente para se pronunciar sobre as exceções invocadas pela Requerida, bem como as duas partes dos prazos e termos para a apresentação das alegações escritas.
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A 20.01.2025, a Requerente veio juntar uma declaração, emitida por uma fornecedora de combustíveis, declarando que lhe tinha repercutido a CSR liquidada com referência a 38.950,00 litros de gasóleo adquiridos ao longo do período compreendido entre 20.10.2019 e 31.12.2022. A declaração foi admitida pelo Tribunal, apesar da pronúncia em sentido contrário por parte da Requerida.
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Mais tarde, a Requerente apresentou, ela própria, a sua pronúncia acerca da prévia pronúncia da Requerida, tendo o Tribunal facultado prazo a esta última para o exercício do contraditório, o que veio a acontecer através de requerimento apresentado a 24.02.2025.
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A 26.02.2025, a Requerente veio ainda pronunciar-se sobre a prévia pronúncia da Requerida.
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Através de despacho datado de 28.02.2025, o Tribunal considerou que, tendo as Partes tido oportunidade processual para apresentar o que entenderam por conveniente, já estavam reunidos elementos suficientes para a decisão arbitral poder ser proferida.
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Saneamento
O tribunal encontra-se regularmente constituído nos termos do RJAT. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas.
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Análise das exceções
III.1 Competência
Importa, desde logo, aferir da competência deste Tribunal Arbitral para conhecer do litígio perante si colocado pela Requerente. E quanto a esse aspeto, sendo conhecida a divergência de posições dos diversos tribunais arbitrais que têm vindo a constituir-se junto do CAAD sobre a matéria da CSR, importa começar por enunciar, resumidamente, os termos básicos das duas posições que têm vindo a descortinar-se:
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Para uma corrente, a designação relevante para efeitos de aferição de competência é a designação adotada pelo legislador, e não aquela que o intérprete ou aplicador do direito possam considerar mais adequada. É relevante, para este entendimento, que a jurisdição dos tribunais arbitrais não se veja envolta na incerteza decorrente de posições doutrinais e jurisprudenciais referentes à qualificação do tributo em questão como taxa, imposto ou contribuição financeira (cf. os acórdãos do CAAD de 16-10-2018, processo n.º 115/2018-T; de 22-07-2022, processo n.º 788/2021-T; de 29-05-2023, processo n.º 31/2023-T).
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Para outra corrente, a aferição da jurisdição dos tribunais arbitrais deve poder estar dependente do resultado que o intérprete alcance através da qualificação dos tributos em função das suas caraterísticas e do seu regime jurídico (cf. os acórdãos do CAAD de 05-01-2023, processo n.º 304/2022-T; e de 15-01-2024, processo n.º 375/2023-T), mesmo que isso signifique que a aferição dessa mesma competência depende não apenas do nomen iuris que o legislador entendeu utilizar para se referir a um tributo, mas também da caraterização doutrinal e jurisprudencial desse mesmo tributo.
Para os tribunais arbitrais que vêm sustentando a primeira posição, os litígios referentes à CSR não têm sido objeto de análise de mérito, por se considerar que, sendo a CSR designada pelo legislador como uma ‘contribuição financeira’, ela estaria fora do escopo de competência dos tribunais arbitrais constituídos junto do CAAD, nos termos do disposto no artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março. Para aqueles que vêm sustentando a segunda posição, a questão da competência do tribunal não tem sido considerada procedente, pois o tributo em causa tem vindo a ser considerado um imposto.
Este Tribunal considera, por sua vez, o seguinte:
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Não é claro que a CSR deva ser qualificada como imposto, por estarem ausentes as características da bilateralidade difusa e da responsabilidade de grupo inerente às contribuições.
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O regime jurídico da CSR criou um tributo de cuja receita é titular a Infraestruturas de Portugal (inicialmente, Estradas de Portugal), entidade responsável pela conceção, projeto, construção, conservação, exploração, requalificação e alargamento da rede rodoviária nacional, sendo os respetivos sujeitos passivos as empresas comercializadoras de combustíveis rodoviários;
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Não se pode concluir, tout court, que os sujeitos passivos da CSR não são, de forma alguma, destinatários da atividade do sujeito ativo.
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De facto, é o sujeito ativo (Infraestruturas de Portugal) que garante as condições necessárias a que a atividade das empresas comercializadoras de combustíveis rodoviários, no que toca à venda desses bens, possa existir e manter-se. Sem a rede rodoviária nacional, dificilmente existiria o mesmo interesse, da parte dos consumidores de combustíveis, pela aquisição de gasolina e gasóleo rodoviários que adquirem aos sujeitos passivos da contribuição.
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A conclusão de que inexistem as caraterísticas da bilateralidade difusa e da responsabilidade de grupo parece assentar no pressuposto – que não se acompanha – de que os sujeitos passivos da CSR não são beneficiários da rede rodoviária nacional, quando, na realidade, tiram partido dela enquanto infraestrutura essencial para a oferta que aportam ao mercado – ao ponto de se poder dizer que, sem essa infraestrutura, a sua atividade, no que toca à venda de produtos que abastecem o transporte rodoviário, não teria interesse para o mercado.
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Nesse sentido, entendemos a CSR como um exemplo das “taxas coletivas”, na expressão de Gomes Canotilho/Vital Moreira, aquelas que “(…) assentam em prestações cuja provocação ou aproveitamento se podem dizer seguros quando referidos ao grupo mas apenas prováveis quando referidos aos indivíduos que o integram” ou, nas palavras de Filipe de Vasconcelos Fernandes como um tributo bilateral “(…) alicerçados numa lógica de equivalência de grupo (…)”, uma “(…) estrutura de incidência sustentada na utilização presumida de um serviço ou na obtenção de um benefício presumido (…)” . De acordo com o mesmo Autor, nas “(…) contribuições financeiras visa retribuir-se ou ressarcir-se o custo ou benefício inerentes ao serviço prestado por uma entidade pública, neste caso a um conjunto homogéneo de interessados, que o aproveitam (…) [como membros] num dado grupo”.
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Ainda que o aproveitamento, por parte dos sujeitos passivos, do benefício realizado pelo sujeito ativo da contribuição, seja indireto – sempre será necessário que os clientes adquiram o combustível – é inequívoco que a prestação do sujeito ativo os beneficia pois sem ela não existiria interesse, da parte dos clientes, em adquirir o produto em causa. Aliás, quanto melhor for a rede rodoviária nacional, maior interesse haverá em utilizá-la, mesmo em detrimento de potenciais ‘concorrentes’ – os outros meios de transporte, como o comboio, o barco ou o avião.
Por estes motivos, não cremos que deva qualificar-se a CSR como um imposto e, nessa medida, mantemos a qualificação que o legislador lhe atribuiu, isto é, de ‘contribuição financeira’.
Nestes termos, entendemos que se verifica a incompetência do Tribunal por falta da vinculação exigida pelo artigo 4.º do RJAT. A falta de vinculação não implica incompetência absoluta, em razão da matéria, a que alude o artigo 16.º do CPPT, aplicável aos processos arbitrais tributários por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, pois a competência para apreciação da generalidade de atos de liquidação de tributos insere-se nas competências dos tribunais arbitrais definidas no artigo 2.º do RJAT.
Estamos, isso sim, perante uma incompetência relativa por falta do acordo necessário para a constituição de tribunal arbitral, a que se reporta o artigo 18.º da Lei de Arbitragem Voluntária [Lei n.º 63/2011, de 14 de Dezembro, aplicável aos processos arbitrais tributários por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT e artigo 181.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos], acordo esse que, relativamente à arbitragem tributária, é genericamente exigido e definido no que concerne à Autoridade Tributária e Aduaneira através da vinculação prevista no artigo 4.º do RJAT.
De harmonia com o exposto, é de julgar procedente a excepção de incompetência material deste Tribunal Arbitral por a pretensão da Requerente versar sobre um tributo não incluído na vinculação da Autoridade Tributária e Aduaneira aos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD.
III.2 Questões de conhecimento prejudicado
Sendo de julgar procedente a excepção de incompetência suscitada ela Autoridade Tributária e Aduaneira, fica prejudicado o conhecimento das restantes questões suscitadas no processo.
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Decisão
Nestes termos, o Tribunal Arbitral decide julgar procedente a excepção de incompetência invocada pela Autoridade Tributária e Aduaneira, por falta da vinculação exigida pelo artigo 4.º do RJAT, com a consequente absolvição da Requerida da instância arbitral.
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Valor da ação
Fixa-se o valor da ação em € 4.323,45 (quatro mil trezentos e vinte e três euros e quarenta e cinco cêntimos), nos termos do disposto no artigo 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem.
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Custas
Nos termos do disposto no artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 612,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerente, nos termos do n.º 4 do artigo 22.º do RJAT.
Lisboa, 26 de março de 2025
A Árbitra,
(Raquel Franco)
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