SUMÁRIO:
A regularização do IVA contido nas notas de crédito emitidas pelas empresas aderentes ao Acordo celebrado entre a Representante da Indústria Farmacêutica e os Ministérios das Finanças, da Economia e da Saúde, não só é legal como é imposta pelos princípios da neutralidade e da igualdade de tratamento consagrado na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e em obediência aos critérios estabelecidos no artigo 90º da Diretiva IVA e 78º do CIVA.
DECISÃO ARBITRAL
Os árbitros Conselheira Fernanda Maçãs (Presidente) e os vogais Dr. Arlindo José Francisco e Drª Sofia Quental, designados pelo Centro de Arbitragem Administrativa, para formar o Tribunal Arbitral, decidem o seguinte:
I - RELATÓRIO
1 -A... UNIPESSOAL LDA, com sede na Rua ... n.º ..., ..., ...-..., Algés, titular do número de identificação fiscal ..., na sequência do indeferimento tácito da Reclamação Graciosa apresentada em 15/12/2023 no Serviço de Finanças competente, que teve por objeto as liquidações adicionais de IVA e de juros n.º 2023..., relativa ao período 2019/01, n.º 2023 ..., relativa ao período de 2019/02, n.º 2023..., relativa ao período de 2019/06, n.º 2023..., relativa ao período de 2019/07, n.º 2023..., relativa ao período de 2019/10, e n.º 2023..., relativa ao período de 2019/11, e respetivas demonstrações de acertos de contas, que apuraram o valor a pagar de € 499. 278,07, vem, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e nos artigo 10.º, 15.º e seguintes, todos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, deduzir o competente pedido de pronúncia arbitral que tem por objeto o indeferimento tácito da aludida reclamação e consequentemente as referidas liquidações que pretende ver anuladas, com todas as consequências legais daí advindas incluindo o pagamento de juros indemnizatórios.
O pedido de constituição do Tribunal Arbitral, feito em 16 de julho de 2024, foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT” ou “Requerida”).
A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD informou as Partes da designação dos Árbitros, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, os quais comunicaram a respetiva aceitação no prazo aplicável. As partes, notificadas dessa designação, em 04 de setembro de 2024, não manifestaram vontade de a recusar. Assim, em conformidade com o preceituado no n.º 8 artigo 11.º do RJAT, decorrido o prazo previsto no n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, sem que as Partes nada viessem dizer, o Tribunal Arbitral Coletivo ficou constituído em 24 de setembro de 2024.
2– A fundamentar o pedido alega, em síntese, a Requerente o seguinte:
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Através adesão a um Acordo celebrado entre o Estado e a Indústria Farmacêutica, a Requerente comprometeu-se a ser parte do esforço que visa assegurar a sustentabilidade do Serviço Nacional de Saúde (“SNS”) e o acesso a medicamentos e, nesse sentido, assumiu a obrigação de fazer uma contribuição voluntária de montante proporcional à despesa que o SNS tem com os seus medicamentos.
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A Requerente concretiza a sua contribuição mediante a emissão de notas de crédito a favor de entidades do SNS, o que se consubstancia no não recebimento dos valores creditados e o SNS deixa de pagar aqueles montantes, dito de outro modo, a totalidade das vendas faturadas ao SNS são reduzidas no valor das notas de crédito emitidas, o que implica uma redução do valor tributável das operações tituladas por aquelas faturas, criando-se assim um nexo entre as notas de crédito emitidas pela Requerente e a venda de medicamentos ao SNS.
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Deste procedimento resulta que a Requerente regulariza a seu favor o IVA liquidado nas vendas daqueles medicamentos às entidades do SNS, em estrito cumprimento do disposto no artigo 78.º do Código do IVA e nos artigos 73.º e 90.º da Diretiva IVA, o que os serviços inspetivos da AT não aceitam a regularização do IVA nem a redução do valor tributável apesar de reconhecerem que as notas de crédito compensam as faturas emitidas, por entenderem que as notas de crédito emitidas não se destinam a regularizar os valores anteriormente faturados, nem correspondem a qualquer abatimento ou desconto sobre o valor das vendas não se verificando, consequentemente, a diminuição do valor tributável das operações antes realizadas.
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Considera que o procedimento por si seguido está em conformidade com o decidido sobre esta matéria pela jurisprudência arbitral, pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra e do TJUE e ainda com pareceres jurídicos que juntou, devendo o pedido de pronúncia proceder.
3-Por sua vez a Requerida, também em síntese, vem dizer o seguinte:
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Que ao abrigo do acordo, está a efetuar o pagamento de uma contribuição especial, subsidiando o Estado, através da dívida do SNS, e não um desconto no preço dos medicamentos anteriormente faturados.
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A nota de crédito é um mero documento de suporte para o lançamento contabilístico, possibilitador de diminuição da dívida das entidades do SNS à indústria farmacêutica que está sujeita ao pagamento da contribuição.
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A contribuição assim paga no âmbito do acordo, não consubstancia nenhum nexo de causalidade com o preço dos medicamentos anteriormente vendidos.
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E configura, no âmbito do acordo, um tributo de natureza fiscal ou parafiscal, não qualificável como desconto não dando, por isso, lugar à redução do valor tributável das operações realizadas ou a qualquer direito de crédito aos sujeitos passivos da contribuição extraordinária sobre a indústria farmacêutica, pelo que entendido que o pedido de pronúncia deve improceder.
II- SANEAMENTO
O Tribunal Arbitral Coletivo é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 1, do RJAT.
As Partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112- A/2011, de 22 de Março.
O Tribunal, em Despacho de 23/11/2024, autorizou a junção aos autos de dois pareceres e de um Acórdão do TJUE, considerando não haver controvérsia quanto à matéria de facto, mas tão só quanto à aplicação do direito, e nessa perspetiva dispensou a realização da reunião a que alude o artigo 18º do RJAT e a audição das testemunhas, abrindo prazo para a produção de alegações escritas facultativas, faculdade que só foi usada pela Requerente.
Em 28/01/2025 a Requerente solicitou a junção aos autos de duas sentenças do TAF de Sintra, tendo o Tribunal determinado a notificação da Requerida para exercer, querendo, no prazo de 10 dias, contraditório em relação ao solicitado pelo SP naquele Requerimento, não tendo sido exercido no referido prazo. Por despacho de 14 de março de 2025 o Tribunal deferiu o pedido pelas razões nele constantes e que se dão por reproduzidas para os devidos efeitos.
Não se verificam nulidades nem questões prévias a apreciar, pelo que cumpre decidir.
III- FUNDAMENTAÇÃO
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As questões a dirimir são as seguintes:
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Se o ato de indeferimento tácito da reclamação graciosa apresentada pela Requerente em 15/12/2023, contra as liquidações adicionais de IVA e juros compensatórios, nºs. 2023 ..., 2023..., 2023..., 2023..., 2023..., 2023..., respetivamente referentes aos períodos 2019/01, 2019/02, 2019/06, 2019/07, 2019/10, 2019/11, no valor global de € 499. 278,07 é ilegal e deverá ser revogado com a consequente anulação das referidas liquidações, ou
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Se pelo contrário o ato de indeferimento tácito da reclamação não sofre de qualquer ilegalidade e deverá ser mantido na ordem jurídica bem como as referidas liquidações adicionais de IVA, com todas as consequências legais daí advindas.
2 - Matéria de Facto
2.1 – Factos provados
Com pertinência para a decisão da causa, consideram-se provados os seguintes factos:
a) A Requerente é uma sociedade por quotas de direito português, cujo objeto social consiste, na importação, exportação e fabrico de especialidades farmacêuticas e medicamentos, na venda e promoção de especialidades farmacêuticas e medicamentos e na investigação e desenvolvimento de produtos farmacêuticos e medicamentos
b) A Requerente é uma empresa da indústria farmacêutica associada da APIFARMA e encontra-se enquadrada no regime normal mensal, em conformidade com o disposto no artigo 41.º, n.º 1, alínea a), do CIVA.
c) Enquanto titular da autorização de introdução no mercado de diversos produtos farmacêuticos, a Requerente vende estes produtos a entidades do SNS e pelo fornecimento de produtos farmacêuticos emite, maioritariamente, faturas com IVA à taxa reduzida de 6%
nos termos da verba 2.5 da Lista I, anexa ao CIVA.
d)No âmbito da sua atividade, e à semelhança do que sucedeu com a grande maioria das empresas da indústria farmacêutica, a Requerente aderiu ao Acordo celebrado em 2016 entre o Estado e a Indústria Farmacêutica.
e) Esse acordo foi celebrado entre os Ministérios das Finanças, da Economia e da Saúde
e a APIFARMA, em representação da Indústria Farmacêutica, para o triénio 2016-2018 (“Acordo APIFARMA”), através do qual as empresas aderentes se vincularam a uma contribuição financeira no valor de 200 milhões de euros, com a possibilidade de acréscimo na medida da respetiva proporção, caso a empresa aderente fosse representativa de uma quota superior a 75% dos encargos totais do SNS. Caso o valor da despesa pública fosse ultrapassado, as empresas aderentes pagariam ainda o montante que excedesse o objetivo máximo, durante o primeiro trimestre de 2017, na proporção da sua responsabilidade pelo aumento da despesa pública, e com limites máximos.
f) O pagamento da contribuição era realizado mediante a emissão de notas de crédito aos hospitais e/ou pagamento à ACSS, I.P. tendo em fevereiro de 2017 sido assinado um aditamento ao Acordo APIFARMA (“Aditamento ao Acordo APIFARMA”) que, apesar de ter introduzido algumas alterações relativamente aos prazos e medidas para controlo da despesa pública, manteve, no essencial, inalteradas as disposições previstas naquele Acordo, que veio a ser prorrogado desde 2019 e mantem-se em vigor.
g) A Lei nº 82-B/2014, de 31 de dezembro, que aprovou o Orçamento do Estado para 2015, no seu artigo 168º, criou a Contribuição Extraordinária sobre a Indústria Farmacêutica (“CEIF”), com vista a garantir a sustentabilidade do SNS, isentando, porém, desta contribuição as empresas do setor farmacêutico que aderentes do Acordo APIFARMA.
h) A Requerente concretiza a sua contribuição mediante a emissão de notas de crédito em benefício das entidades do SNS trimestralmente após comunicações da APIFARMA com indicação do montante da sua contribuição.
i) As notas de crédito emitidas fazem referência ao Acordo APIFARMA e configuram documentos retificativos de faturas anteriormente emitidas às entidades do SNS, são emitidas em concretização do objetivo de redução da despesa pública com a aquisição de medicamentos, ou seja, destinam-se a reduzir o preço, logo, o valor tributável, dos fornecimentos anteriormente realizados.
j) A Requerente considerou as notas de crédito por si emitidas às entidades do SNS nas suas declarações periódicas de IVA, uma vez que correspondem a verdadeiras reduções do preço, regularizando a seu favor o IVA inicialmente liquidado nas faturas.
k) A Requerente foi objeto de inspeção tributária, conforme ordem de serviço OI2021..., com despacho de 28.10.2021, de âmbito parcial com vista a verificar a sua situação tributária em sede de IVA e IRC, com referência ao ano de 2019.
l) Do procedimento inspetivo resultaram correções de IVA indevidamente regularizado a seu favor pela Requerente contido nas notas de crédito emitidas ao SNS no âmbito do acordo com a APIFARMA que conduziram às liquidações adicionais de IVA antes referidas.
m) A Requerente, apesar de não concordar, pagou o IVA e juros compensatórios resultantes da ação inspetiva no valor global de € 499.278,07 em 25 de agosto de 2023 e apresentou contra as referidas liquidações a reclamação graciosa já citada, sobre a qual a AT nunca se pronunciou.
n) Face estas circunstâncias a Requerente considerou formada a presunção de indeferimento tácito, em 15/04/2024, uma vez que a reclamação graciosa deu entrada nos Serviços da AT 15.12.2023 e em 16 de julho de 2024 foi aceite o presente pedido de pronúncia contra o ato tácito de indeferimento da reclamação graciosa e contra os atos de liquidação de IVA e juros compensatórios de 2019.
2.2 - Fundamentação da Decisão sobre a Matéria de Facto
O Tribunal não tem que se pronunciar sobre todos os detalhes da matéria de facto que foi alegada pelas Partes, cabendo-lhe o dever de selecionar os factos que interessam à decisão e discriminar a matéria que julga provada e declarar a que considera não provada (cfr.artigo123.º, n.º 2, do CPPT, e artigo 607.º, n.º 3, do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).
Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são selecionados e conformados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções para o objeto do litígio no direito aplicável (conforme artigo 596.º, n.º 1, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
A convicção do Tribunal Arbitral fundou-se na livre apreciação das posições assumidas pelas Partes, no teor dos documentos juntos aos autos, por elas não contestados.
2.3- Factos não provados
Não se considera a existência de outros factos não provados com relevância para a decisão.
3 - MATÉRIA DE DIREITO
O dissenso das partes reside no facto da Requerente, aderente ao Acordo celebrado entre os Ministérios das Finanças, da Economia e da Saúde e a APIFARMA e a fazer a regularização a seu favor do IVA contido nas notas de crédito emitidas no exercício de 2019 ao abrigo do referido acordo, alegando para o efeito que, a regularização do IVA é imposta pelo princípio
da neutralidade e pelo princípio da igualdade de tratamento consagrado na Carta dos Direitos
Fundamentais da União Europeia, encontrando-se preenchidos os critérios dos artigos 90.º da
Diretiva IVA e 78.º do Código do IVA interpretados à luz da jurisprudência do TJUE nos casos
BOEHRINGER INGELHEIM PHARMA GMBH & CO. KG (C-462/16) e BOEHRINGER
INGELHEIM RCV GMBH & CO. KG (C-717/19).
Por outro lado a Requerida AT considera que não se encontram reunidos os critérios previstos no artigo 78º do CIVA, uma vez que a contribuição financeira não constitui contrapartida de uma prestação de serviço ou transmissão de bens, não consubstanciando tais notas de crédito qualquer regularização de vendas anteriormente faturadas mas antes um acerto na conta corrente do cliente relativo ao pagamento de uma contribuição a que o sujeito passivo está sujeito e não isento, sendo a emissão das notas de crédito a mera forma que a Requerente escolheu para cumprir com a obrigação tributária, nos termos previstos no Acordo.
Cabe ao Tribunal Arbitral apreciar e decidir, com base na matéria de facto e de direito, se deve ser aceite a dedução do montante de IVA, em causa, relativo às notas de crédito emitidas pela Requerente às entidades do SNS, ao abrigo do Acordo referido.
O Regime da Contribuição Extraordinária sobre a Indústria Farmacêutica, introduzido pela Lei
n.º 82-B/2014, de 31 de Dezembro, que aprovou o Orçamento do Estado para 2015, foi prorrogado para o exercício de 2019, pelo artigo 312º da Lei 71/2018 de 31/12 que aprovou o Orçamento de Estado para 2019
O artigo 5.º deste regime tem o seguinte teor:
“Artigo 5.º
Acordo para sustentabilidade do SNS
1 - Pode ser celebrado acordo entre o Estado Português, representado pelos Ministros das Finanças e da Saúde, e a indústria farmacêutica visando a sustentabilidade do SNS através da fixação de objetivos de valores máximos de despesa pública com medicamentos e de contribuição de acordo com o volume de vendas das empresas da indústria farmacêutica para atingir aqueles objetivos.
2 - Ficam isentas da contribuição as entidades que venham a aderir, individualmente e sem reservas, ao acordo a que se refere o n.º 1 nos termos do número seguinte, mediante declaração do INFARMED - Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde, I. P.
3 - A isenção prevista no presente artigo produz efeitos a partir da data em que as entidades subscrevam a adesão ao acordo acima referido e durante período em que este se aplicar em função do seu cumprimento, nos termos e condições nele previstos.
4 - O texto do acordo previsto no n.º 1 deve ser publicitado no sítio na internet do INFARMED
- Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde, I. P”.
Antes da instituição deste Regime, pelo menos desde 2012, que o Estado e a APIFARMA, esta em representação da Indústria Farmacêutica, vinham a estabelecer protocolos de colaboração que permitam garantir a sustentabilidade orçamental e financeira do SNS e o acesso dos cidadãos aos medicamentos.
Quer no regime do CEIF quer no regime dos Acordos está previsto o pagamento de um determinado montante pelas empresas da Industria Farmacêutica, designado “ contribuição”. Embora esta aparente semelhança o Regime criado pela Lei do Orçamento de Estado para 2015 e que veio sendo prorrogado, como já se viu para 2019, criou aqui uma autêntica obrigação tributária exigível, em caso de incumprimento, coercivamente.
Enquanto os Acordos não passam de meros contratos administrativos nos quais as empresas da indústria farmacêutica se vinculam, mediante uma declaração de vontade expressa, voluntária e individual se comprometem a colaborar com o Estado para atingir os objetivos orçamentais de despesa pública com medicamentos, mediante certo pagamento, em contrapartida da expectativa de verem as dividas hospitalares incorridas pelas entidades do SNS com a aquisição de medicamentos às empresas aderentes, pagas.
Por aqui é possível inferir que os dois regimes são substantivamente distintos, não podendo o pagamento realizado ao abrigo dos Acordos ser equiparado ao pagamento de um tributo de natureza tributária. Como já se viu é o próprio regime da CEIF que expressamente prevê uma norma de isenção, no seu artigo 5.º, n.º 2, aplicável às entidades que aderentes ao regime dos Acordos individualmente e sem reservas, o que afasta indubitavelmente a aplicação do regime do CEIF às empresas aderentes aos Acordos administrativos de contribuição.
Para o Tribunal é claro que o legislador ao criar a Contribuição Extraordinária sobre a Indústria Farmacêutica, não pretendeu que a mesma substituísse a Contribuição feita através dos Acordos administrativos em vigor, são dois regimes com o mesmo fim, mas de natureza e implicações diferentes e se legislador quisesse que fosse diferente tê-lo-ia dito o que não fez.
Desta forma é patente que as empresas aderentes ao Acordo acabam por contribuir para a sustentabilidade do SNS, através do pagamento de um determinado montante e a Contribuição Extraordinária e a “contribuição” prevista no Acordo têm necessariamente natureza e regimes distintos, sendo a primeira uma verdadeira contribuição financeira e a segunda um pagamento voluntário, realizado ao abrigo de um contrato administrativo, com regras próprias, o que não pode ser desconsiderado, nada impedindo que o montante das “contribuições” seja diferente, termos em que o Tribunal não concorda com o entendimento preconizado pelos Serviços Inspetivos da Requerida, antes acompanha o decidido no Pº 216/2023 do CAAD, conforme se segue :
“…Conforme aludido, as entidades aderentes ao regime dos Acordo Administrativos do biénio 2016-2018 e prorrogado para 2019, vincularam-se a colaborar no controlo da despesa pública com medicamentos, mediante o pagamento de uma “contribuição”, realizado através da emissão de notas de crédito aos hospitais e/ou pagamento, por transferência bancária, à ACSS, I.P..
No cenário em que as entidades aderentes optam por cumprir com a sua obrigação ao abrigo dos aludidos Acordos, mediante a emissão de notas de crédito, como sucedeu, in casu, com a Requerente, há uma efetiva diminuição do valor tributável da operação e uma redução do montante em dívida pelas entidades do SNS adquirentes dos fármacos. Ainda que tal diminuição decorra da circunstância dos sujeitos passivos estarem contratualmente vinculados ao pagamento de um montante intitulado de “contribuição”, o certo é que substantivamente estamos perante uma efetiva redução do valor a ser pago pelas entidades do SNS, o que não pode deixar de ter relevância em sede de IVA.
O IVA, enquanto imposto geral sobre o consumo, caracteriza-se fundamentalmente por ser um imposto indireto de matriz comunitária plurifásico, que incide sobre todas as fases do processo produtivo, através do método subtrativo indireto, que consiste na liquidação e dedução do imposto em cada uma das fases do circuito económico, quando as transações se processam entre sujeitos passivos do imposto com direito à dedução (cf. sobre esta matéria, XAVIER DE BASTO, A tributação do consumo e a sua coordenação a nível internacional, Lições sobre a harmonização fiscal na Comunidade Económica Europeia, CCTF n.º 164, Lisboa 1991, páginas 39 a 73 e CLOTILDE CELORICO PALMA, Introdução ao Imposto sobre o Valor Acrescentado, 6.ª edição, Almedina, Setembro de 2014, páginas 19 a 34).
A técnica do método subtrativo indireto visa a prossecução de vários objetivos, entre os quais, a tributação em cada uma das fases do circuito económico, repartindo o encargo fiscal pelos sujeitos passivos e assegurando a neutralidade do imposto. O princípio da neutralidade do IVA permite assim que o imposto não interfira nas opções estratégicas dos vários agentes económicos na cadeia de produção, tributando atos de consumo e não a atividade económica.
O mecanismo do direito à dedução do IVA é, portanto, uma característica essencial do funcionamento do IVA, assumindo um papel fundamental na garantia na neutralidade do imposto e da igualdade de tratamento fiscal.
A matriz comunitária do imposto, impõe, por outro lado, que todos os Estados membros tenham de seguir o sistema comum do IVA, consagrado na Directiva 2006/112/CE, do Conselho, de 28 de Novembro de 2006 (doravante, “Diretiva IVA”), ficando a sua margem de atuação diretamente sujeita aos limites das regras do Direito da União. Como refere, e bem, CLOTILDE CELORICO PALMA, “Por este motivo, a correcta aplicação deste tributo implica o conhecimento não só da legislação, doutrina e jurisprudência nacionais, como igualmente da legislação, doutrina e jurisprudência da União Europeia” (cf. Parecer relativo ao direito de regularização do IVA contido em notas de crédito emitidas pelas associadas da APIFARMA ao abrigo do Acordo celebrado entre o Estado e a Indústria Farmacêutica, de 28 de Julho de 2023).
Ora, de acordo com o artigo 2.º da Diretiva IVA e com o artigo 1.º, n.º 1, do Código do IVA, estão sujeitas a IVA as seguintes operações:
a) As transmissões de bens e as prestações de serviços, efetuadas no território nacional, a título oneroso, por um sujeito passivo agindo como tal;
b) As operações intracomunitárias;
c) As importações de bens.
Para efeitos de IVA, é qualificada como transmissão de bens, nos termos do artigo 3.º, n.º 1, do Código do IVA, que segue o disposto no artigo 14.º, n.º 1 da Diretiva IVA, a “Transferência onerosa de bens corpóreos por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade.”
Partindo do artigo 9.º da Diretiva IVA, nos termos do artigo 2.º do Código do IVA, consideram- se sujeitos passivos do imposto, as pessoas singulares ou coletivas que:
a) Exerçam atividades de produção, comércio ou prestação de serviços, incluindo as atividades extrativas, agrícolas e das profissões livres, de modo independente e habitual;
b) De modo independente, pratiquem uma só operação, enquadrável numa das referidas atividades, sejam ou não estas exercidas no território nacional;
c) Pratiquem uma só operação sujeita a IRS ou IRC;
d) Realizem importações de bens;
e) Mencionem indevidamente IVA;
f) Efetuem operações intracomunitárias.
Pelo que dúvidas não subsistem de que tanto a Requerente como as entidades do SNS a quem esta emite faturas são sujeitos passivos de IVA e que a venda de medicamentos pela primeira, a estas segundas, configura uma operação tributável em sede de IVA.
De acordo com a teoria das prestações recíprocas, os montantes pagos devem configurar a contrapartida da transmissão de um bem ou da prestação de um serviço, individualizáveis, em relação aos quais se possa considerar as importâncias entregues como a respetiva contraprestação ou sinalagma, verificando-se assim o elemento objetivo que compõe o âmbito da incidência do IVA.
Em respeito ao caso concreto, e nas palavras de CLOTILDE CELORICO PALMA, a que aderimos: “No caso em apreço estamos perante transmissões de bens – fármacos - perfeitamente individualizáveis, quer ao nível da prestação quer ao nível dos seus beneficiários directos (utentes), sendo a respectiva contrapartida o preço pago descontado dos valores acordados relativos às notas de crédito emitidas. É esta a realidade material em causa, não interessando para o efeito, contrariamente ao pretendido pela AT, que esteja em causa o pagamento de uma Contribuição, independentemente da natureza que esta assuma e do mecanismo adoptado para o efeito.” (cf. Parecer relativo ao direito de regularização do IVA contido em notas de crédito emitidas pelas associadas da B..., ao abrigo do Acordo celebrado entre o Estado e a Indústria Farmacêutica, de 28 de Julho de 2023).
Veja-se que o artigo 73.º da Diretiva IVA estabelece que “nas entregas de bens e às prestações de serviços, que não sejam as referidas nos artigos 74.º a 77.º, o valor tributável compreende tudo o que constitui a contraprestação que o fornecedor ou o prestador tenha recebido ou deva receber em relação a essas operações, do adquirente, do destinatário ou de um terceiro, incluindo as subvenções directamente relacionadas com o preço de tais operações.”. No mesmo sentido, dispõe o artigo 16.º, n.º 1 do Código do IVA: “o valor tributável das transmissões de bens e das prestações de serviços sujeitas a imposto é o valor da contraprestação obtida ou a obter do adquirente, do destinatário ou de um terceiro”. Como ensina SÉRGIO VASQUES, “significa isto que o valor tributável de cada operação corresponde por princípio a toda a contrapartida convencionado entre as partes” (cf. O Imposto Sobre Valor Acrescentado, Almedina, 2015, página 282).
Esclarece ainda o artigo 79.º da Diretiva IVA que “o valor tributável não inclui os seguintes elementos: a) As reduções de preço resultantes de desconto por pagamento antecipado; b) Os abatimentos e bónus concedidos ao adquirente ou ao destinatário, no momento em que a operação se realiza; c) As quantias que um sujeito passivo receba do adquirente ou do destinatário, a título de reembolso das despesas efectuadas em nome e por conta destes últimos, e que sejam registadas na sua contabilidade em contas de passagem.”. Também o n.º 6 do artigo 16.º do Código do IVA exclui do valor tributável os descontos, abatimentos e bónus concedidos.
Sobre esta matéria, salienta SÉRGIO VASQUES “toda a redução de preço de que o adquirente beneficie deve ser expurgada do valor tributável, deva-se essa redução do preço à realização de pagamento antecipado ou a qualquer outro motivo.” (cf. ob. cit., pág. 287).
Nos termos do disposto no artigo 90.º da Directiva IVA: “1. Em caso de anulação, rescisão, resolução, não pagamento total ou parcial ou redução do preço depois de efetuada a operação, o valor tributável é reduzido em conformidade, nas condições fixadas pelos Estados-Membros.
2. Em caso de não pagamento total ou parcial, os Estados-Membros podem derrogar o disposto no n.º 1.”. Por sua vez, o artigo 78.º, n.º 2 do Código do IVA refere que “Se, depois de efectuado o registo referido no artigo 45.º, for anulada a operação ou reduzido o seu valor tributável em consequência de invalidade, resolução, rescisão ou redução do contrato, pela devolução de mercadorias ou pela concessão de abatimentos ou descontos, o fornecedor do bem ou prestador do serviço pode efectuar a dedução do correspondente imposto até ao final do período de imposto seguinte àquele em que se verificarem as circunstâncias que determinaram a anulação da liquidação ou a redução do seu valor tributável”.
Assim, qualquer redução do preço facultada ao adquirente no momento em que se realiza uma operação tributável, independentemente da sua forma ou designação, deve ter reflexo no valor tributável e, consequentemente, no imposto a liquidar ao Estado.
Continua o mesmo autor, “se a redução do preço é feita até ao momento em que se realiza a operação, expurga-se a redução do valor tributável nos termos do artigo 79.º; já se a redução se produz em momento posterior, e qualquer que seja a razão para o efeito, manda o artigo 90.º que se reduza o valor em conformidade” (cf. ob. cit., pág. 287, com sublinhado nosso).
No presente caso, é cristalino que a redução de preço ocorre em momento posterior à operação.
Consequentemente, aplicando a regra própria do IVA que determina que “a matéria colectável do IVA a cobrar pelas autoridades fiscais não pode ser superior à contrapartida efectivamente paga pelo consumidor final”, quando ocorra uma vicissitude de que resulte a redução do preço recebido pelo sujeito passivo depois de realizada uma operação, como se verifica no presente caso, deve reduzir-se o seu valor tributável, ainda que essa vicissitude não envolva a contraparte na operação.
Efetivamente, in casu, as associadas da B... aderentes ao Acordo não dispõem da totalidade da contrapartida dos medicamentos vendidos, mas apenas de uma parte do montante final pago, após dedução dos montantes pagos no contexto do Acordo. Por obediência ao princípio de prevalência da substância sobre a forma, consagrado, nomeadamente, como cânone de interpretação e aplicação das normas tributárias, no artigo 11.º, n.º 3 da LGT, impõe-se que se dê primazia à verdade material e à substância económica dos factos. Razão pela qual, é forçoso concluir pelo direito da Requerente à regularização do IVA contido nas notas de crédito emitidas.
Conforme entende CLOTILDE CELORICO PALMA, “o que temos na situação controvertida é, inequivocamente, uma redução do valor tributável da operação de venda de fármacos levada
a cabo pelas entidades associadas da B... aderentes ao Acordo que deve ser objecto de regularização, em conformidade com as regras da Directiva IVA, assim se repondo a neutralidade deste impostos assegurando-se o princípio da contraprestação efectiva. Não nos interessa atender à forma sob a qual se processa tal operação (…) mas sim à substância dos factos e, na substância, o que material e inequivocamente temos é uma redução do valor tributável da operação, que, enquanto tal, pode e deve ser objecto de regularização.”.
Assim, à luz do princípio da substância sobre a forma, do principio da neutralidade próprio do regime do IVA e das regras inerentes ao mesmo, nomeadamente, as normas dos artigos 73.º e
90.º da Diretiva IVA, a posição da Autoridade Requerida de querer fazer prevalecer o facto de estar em causa uma Contribuição, invocando não estar em causa uma contrapartida de uma prestação de serviços ou transmissão de bens, tal como definidos na alínea a) do n.º 1 do artigo
1.º do CIVA e, por conseguinte, estarmos perante uma operação fora do âmbito de aplicação
do imposto, não é correta, não merecendo, atento o exposto, acolhimento.
Ademais, a interpretação das normas aplicáveis no sentido de que à Requerida deve ser garantido o direito a proceder com a regularização do IVA constante das notas de crédito emitidas ao abrigo do Acordo é a única interpretação conforme com a jurisprudência comunitária, nomeadamente, com os acórdãos do TJUE nos casos BOEHRINGER INGELHEIM (C-717/19) e BOEHRINGER INGELHEIM PHARMA (C-462/16), cuja jurisprudência não poderá deixar de ser transponível ao presente caso, cumprindo-se assim o princípio do primado do direito europeu.
Veja-se que a citada jurisprudência do TJUE é clara no sentido de que o artigo 90.º da Directiva
IVA se opõe a uma legislação nacional que prive uma empresa farmacêutica da possibilidade de reduzir a posteriori o seu valor tributável do IVA quando, por força daqueles mecanismos (desconto, no caso C-717/19, e retificação à posteriori de preço, no caso C-462/16), tenha havido de facto, tal como no presente caso, uma redução do preço depois de efetuada a operação. Assim, qualquer redução do preço ocorrida após a realização de uma operação tributável deve dar lugar à redução do respetivo valor, não permitindo o princípio da neutralidade o princípio da igualdade de tratamento consagrado na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia que o sujeito passivo seja obrigado a pagar imposto sobre preço superior ao que é efetivamente exigido do adquirente, independentemente do mecanismo ou da razão pela qual a redução do preço se efetive, seja esta de fonte legal ou contratual….”
Nesta perspetiva e tendo presente a legislação referida, a doutrina, jurisprudência arbitral e comunitária, o Tribunal julga o presente pedido de pronúncia arbitral totalmente procedente, com todas as consequências legais daí advindas.
4 - JUROS INDEMNIZATÓRIOS
A Requerente peticiona ainda a restituição do imposto pago indevidamente acrescido do pagamento de juros indemnizatórios, sendo certo que a jurisprudência arbitral tem reiteradamente afirmado a competência destes Tribunais para proferir pronúncias condenatórias derivadas do reconhecimento do direito a juros indemnizatórios originados em atos tributários ilegais que aí sejam impugnados, ao abrigo do disposto nos artigos 24.º, n.º 1, alínea b) e n.º 5 do RJAT e 43.º e 100.º da LGT.
Desta disciplina deriva o dever, que recai sobre a AT, de reconstituição imediata e plena da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, como resulta do disposto nos artigos 24.º, n.º 1, alínea b) do RJAT e 100.º da LGT, fazendo este último preceito referência expressa ao pagamento de juros indemnizatórios por parte da AT que deve reintegrar totalmente a ordem jurídica violada, restituindo as importâncias de imposto pagas em excesso e, neste âmbito, a privação ilegal dessas importâncias deve ser objeto de ressarcimento por via do cálculo de juros indemnizatórios, por forma a reconstituir a situação atual hipotética que existiria se o ato anulado não tivesse sido praticado.
Termos em que a Requerente tem direito a juros indemnizatórios, que são devidos, ao abrigo do disposto nos artigos 43.º, n.ºs 1 e 4, e 35.º, n.º 10, da LGT, 61.º, n.º 5, do CPPT, 559.º do Código Civil e Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril, à taxa legal supletiva, calculados sobre o valor pago indevidamente, contados desde a data em que foi efetuado o pagamento até à data do processamento da respetiva nota de crédito.
IV – DECISÃO
Face ao exposto o Tribunal Coletivo decide:
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Declarar o pedido de pronúncia arbitral procedente com todas as consequências legais daí advindas, designadamente a revogação do indeferimento tácito da reclamação graciosa apresentada em 15/12/2023 e a consequente anulação das liquidações de IVA e juros, contra as quais a mesma se dirigia, respeitantes ao exercício de 2019.
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Declarar o direito ao reembolso do imposto juros indevidamente pagos, no montante global de € 499 278,07, acrescido dos respetivos juros indemnizatórios calculados nos termos antes referidos.
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Fixar o valor do processo em € 499 278,07 de harmonia com as disposições contidas no artigo 299º, nº 1, do CPC, artigo 97º-A do CPPT, e artigo 3º, nº2, do RCPAT.
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Fixar o montante das custas em € 7 650,00, de acordo com o disposto na tabela I referida no artigo 4º do RCPAT, que ficam a cargo da Requerida de harmonia com o disposto no nº 4 do artigo 22º do RJAT e do artigo 527º nº 2 do CPC, aplicável ex vi alínea e) do nº 1 do artigo 29º do RJAT.
Notifique-se
Lisboa, 17 de março de 2025
O Tribunal Coletivo,
Fernanda Maçãs
(Presidente)
Arlindo José Francisco- Vogal adjunto e relator
Sofia Quental
(Vogal)