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Sumário:
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Não cabe na competência do CAAD apreciar actos de recuperação de auxílios do Estado concedidos ao abrigo do regime de auxílios a favor da “Zona Franca da Madeira” – Regime III, de que resultaram as liquidações adicionais de IRC, por não revestirem a natureza jurídica de imposto, para efeitos do disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, conjugado com os artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.
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Mesmo admitindo-se estarem em causa liquidações sujeitas ao regime jurídico dos impostos, a apreciação da legalidade não caberia no âmbito material de competência do CAAD, por se tratar de apreciar actos de liquidação de IRC praticados pela Autoridade Tributária, ao abrigo dos deveres de cooperação e colaboração recíproca com a AT-RAM, em virtude da falta de vinculação desta à jurisdição do CAAD.
I – Relatório
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A..., SGPS UNIPESSOAL LDA., NIPC..., com sede na ... n.º..., ...-... Funchal, licenciada na Zona Franca da Madeira, (doravante “a Requerente”), apresentou, no dia 15 de Julho de 2024, pedido de constituição de Tribunal Arbitral Coletivo, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, a) e 10.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, com as alterações por último introduzidas pela Lei n.º 7/2021, de 26 de Fevereiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante “RJAT”), e dos artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, em que é Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante, “AT” ou “Requerida”).
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A Requerente pediu a pronúncia arbitral com vista à apreciação da legalidade dos actos tributários de liquidação adicional de Imposto Sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (doravante, IRC), referente aos exercícios fiscais de 2014, 2015, 2016, 2018 e 2019, dos quais resultou um valor total a pagar de 1.291.745,00 euros, em que peticiona:
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A anulação das liquidações com fundamento na caducidade do direito à liquidação de todos os impostos, em sede de IRC; ou, caso assim não se entendesse,
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A anulação das liquidações das liquidações como fundamento em prescrição da obrigação tributária no que respeita ao IRC liquidado adicionalmente em relação aos períodos de tributação de 2014 e 2015.
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Anular as liquidações pela ilegalidade e inconstitucionalidade das liquidações impugnadas.
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A restituição dos tributos adicionais liquidados em sede de IRC relativos aos exercícios de 2014, 2015, 2016, 2018 e 2019 no valor global de 1.291.745,00 €, acrescidos de juros indemnizatórios desde a data dos respectivos pagamentos, até à sua integral restituição à Requerente.
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O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT.
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O Conselho Deontológico designou os árbitros do Tribunal Arbitral Coletivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável, e notificou as partes dessa designação.
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As partes não se opuseram, para efeitos dos termos conjugados dos artigos 11.º, n.º 1, alíneas b) e c), e 8.º do RJAT, e artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.
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O Tribunal Arbitral Coletivo ficou constituído em 24 de setembro de 2024.
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Por despacho de 24 de setembro de 2024, foi a AT notificada para, nos termos do artigo 17.º do RJAT, apresentar resposta.
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Em 30 de Outubro 2024, a AT apresentou resposta e procedeu à junção do Processo Administrativo (doravante, PA).
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Por despacho de 6 de novembro de 2024, foi dispensa a reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT e as Partes notificadas para apresentarem alegações.
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A Requerente respondeu às excepções e apresentou alegações em 12 de Dezembro de 2024, e a Requerida em 13 de Dezembro de 2024.
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As Partes têm personalidade e capacidade judiciárias, e têm legitimidade.
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O processo não enferma de nulidades.
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II – Matéria de Facto
Factos provados
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Com relevância para a decisão da causa, consideram-se provados os seguintes factos:
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A Requerente é uma sociedade gestora de participações sociais (“SGPS”), tendo por objecto social a “gestão de participações sociais de outras sociedades como forma indirecta de exercício de actividades económicas”, com sede social no Funchal, sob a forma de sociedade comercial por quotas, constituída, licenciada e autorizada a operar na Zona Franca da Madeira (ZFM) – cf. certidão permanente junta como documento n.º 1 com o PPA.
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A Requerente encontrava-se, à data dos factos em causa (2014/1016 e 2018/2019), registada e autorizada a operar na ZFM, como SGPS, desde 13 de Janeiro de 2012, remontando a sua licença original, antes de ser SGPS, ao ano 2000. Com efeito,
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A Requerente, então denominada “B..., Lda.”, foi autorizada a operar na ZFM, conforme despacho de 30/06/2000 proferido pelo Secretário Regional do Plano e da Coordenação, nos seguintes termos:
“autorizada sem prejuízo da aplicação do novo regime de benefícios fiscais cuja negociação decorre com a Comissão Europeia” – cf. documento n.º 2 junto com o PPA.
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Por despacho de 13/01/2012, o Secretário Regional do Plano e Finanças, no seguimento da alteração da denominação social para “A... SGPS, Unipessoal, Lda.” e do objecto social, autorizou – nos termos do artigo 18.º do Regulamento das Actividades Industriais, Comerciais e de Serviços, integradas no âmbito industrial da Zona Franca da Madeira, aprovado pelo Decreto Regulamentar regional n.º 21/87/M, de 5 de setembro -, a Requerente para o exercício de Actividade na ZFM, nos seguintes termos:
“Autorizado” – cf. documento n.º 2 junto com o PPA.
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À data dos factos, a Requerente tinha sede social no Funchal, exercendo a sua actividade no âmbito institucional da Zona Franca da Madeira – cf. documento n.º 1 junto com o PPA.
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A Requerente encontrava-se colectada em sede de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC), no Serviço de Finanças do Funchal, sendo – nos anos de 2014-2020 – abrangida pelo “Regime III”.
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Por despacho do Vice-Presidente do G.R., de 2021-04-23, a licença para a Requerente operar no âmbito da ZFM foi revogada – cf. documento n.º 1 junto com o PPA.
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No período de vigência do Regime III, a Requerente não teve trabalhadores – cf. PA junto com a resposta da AT.
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Em 6/09/2022, por ofício da Directora-Geral da AT, proveniente do Gabinete do Diretor Geral da Autoridade Tributária e Aduaneira, a Requerente foi notificada para o Exercício de Audição Prévia – Correções das Liquidações – referentes aos anos de 2014, 2015, 2016, 2018 e 2019, da:
“Recuperação dos Auxílios Ilegais incompatíveis concedidos ao abrigo do Regime de Auxílios Estatais, “Zona Franca da Madeira (ZFM) – Regime III” – Notificação para exercício de audição prévia – Correcção de Liquidações”,
para cada um dos anos em causa, o qual se encontra acompanhado do Anexo I – § Projeto de Correções - cf. Documentos n.º 2 a 6 juntos com o PPA.
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Do ofício remetido consta o seguinte:
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Aquela decisão tem por base a Decisão (EU) 2022/1414 da Comissão, de 4 de dezembro de 2020, relativa ao regime de auxílios SA.21259 (2028/C) (ex-2018/NN), aplicado por Portugal a favor da Zona Franca da Madeira (ZFM) – Regime III (notificada com o número C/2020) 8550), a qual se encontra publicada no Jornal Oficial da União Europeia, série L, n.º 217, de 22 de agosto de 2022 - cf. Documentos n.º 2 a 6 juntos com o PPA.
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O Anexo I aos mencionados ofícios contém excertos da decisão da Comissão Europeia, informação sobre os juros a recuperar em conformidade com o capítulo V do Regulamento (CE) n.º 794/2004 da Comissão, bem como a metodologia utilizada para cálculo do montante dos auxílios estatais indevidamente concedidos - cf. Documentos n.º 2 a 6 juntos com o PPA.
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Em 30 de setembro de 2022, a Requerente pronunciou-se, em sede de audição prévia, contra a intenção e respectivos projectos de decisão de recuperação de auxílios alegadamente ilegais, concedidos ao abrigo do regime de auxílios estatais “Zona Franca da Madeira (ZFM) – Regime III”, sob a forma de liquidações adicionais ou correções das liquidações anteriores de IRC (cf. documentos 7 a 11 do PPA)
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A 8 de Fevereiro de 2024, a Requerente foi notificada – da decisão da AT a qual desatendeu os argumentos vertidos por esta em sede de audiência prévia, tendo notificado a Requerente da fundamentação da liquidação adicional relativa ao procedimento de recuperação dos auxílios ilegais incompatíveis que foram concedidos à Requerente ao abrigo do regime de auxílios estatais (cf. documentos juntos ao Processo Administrativo).
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Daquela notificação consta ainda que:
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A partir de 28/02/2024, a Requerente foi notificada dos seguintes actos:
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Liquidação de IRC n.º 2024..., com data de 2024-02-22, referente ao ano de 2014, emitida Direcção de Serviços de Cobrança da AT, com valor a pagar de 390.866,45 €, com data-limite de pagamento até 15 de Abril de 2024
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Liquidação de IRC n.º 2024..., com data de 2024-02-22, referente ao ano de 2015, emitida Direcção de Serviços de Cobrança da AT com valor a pagar de 356.317,12 €, com data-limite de pagamento até 15 de Abril de 2024
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Liquidação de IRC n.º 2024..., com data de 2024-02-22, referente ao ano de 2016, emitida Direcção de Serviços de Cobrança da AT com valor a pagar de 188.378,39 €, com data-limite de pagamento até 16 de Abril de 2024.
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Liquidação de IRC n.º 2024..., com data de 2024-06-13, referente ao ano de 2018, emitida Direcção de Serviços de Cobrança da AT com valor a pagar de 220.053,50 €, com data-limite de pagamento até 31 de Agosto de 2024.
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Liquidação de IRC n.º 2024..., com data de 2024-06-13, referente ao ano de 2019, emitida Direcção de Serviços de Cobrança da AT com valor a pagar de 136.129,54 €, com data-limite de pagamento até 23 de Abril de 2024.
- cf. Documentos n.ºs 12 a 16 juntos com o PPA.
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Todas as liquidações remetidas à Requerente continham a seguinte fundamentação:
“Fundamentação
Apuramento proveniente de liquidação do IRC decorrente do procedimento de recuperação dos auxílios ilegais incompatíveis concedidos ao abrigo do regime de auxílios estatais «Zona Franca da Madeira (ZFM) - Regime III», na sequência da Decisão (UE) 2022/1414 da Comissão, de 2020-12-04, publicada no Jornal Oficial da União Europeia, Série L, n.º 217, de 2022-08-22, no âmbito do qual já foi anteriormente remetida a respetiva fundamentação. Notificação
Fica notificado(a) para, até à data-limite indicada, efetuar o pagamento da importância apurada. Findo esse prazo, sem que se mostre efetuado o pagamento, proceder-se-á à extração da certidão de dívida para instauração do processo executivo. Pode reclamar ou impugnar nos termos e prazos estabelecidos nos artigos 137.º do CIRC e 70.º e 102.º do CPPT, contados continuamente após a data da presente notificação. A referida Decisão da Comissão é um ato diretamente impugnável perante os tribunais da União Europeia, de acordo com o artigo 263º do Tratado de Funcionamento da União Europeia, pelo que, os atos da AT não são impugnáveis naquilo que neles for a mera execução do ato da Comissão. A respetiva liquidação de juros, calculados numa base composta desde a data em que os auxílios foram colocados à disposição até à data da sua recuperação efetiva, ser-lhe-á oportunamente notificada.”
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A Requerente procedeu ao pagamento do imposto liquidado, relativamente a cada um dos anos em causa - cf. Documentos n.º 18 a 19 juntos com o PPA.
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Em 15 de julho de 2024, a Requerente apresentou, junto do CAAD, pedido de pronúncia arbitral.
Matéria não-provada
Com relevância para a questão a decidir, nada ficou por provar.
Fundamentação da matéria de facto
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Os factos elencados supra foram dados como provados com base nas posições assumidas pelas partes nos presentes autos, nos documentos e informações oficiais juntos ao PPA (Pedido de Pronúncia Arbitral) e no Processo Administrativo (PA), tudo conforme referido em cada um dos pontos da matéria de facto assente, que não foram impugnados e que, pela sua natureza e qualidade, mereceram a credibilidade dada pelo Tribunal.
III – Posição das Partes
Posição da Requerente
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A Requerente alega, em suma, o seguinte:
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No presente processo, a Requerente pretende que seja apreciada a ilegalidade das liquidações de IRC, referentes aos anos de 2014, 2015, 2016, 2018 e 2019.
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Invoca a Requerente que as liquidações em causa vêm na sequência da decisão da Comissão Europeia com o número C (2020) 8550 final, de 04.12.2020, relativa ao regime de auxílios SAA.21259 (2018/C) (ex 2018/NN), aplicado por Portugal a favor da ZFM – Regime III, que refere ser o ato que está na origem da recuperação dos auxílios de Estado, e onde se concluiu que o regime, tal como aplicado, não estava em conformidade com as decisões da Comissão de 2007 e 2013 e que, sendo assim, esses auxílios individuais concedidos aos beneficiários eram ilegais e são considerados incompatíveis com o mercado interno com base no artigo 108.º, n.º 3, alínea a), do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), pelo que foi determinado que Portugal deverá proceder à recuperação desses auxílios.
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Entende, no entanto, a Requerente que ocorreu a caducidade do direito à liquidação, por decurso do tempo, nos termos artigo 45.º da LGT, porquanto quando a Requerente foi notificada das 5 correcções de liquidação de IRC já haviam decorrido mais de 4 anos desde o termo de cada uma delas, não se tendo verificado qualquer suspensão nos termos do artigo 46.º, n.º 2 e 3 da LGT.
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Por outro lado, subsidiariamente, a obrigação tributária encontrar-se-ia extinta, por prescrição.
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Na óptica da Requerente, verifica-se, in casu, a prescrição da obrigação tributária, por decurso do tempo, das dívidas tributárias referentes aos exercícios de 2014 e 2015, nos termos do artigo 48.º da LGT.
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Assim, em 31 de Dezembro de 2022 em relação ao período de tributação de 2014 (IRC do ano de 2014) e em 31 de Dezembro de 2023 em relação ao período de tributação de 2015 (IRC do ano de 2015).
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Prevenindo outro entendimento, a Requerente invoca, ainda, erro de direito pela AT por ter incluído as SGPS no universo de beneficiários abrangidos pelo dever de recuperação em caso de não cumprimento do requisito relativo à criação e manutenção de postos de trabalho na RAM.
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As SGPS licenciadas como tal entre 1/1/2007 e 31/12/2014, como é o caso de Requerente, não estavam sujeitos, para os exercícios fiscais aqui em causa, aos requisitos da criação e, ou manutenção de postos de trabalho, do investimento mínimo ou cumprimento de determinados “plafonds”.
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Entendimento este que foi sufragado na informação vinculativa n.º 9.989, de 13-10-2011, processo 30.12, da Secretaria Regional do Plano e Finanças, bem como na informação vinculativa n.º 12.549, proferida pela Direção Regional dos Assuntos Fiscais, da RAM, em 22-12-2011.
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Por fim, entende a Requerente que existe uma inconstitucionalidade e ilegalidade das decisões impugnadas, porquanto as liquidações impugnadas violam princípios constitucionais como os da legalidade fiscal, da certeza e segurança jurídicas e da boa-fé, este último concretizado na garantia da proteção da confiança, que a administração tributária deve respeitar no relacionamento com os particulares – cf. artigos 266.º, n.º 2 e 103, n.º 3 da CRP.
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Assim, e com base nos fundamentos invocados, peticiona a Requerente a anulação das liquidações impugnadas (liquidações de IRC referentes aos exercícios de 2014, 2015, 2016 e 2018), no valor global de 1.291.745 €, acrescidos de juros indemnizatórios desde a data do pagamento até à sua integral restituição à Requerente.
Posição da Requerida
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A posição da Requerida pode ser sintetizada do seguinte modo:
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Por um lado, o acto aqui em causa não é impugnável e, por outro, o CAAD não tem competência para sindicar o acto.
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Quanto à questão da inimpugnabilidade do acto, é entendimento da Requerida que o mesmo é inimpugnável naquilo que nele for uma mera execução do acto da Comissão, concluindo que não se está perante um novo acto tributário, mas apenas perante o apuramento do tributo na sequência da reforma de anteriores actos tributários decorrentes de uma decisão da Comissão Europeia.
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No que respeita à competência do CAAD, no entendimento da AT o que aqui está em causa é uma Recuperação de Auxílios de Estado concedidos sob a forma de redução de impostos, não sendo, um ato tributário stricto sensu realizado pela AT-RAM.
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No caso em apreço, a Requerente é uma sociedade com sede na Zona Franca da Madeira, que se encontra abrangida em termos tributários pelo Serviço local de Finanças Funchal-... e por atos praticados pela Direção Regional da Autoridade Tributária e Assuntos Fiscais da Região Autónoma da Madeira, na dependência da Vice-Presidência do Governo Regional da Região Autónoma da Madeira.
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Em abono da sua posição — incompetência absoluta do CAAD para dirimir o presente litígio -—, a Requerida invoca as decisões proferidas nos processos 190/2021, 932/2019, 386/2018, 63/2018, 336/2017, 247/2015, 89/2012, 81/2024, onde foi decidido que o CAAD era incompetente materialmente uma vez que a Região Autónoma da Madeira não se encontra vinculada à jurisdição do CAAD, nos termos dos artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março (portaria de vinculação).
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No mais, conclui a Requerida pela improcedência do pedido.
IV – Do Direito
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Cumpre apreciar a excepção de incompetência que, em termos lógicos, precede o conhecimento das demais expecções, designadamente, da excepção de ilegitimidade passiva e de inimpugnabilidade do acto que, a serem procedentes, constituem uma excepção dilatória que obsta ao conhecimento do mérito.
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Comecemos, pois, por apreciar a questão de incompetência que precede as demais excepções (cf. artigo 13.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), aplicável aos processos arbitrais tributários por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea c) do RJAT).
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Quanto à competência material do Tribunal Arbitral
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Como se assinalou, a primeira questão que se coloca é saber se os tribunais arbitrais tributários constituídos junto do CAAD têm competência para apreciar a legalidade de um acto de recuperação de um auxílio de Estado, que deu origem a uma liquidação de IRC, instaurada na sequência de um processo de recuperação de auxílios de Estado concedidos ao abrigo do regime de auxílios a favor da “Zona Franca da Madeira – Regime III”.
A posição sustentada pela AT evidencia que a Requerente requerer a constituição do tribunal arbitral para se pronunciar sobre as “liquidações e liquidações adicionais de IRC (...) relativas que são aos exercícios fiscais de 2014, 2015, 2016, 2018 e 2019” e referentes à recuperação dos Auxílios Ilegais incompatíveis concedidos ao abrigo do Regime de Auxílios Estatais “Zona Franca da Madeira” (ZFM) – Regime III. Daqui, conclui a AT pela incompetência material do CAAD para conhecer o pedido de anulação, uma vez que a AT não é competente para representar o Governo Regional da Madeira ou a actual AT-RAM, as quais não constam da portaria de vinculação à jurisdição do CAAD.
A Requerente insurge-se contra este entendimento. A Requerente entende que os tribunais arbitrais são competentes para apreciar a legalidade das liquidações de IRC, as quais foram praticados pela Autoridade Tributária e não pela AT-RAM. Frisa a Requerente que os actos em causa provêm da AT, estão assinados pela Directora-Geral da Autoridade Tributária e Aduaneira, e está ausente qualquer referência à AT-RAM (cf. Ponto 4 da resposta às excepções).
Para responder a esta questão, impõem-se algumas precisões.
A matéria dos auxílios de Estado encontra-se prevista no artigo 107.º do TFUE, sendo uma matéria da competência exclusiva da União Europeia, por se inserir nas regras de concorrência (cf. artigos 3.º, n.º 1, alínea b) e 101.º e seg. do TFUE). Regra geral, os auxílios de Estado são proibidos, havendo no Tratado um procedimento de controle o qual se encontra previsto no artigo 108.º do TFUE e no Regulamento (EU) 2015/1589 que, por serem normas de Direito da União Europeia, que constam do elenco das competências exclusivas das instâncias euro-comunitárias (cf. artigo , artigos 3.º, n.º 1, alínea b) do TFUE), prevalecem sobre o direito nacional, conforme reconhecido pelo artigo 8.º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa.
Como é sabido, a recuperação dos auxílios ilegais é efectuada de acordo com as formalidades do direito nacional. Numa decisão recente, o Supremo Tribunal Administrativo (STA) veio reconhecer que a aplicação de um qualquer mecanismo de recuperação de auxílios tem de obedecer sempre a uma tramitação própria de acordo com as normas de direito nacional.
Atente-se na decisão proferida pelo STA, de 03 de julho de 2024, proferida no âmbito do Processo 33/24.1BEFUN, na qual se escreve (a propósito da utilização do processo de execução fiscal para recuperar um auxílio ilegal):
“(...)o que resulta de tais dados normativos[1] é, ao invés, a concessão de uma liberdade aos Estados de se valerem dos regimes processuais que, no seu ordenamento interno, melhor assegurem “uma execução imediata e efetiva da decisão da Comissão”. Quer dizer, cada Estado Membro da União pode seleccionar os mecanismos legais nacionais aplicáveis à cobrança deste tipo concreto de dívida.” (...)
“IX. Cabe, portanto, ao legislador estabelecer um regime que – porventura, em termos ainda menos garantísticos do que os que normalmente se encontram associados ao processo de execução fiscal – permita aumentar a celeridade na cobrança dos créditos relativos a Auxílios de Estado reputados pela Comissão de ilegais.
E aponta neste sentido a solução introduzida, a respeito da recuperação de recursos próprios da União, no artigo 169.º, n.º 11 do CPPT, sob a epígrafe “Suspensão da Execução. Garantias”, onde se pode ler – curiosa e precisamente a respeito da regulamentação das matérias aqui em causa – que: “O disposto no presente artigo não se aplica às dívidas de recursos próprios comunitários.” (sublinhado nosso) (Norma que foi, entretanto, revogada pela Lei n.º 7/2021, de 26 de Fevereiro.).
Quer dizer: de modo a lograr a celeridade processual executiva exigida pelo Direito europeu a respeito de recuperação de recursos próprios da União Europeia, foi o legislador em abstracto (e não a administração em concreto, note-se) que entendeu reputar as garantias processuais executivas como inconvenientes à celeridade processual que deve pautar a recuperação dos recursos próprios europeus e por isso afastou a aplicação das “garantias” semelhantes àquelas aqui invocadas pela Recorrente no presente caso.
X. Sucede que não existe semelhante disposição no que concerne às quantias exequendas respeitantes a Auxílios de Estado ilegalmente concedidos.”
Concluindo assim que:
“Contrariamente ao que sucedia com o artigo 169.º, n.º 11 do CPPT quanto aos recursos próprios da União Europeia, não se prevê norma própria que, ao menos em termos diretos, impeça a aplicação das garantias processuais previstas naquele dispositivo à recuperação executiva de Auxílios de Estado ilegais.”
Veja-se, ainda, decisão do Supremo Tribunal Administrativo, também do dia 3 de Julho de 2024, proferida no Processo 33/24, no sentido de que:
“Surge como claro que a recuperação deve ser feita de acordo com as formalidades do direito nacional do Estado-Membro em causa, desde que estas permitam a execução imediata da decisão da Comissão. A remissão é, portanto, feita de forma inequívoca para o direito interno, exigindo-se apenas que as suas regras sejam aptas para o propósito de recuperar os auxílios, ou, eventualmente, que o legislador crie mecanismos para o efeito, incluindo eventuais medidas provisórias (como refere o Regulamento). Não havendo um mecanismo específico para recuperar auxílios e tendo o Estado Português, no âmbito das competências que lhe são reconhecidas, adotado a liquidação adicional e, na sequência disso, o processo de execução, será unicamente no domínio desse enquadramento que deverão, portanto, ser recuperados os auxílios.”
(...)
“(...) independentemente das consequências económicas, e sensibilidade da situação, que os sujeitos passivos não tenham de devolver o que resultou da atribuição de um auxílio ilegal, não sendo contestável, no quadro atual do Direito a União Europeia, a necessidade de devolução. Isto, porém, jamais pode implicar que, no âmbito de um processo de execução que em termos de garantias deveria ser igual a qualquer outro, se viole o princípio da igualdade, ao subtrair garantias que normalmente assistem a todos os executados.”
Da matéria de facto provada resulta que está em causa, nos presentes autos, um acto de recuperação de auxílios do Estado que foram considerados ilegais por decisão da Comissão Europeia, cuja recuperação se operou por via das liquidações adicionais de IRC já identificadas. A Requerente não impugnou junto do Tribunal de Justiça da União Europeia a decisão da Comissão Europeia. Na perspetiva da Requerente, a apreciação da legalidade daqueles actos deve operar à luz das regras nacionais que disciplinam a liquidação de impostos.
É certo que a recuperação desse auxílio, ao abrigo da legislação nacional, ocorreu por via de um procedimento administrativo que teve o seu início com a notificação promovida pela AT “Recuperação dos Auxílios Ilegais incompatíveis concedidos ao abrigo do Regime de Auxílios Estatais, “Zona Franca da Madeira (ZFM) – Regime III” – Notificação para exercício de audição prévia – Correcção de Liquidações”, de que resultaram os actos de liquidação de IRC, cuja anulação se requer.
Consta daquela notificação para exercício do direito de participação a decisão da Comissão Europeia que está na origem da recuperação dos auxílios de Estado é um acto directamente impugnável perante os tribunais da União Europeia, de acordo com o artigo 263.º do TFUE e, ainda o seguinte:
“Consequentemente, os atos da Autoridade Tributária e Aduaneira, entre os quais se inclui o ato de liquidação, não são impugnáveis naquilo que neles for a mera execução do ato da Comissão. Assim, a argumentação relativa a quaisquer vícios imputáveis à decisão da Comissão não é suscetível de ser apreciada pela Autoridade Tributária”
A Requerente não impugnou o acto da Comissão Europeia perante o TJUE ao abrigo do artigo 263.º do TFUE. Aliás, na óptica da Requerente, a decisão da Comissão Europeia não se aplica à Requerente porque, sendo uma SGPS, não está abrangida por aquela decisão[2].
No caso em apreço, a recuperação do auxílio, considerado ilegal, foi levada a cabo pela AT por via de uma liquidação adicional de IRC. Com efeito, conforme resulta do probatório, a AT – no seguimento da notificação à Requerente (cf. ponto I a P da matéria de facto), veio a emitir cinco liquidações de IRC, constando das mesmas:
“Apuramento proveniente de liquidação do IRC decorrente do procedimento de recuperação dos auxílios ilegais incompatíveis concedidos ao abrigo do regime de auxílios estatais «Zona Franca da Madeira (ZFM) - Regime III», na sequência da Decisão (UE) 2022/1414 da Comissão, de 2020-12-04, publicada no Jornal Oficial da União Europeia, Série L, n.º 217, de 2022-08-22, no âmbito do qual já foi anteriormente remetida a respetiva fundamentação.
Notificação
Fica notificado(a) para, até à data-limite indicada, efetuar o pagamento da importância apurada. Findo esse prazo, sem que se mostre efetuado o pagamento, proceder-se-á à extração da certidão de dívida para instauração do processo executivo. Pode reclamar ou impugnar nos termos e prazos estabelecidos nos artigos 137.º do CIRC e 70.º e 102.º do CPPT, contados continuamente após a data da presente notificação. (...)”
Subsequentemente, a Requerente impugnou aquele acto, junto do CAAD, em que pede a anulação daquelas liquidações.
Importa, pois, determinar se, face ao quadro legal aplicável, os tribunais arbitrais tributários são competentes para apreciar a legalidade do acto, i.e., se o acto de recuperação de auxílio que a AT efectuou de acordo com as normas jurídicas nacionais por via da liquidação de IRC cabe no âmbito material da jurisdição do CAAD.
O artigo 2.º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro que regula o regime jurídico da arbitragem em matéria tributária (RJAT) atribui aos tribunais arbitrais competência para apreciar as pretensões referentes “a declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte, e de pagamento por conta”. Fixada a competência dos tribunais arbitrais, a norma do artigo 4.º, n.º 1 do mesmo diploma relativa à vinculação da administração tributária à jurisdição dos tribunais arbitrais determina que essa vinculação depende “de portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça, que estabelece, designadamente, o tipo e o valor máximo dos litígios abrangidos.”. A vinculação da administração tributária à jurisdição destes tribunais arbitrais veio a ser concretizada pela Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, que no artigo 1.º vinculou a, então, Direcção-Geral dos Impostos (DGCI), actualmente, Autoridade Tributária, bem como a então Direcção-Geral das Alfândegas e dos Impostos Especiais sobre o Consumo (DGAIEC), à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD. Por seu turno o artigo 2.º da Portaria fixou o objecto dessa vinculação, nos seguintes termos:
“Os serviços e organismos referidos no artigo anterior vinculam-se à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD que tenham por objecto a apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida referidas no n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro.”.
Como é sabido, o segmento que refere “impostos cuja administração lhes seja cometida” tem dado azo a um conjunto de decisões que versam sobre o âmbito material de competência dos tribunais arbitrais, bem como sobre a vinculação da Administração Tributária à jurisdição dos tribunais arbitrais tributários que funcionam junto do CAAD.
Assim, sucessivas decisões, tando dos tribunais arbitrais, como dos tribunais administrativos e tributários, têm entendido que a expressão “impostos” afasta da jurisdição dos tribunais arbitrais outros tributos como é o caso da Contribuição Extraordinária sobre a Indústria Farmacêutica (CEIF)[3] , da Contribuição sobre o Sector Rodoviário (CSR)[4] ou da Contribuição Extraordinária sobre o Setor Energético (CESE)[5] que, constituindo – para uma parte da jurisprudência – , contribuições financeiras, se encontram excluídos do âmbito material de competência dos tribunais arbitrais constituídos junto do CAAD.
Em primeiro lugar importa verificar se estamos perante um acto de liquidação de tributos que constitua um imposto cujo administração caiba à AT.
Ora, como já vimos, não existe na legislação nacional um procedimento específico para recuperar um auxílio de Estado que haja sido considerado ilegal pela Comissão. Neste contexto, a recuperação do auxílio de Estado efectivou-se – no plano interno - por recurso ao procedimento de liquidação adicional de IRC. No entanto, não podemos ignorar as consequências decorrentes da qualificação jurídica dessa liquidação como auxílio de Estado.
A recuperação deste auxílio constitui uma obrigação que vincula o Estado português, o qual – por força do princípio da cooperação leal – se obrigou a respeitar as disposições do TUE e TFUE e, para o caso que agora nos ocupa, o disposto no artigo 108.º do TFUE. Ora, a Comissão Europeia determinou que Portugal procedesse à recuperação dos auxílios incompatíveis concedidos junto dos beneficiários (cf. Artigo 4.º da Decisão C(2020) 8550 final da Comissão Europeia, de 4 de dezembro de 2020, relativa ao regime de auxílios SA.21259 (2018/C) (ex 2018/NN) aplicado por Portugal a favor da Zona Franca da Madeira (ZFM) — Regime III. A decisão da Comissão Europeia foi contestada judicialmente pelo Estado Português, o qual requereu a sua anulação junto do Tribunal de Justiça. Porém, o Tribunal Geral, por acórdão de 21 de Setembro de 2022[6], decidiu negar provimento ao pedido de anulação formulado, decisão esta que veio, posteriormente, a ser confirmada pelo TJUE, por acórdão de 4 de julho de 2024[7].
Nos termos que foram determinados pela decisão da Comissão Europeia, a recuperação deve restabelecer a situação existente no mercado interno antes da sua concessão. O montante a recuperar vence juros até à sua recuperação efectiva, os quais são calculados nos termos do regulamento, e o cálculo do montante do auxílio a recuperar deve ser efectuado de acordo com a metodologia determinada na Decisão da Comissão.
Ora, face a este enquadramento, que serviu de fundamento às liquidações adicionais, não nos parece que as liquidações em causa possam ser enquadradas como um acto de liquidação de tributos, i.e., um imposto cuja administração caiba à AT.
A AT socorre-se do mecanismo da lei interna, recorrendo ao procedimento de liquidação (adicional) de IRC para dar execução a uma decisão da Comissão Europeia que determinou a recuperação do auxílio de Estado. Neste contexto, o que está aqui em causa é a prática de um acto de recuperação de auxílio de Estado que a AT promoveu por via da liquidação adicional de IRC. Não está aqui em causa a liquidação de um imposto[8], mas apenas a recuperação de um auxílio cujo montante é apurado por via de um procedimento de liquidação de IRC, mas cujo montante obedece a uma metodologia de cálculo determinada pela Comissão. Liquidação esta que é suscetível de impugnação por via judicial nos termos do artigo 102.º do CPPT (conforme resulta, aliás, da notificação remetida à AT) mas que, nem por isso, perde a natureza jurídica de auxílio de Estado.
Não cabe no âmbito material de competência dos tribunais arbitrais, na acepção do disposto no artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, apreciar a legalidade de um acto de recuperação de um auxílio de Estado, ainda que essa recuperação seja efectuada por via de uma liquidação de um imposto, como o IRC. In casu, o acto de liquidação não é mais do que a execução de uma decisão da Comissão Europeia, cujo cálculo foi efectuado de acordo com uma metodologia determinada pela Comissão Europeia e sujeita a juros a calcular nos termos do mencionado regulamento.
Não revestindo o acto a natureza de imposto, não cabe na competência do CAAD apreciar actos de recuperação de auxílios do Estado concedidos ao abrigo do regime de auxílios a favor da “Zona Franca da Madeira” – Regime III, de que resultaram as liquidações adicionais de IRC, por não revestir a natureza jurídica de imposto, para efeitos do disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, conjugado com os artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.
Por outro lado, ainda que se admitisse que estivessemos perante um imposto, na acepção do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10/2011de, ter-se-ia de aferir se estaríamos perante um imposto “cuja administração” seja cometida à AT, nos termos do Decreto-Lei n.º 118/2011, de 15 de dezembro.
Nos termos deste normativo, a AT tem como atribuição, entre outras: “Assegurar a liquidação e cobrança dos impostos sobre o rendimento, sobre o património e sobre o consumo, dos direitos aduaneiros e demais tributos que lhe incumbe administrar, bem como arrecadar e cobrar outras receitas do Estado ou de pessoas colectivas de direito público.” (cf. artigo 2.º, n.º 2 alínea a) do Decreto-Lei n.º 118/2011, de 15 de dezembro).
Deste modo, e para a matéria dos presentes autos, assume especial relevância um conjunto de decisões que versam – à semelhança do caso que nos ocupa – sobre a competência do CAAD quando estejam em causa tributos, como é o caso do IRC que, por constituírem receita própria da Região Autónoma da Madeira, cuja administração está atribuída à Autoridade Tributária e Assuntos Fiscais da Região Autónoma da Madeira (cf. artigo 227.º da CRP), nos termos do artigo 2.º e 3.º do Decreto Regulamentar Regional n.º 14/2015, de 19 de agosto, ficam excluídos do âmbito material de competência do CAAD.
É, também neste ponto, que se pode enquadrar a questão da competência suscitada pela AT: saber se o CAAD tem jurisdição para apreciar pretensões que versam sobre liquidações de IRC, promovidas pela Autoridade Tributária, mas referentes a uma sociedade com sede na Zona Franca da Madeira e, como tal, cuja receita pertence à RAM.
No âmbito dos tribunais arbitrais é prevalecente o entendimento segundo o qual ficam fora do âmbito da arbitragem tributária os impostos administrados pela Região Autónoma da Madeira ou por outras entidades que não a Autoridade Tributária e Aduaneira. A título ilustrativo, atente-se nas decisões proferidas no Processo 81/2024, de 11/06/2024, em que alude à “incompetência do tribunal arbitral para a apreciação da referida liquidação de IRC, dada a falta de vinculação da AT-RAM à jurisdição arbitral.” No mesmo sentido, a decisão proferida no Processo 190/2021, de 07/02/2022 que entendeu que:
A competência para lançar, liquidar e cobrar o IRC e juros compensatórios devidos por sociedade com sede, ou que pratique actos sujeitos a imposto, na Região pertence à Autoridade Tributária e Assuntos Fiscais da Região Autónoma da Madeira (AT-RAM), embora a lei admita a colaboração da Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) nesse procedimento.
No âmbito da jurisprudência do STA, o acórdão de 28 de Abril de 2021, proferido no âmbito do Processo 266/20.0BEFUN[9], assenta o entendimento de que a decisão arbitral que anulou as liquidações de IRC, liquidado a uma sociedade com sede na RAM e actividade enquadrada no Centro internacional de Negócios da Madeira (Zona Franca da Madeira), não vincula a AT-RAM, que não foi parte no processo arbitral, motivo pelo qual se decide que o Serviço de Finanças do Funchal não estava obrigado a deferir o pedido de diminuição da garantia com fundamento numa decisão do CAAD. Aqui se escreveu:
“temos que a sociedade Reclamante tem sede no território da Região Autónoma da Madeira e actividade enquadrada no Centro Internacional de Negócios da Madeira (Zona Franca da Madeira), encontrando-se, portanto, sujeita ao regime jurídico-fiscal aplicável na Região Autónoma da Madeira, nos termos do qual o IRC constitui uma receita própria da Região que deve ser administrada pela AT-RAM (a quem compete apreciar graciosamente daquele imposto). Logo, a competência para as liquidações de IRC (retenções na fonte) em cobrança nos processos de execução fiscal n.ºs ...2017..., ...2017... e ...2017... era da AT-RAM, embora a lei admita a colaboração da Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) nesse procedimento».
“É certo, pois, que a competência para lançar, liquidar e cobrar o IRC devido por sociedade com sede na Região pertence à AT-RAM” e prossegue:
“No caso, como resulta do que ficou já exposto, a AT-RAM não teve intervenção no processo arbitral (Nem poderia ter, na medida em que a AT-RAM nunca se vinculou à jurisdição arbitral em matéria tributária (cf. art. 4.º, n.º 1, do RJAT e a Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).). Quem esteve no processo arbitral foi a AT e, apesar de esta ter invocado quer a incompetência do tribunal arbitral quer a sua ilegitimidade, o CAAD não atendeu nenhuma dessas excepções e apreciou o mérito da causa.”
Em suma, a decisão arbitral invocada pela Recorrente, que anulou as liquidações que deram origem às dívidas exequendas, não vincula a AT-RAM, que não foi parte no processo arbitral, motivo por que o Serviço de Finanças do Funchal - ... (unidade orgânica desconcentrada de âmbito local da AT-RAM) não estava obrigado a deferir o pedido de diminuição da garantia com fundamento naquela decisão”.
Concluindo que:
“II - A autoridade do caso julgado de uma decisão proferida pelo CAAD em matéria tributária, não vincula a AT-RAM, que não teve (nem podia ter, por não se ter vinculado à jurisdição do CAAD em matéria tributária) intervenção no processo arbitral e onde, ademais, se decidiu expressamente que a legitimidade passiva era da AT.
III - Assim, estando em causa a cobrança coerciva de dívidas originadas por imposto que é da competência da AT-RAM lançar, liquidar e cobrar o IRC, a AT-RAM, através de uma sua unidade orgânica desconcentrada de âmbito local, não está impedida de considerar que tais actos tributários se mantêm na ordem jurídica, apesar de a decisão referida em II ter determinado a sua anulação.”
O mesmo entendimento é partilhado, no plano doutrinal, por Carla Castelo Trindade que entende que:
-
O âmbito material da arbitragem resume-se à análise de questões relativas a impostos, não sendo, portanto, susceptiveis de recurso à arbitragem, por se encontrarem fora dos termos de vinculação da administração tributária, questões relativas a taxas e contribuições; e
-
O âmbito material da arbitragem resume-se à análise de questões relativas aos impostos que sejam administrados pela Autoridade Tributária e Aduaneira, ficando então de fora os impostos administrados pela Região Autónoma da Madeira ou administrados por outras entidades que não a Autoridade Tributária e Aduaneira.
(cf. Carla Castelo Trindade, O Regime Jurídico da Arbitragem Tributária Anotado, Almedina, Coimbra, 2016, pp. 78-86).
Perspetiva esta acompanhada também por Sérgio Vasques/Carla Castelo Trindade que entendem que ficam então fora do âmbito da arbitragem tributária “os impostos administrados pela região Autónoma da Madeira ou por outras entidades que não a Autoridade Tributária e Aduaneira.” (cf. Sérgio Vasques/Carla Castelo Trindade, O âmbito material da arbitragem tributária, CJT, Abril-Junho de 2013, Cejur, Braga, 2013, pp. 24-25).
Como já vimos várias decisões proferidas pelos tribunais consideram excluídas do âmbito de jurisdição do CAAD, os pedidos que digam respeita a impostos administrados pela RAM, ainda que a liquidação possa continuar a ser promovida pela AT, no âmbito dos deveres de colaboração, nos termos do 15.º, n.º 1 do Decreto Regulamentar 14/2015, de 19 de Março[10].
Assim sendo, ainda que se entendesse que o acto objecto do pedido de apreciação de legalidade e consequente anulação é um imposto, esse imposto (IRC) constitui receita própria da Região Autónoma da Madeira, cuja administração, liquidação e cobrança compete à AT-RAM, sem prejuízo dos deveres de colaboração recíprocos da AT e da AT-RAM, nos termos do artigo 15.º do mencionado decreto regulamentar. E, como já vimos, a AT-RAM não se vinculou à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam sob a égide do CAAD. Procederia, assim, e pelos motivos expostos a excepção de incompetência material dos Tribunais Arbitrais.
Conclui-se, pelo exposto, que a apreciação da pretensão da Requerida – liquidações de IRC decorrente do procedimento de recuperação de auxílios de Estado – não se inclui na competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD.
Procede, assim, a excepção de incompetência material do tribunal arbitral para apreciação do pedido, excepção esta que constitui uma excepção dilatória que obsta ao prosseguimento do processo e à absolvição da instância (cf. artigos 89.º do CPA, e artigo 576.º e 577.º, alínea a) do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, alíneas c) e e) do RJAT.
Sendo procedente a excepção de incompetência, com a consequente absolvição da instância, fica prejudicado o conhecimento das demais excepções suscitadas, bem como o conhecimento do mérito da acção.
Por fim, compreende-se o erro da Requerente ao deduzir o pedido de pronuncia arbitral explicado pela meio usado para recuperar o auxílio, i.e., o recurso a uma liquidação de IRC proveniente da AT, liquidada no seguimento de um procedimento desencadeado pela Directora-Geral da AT, pelo se entende permanecer assegurado o direito à impugnação contenciosa, pelo que a decisão de incompetência não contende com o direito de impugnação contenciosa garantida pelo artigo 268.º, n.º 4 da CRP.
IV – Decisão
Nos termos expostos, acordam neste Tribunal Arbitral em:
-
Julgar procedente a excepção de incompetência material deste tribunal arbitral;
-
Absolver a Autoridade Tributária e Aduaneira da instância.
-
Declarar que a procedência da excepção não resulta de facto imputável à Requerente.
V – Valor do Processo
Fixa-se o valor do processo em 1.291.745 euros (um milhão, duzentos e noventa e um mil e setecentos e quarenta e cinco euros), nos termos do disposto no artigo 97.º-A do CPPT, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT e artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processo de Arbitragem Tributária (RCPAT).
VI – Custas
Custas no montante de 17.442,00 euros (cf. Tabela I do RCPAT e artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4 do RJAT) a cargo da Requerente.
Lisboa, 19 de Março de 2025
Os Árbitros,
Regina de Almeida Monteiro
Alexandra Gonçalves Marques
André Festas de Silva (vencido, conforme declaração de voto junta)
Declaração de voto vencido
Voto de vencido por entender que não se verifica a exceção de incompetência material deste tribunal arbitral.
A competência material do tribunal afere-se pelos termos em que a ação é proposta e pela forma como o autor estrutura o pedido e os respetivos fundamentos. Por isso, para se aferir da competência material do tribunal importa apenas atender aos factos articulados pelo autor na petição inicial e à pretensão jurídica por ele apresentada, ou seja, à causa de pedir invocada e aos pedidos formulados.
A competência material dos tribunais arbitrais que funcionam junto do CAAD é desde logo definida pelo artigo 2.º, n.º 1, do RJAT, que dispõe:
“1 - A competência dos tribunais arbitrais compreende a apreciação das seguintes pretensões: a) A declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta; b) A declaração de ilegalidade de actos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de actos de determinação da matéria colectável e de actos de fixação de valores patrimoniais; c) (...)” - Revogada pela Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro.”
A competência material dos tribunais arbitrais que funcionam junto do CAAD é ainda limitada pela vinculação da Autoridade Tributária e Aduaneira que, nos termos do artigo 4.º, n.º 1, do RJAT, veio a ser definida pela Portaria n.º 112-A/2011, de 12 de Março, que estabelece o seguinte no seu art. 2º:
“Os serviços e organismos referidos no artigo anterior vinculam-se à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD que tenham por objeto a apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida referidas no n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, com exceção das seguintes: a) Pretensões relativas à declaração de ilegalidade de atos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário; b) Pretensões relativas a actos de determinação da matéria colectável e actos de determinação da matéria tributável, ambos por métodos indirectos, incluindo a decisão do procedimento de revisão; c) Pretensões relativas a direitos aduaneiros sobre a importação e demais impostos indirectos que incidam sobre mercadorias sujeitas a direitos de importação; e d) Pretensões relativas à classificação pautal, origem e valor aduaneiro das mercadorias e a contingentes pautais, ou cuja resolução dependa de análise laboratorial ou de diligências a efectuar por outro Estado membro no âmbito da cooperação administrativa em matéria aduaneira.”
Isto dito, importa então começar por atentar no pedido formulado pela Requerente que, visto o petitório, se materializa como segue:
O pedido arbitral não se dirige contra a exigência de restituição dos auxílios estatais, mas contra os atos de liquidação em IRC. Aliás os vícios imputados (caducidade e prescrição) são relativos apenas ao procedimento de liquidação nacional, por isso autónomos do procedimento decorrente na UE relativo à recuperação dos auxílios do Estado.
Intuindo-se daqui que decorre da literalidade do pedido que o que a Requerente efetivamente pretende é a declaração de ilegalidade e a anulação das liquidações de IRC.
Como visto, a pretensão de anulação de um ato de liquidação de um tributo tem perfeito cabimento na norma da competência prevista na alínea a), do n.º 1, do art.º 2.º do RJAT.
Ademais, a Portaria n.º 112-A/2011, de 12 de Março, através da qual a Requerida se vinculou à arbitragem em matéria tributária, não contém qualquer exclusão que pudesse abarcar a situação dos presentes autos (Cfr. n.º 2 do art.º 2.º da referida Portaria).
Nessa medida, o pedido formulado pela Requerente está compreendido no âmbito das competências dos tribunais arbitrais constituídos sob a égide do CAAD, pois nele está incluída a apreciação de pretensões de “declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos”, como decorre do estatuído na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT.
Há, assim, na minha opinião, que concluir pela competência do presente Tribunal em razão da matéria por força do citado art.º 2.º, n.º 1, al. a), do RJAT.
Quanto à competência do CAAD, por falta de vinculação a AT da RAM, importa realçar que os atos tributários impugnados foram realizados pela Direcção de Serviços de Cobrança da AT. A AT da RAM não interveio em nenhum momento. Por conseguinte, o CAAD é competente por força da vinculação à arbitragem tributária institucionalizada do CAAD por parte da Autoridade Tributária e Aduaneira, tal como resulta da Portaria n.º 112-A/2011 de 12 de Março. Neste sentido vejam-se as decisões arbitrais n.º 30/2016 de 04/10/2016 e n.º426/2017 de 25.03.2018.
Face ao exposto, não acompanho a decisão proferida, uma vez que entendo que as exceções de incompetência material deviam ser julgadas improcedentes.
[1] Referindo-se ao artigo 16.º do Regulamento (UE) n.º 215/1589, do Conselho, de 13 de Julho de 2015 (Regulamento), bem como à Comunicação da Comissão relativa à recuperação de auxílios estatais ilegais e incompatíveis (2019/C 247/01), quer à Decisão da Comissão Europeia relativa ao regime de auxílios SA.21259 (2018/C) (ex - 2018/NN) aplicado por Portugal a favor da Zona Franca da Madeira (ZFM) – Regime III) - Decisão (UE) 2022/1414 da Comissão, de 4 de Dezembro de 2020.
[2] Entendimento este que veio a ser rejeitado num caso semelhante em que o Tribunal Geral concluiu que a decisão da Comissão não excluía do seu universo as SGPS – cf. acórdão proferido pelo Tribunal Geral, de 6 de novembro de 2024, Processo T-462/22, que opôs a Comissão ao Millennium BCP Participações SGPS, Sociedade Unipessoal, Lda. e BCP Africa SGPS Lda., disponível em https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/ALL/?uri=CELEX:62022TA0462.
[3] Neste sentido, Decisão do CAAD de 22/07/22, Proc. n.º 788/201-T, bem como o Ac. n.º 545/2019, do Tribunal Constitucional de 16/10/2019, Proc.º n.º 1067/18.
[4] Nesse sentido, Decisões do CAAD, Proc.º n.º 200/2024, de 17/07/2024, Proc. 629/2021, de 3.08.2022 (voto vencido), Proc. 374/2023, de 14.12.2023, Proc. 359/2023, de 30 de Março de 2024 e Proc. 508/2023, de 16.11.2023.
[5] Neste sentido, Decisão do CAAD de 12/07/21, Proc.º 714/2020-T, disponível em www.caad.org.pt.
[6] Cf. ECLI:EU:T:2022:567.
[8] Neste sentido, ISABEL SANTOS FIDALGO, ANTÓNIO QUEIROZ MARTINS, FRANCISCA OSÓRIO DE CASTRO “ZONA FRANCA DA MADEIRA: ENTRE O CANTO DO CISNE E A DEDUTIBILIDADE DOS AUXÍLIOS DE ESTADO”, in REVISTA ELECTRÓNICA DE FISCALIDADE DA AFP, (2023) V.1, pp. 18-21, disponível em www.afp.pt/revista/edicoes/766-revista-electronica-de-fiscalidade-da-afp-ano-v-n-1-2023?start=6.
[10] Entretanto revogado pelo Decreto Regulamentar Regional n.º 31/2024/M, de 14 de Novembro, o qual contém idêntica norma no artigo 14.º sob a epigrafe – Cooperação e colaboração recíproca da Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) e da Autoridade Tributária e Assuntos Fiscais da Região Autónoma da Madeira (AT-RAM).