SUMÁRIO
A apresentação do pedido de pronúncia arbitral supõe, antes do conhecimento do fundo das questões suscitadas, a verificação dos respetivos pressupostos processuais, havendo absolvição de instância quanto tal pedido é extemporâneo no tocante ao prazo estabelecido no RJAT, tal também sucedendo quando integra pretensões processuais cuja arbitrabilidade está legalmente excluída, como sucede com o processo executivo tributário, dispensando-se, portanto, o Tribunal Arbitral de se pronunciar quanto ao mérito da causa com a procedência daquelas exceções.
DECISÃO ARBITRAL
O árbitro Professor Doutor Jorge Bacelar Gouveia, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formar o presente Tribunal Arbitral, constituído em 6 de junho de 2024, decide o seguinte:
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RELATÓRIO
1. A... e B..., contribuintes fiscais n.ºs ... e ..., residentes na Rua ..., ..., ...-... ..., apresentaram, nos termos e para os efeitos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 17.º do Regime Jurídico em Matéria Tributária (adiante RJAT), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, um pedido de pronúncia arbitral, solicitando, com base na sua ilegalidade:
i) que a liquidação oficiosa n.º 2021..., e de todos os atos posteriormente processados, incluindo o despacho de 16/11/2023 do Chefe de Finanças de Loures, fossem anulados, por falta de fundamentação, no valor de 37.720,55 euros;
ii) que a liquidação e o despacho supramencionados fossem declarados nulos, com fundamento no disposto no n.º 2 do artigo 161.º do CPA e ilegais por violação do disposto nos artigos 10.º e 51.º do CIRS;
iii) que, no prazo máximo de 15 dias a contar do trânsito em julgado da decisão, lhes fosse permitido entregar duas novas declarações referentes ao exercício fiscal de 2020 e uma conjunta referente ao exercício de 2021 com o reinvestimento das mais valias;
iv) que a AT fosse condenada a emitir novas liquidações de imposto com base nessas mesmas declarações corrigidas;
v) que se declarasse a imediata extinção dos autos de execução fiscal e, bem assim, do plano de pagamentos em vigor, com a devolução, no prazo máximo de dez dias a contar da prolação de decisão “(…) todos os valores pagos pelos IMPUGNANTES calculados com base nessa mesma liquidação de imposto, acrescidos dos correspondentes juros compensatórios e indemnizatórios devidos”.
Solicitaram ainda os Requerentes a condenação no reembolso “(…) do valor total das despesas em que incorreu para constituir a garantia (hipoteca) exigida pela AT em sede de Plano de pagamentos em prestações”.
2. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD, em 22 de março de 2024, e em conformidade com o preceituado no art. 11.º, n.º 1, al. c), do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, com a redação introduzida pelo art. 228.º da Lei n.º 66º-B/2012, de 31 de dezembro, tendo sido notificada, nessa data, à Autoridade Tributária (AT), ora Requerida.
3. Os Requerentes não procederam à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto do art. 6.º, n.º 1, e do art. 11.º, n.º 1, al. b), do RJAT, o Conselho Deontológico, em 15 de maio de 2024, designou o árbitro signatário, que comunicou, no prazo legalmente estipulado, a aceitação do respetivo encargo.
4. As partes foram devidamente notificadas dessa designação, e não manifestaram vontade de a recusar, nos termos do art. 11.º, n.º 1, als. a) e b), do RJAT e arts. 6.º e 7.º do Código Deontológico.
5. Deste jeito, o Tribunal Arbitral foi regularmente constituído em 6 de junho de 2024, com base no disposto nos arts. 2.º, n.º 1, al. a), e 10.º, n.º 1, do RJAT, para apreciar e decidir o objeto do presente litígio, tendo sido subsequentemente notificada a AT para, querendo, apresentar resposta.
6. A Requerida apresentou a sua resposta em 11 de junho de 2024, defendendo-se por exceção e por impugnação.
7. Nos termos processuais, os Requerentes tiveram oportunidade de apresentar o seu entendimento, em réplica, quanto às três exceções processuais alegadas pela Requerida.
8. Em 16 de janeiro de 2025, e após diversos adiamentos justificados no sentido de se conciliarem as agendas das partes, o Tribunal Arbitral reuniu para o efeito de inquirição das testemunhas apresentadas pelos Requerentes, cujos testemunhos constam em gravação nos autos.
9. Após o que ambas as partes, no tempo atribuído, apresentaram alegações escritas, reiterando os seus entendimentos anteriores e pronunciando-se sobre o teor da prova testemunhal alcançada.
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SANEAMENTO
10. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído em 6 de junho de 2024, em conformidade com o preceituado na al. c) do n.º 1 do art. 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, com a redação introduzida pelo art. 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro.
11. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos arts. 4.º e 10.º do RJAT e do art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.
12. São alegadas pela Requerida exceções processuais atinentes à caducidade do direito de ação, à impropriedade do meio processual e à incompetência material do Tribunal Arbitral que serão decididas após a fixação dos factos e como questão de direito desta decisão.
13. Cumpre, então, apreciar e decidir.
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DOS FACTOS
14. A matéria factual relevante para a compreensão e decisão da causa, após exame crítico da prova documental junta ao pedido de pronúncia arbitral e dos elementos remetidos aos autos, além da apreciação do teor dos testemunhos obtidos no ato de inquirição das testemunhas, seguindo-se os princípios processuais vigentes no tocante à margem de apreciação, na sua consideração, por parte do Tribunal Arbitral, fixa-se como segue:
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Factos Provados
15. Os Requerentes são A... e B..., contribuintes fiscais n.ºs ... e ..., residentes na Rua ..., ..., ...-... ... .
16. A Requerida emitiu a liquidação do IRS do ano de 2021 contra os Requerente, oficiosamente, com o n.º 2021... .
17. Em janeiro de 2022, os Requerentes apresentaram reclamações graciosas, as quais foram eliminadas tendo em conta que, na altura, os reclamantes apenas peticionavam a eliminação da declaração anteriormente submetida.
18. Em 28 de fevereiro 2022, a Requerida notificou Requerentes para procederem à entrega das declarações com o regime de tributação separada considerando que, como solicitado, a declaração apresentada já havia sido eliminada.
19. Os Requerentes não responderam ao ofício supra identificado e não apresentaram as declarações de IRS do ano de 2020 com a tributação separada, tendo, em consequência disso, os procedimentos sido extintos.
20. Entretanto, em 10 de agosto de 2023, os Requerentes intentaram um pedido de revisão oficiosa, com o n.º ...2023..., o qual foi indeferido, por despacho definitivo do Chefe de Finanças de Loures, de 16 de novembro de 2023.
21. Esta decisão de indeferimento foi notificada aos Requerentes em 20 de novembro de 2023, como se observa dos documentos de expedição desse despacho, enviado como correio registado e com aviso de receção.
22. No decurso do procedimento, a AT, entretanto, instaurou um procedimento executivo, cujo valor tem sido pago pelos Requerentes a prestações.
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Factos não provados
23. Não existem factos com interesse para a decisão da causa que devam considerar-se como não provados.
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Fundamentação da matéria de facto provada e não provada
24. Relativamente à matéria de facto, o Tribunal Arbitral não tem de se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada.
25. Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito [cfr. o art. 596.º, do CPC, aplicável ex vi art. 29.º, n.º 1, al. e), do RJAT].
26. Os factos dados como provados resultaram da análise crítica dos documentos juntos aos autos, bem como do que resultou do ato de inquirição de testemunhas.
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DO DIREITO
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A exceção da caducidade da ação arbitral por extemporaneidade do pedido
27. A primeira das exceções invocadas pela Requerida refere-se à verificação da caducidade do direito de ação arbitral, uma vez que o pedido de pronúncia teria sido apresentado fora do prazo legalmente fixado.
28. Na verdade, da consulta dos autos, comprova-se que a notificação da decisão final de indeferimento, de 16 de novembro de 2023, ocorreu no dia 20 de novembro de 2023, data em que é assinado o aviso de receção.
29. Ora, nos termos do art. 10.º do RJAT, é de três meses para se proceder à apresentação, tempestiva, de um pedido de pronúncia arbitral, valendo a pena transcrever tal artigo, com a epígrafe “Pedido de constituição de tribunal arbitral”: “1 – O pedido de constituição de tribunal arbitral é apresentado: a) No prazo de 90 dias, contado a partir dos factos previstos nos n.os 1 e 2 do artigo 102.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, quanto aos atos suscetíveis de impugnação autónoma e, bem assim, da notificação da decisão ou do termo do prazo legal de decisão do recurso hierárquico; b) No prazo de 30 dias, contado a partir da notificação dos atos previstos nas alíneas b) e c) do artigo 2.º, nos restantes casos”.
30. Ora, tendo esse pedido arbitral sido apresentado no CAAD em 22 de março de 2024, como se comprova da consulta dos documentos constantes dos autos e não impugnados, o mesmo ocorreu em momento posterior ao dia 20 de fevereiro de 2024, altura em que aquele prazo já havia terminado.
31. Como não tem havido dúvidas sobre a natureza perentória deste prazo, o seu incumprimento implica o esgotamento de competência ratione temporis do Tribunal Arbitral para poder decidir.
Dá-se, assim, por verificada a exceção da caducidade do direito de ação arbitral por extemporaneidade do pedido, como alegado pela Requerida, nos termos do disposto na alínea k) do n.º 4 do art. 89.º do CPTA, aplicável ex vi art. 29.º do RJAT.
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As exceções da impropriedade do meio processual e da incompetência material do Tribunal Arbitral
32. A Requerida, ainda que de um modo separado, igualmente invoca duas outras exceções processuais, com o concomitante pedido de absolvição da instância: a impropriedade ou inadequação do meio processual escolhido pelos Requerentes e a incompetência ratione materiae do Tribunal Arbitral.
Isso tem tudo que ver – e, por isso, se justifica uma resposta conjunta – com o facto de, no universo do objeto processual selecionado pelos Requerentes, ser impugnado um ato de execução fiscal, um “PEF”, acrónimo de “procedimento executivo fiscal”.
33. Alega a Requerida que este tipo de intervenção fiscal se encontra excluída da arbitrabilidade tributária, tal como o seu desenho foi realizado no âmbito das opções subjacentes ao RJAT, as quais, depois, se confirmaram na Portaria n,º 112-A72011, de 22 de março, que efetivou a vinculação à justiça arbitral do CAAD da Administração Tributária em certos procedimentos aí especificados.
34. Importa, pois, transcrever o art. 2.º, n.º 1, do RJAT, sob a epígrafe “Competência dos tribunais arbitrais e direito aplicável”: “1 – A competência dos tribunais arbitrais compreende a apreciação das seguintes pretensões: a) A declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta; b) A declaração de ilegalidade de atos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de atos de determinação da matéria coletável e de atos de fixação de valores patrimoniais”.
35. Não é mencionada, no âmbito da competência da arbitragem tributária no CAAD, a possibilidade de julgar pretensões processuais relativas ao procedimento de execução fiscal, devendo considerar-se essa omissão como uma não aceitação de tal competência.
Assim é não só porque no Direito Fiscal vigoram o princípio da legalidade e o princípio da competência dos órgãos jurídico-públicos – e os órgãos jurisdicionais não são a exceção – como, sobretudo, por esta matéria ter de ser concatenada com a posição da justiça estadual tributária como justiça “comum” e “residual” em tudo o que não tiver sido estabelecido como faculdade de atuação peculiar da justiça arbitral, que assim se assume como de identificação tipológica, àquela cabendo, por exclusão, tudo o que para esta não estiver previsto.
36. Por conseguinte, o Tribunal Arbitral considera que a parte do objeto processual que se consubstancia na impugnação da execução fiscal em curso, mesmo como resultado da decisão prévia de liquidação do imposto em crise, não foi incluída na jurisdição da arbitragem tributária, pelo que se dá por verificada a exceção da sua incompetência ratione materiae, ocorrendo a absolvição da instância no tocante a essa dimensão do pedido de pronúncia arbitral, apenas, nos mesmos termos de Direito que fundaram a verificação da primeira absolvição de instância.
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Decisão liminar de absolvição de instância, sem conhecimento do mérito
37. Tendo o Tribunal Arbitral chegado à conclusão da procedência da exceção da caducidade do direito de ação para todo o seu objeto processual, com a consequência da inviabilidade de se apreciar o mérito da ilegalidade da liquidação efetuada e dos seus atos consequentes, entende que violaria o princípio da não produção de atos inúteis e dos princípios próprios da lógica da justiça arbitral a apreciação subsequente do mérito da mesma.
38. O mesmo se diga da verificação da exceção que conduz à absolvição da instância no tocante à incompetência ratione materiae do Tribunal Arbitral, que não pode pronunciar-se sobre atos jurídicos que escapam ao seu poder de jurisdição, nos termos por que está configurado o regime da ação arbitral tribunal ao abrigo do RJAT.
39. Ambas conclusões levam a que o Tribunal Arbitral se dispense de se pronunciar sobre o mérito da causa, não só porque isso seria contraditório com a decisão tomada antes no momento do conhecimento das exceções como, fundamentalmente, nenhuma utilidade isso teria no seu âmbito processual, por mais interessante que tal exercício intelectual se revelasse.
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DECISÃO
40. Termos em que o Tribunal Arbitral decide:
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Absolver a Requerida da instância, por verificação das exceções processuais de caducidade do direito de ação procedimental com fundamento na sua intempestividade, além da verificação da exceção da incompetência do Tribunal Arbitral em relação ao procedimento executivo fiscal que foi considerado no objeto do presente processo arbitral;
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Absolver a Requerida de todas as outras pretensões processuais formuladas pelos Requerentes, mantendo-se os atos produzidos como válidos na Ordem Jurídica;
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Condenar os Requerentes no pagamento das custas.
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VALOR DO PROCESSO
41. De harmonia com o disposto no art. 306.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, art. 97.º-A, n.º 1, al. a), do CPPT e art. 3.º, n.º 2, do RCPAT, fixa-se ao processo o valor de €37.720,55 (trinta e sete mil, setecentos e vinte euros e cinquenta e cinco cêntimos), correspondente ao valor de imposto que o Requerente computa como tendo sido indevidamente pago, que é o valor do pedido de pronúncia arbitral, o qual não foi objeto de contestação.
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CUSTAS
42. Custas a cargo dos Requerentes, de acordo com o art. 12.º, n.º 2, do RJAT, do art. 4.º do RCPAT, e da Tabela I anexa a este último, que se fixam no montante de € 1.836,00 (mil, oitocentos e trinta e seis euros), em virtude de ter sido eles que deram à decisão de absolvição da instância, perante a verificação das exceções processuais consideradas procedentes.
Notifique-se.
Lisboa, 2 de abril de 2025.
O Árbitro
Jorge Bacelar Gouveia
Texto elaborado em computador, nos termos do n.º 5 do art. 131.º do CPC, aplicável por remissão da al. e) do n.º 1 do art. 29.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro. A redação da presente decisão rege-se pelo Acordo Ortográfico de 1990 em vigor.