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SUMÁRIO:
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A circunstância de um activo intangível (mormente se gerado internamente) não merecer um registo contabilístico separado e individualizado nas demonstrações financeiras (e.g. no balanço) de uma entidade não conduz, inevitável e inexoravelmente, à sua inexistência, para efeitos fiscais.
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As regras do ónus da prova, prescritas no artigo 74.º, n.º 1, da LGT, não podem operar contra um sujeito passivo nos casos em que – estando a ser-lhe exigida a exibição de documentos contabilísticos com vista à comprovação de determinada realidade – tal exibição já não lhe for possível por se tratarem de registos contabilísticos antigos referentes a um período temporal não abrangido pelo prazo legal de conservação de documentos.
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O regime de reinvestimento dos valores de realização, previsto no artigo 48.º, do Código do IRC, não contém qualquer regra, nem prescreve qualquer especial exigência quanto aos moldes como um determinado activo (seja ele tangível, intangível ou biológico não consumível) deverá estar registado na contabilidade do sujeito passivo.
DECISÃO ARBITRAL
Os Árbitros Carla Castelo Trindade, Victor Simões e Sónia Martins Reis, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formar o Tribunal Arbitral, decidem no seguinte:
RELATÓRIO
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A... S.A., anteriormente denominada B..., S.A., titular do número de identificação de pessoa colectiva ... e matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Lisboa sob o mesmo número, com sede social na Rua ..., n.º ..., Amadora (“Requerente”), apresentou pedido de constituição de Tribunal Arbitral ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, alínea a), ambos do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (“RJAT”), tendo em vista a declaração de ilegalidade e consequente anulação do indeferimento tácito da reclamação graciosa identificada sob o n.º ...2023..., formado em 03.11.2023, e consequentemente, do acto de autoliquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (“IRC”), referente ao período de tributação de 2020, resultante da declaração periódica de rendimentos Modelo 22, submetida no dia 02.07.2021.
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O pedido de constituição do Tribunal Arbitral, apresentado pela Requerente no dia 31 de Janeiro de 2024, foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira (“Requerida”).
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A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a) e do artigo 11.º, n.º 1, alínea a), ambos do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do Tribunal Arbitral colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
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As partes foram notificadas dessa designação em 20 de Março de 2024, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alínea b), do RJAT, e dos artigos 6.º e 7.º, do Código Deontológico do CAAD.
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Em conformidade com o disposto no artigo 11.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo foi constituído em 10 de Abril de 2024.
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Tendo sido devidamente notificada para o efeito, a Requerida apresentou a sua resposta, no dia 15 de Maio de 2024, tendo-se defendido por excepção, invocando a incompetência do Tribunal Arbitral para determinar a correcção oficiosa da declaração periódica Modelo 22 de IRC e para condenar a Requerida ao reembolso do montante € 2.612.500,01, acrescido de juros indemnizatórios, e por impugnação.
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Em tal resposta, a Requerida pugnou, a final, pela procedência da excepção invocada e pela sua absolvição da instância, bem como pela improcedência do pedido de pronúncia arbitral apresentado pela Requerente, por não provado, com a consequente absolvição da Requerida de todos os pedidos ali formulados.
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Na mesma data, a Requerida juntou o processo administrativo.
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Em 16 de Maio de 2024, foi proferido despacho arbitral a conceder prazo à Requerente para, querendo, exercer o direito ao contraditório quanto à matéria de excepção invocada pela Requerida na sua resposta.
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Em 3 de Junho de 2024, a Requerente apresentou requerimento para responder à matéria de excepção de incompetência invocada pela Requerida, enunciando os motivos pelos quais considerava que não se verificava qualquer incompetência do Tribunal Arbitral, pelo que tal excepção não poderia proceder.
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Em 14 de Junho de 2024, foi proferido despacho arbitral a designar o dia 20 de Junho de 2024, pelas 12 horas, para a realização da reunião a que alude o artigo 18.º, do RJAT.
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Em 18 de Junho de 2024, a Requerente apresentou requerimento a solicitar a designação de nova data para a realização da reunião a que alude o artigo 18.º, do RJAT, em virtude de indisponibilidade de agenda do seu mandatário, para a data que havia sido designada para o efeito.
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Em 19 de Junho de 2024, foi proferido despacho arbitral a adiar a realização da reunião a que alude o artigo 18.º, do RJAT, para data a agendar posteriormente.
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Em 18 de Setembro de 2024, foi proferido despacho arbitral a designar o dia 30 de Setembro de 2024, pelas 14 horas, para a realização da reunião a que alude o artigo 18.º, do RJAT, e a notificar a Requerente para indicar os concretos factos do pedido arbitral e da resposta que serão objecto de prova testemunhal.
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Em 19 de Setembro de 2024, a Requerida apresentou requerimento a solicitar o reagendamento da reunião a que alude o artigo 18.º, do RJAT, para os dias 8, 9, 10 ou 11 de Outubro de 2024, face à indisponibilidade de agenda de ambas as juristas designadas para este processo, para estarem presentes na data acima mencionada.
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Em 24 de Setembro de 2024, a Requerente apresentou requerimento a indicar a sua disponibilidade para que a reunião a que alude o artigo 18.º, do RJAT fosse realizada nos dias 10 ou 11 de Outubro de 2024.
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Em 25 de Setembro de 2024, foi proferido despacho arbitral no qual, em face do anterior requerimento da Requerida:
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dava-se sem efeito a realização da reunião a que alude o artigo 18.º, do RJAT que se encontrava agendada para o dia 30 de Setembro de 2024;
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designava-se o dia 23 de Outubro de 2024, pelas 16 horas, para a realização dessa reunião;
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renovava-se o conteúdo do despacho arbitral anterior quanto à indicação dos factos do pedido arbitral e da resposta que serão objecto de prova testemunhal; e
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enunciava-se que, face à tramitação processual, aos sucessivos adiamentos das reuniões arbitrais e à interposição do período de férias judiciais, não seria possível proferir o acórdão arbitral até ao dia 10 de Outubro de 2024, pelo se prorrogava por dois meses o prazo de arbitragem, nos termos e para os efeitos do artigo 21.º, n.º 2, do RJAT, e designava-se o dia 10 de Dezembro de 2024 como data-limite para a prolação da decisão arbitral.
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Em 7 de Outubro de 2024, a Requerente apresentou requerimento a solicitar a designação de uma nova data para a realização da reunião a que alude o artigo 18.º, do RJAT, em virtude de a testemunha por si arrolada não se encontrar em Portugal, na data que havia sido designada pelo Tribunal Arbitral, indicando ainda como datas possíveis para a realização dessa reunião os dias compreendidos nos períodos de 28 a 31 de Outubro, 25 a 29 de Novembro e 16 a 20 de Dezembro, todos de 2024.
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Em 18 de Outubro de 2024, foi proferido despacho arbitral no qual, em face do anterior requerimento da Requerente:
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dava-se sem efeito a realização da reunião a que alude o artigo 18.º, do RJAT que se encontrava agendada para o dia 23 de Outubro de 2024;
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designava-se o dia 8 de Novembro de 2024, pelas 10 horas e 30 minutos, para a realização dessa reunião; e
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renovava-se o conteúdo do despacho arbitral anterior quanto à indicação dos factos do pedido arbitral e da resposta que serão objecto de prova testemunhal.
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Em 21 de Outubro de 2024, a Requerente apresentou requerimento a solicitar a designação de uma nova data para a realização da reunião a que alude o artigo 18.º, do RJAT, em virtude de novamente a testemunha por si arrolada não se encontrar em Portugal, na data que havia sido designada pelo Tribunal Arbitral, indicando como datas possíveis para a realização dessa reunião os dias compreendidos nos períodos de 28 a 31 de Outubro, 25 a 29 de Novembro e 16 a 20 de Dezembro, todos de 2024.
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Em 4 de Novembro de 2024, foi proferido despacho arbitral no qual se indeferia o requerimento apresentado pela Requerente e se confirmava a manutenção do dia 8 de Novembro de 2024, pelas 10 horas e 30 minutos, para a realização da reunião a que alude o artigo 18.º, do RJAT.
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Em 5 de Novembro de 2024, a Requerente apresentou requerimento no qual juntava prova documental para atestar que a testemunha por si arrolada se encontrava mais uma vez fora de Portugal no dia que havia sido designado para a realização da reunião a que alude o artigo 18.º, do RJAT, mais requerendo que essa testemunha pudesse ser ouvida através do recurso a meios telemáticos, no dia e hora que viesse a ser designado para a realização dessa reunião.
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Em 7 de Novembro de 2024, a Requerida apresentou requerimento a solicitar que não fosse admitida a inquirição da testemunha arrolada pela Requerente por meios telemáticos, por inexistir fundamento legal que o permita.
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Em 7 de Novembro de 2024, foi proferido despacho arbitral no qual, em face de anteriores requerimentos da Requerente:
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dava-se sem efeito a realização da reunião a que alude o artigo 18.º, do RJAT que se encontrava agendada para o dia 8 de Novembro de 2024, por não estar legalmente prevista a possibilidade de a testemunha comparecer por via telemática (webex);
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designava-se o dia 16 de Dezembro de 2024, pelas 15 horas, para a realização dessa reunião;
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concedia-se um prazo de 10 dias à Requerente para indicar os factos do pedido arbitral e da resposta que serão objecto de prova testemunhal; e
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enunciava-se que, face à tramitação processual, aos sucessivos adiamentos das reuniões arbitrais e à interposição do período de férias judiciais, não seria possível proferir o acórdão arbitral até ao dia 10 de Dezembro de 2024, pelo se prorrogava por dois meses o prazo de arbitragem, nos termos e para os efeitos do artigo 21.º, n.º 2, do RJAT, e designava-se o dia 10 de Fevereiro de 2025 como data-limite para a prolação da decisão arbitral.
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A reunião prevista no artigo 18.º do RJAT teve lugar no dia 16 de Dezembro de 2024, para ouvir a testemunha D... .
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Nesse mesmo dia, o Tribunal Arbitral proferiu despacho para:
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a Requerente, até ao dia 26 de Dezembro de 2024, juntar aos autos documentação relativa ao reinvestimento;
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conceder prazo de vista de dez dias à Requerida para, querendo, se pronunciar; e
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facultar às partes para, de modo simultâneo, apresentarem alegações escritas no prazo de 10 dias.
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Findo os prazos estabelecidos e em resposta ao despacho arbitral anterior, a Requerente juntou aos autos, a 26.12.2024, alguma documentação.
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Em 6 de Janeiro de 2025, foi proferido despacho arbitral no qual, em face dos documentos juntos ao processo pela Requerente em 26.12.2024 não evidenciarem a conta contabilística onde foram lançados:
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notificava-se a Requerente para, no prazo de 10 dias, juntar aos autos os “Diários de Movimentos” com a evidência de que cada um dos documentos de despesa foi contabilizado nas respectivas contas de Activos Fixos Tangíveis ou Intangíveis;
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fixava-se que, após a junção da documentação referida no número anterior do presente despacho ou, em qualquer caso, após o termo do prazo previsto para o efeito, começava a correr o prazo de 10 dias para a Requerida, querendo, exercer o seu direito de pronúncia sobre o teor dos referidos documentos, bem como sobre o teor dos documentos juntos pela Requerente com o requerimento de 26.12.2024;
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determinava-se que, após o termo do prazo de vista concedido à Requerida nos termos do número anterior do presente despacho, começava a contar o prazo de 15 dias para as partes, querendo, apresentarem, em simultâneo, alegações escritas; e
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enunciava-se que, face à tramitação processual, aos sucessivos adiamentos das reuniões arbitrais e à interposição do período de férias judiciais, não seria possível proferir o acórdão arbitral até ao dia 10 de Fevereiro de 2025, pelo se prorrogava por dois meses o prazo de arbitragem, nos termos e para os efeitos do artigo 21.º, n.º 2, do RJAT, e designava-se o dia 10 de Abril de 2025 como data-limite para a prolação da decisão arbitral.
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Em 10 e 14 de Janeiro de 2025, a Requerente apresentou requerimentos a solicitar a prorrogação do prazo para a apresentação da documentação que havia sido requerida pelo Tribunal Arbitral, por um período adicional de 10 a 20 dias, invocando o elevado volume da documentação solicitada, a complexidade da sua obtenção e a circunstância do mês de Janeiro ser um período de fecho do ano económico com um volume anormal e elevado de trabalho.
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Em 21 de Janeiro de 2025, a Requerente juntou aos autos documentação adicional com vista a evidenciar o reconhecimento contabilístico de facturas anteriormente juntas aos autos.
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A Requerente apresentou as suas alegações escritas no dia 13 de Fevereiro de 2025 e a Requerida, no dia 20 de Fevereiro de 2025, apresentou igualmente as suas alegações escritas.
POSIÇÕES DAS PARTES
§1 - Posição da Requerente
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Os fundamentos apresentados pela Requerente, em apoio da sua pretensão, foram, em síntese, os seguintes:
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No início da sua actividade, procedeu à investigação e desenvolvimento interno da componente química do ..., incluindo estudos de mercado, know-how técnico, testes prévios à comercialização; autorizações e registo da patente da marca e do produto; informação médica;
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Efectuou, junto de Instituto Nacional da Propriedade Intelectual, o pedido de registo da componente do activo associado à marca ..., em 6 de Julho de 1962, a qual tem o n.º ...;
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O conjunto inicial desses investimentos foi efectuado na vigência de outro regime contabilístico, o qual era omisso quanto à contabilização dos encargos incorridos com activos intangíveis/imobilizado incorpóreo;
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A dificuldade de recolha de evidências dos registos originários face à antiguidade subjacente às alterações do normativo contabilístico do Plano Oficial de Contabilidade (“POC”) para o Sistema de Normalização Contabilística (“SNC”), ocorrida a partir de 2010, e a adaptação de softwares resultou que os custos incorridos iniciais, de desenvolvimento ou de manutenção, outrora capitalizados como activos no Balanço e amortizados e/ou directamente registados como gastos, já teriam sido registados em gastos para efeitos contabilísticos e fiscais ao longo dos exercícios;
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O conjunto de activos que compõem o ... (“Activos...”) foi transferido a título oneroso e definitivo, durante o exercício de 2020, a favor dos C..., S.A. (“C...”);
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A operação de alienação dos Activos ... compreendeu não apenas a marca, mas também o conjunto integral de itens necessários à sua produção e comercialização, conforme constante do respectivo contrato de compra e venda;
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A contrapartida monetária auferida pela Requerente em resultado da alienação dos Activos ...ascendeu a € 19.000.000,00;
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Tendo optado por não efectuar, desde logo (no período de tributação de 2020), qualquer dedução fiscal para efeitos de apuramento do seu lucro tributável, a Requerente tributou, em sede de IRC, a totalidade do montante da mais-valia apurada em resultado da transmissão onerosa dos Activos ...;
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Tendo em conta a crise pandémica e as prioridades estratégicas de outras áreas terapêuticas optaram por não accionar, no exercício de 2020, a aplicação do regime de reinvestimento constante do artigo 48.º, do Código do IRC;
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Considerando que o período máximo para a concretização do reinvestimento – o ano de 2024 - foi estendido para além do prazo limite para o pedido de reembolso do IRC pago por referência ao exercício de 2020, a Requerente veio requerer a anulação parcial da autoliquidação de IRC referente a esse período de tributação;
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O prazo de conservação de documentação fiscal, de acordo com o artigo 130.º, do Código do IRC, é de 10 anos, pelo que, em face da sua antiguidade, não foi possível comprovar indubitavelmente a contabilização de custos iniciais ou de desenvolvimento;
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A qualificação enquanto intangível dos Activos ... é manifestamente indiscutível, e tratando-se de um activo gerado internamente em momento anterior à aplicação do normativo SNC, importa revisitar as disposições do POC e atender ao conteúdo da Directriz Contabilística (“DC”) 7;
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O POC não previa regra específica relativa ao reconhecimento e mensuração dos activos gerados internamente, como sucede no SNC;
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A DC 7 apresentava-se restritiva quanto à possibilidade de capitalizar as despesas de investigação e desenvolvimento, tendo como princípio geral a sua consideração nos exercícios em que a despesa foi incorrida;
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O reconhecimento para efeitos estritamente contabilísticos não se ter efectivado como imobilizado incorpóreo/activo intangível e o registo das despesas incorridas ter sido directa e imediatamente alocado à Demonstração de Resultados, não afastaria ou se confundiria com o conceito e qualificação do conjunto de elementos inerentes ao medicamento se qualificar como activo intangível;
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A Norma Contabilística e de Relato Financeiro (“NCRF”) 6 define activo intangível como um activo não monetário e sem substância física que cumpre os requisitos de identificabilidade, controlo do recurso e existência de benefícios económicos futuros;
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Os parágrafos 62 e 63 da NCRF 6 referem que os dispêndios incorridos em marcas geradas internamente, quer sejam dispêndios relativos a recursos internos ou dispêndios com entidades externas, não podem ser reconhecidos como activos intangíveis, devendo ser reconhecidos como gastos do exercício;
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Ainda que nenhum dos Activos ... tivesse sido capitalizado para apresentação no Balanço como imobilizado corpóreo ou activo intangível, em substância estes activos qualificam-se como tendo sido gerados internamente, controlados pela empresa e capazes de gerar benefícios económicos futuros;
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A natureza dos Activos ... como activo intangível não pode ser contestada uma vez que os C... o vão poder reconhecer nas suas contas enquanto tal e pelo custo da sua aquisição de € 19.000.000,00;
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Na medida em que não identificou qualquer valor líquido imputável aos Activos ..., o valor do ganho correspondeu ao valor de venda;
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Não existindo qualquer referência no âmbito do regime especial do artigo 48.º, do Código do IRC à necessidade de que tais activos estejam devidamente reconhecidos como tal, sempre se deveria entender que a alienação dos Activos ... cumpre com os requisitos para aplicação do regime e que noutras situações o Código do IRC alude explicitamente à necessidade do reconhecimento contabilístico de activos, tal como nas situações dos artigos 45.º-A, e 48, n.º 10, ambos do Código do IRC;
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Fica demonstrado de forma evidente que a natureza do activo se sobrepõe à mera classificação contabilística por referência à data da sua transmissão onerosa;
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A Requerente entende estarem reunidos os pressupostos para excluir da tributação até 50% do valor da mais-valia fiscal apurada em resultado da alienação dos Activos ...; e
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A Requerente projecta reinvestir até ao final do exercício de 2024, em resultado da suspensão dos prazos, o valor de € 19.613.596,40.
§2 - Posição da Requerida
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Por seu turno, a Requerida contestou a posição da Requerente, defendendo-se, em síntese, com os fundamentos seguintes:
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Em função do prazo de suspensão de dois anos permitido pela alínea a) do artigo 6.º da Lei n.º 21/2021, de 20 de Abril, a Requerente que, em condições normais, deveria efectuar o reinvestimento até ao final do período de tributação de 2022, viu o prazo de reinvestimento alargado até ao final do período de tributação de 2024.
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Alegando a Requerente que se trata de um bem do activo intangível, deveria, desde logo juntar prova cabal de que os Activos ... estavam de facto registados na contabilidade como activo intangível;
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A jurisprudência invocada pela Requerente em nada se assemelha com a situação em apreciação;
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A Requerente, em termos contabilísticos, devia dispor em cada momento de encerramento de contas de elementos suficientes de que se pudesse aferir do correcto ou incorrecto apuramento das mais ou menos valias fiscais contabilísticas e fiscais;
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A Requerente, na execução da sua contabilidade, deve observar a normalização contabilística e a norma que prescreve o tratamento contabilístico dos intangíveis é a NCRF 6, concluindo que a entidade deve manter um activo intangível na sua contabilidade, ainda que este possa estar totalmente amortizado;
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Não constando da contabilidade da Requerente o registo do activo intangível, fica-se sem saber qual o seu custo de aquisição e qual o valor das amortizações acumuladas praticadas;
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Relativamente ao alegado reinvestimento do valor de realização, a Requerente refere que projecta efectuar até ao final do exercício de 2024, um investimento total de € 19.613.596,40, e junta, tão somente, uma tabela com o montante reinvestido e que projecta reinvestir;
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Tais elementos são manifestamente insuficientes para evidenciar quando, por quanto e em que activos foi efectuado o alegado reinvestimento; e
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A Requerente não demonstrou que os Activos ... alienados estavam registados na sua contabilidade e a que título e não apresenta qualquer prova relativamente ao alegado valor do reinvestimento.
SANEAMENTO
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O pedido foi tempestivamente apresentado, nos termos do artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT.
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O Tribunal Arbitral colectivo foi regularmente constituído e é materialmente competente, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT.
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As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e estão regularmente representadas, em conformidade com o disposto nos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, ambos do RJAT, e nos artigos 1.º a 3.º, da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.
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Para efeitos de saneamento do processo cumpre apreciar a excepção de “incompetência do Tribunal Arbitral para determinar a correção oficiosa da declaração Modelo 22 de IRC, apurando um lucro tributável no concreto montante de 13.167.414,70 €, bem como para condenar a Requerida ao reembolso do montante € 2.612.500,01, acrescido de juros indemnizatórios invocada pela Requerida”.
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Invocou a Requerida, na sua resposta, a este propósito, que a “incompetência do Tribunal Arbitral para determinar a correção oficiosa da declaração Modelo 22 de IRC, apurando um lucro tributável no concreto montante de 13.167.414,70 €, bem como para condenar a Requerida ao reembolso do montante € 2.612.500,01, acrescido de juros indemnizatórios” arguindo que a mesma não se pronunciou sobre os valores apurados pela Requerente, não tendo aquela analisado nem, consequentemente, validado os valores que suportam a alegada quantificação em excesso da matéria tributável por parte da Requerente. Como tal os pedidos alusivos à correcção oficiosa dos campos da declaração periódica de rendimentos Modelo 22, no que respeita à mais-valia fiscal apurada pela Requerente, e ao reembolso do montante de imposto indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios, não podem no entender da Requerida ser conhecidos no presente processo, porquanto extravasam a competência do presente Tribunal Arbitral, tendo em conta o disposto no artigo 2.º, n.º 1, do RJAT, e na Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março. Não existe, por isso, para a Requerida, qualquer suporte legal que permita que sejam proferidas condenações de outra natureza que não as decorrentes dos poderes fixados no RJAT, ainda que constituíssem consequência, a nível de execução de julgados, da declaração de ilegalidade de actos de liquidação. Como tal, estar-se-ia perante uma excepção dilatória que obstaria ao prosseguimento do processo, conducente à absolvição da instância quanto à pretensão em causa, de acordo com o previsto nos artigos 576.º, n.º 2, 577.º, alínea a), do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.
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Em sede de contraditório, invocou em síntese a Requerente que o objecto do pedido de pronúncia arbitral é efectivamente o acto tributário de autoliquidação de IRC relativo ao período de tributação de 2020, resultante da declaração periódica de rendimentos Modelo 22, submetida no dia 02.07.2021, configurando o correspondente pedido de reembolso do imposto indevidamente pago e respectivos juros indemnizatórios, meros pedidos secundários, enquanto meras consequências da procedência do pedido principal, em harmonia com os artigos 24.º, alínea b), 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT e artigo 100.º, da Lei Geral Tributária (“LGT”). Acrescenta a Requerente que se encontram compreendidas nas competências dos tribunais arbitrais as que são atribuídas aos tribunais tributários, admitindo-se, como tal, a condenação da Requerida ao pagamento de juros indemnizatórios, tendo em conta os artigos 43.º, n.º 1 da LGT, 61.º, n.º 4, do CPPT, e 24.º, n.º 5, do RJAT, e ao reembolso do imposto indevidamente pago enquanto meras consequências lógicas da eventual procedência do pedido de anulação do acto tributário ora em apreço. Enuncia ainda a Requerente que a Requerida dispôs de 4 meses para analisar e validar a argumentação apresentada por aquela e, se nada fez, não pode a primeira ver os seus direitos prejudicados pela inércia da Requerida e pelo exercício de um direito que lhe é legalmente concedido que é o de reagir a um indeferimento tácito. Como tal, também no que respeita a esta questão, não deverá proceder o invocado pela Requerida, pelo que a excepção deduzida pela Requerida relativamente aos pedidos formulados pela Requerente deverá ser julgada improcedente.
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O âmbito de competência material dos tribunais constitui matéria de ordem pública e o seu conhecimento precede o de qualquer outra matéria, cumprindo, por isso, antes de tudo o mais, proceder à sua apreciação (cfr. artigos 16.º, do CPPT, 13.º, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos – “CPTA” - e 96.º e 98.º, do CPC, subsidiariamente aplicáveis por remissão, respectivamente, das alíneas a), c) e e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT).
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Assim sendo, e tendo em consideração que a excepção dilatória da incompetência material poderá obstar ao conhecimento do mérito da causa e/ou importar a absolvição da Requerida da instância, nos termos do disposto no n.º 4 do artigo 89.º do CPTA e ainda do disposto no artigo 576.º, do CPC, aplicáveis ex vi do disposto no artigo 29.º, do RJAT, será, a mesma, de imediato apreciada.
Vejamos,
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Como ensinava o Prof. Manuel Domingues de Andrade, a competência dos tribunais “[é] a medida de jurisdição dos diversos tribunais; o modo como entre eles se fracciona e reparte o poder jurisdicional”, sendo que a “Competência abstracta dum tribunal é a medida da sua jurisdição; a fracção do poder jurisdicional que lhe é atribuída; a determinação das causas que lhe tocam” e a “Competência concreta dum tribunal, trata-se (…) da sua competência para certa causa. É o seu poder de julgar (exercer actividade processual) nesse pleito; a inclusão deste na fracção de jurisdição que lhe corresponde.” (in “Noções Elementares de Processo Civil”, pp 88 e ss.).
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A competência material do tribunal afere-se pelos termos em que a acção é proposta e pela forma como o autor estrutura o pedido e os respectivos fundamentos.
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Por isso, para se aferir da competência material do tribunal importa apenas atender aos factos articulados pelo autor na petição inicial e à pretensão jurídica por ele apresentada, ou seja, à causa de pedir invocada e aos pedidos formulados.
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Neste sentido veja-se acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 15.01.2015, no processo n.º 117/14.4TTLMG.C1, que veio a ser confirmado pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 16.06.2015.
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A competência material dos tribunais arbitrais que funcionam junto do CAAD é desde logo definida pelo artigo 2.º, n.º 1, do RJAT, que dispõe: “1 - A competência dos tribunais arbitrais compreende a apreciação das seguintes pretensões: a) A declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta; b) A declaração de ilegalidade de actos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de actos de determinação da matéria colectável e de actos de fixação de valores patrimoniais”.
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A competência material dos tribunais arbitrais que funcionam junto do CAAD é ainda limitada pela vinculação da Requerida que, nos termos do artigo 4.º, n.º 1, do RJAT, veio a ser definida pela Portaria n.º 112-A/2011, de 12 de Março, que estabelece, no seu artigo 2.º, o seguinte: “Os serviços e organismos referidos no artigo anterior vinculam-se à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD que tenham por objeto a apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida referidas no n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, com exceção das seguintes: a) Pretensões relativas à declaração de ilegalidade de atos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário; b) Pretensões relativas a actos de determinação da matéria colectável e actos de determinação da matéria tributável, ambos por métodos indirectos, incluindo a decisão do procedimento de revisão; c) Pretensões relativas a direitos aduaneiros sobre a importação e demais impostos indirectos que incidam sobre mercadorias sujeitas a direitos de importação; e d) Pretensões relativas à classificação pautal, origem e valor aduaneiro das mercadorias e a contingentes pautais, ou cuja resolução dependa de análise laboratorial ou de diligências a efectuar por outro Estado membro no âmbito da cooperação administrativa em matéria aduaneira; e) Pretensões relativas à declaração de ilegalidade da liquidação de tributos com base na disposição antiabuso referida no n.º 1 do artigo 63.º do CPPT, que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos do n.º 11 do mesmo artigo”.
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Isto dito, importa então começar por atentar no pedido formulado pela Requerente que, visto o petitório, se materializa como segue: “Nestes termos e nos demais de Direito, face aos fundamentos expostos supra, requer-se que V. Ex.as se dignem a dar como provado o presente pedido de pronúncia arbitral e, consequentemente: i) Determinem a anulação parcial do ato tributário de autoliquidação de IRC, relativo ao período de 2020, resultante da Declaração periódica de rendimentos Modelo 22 de IRC submetida pela Requerente no dia 02 de julho de 2021, por ser manifestamente ilegal atenta a matéria de facto e de direito supramencionada; ii) E, consequentemente, determinem, a correção oficiosa dos diversos campos do Q07 da Declaração Periódica de rendimentos Modelo 22 do IRC da Requerente, referente ao período de tributação de 2020, considerando a artigo 48.º do CIRC, relativamente à mais-valia fiscal de € 19.000.000,00 (dezanove milhões de euros) apurada na alienação, a uma entidade terceira, do conjunto de ativos intangíveis que compunham o ... e respetivos elementos associados, originando, assim, um lucro tributável no valor de € 13.167.414,70 (treze milhões, cento e sessenta e sete mil, quatrocentos e catorze euros e setenta cêntimos); iii) E, nesse seguimento, condenem e ordenem a Autoridade Tributária e Aduaneira ao reembolso parcial do montante de imposto indevidamente pago no total de € 2.612.500,01 (cinquenta e três mil, trezentos e oito euros e dezassete cêntimos), em resultado da capacidade demonstrada de investimento realizado nos períodos disponíveis para o efeito, acrescido dos respetivos juros indemnizatórios, caso os mesmos se mostrem devidos nos termos legais”.
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Intuindo-se daqui que da literalidade do pedido decorre, com meridiana clareza, que a Requerente pretende, primeiramente, a declaração de ilegalidade e a anulação parcial do acto tributário de autoliquidação de IRC aqui em causa, por via da declaração de ilegalidade e anulação da decisão de indeferimento tácito da reclamação graciosa, entretanto apresentada.
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Como visto, a pretensão de anulação de actos de autoliquidação de tributos tem perfeito cabimento na norma de competência prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT.
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Ademais, a Portaria n.º 112-A/2011, de 12 de Março, através da qual a Requerida se vinculou à arbitragem em matéria tributária, não contém qualquer exclusão que pudesse abarcar a situação dos presentes autos (cfr. n.º 2 do artigo 2.º da referida Portaria).
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Nessa medida, o principal pedido formulado pela Requerente está compreendido no âmbito das competências dos tribunais arbitrais constituídos sob a égide do CAAD, pois nele está incluída a apreciação de pretensões de “declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta”, como decorre do estatuído na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT.
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Há, assim, que concluir pela competência do presente Tribunal em razão da matéria por força do citado artigo 2.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, e ainda por força da vinculação à arbitragem tributária institucionalizada do CAAD por parte da Requerida, tal como resulta da Portaria n.º 112-A/2011 de 12 de Março, no que, de resto, nem sequer constitui tema de controvérsia entre as partes.
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Por outro lado, de harmonia com o disposto na alínea b) do artigo 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a Requerida a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exactos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, "restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito", o que está em sintonia com o preceituado no artigo 100.º, da LGT (aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT) que estabelece, que "a administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamação, impugnação judicial ou recurso a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da legalidade do acto ou situação objecto do litígio, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, se for caso disso, a partir do termo do prazo da execução da decisão".
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Acresce que a alínea c) do n.º 1 do artigo 24.º do RJAT prescreve que caberá, em função da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo, à Requerida “[r]ever os actos tributários que se encontrem numa relação de prejudicialidade ou de dependência com os actos tributários objecto da decisão arbitral, designadamente por se inscreverem no âmbito da mesma relação jurídica de imposto, ainda que correspondentes a obrigações periódicas distintas, alterando-os ou substituindo-os, total ou parcialmente”.
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Assim, embora o artigo 2.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT utilize a expressão "declaração de ilegalidade" para definir a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, não fazendo referência a decisões condenatórias, deverá entender-se que se compreendem nas suas competências os poderes que, em processo de impugnação judicial, são atribuídos aos tribunais tributários.
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É esta, de resto, a interpretação que se sintoniza com o sentido da autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, em que se estabelece, como primeira directriz, que “o processo arbitral tributário deve constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à ação para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária”.
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Com tal, o processo de impugnação judicial, apesar de ser essencialmente um processo de anulação e declaração de nulidade ou inexistência de actos tributários, admite a condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios, como se depreende do artigo 43.º, n.º 1, da LGT, em que se estabelece que "são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido" e do art.º 61.º, n.º 4, do CPPT (na redacção dada pela Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro, a que corresponde o n.º 2 na redacção inicial), que "se a decisão que reconheceu o direito a juros indemnizatórios for judicial, o prazo de pagamento conta-se a partir do início do prazo da sua execução espontânea".
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O n.º 5 do artigo 24.º do RJAT, ao dizer que "é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário", deve ser entendido como permitindo o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios no processo arbitral.
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Como o pagamento de juros indemnizatórios depende de um montante a reembolsar, que é a sua base de cálculo, tem de se concluir que a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD abrange a condenação no pagamento de quantias indevidamente pagas na sequência de anulação dos actos de liquidação ou de autoliquidação que foram fundamento do pagamento.
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Por isso, insere-se nas competências dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD proferir decisões condenatórias que se possam consubstanciar na eventual restituição do valor de IRC pago em excesso.
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Não obstante o supra referido, na falta de qualquer disposição legal que permita concluir em contrário, o âmbito dos processos arbitrais – à semelhança do que sucede com o âmbito do processo de impugnação judicial – restringe-se às questões da legalidade dos actos dos tipos referidos no artigo 2.º, n.º 1, alíneas a) e b) , do RJAT, que são abrangidos pela vinculação que foi feita pela Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, não podendo, designadamente, definir os termos em que devem ser executados julgados anulatórios que vierem a ser proferidos no âmbito da arbitragem tributária.
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Na verdade, a competência para executar julgados proferidos pelos tribunais que funcionam no CAAD cabe, em primeira linha, à Requerida, como resulta do teor expresso do n.º 1 do artigo 24.º do RJAT ao estatuir que “[a] decisão arbitral sobre o mérito da preensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários (…)”.
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Sendo que, a haver discordância entre a Requerida e os sujeitos passivos sobre a forma de execução de julgados, são os tribunais tributários os competentes para a sua apreciação, já não são atribuídas aos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD competências em processos de execução de julgados e os tribunais arbitrais dissolvem-se na sequência da decisão arbitral, como decorre do artigo 23.º, do RJAT.
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Uma leitura conjugada do disposto no artigo 2.º, do RJAT, com o disposto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do mesmo diploma, parece apontar no sentido de que a competência dos tribunais arbitrais corresponderá, salvo restrições legais, aos casos em que, no processo judicial tributário, os tribunais tributários conhecem das pretensões através do meio processual da impugnação judicial (ex vi artigos 97.º, n.º 1, alíneas a) a f), 99.º e 102.º, n.º 1, todos do CPPT).
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Nesta linha de entendimento, não se descortinam razões para restringir aos tribunais arbitrais a possibilidade – que se confere aos tribunais tributários em processo de impugnação judicial – de proferirem decisões de natureza condenatória, caso o contribuinte solicite não só a anulação do acto tributário, mas também a devolução do montante pago acrescido dos respectivos juros, desde que tal não implique para o tribunal arbitral a prática de actos que afrontem o núcleo essencial da função administrativa, nomeadamente a intangibilidade do caso julgado administrativo ou o respeito pelas áreas em que a Requerida goza de uma margem de livre apreciação na sua decisão (cf. Carla Castelo Trindade, in “Regime Jurídico da Arbitragem Tributária – Anotado”, Almedina, 2016, pp. 120 e ss).
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Concluímos, pois, pela competência dos Tribunais Arbitrais para proferir decisões condenatórias nas situações em que, como a dos autos, o contribuinte solicite não só a anulação do acto tributário, mas também a devolução do montante de imposto indevidamente pago, acrescido dos respectivos juros indemnizatórios.
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Porém, este entendimento não pode ser entendido tout court, sem qualquer dose de moderação ou cautela.
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Voltando ao caso concreto, resulta do pedido de pronúncia arbitral formulado pela Requerente que esta pretendeu abarcar todas as consequências que, no seu entender e independentemente do seu carácter (mais ou menos) operativo, deverão decorrer da decisão arbitral, caso esta se venha a mostrar favorável às suas pretensões de declaração de ilegalidade e anulação do acto tributário controvertido.
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Desde logo, se vier a ser esse o sentido da decisão, total ou parcialmente, o valor exacto do reembolso de imposto indevidamente pago só será alcançado após a concretização de diversas operações aritméticas (como, aliás, resulta evidenciado pelo artigo 144.º do pedido de pronúncia arbitral e que entronca no segundo pedido formulado pela Requerente a este Tribunal) que não incumbe a este Tribunal Arbitral efectuar ou determinar, mas sim à Requerida, na medida em que consubstanciam actos materiais de execução da decisão arbitral anulatória, se assim vier a ser decidido, que culminarão com a emissão de um novo acto de liquidação de IRC, atinente ao exercício de 2020, nos termos do disposto no artigo 24.º, n.º 1, alínea d), do RJAT (à semelhança, aliás, do que, nesse caso, sucederá com a operação aritmética de cálculo dos correspondentes juros indemnizatórios – ex vi artigo 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT).
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Consequentemente, e sem prejuízo de o Tribunal ter competência para ordenar o reembolso do imposto que resultar da sua decisão, se esta for no sentido anulatório, não tem aquele competência para determinar nem a “correcção oficiosa dos diversos campos do Q07 da Declaração Periódica de rendimentos Modelo 22 do IRC da Requerente, referente ao período de tributação de 2020”, nem para determinar com absoluta e inequívoca exactidão o reembolso da quantia de € 2.612.500,01 (cinquenta e três mil, trezentos e oito euros e dezassete cêntimos), que a Requerente alega (mas que o Tribunal não conhece, nem tem de conhecer) corresponder ao imposto alegadamente pago de forma indevida.
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Nestes termos, é julgada procedente a invocada excepção da incompetência material do Tribunal Arbitral quanto ao segundo pedido formulado pela Requerente no seu pedido de pronúncia arbitral e quanto ao terceiro pedido formulado pela Requerente, na parte que peticiona a condenação da Requerida ao reembolso da quantia exacta de € 2.612.500,01 (dois milhões, seiscentos e doze mil e quinhentos euros e um cêntimo), e consequentemente, quanto a estes pedidos é a Requerida absolvida da instância (cf, artigos 576.º, n.ºs 1 e 2 e 577.º, alínea a), do CPC ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
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Em relação à parte do terceiro pedido formulado pela Requerente no seu pedido de pronúncia arbitral respeitante à condenação da Requerida ao reembolso parcial do montante de imposto indevidamente pago e ao pagamento de juros indemnizatórios, caso os mesmos se mostrem devidos nos termos legais - o Tribunal Arbitral considera-se materialmente competente para decidir sobre a condenação da Requerida no reembolso do montante de imposto pago pela Requerente que venha a ser considerado indevido e no pagamento de juros indemnizatórios, acaso a autoliquidação sindicada venha a ser parcialmente considerada ilegal por este Tribunal, improcedendo, nesta parte, a excepção invocada pela Requerida na sua resposta da incompetência material do Tribunal Arbitral quanto a esta matéria, pelo que o processo prosseguirá quanto à apreciação destes pedidos.
MATÉRIA DE FACTO
§1 - Fundamentação da fixação da matéria de facto
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O Tribunal Arbitral tem o dever de seleccionar os factos que interessam à decisão da causa e discriminar os factos provados e não provados, não tendo de se pronunciar quanto a todos os elementos da matéria de facto alegados pelas partes, tal como decorre da aplicação conjugada do artigo 123.º, n.º 2, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”), e do artigo 607.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.
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Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram seleccionados e conformados em função da sua relevância jurídica, determinada com base nas posições assumidas pelas partes e nas várias soluções plausíveis das questões de direito para o objecto do litígio, conforme decorre do artigo 596.º, n.º 1, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.
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Os factos dados como provados e não provados resultaram da análise da prova produzida no presente processo, designadamente a prova documental junta aos autos pela Requerente, do processo administrativo junto aos autos pela Requerida, a prova testemunhal que revelou conhecimento directo dos factos relevantes, tendo os mesmos sido apreciados pelo Tribunal Arbitral de acordo com o princípio da livre apreciação dos factos, conforme decorre do artigo 16.º, alínea e), do RJAT, e do artigo 607.º, n.ºs 4 e 5, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.
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Não se deram como provadas nem como não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.
§2 - Factos provados
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Analisada a prova produzida nos presentes autos, com relevo para a decisão da causa consideram-se provados os seguintes factos:
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A Requerente exerce a actividade de pesquisa, desenvolvimento, de fabrico e comercialização de produtos farmacêuticos;
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Para efeitos de IRC, a Requerente adoptou um período de tributação coincidente com o ano civil;
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No início da sua actividade a Requerente procedeu à investigação e desenvolvimento interno da componente química do ... e demais procedimentos técnicos e legais tendentes à sua produção e comercialização, dando origem aos Activos ...;
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A Requerente efectuou, junto de Instituto Nacional da Propriedade Intelectual, o pedido de registo da componente do activo associado à marca ..., em 6 de Julho de 1962, a qual tem o n.º...;
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O conjunto inicial dos investimentos associados aos Activos ... foi efectuado na vigência do POC, o qual era omisso quanto à contabilização dos encargos incorridos com activos intangíveis/imobilizado incorpóreo;
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A Requerente tem dificuldade em recolher evidências dos registos contabilísticos originários associados aos Activos ..., devido à antiguidade dos mesmos, às as mudanças que ocorreram com a transição, em 2010, do normativo contabilístico do POC para o SNC e dos softwares de contabilizados por si utilizados;
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Em 2020, a Requerente transferiu, a título oneroso e definitivo, a favor da C..., os Activos ..., compostos pela marca, autorizações de comercialização, princípio activo, informação comercial, propriedade intelectual, know-how, informação médica e domínio na Internet;
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A Requerente e os C... assinaram um “Asset Purchase Agreement”, datado de 17 de Dezembro de 2020;
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A Requerente emitiu aos C... a factura n.º 2FC-2020/000285, em 28 de Dezembro de 2020, no valor de € 19.000.000,00, à que acresceu IVA à taxa de 23%, no valor € 4.370.000,00, num total de € 23.370.000,00, que tinha como descritivo a “transferência de ativos fixos intangíveis relativamente à marca ...”;
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A Requerente, na declaração de rendimentos Modelo 22 de IRC, submetida em 2 de Julho de 2021, referente ao período de tributação de 2020, deu a tributar totalmente o valor de € 19.000.000,00, referente à transferência dos Activos...;
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A Requerente, nessa declaração de rendimentos, optou por não reinvestir os valores de realização, nos termos e para os efeitos do regime de reinvestimento previsto no artigo 48.º, do Código do IRC;
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Essa declaração de rendimentos apresentada pela Requerente originou a liquidação de IRC nº 2021..., na qual apurou um valor total de € 5.241.106,89;
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As demonstrações financeiras da Requerente, relativas ao exercício de 2020, incluem:
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na Demonstração de Resultados, na rubrica de “Outros rendimentos”, o valor de € 19.000.000,00, referente à transferência dos Activos ...;
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na Demonstração de Fluxos de Caixa, na rúbrica de Fluxos de Caixa de actividades de investimento, recebimentos do montante de € 19.000.000,00; e
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no Anexo, na nota 22, que “a rubrica rendimentos e ganhos nos restantes ativos não financeiros refere-se à alienação dos direitos comerciais e marca ..., designadamente AIM’s, informação comercial, propriedade intelectual, Know-how e informação médica”;
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O valor da transferência dos Activos ... foi reconhecido contabilisticamente, na sua totalidade, como ganho resultante da alienação de activos intangíveis, conforme previsto na NCRF 6 – Activos Intangíveis;
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A Requerente, por considerar tratarem-se de activos intangíveis gerados internamente com as restrições associadas à capitalização de dispêndios previstas na NCRF 6 – Activos Intangíveis e face à antiguidade de eventuais dispêndios já totalmente amortizados, apenas tem registos contabilísticos associados à operação de transferência dos Activos ... respeitantes ao apuramento da mais-valia obtida com essa alienação, sem apresentação de quaisquer registos contabilísticos alusivos a custos no seu Balanço;
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Na transição do POC para o SNC, as rubricas de activo no Balanço, deixaram de ter informação desagregada por activo bruto e correspondentes amortizações ou reintegrações ou ajustamentos ao mesmo e passaram a ser registadas numa base líquida;
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A mais-valia contabilizada e totalmente tributada pela Requerente correspondeu ao à totalidade do montante - € 19.000.000,00 - referente à transferência dos Activos ...;
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A Requerente concretizou o reinvestimento parcial do valor de realização resultante da alienação dos Activos ... em activos fixos tangíveis e activos intangíveis, havendo registos contabilísticos de tal reinvestimento nas respectivas contas no montante de € 13.220.026,55, ao longo dos períodos de tributação de 2019 a 2024, nos seguintes moldes:
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A Requerente apresentou reclamação graciosa sob o número ...2023..., em 3 de Julho de 2023;
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Na reclamação graciosa mencionada na alínea anterior, a Requerente solicitava a correcção da declaração de rendimentos Modelo 22 de IRC, referente ao período de 2020, por si submetida, por considerar que o regime de reinvestimento previsto no artigo 48.º, do Código do IRC, poderia ser aplicável à mais-valia no montante de € 19.000.000,00 decorrente da transferência dos Activos ..., na medida do reinvestimento que a Requerente realizasse;
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Em tal reclamação graciosa, a Requerente requereu que houvesse lugar a uma nova liquidação de IRC, considerando que o lucro tributável deveria ser corrigido para € 13.167.414,70 e, em consequência, haveria lugar a um montante de IRC a recuperar por si que ascendia a € 2.612.500,01;
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Até ao dia 3 de Novembro de 2023, a Requerida não se havia pronunciado ainda sobre a reclamação graciosa apresentada pela Requerente, pelo que esta presumiu o respectivo indeferimento tácito;
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Em 31 de Janeiro de 2024, a Requerente apresentou o pedido de constituição de Tribunal Arbitral que deu origem aos presentes autos.
§3 - Factos não provados
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Analisada a prova produzida nos presentes autos, com relevo para a decisão da causa, inexistem factos que se tenham considerado não provados.
MATÉRIA DE DIREITO
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Passando-se à apreciação do mérito da causa a analisar nos presentes autos, entende-se que a matéria controvertida que foi sujeita à apreciação deste Tribunal se resume à análise de duas questões essenciais, a saber:
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Por um lado, o preenchimento do conceito “activo intangível” para efeitos contabilísticos, à luz das orientações decorrentes do POC e do SNC, e das repercussões que tal preenchimento acarretará do ponto de vista fiscal, designadamente, no que respeita ao regime do reinvestimento dos valores de realização, previsto no artigo 48.º, do Código do IRC;
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Por outro, em que medida é que os requisitos previstos nesta norma legal se encontram verificados no caso em apreço.
Então vejamos,
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Importa aqui começar por recordar que o facto de o IRC, enquanto decorrência do princípio constitucional de tributação das empresas ser fundamentalmente incidente sobre o seu rendimento real (cfr. artigo 104.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa), incide, no caso das sociedades comerciais, sobre o seu lucro, i.e., sobre a “diferença entre os valores do património líquido no fim e no início do período de tributação, com as correcções estabelecidas neste Código” (cfr. artigo 3.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2 do Código do IRC).
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Para se apurar o lucro que, de acordo com o Código do IRC, será dado a tributar pelo sujeito passivo em sede deste imposto, determina o seu artigo 17.º, n.º 1, que aquele “é constituído pela soma algébrica do resultado líquido do período e das variações patrimoniais positivas e negativas verificadas no mesmo período e não reflectidas naquele resultado, determinados com base na contabilidade e eventualmente corrigidos nos termos deste Código”.
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Tendo em conta esta relação umbilical existente entre a fiscalidade associada ao mundo empresarial e o normativo contabilístico, não surpreende, portanto, que a alínea a), do n.º 3, do artigo 17.º do Código do IRC estabeleça que, para o apuramento do lucro tributável de um sujeito passivo de índole societária, a respectiva contabilidade deva “[e]star organizada de acordo com a normalização contabilística e outras disposições legais em vigor para o respectivo sector de actividade, sem prejuízo da observância das disposições previstas neste Código”.
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Em todo o caso, decorre das normas anteriormente citadas que a relação de dependência existente entre o IRC e a contabilidade não é total ou absoluta.
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Com efeito, o legislador tributário previu a possibilidade de os resultados alcançados por força da aplicação das regras de normalização contabilística serem corrigidos ou ajustados devido à aplicação, prevalecente, de determinadas normas previstas no Código do IRC, atendendo à prossecução de determinados objectivos fiscais.
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Portanto, é à luz deste racional que se analisará a questão em crise nos presentes autos, a qual, conforme decorre do acima exposto, centra-se nos moldes como a Requerente poderia (ou não) usufruir do regime do reinvestimento dos valores de realização, previsto no artigo 48.º, do Código do IRC.
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Para tal, como ponto de partida desta discussão, há, pois, que analisar o que prevêem as normas de enquadramento contabilístico tidas por relevantes para esta discussão, mormente as normas em torno do reconhecimento e mensuração dos custos ou gastos com activos intangíveis, porquanto tal análise revelar-se-á fundamental para o correcto enquadramento fiscal, em sede de IRC, da factualidade vertida nos autos.
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Da noção contabilística de “activo intangível”
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Para se compreender o conceito “activo intangível”, há, pois, primeiramente que analisar o que é que o POC prescrevia acerca deste conceito, designadamente no que respeita ao reconhecimento e mensuração deste tipo de activos (activos do imobilizado incorpóreo, na designação vigente à época, mas que, por uma questão de facilidade e simplicidade não se irá aqui considerar).
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O POC não previa, ab initio, um normativo detalhado acerca dos activos intangíveis, mais concretamente (de entre os possíveis activos subsumíveis dentro deste conceito), acerca do reconhecimento e mensuração das denominadas “despesas de investigação e desenvolvimento” geradas internamente.
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Só posteriormente, com a aprovação da Directriz Contabilística (“DC”) 7 pela Comissão de Normalização Contabilística, em 06.05.1992, é que veio a ser clarificada a contabilização deste tipo de despesas “que não sejam executadas para terceiros sob o contrato” (§1).
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Segundo a DC 7, as despesas de investigação são “as relativas a um processo de pesquisa original e planeada com o objetivo de obter novos conhecimentos científicos ou técnicos” (§1.1), ao passo que as despesas de desenvolvimento correspondem às que “resultem da aplicação tecnológica das descobertas anteriores à fase de produção” (§1.2).
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Como princípio geral, a DC 7 instituiu que “as despesas de investigação e desenvolvimento deviam ser registadas como custos do exercício em que fossem incorridas” (§2).
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Em todo o caso, a DC 7 também estipulou a possibilidade de este tipo de despesas poderem ser capitalizadas (i.e., registadas e mensuradas como um activo, a divulgar nas demonstrações financeiras, mormente no Balanço), verificadas que estivessem algumas condições.
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Assim, de acordo com a DC 7, as despesas de investigação só poderiam ser capitalizadas “nos casos excepcionais em que se possa assegurar, de forma inequívoca, que produzirão benefícios económicos futuros” (§3).
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Ora, diga-se, desde já, que esta exigência constante da DC 7 era, necessariamente, de difícil julgamento profissional, dado que a fase de investigação é um período que marca naturalmente o início de algo (ainda incerto) e que, como tal, não há uma percepção absolutamente clara (ou, na formulação da DC 7, “inequívoca”), ab initio, acerca da produção (ou não) de (eventuais) benefícios económicos futuros.
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Na verdade, esse período de investigação precede a fase em que há lugar ao desenvolvimento de um determinado produto (ou processo) e é apenas nesta fase ulterior que é, verdadeiramente, possível verificar ou constatar se o produto (ou processo):
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está claramente definido;
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tem viabilidade técnica;
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é comercializável;
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tem mercado onde possa ser comercializado (ou se será necessário criar um novo mercado para o efeito);
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exige determinados recursos (e quais) para ser comercializado; e
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será gerador de benefícios económicos futuros.
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Já no que tange às despesas de desenvolvimento (numa lógica idêntica à adoptada para as despesas de investigação), a DC 7 instituía a regra de que estas só podiam “ser reconhecidas como um activo quando o produto ou o processo estejam claramente definidos e os custos atribuíveis ao produto ou o processo possam ser identificados, separados e facilmente quantificados e, além disso, se verifiquem cumulativamente as seguintes condições:
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Esteja razoavelmente assegurada a viabilidade técnica do processo ou do produto;
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A empresa pretenda produzir e comercializar ou usar o produto ou o processo;
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A existência de um mercado para o produto ou o processo, ou, se ele se destinar a ser usado internamente em vez de ser vendido, esteja razoavelmente assegurada a sua utilidade para a empresa;
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Existam recursos adequados ou a disponibilidade deste esteja razoavelmente assegurada para completar o projecto e comercializar ou usar o produto ou processo” (§4).
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Acrescentava a DC 7, ainda sobre as despesas de desenvolvimento, que o reconhecimento das mesmas como um activo dependia de uma relação com “projectos específicos em que exista expectativa razoável de benefícios económicos futuros, tendo como limite uma determinada quantia susceptível de ser recuperada a partir dos mesmos. Este quantitativo é apurado considerando o cômputo dos outros custos de desenvolvimento, com os custos de produção relacionados e com os custos de venda e administrativos directamente incorridos na comercialização do produto ou processo. Este teste da recuperabilidade dos activos deve ser efectuado anualmente, à data do balanço, por forma a assegurar que o procedimento anteriormente adoptado se mantenha válido.” (§5).
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Por fim, prescrevia a DC 7, como última exigência em torno do reconhecimento das despesas de desenvolvimento como activo, que nos casos em que tal reconhecimento ocorresse, as mesmas seriam “amortizadas numa base sistemática e racional nos exercícios corrente e futuros, com referência ou à venda ou ao uso do produto ou processo, ou ao período de tempo durante o qual se espera que o produto ou processo seja vendido”, sendo que o “período de amortização não deve normalmente exceder os cinco anos” (§6).
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Daqui se infere que a DC 7 não impunha a capitalização das despesas de investigação e ou de desenvolvimento, mas previa essa possibilidade, desde que verificados determinados (e exigentes) requisitos.
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Nesse sentido, em face do enquadramento contabilístico postulado em tal directriz, era perfeitamente admissível que todas as despesas associadas à investigação e/ou desenvolvimento de um produto (ou processo) fossem registadas como custos ou gastos de um determinado período.
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Acresce que tal possibilidade era tão ou mais reforçada pela circunstância de a DC 7 não ter regras especificamente focadas em enquadrar o reconhecimento de activos gerados internamente.
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Com a entrada em vigor do SNC, a partir de 1 de Janeiro de 2010, e das NCRFs, houve lugar a relevantes alterações no que tange aos moldes como um activo intangível (mormente as despesas de investigação e desenvolvimento) poderia (e pode) ser reconhecido e mensurado contabilisticamente.
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Assim, a NCRF 6 – Activos Intangíveis veio “prescrever o tratamento de activos intangíveis”, sendo que terão de estar em causa recursos controlados por uma entidade e do qual se espera que fluam benefícios económicos futuros para a mesma e terão de corresponder a activos não monetários identificáveis e sem substância física (§ 1 e 8, (a) e (b)).
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A propósito das despesas de investigação e desenvolvimento, a NCRF 6 elucida, logo nos seus considerandos iniciais, que esta norma “aplica-se, entre outras coisas, a dispêndios com (…) actividades de pesquisa e desenvolvimento. As actividades de pesquisa e desenvolvimento destinam -se ao desenvolvimento de conhecimentos. Por isso, se bem que estas actividades possam resultar num activo com substância física (por exemplo, num protótipo), o elemento físico do activo é secundário em relação ao seu componente intangível, i.e. o conhecimento incorporado no mesmo” (§5).
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Com vista a delimitar o que se entende por “pesquisa” ou “desenvolvimento”, para este efeito, a NCRF 6 esclarece que está em causa, respectivamente, “a investigação original e planeada levada a efeito com a perspectiva de obter novos conhecimentos científicos ou técnicos” e a “aplicação das descobertas derivadas da pesquisa ou de outros conhecimentos a um plano ou concepção para a produção de materiais, mecanismos, aparelhos, processos, sistemas ou serviços, novos ou substancialmente melhorados, antes do início da produção comercial ou uso” (§ 8).
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Prosseguindo nas suas orientações, revela a NCRF 6 que as “entidades gastam com frequência recursos, ou incorrem em passivos, pela aquisição, desenvolvimento, manutenção ou melhoria de recursos intangíveis tais como conhecimentos científicos ou técnicos, concepção e implementação de novos processos ou sistemas, licenças, propriedade intelectual, conhecimento de mercado e marcas e objectivos comerciais (incluindo nomes comerciais e títulos de publicações). Exemplos comuns de itens englobados nestes grupos são (…) patentes, copyrights, (…) quota de mercado e direitos de comercialização” (§9).
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Porém, acrescenta a NCRF 6, “[n]em todos os itens descritos no parágrafo 9 satisfazem a definição de um activo intangível, i.e. identificabilidade, controlo sobre um recurso e existência de benefícios económicos futuros. Se um item que esteja dentro do âmbito desta Norma não satisfizer a definição de um activo intangível, o dispêndio para o adquirir ou gerar internamente é reconhecido como um gasto quando for incorrido” (§10).
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No que respeita ao requisito da identificabilidade, prevê a NCRF 6 que o mesmo é satisfeito caso um activo “for separável, isto é, capaz de ser separado ou dividido da entidade e vendido, transferido, licenciado, alugado ou trocado, seja individualmente ou em conjunto com um contracto, activo ou passivo relacionado” ou “[r]esultar de direitos contratuais ou de outros direitos legais, quer esses direitos sejam transferíveis quer sejam separáveis da entidade ou de outros direitos e obrigações” (§12).
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Quanto ao critério do controlo sobre um recurso, a NCRF 6 indica que o mesmo se verifica se uma entidade “tiver o poder de obter benefícios económicos futuros que fluam do recurso e puder restringir o acesso de outros a esses benefícios”, sendo que a “capacidade de uma entidade de controlar os benefícios económicos futuros de um activo intangível enraíza -se nos direitos legais que sejam de cumprimento forçado por um tribunal” (§13).
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Já no que se refere à existência de benefícios económicos futuros, determina a NCRF 6 que os mesmos “podem incluir réditos da venda de produtos ou serviços, poupanças de custos, ou outros benefícios resultantes do uso do activo pela entidade. Por exemplo, o uso da propriedade intelectual num processo de produção pode reduzir os custos de produção futuros e não aumentar os réditos futuro” (§17).
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No que toca ao reconhecimento contabilístico destes activos, a NCRF 6 prevê que o “reconhecimento de um item como activo intangível exige que uma entidade demonstre que o item satisfaz: (a) A definição de um activo intangível (…); e (b) Os critérios de reconhecimento”, sendo que “[e]stes requisitos aplicam-se aos custos incorridos inicialmente para adquirir ou gerar internamente um activo intangível e aqueles incorridos posteriormente para adicionar a, substituir parte de, ou dar assistência ao mesmo” (§18).
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Sobre os critérios de reconhecimento acima mencionados, a NCRF 6 esclarece que um activo intangível “deve ser reconhecido se, e apenas se: (a) For provável que os benefícios económicos futuros esperados que sejam atribuíveis ao activo fluam para a entidade; e (b) O custo do activo possa ser fiavelmente mensurado” (§21).
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Em todo o caso, no que diz especial respeito ao reconhecimento dos activos intangíveis gerados internamente, a NCRF 6 assume uma especial prudência por força de problemas relacionados com a sua identificação, com a determinação sobre a existência de benefícios económicos futuros e a fiabilidade na determinação do respectivo custo (§50).
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Para “avaliar se um activo intangível gerado internamente satisfaz os critérios de reconhecimento”, uma entidade deve primeiramente classificar “a formação do activo em: (a) Uma fase de pesquisa; e (b) Uma fase de desenvolvimento” (§51).
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Por outras palavras, no que se refere especificamente aos activos gerados internamente, a sua formação poderá decorrer de uma fase de pesquisa ou de uma fase de desenvolvimento (em caso de não ser possível promover tal distinção entre ambas as fases, a NCRF 6 manda que se trate tal dispêndio como sendo incorrido somente na fase da pesquisa).
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Ora, quanto aos activos provenientes da fase de pesquisa, a NCRF 6 é categórica ao assinalar que “nenhum (…) deve ser reconhecido” e, como tal, o respectivo dispêndio “deve ser reconhecido como um gasto quando for incorrido” designadamente porque “[n]a fase de pesquisa de um projecto interno, uma entidade não pode demonstrar que existe um activo intangível que irá gerar benefícios económicos futuros prováveis” (§53 e 54)
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Ou seja, às despesas de investigação incorridas internamente a NCRF 6 veda a sua capitalização ou, se se preferir, o seu reconhecimento como activo intangível.
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Já quanto às despesas de desenvolvimento, a NCRF 6 prevê que pode haver lugar ao respectivo reconhecimento como activo intangível “se, e apenas se, uma entidade puder demonstrar tudo o que se segue:
(a) A viabilidade técnica de concluir o activo intangível a fim de que o mesmo esteja disponível para uso ou venda.
(b) A sua intenção de concluir o activo intangível e usá -lo ou vendê -lo.
(c) A sua capacidade de usar ou vender o activo intangível.
(d) A forma como o activo intangível gerará prováveis benefícios económicos futuros. Entre outras coisas, a entidade pode demonstrar a existência de um mercado para a produção do activo intangível ou para o próprio activo intangível ou, se for para ser usado internamente, a utilidade do activo intangível.
(e) A disponibilidade de adequados recursos técnicos, financeiros e outros para concluir o desenvolvimento e usar ou vender o activo intangível.
(f) A sua capacidade para mensurar fiavelmente o dispêndio atribuível ao activo intangível durante a sua fase de desenvolvimento” (§56).
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Ou seja, constata-se que neste domínio a NCRF 6 sujeita o reconhecimento de despesas de desenvolvimento geradas internamente como activo intangível a condições muito exigentes e de difícil concretização.
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É, pois, neste diapasão, que se compreende que a NCRF 6 prescreva que “marcas, cabeçalhos, títulos de publicações, listas de clientes e itens substancialmente semelhantes gerados internamente não devem ser reconhecidos como activos intangíveis” e que os respectivos dispêndios “não podem ser distinguidos do custo de desenvolver a empresa no seu todo” (§62 e 63).
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Em suma, em face do acima exposto, é possível concluir que a NCRF 6, no que em concreto se refere aos dispêndios associados a activos intangíveis gerados internamente, determina (e, nesse sentido, seguindo uma lógica similar à constante da DC 7) que os mesmo devam ser registados como um gasto, quando forem incorridos, salvo nos casos em que aqueles disserem respeito a despesas de desenvolvimento que satisfaçam todos os critérios de reconhecimento como activo.
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Do reconhecimento contabilístico e da existência de “activos intangíveis”
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Sem prejuízo do acima exposto, o tratamento contabilístico a dar a determinados dispêndios associados à pesquisa e/ou ao desenvolvimento ditado pelas regras do POC e/ou a SNC não conduz à conclusão de que tais dispêndios não sejam, na verdade um activo intangível para uma determinada entidade.
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Por outras palavras, não é circunstância de um activo intangível (mormente os gerados internamente) não merecer um registo separado e individualizado nas demonstrações financeiras (e.g. no balanço) de uma entidade que conduz, inevitável e inexoravelmente, à sua inexistência.
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Na verdade, um determinado activo intangível – tenha ou não sido gerado internamente - não deixa de existir nem perde a sua individualidade pelo simples facto de não cumprir com todos os critérios de reconhecimento contabilístico, na óptica da entidade onde o mesmo foi gerado.
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Desde logo porque, como facilmente se compreende, os normativos contabilísticos mais não são do que convenções destinadas a conferir um determinado tratamento à realidade, mas não se confundem nem se substituem a esta.
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Por outro lado, são os próprios normativos contabilísticos que admitem a pré-existência dos activos intangíveis, independentemente dos moldes como os mesmos possam vir a ser tratados do ponto de vista contabilístico.
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A título de exemplo, atendendo às frases “é difícil avaliar se um activo intangível gerado internamente se qualifica para reconhecimento” (§50) e “[p]ara avaliar se um activo intangível gerado internamente satisfaz os critérios de reconhecimentos” (§51) constantes da NCRF 6, retira-se a ideia de que os activos intangíveis podem ser pré-existentes a um determinado reconhecimento contabilístico e, ao mesmo tempo, que tais activos terão de passar um determinado crivo para merecerem esse reconhecimento na esfera contabilística (e nesta esfera apenas), num determinado e específico contexto.
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Tanto é assim que um activo intangível poderá (e, acrescentamos, mesmo, deverá) ser, num cenário transaccional, objecto de reconhecimento, enquanto activo intangível, na óptica da entidade que o venha adquirir, e mensurado segundo o seu custo ou gasto de aquisição…
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… independentemente de o mesmo, na esfera da óptica da entidade que o alienou, nunca tenha podido efectuar esse mesmo reconhecimento.
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Ora, é precisamente um cenário transaccional aquele que se encontra em apreciação nos presentes autos.
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Sublinhe-se, a este propósito, e que para dúvidas não restem, que os Activos ... cumprem os critérios de identificabilidade, de controlo e de geração de benefícios económicos futuros desde o momento (década de 60 do século passado) em que os mesmos foram gerados:
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primeiro para a Requerente, até 17 de Dezembro de 2020 (data em que os mesmos foram por esta alienados);
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depois dessa data, para os C... (a entidade que os veio a adquirir).
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Aliás, a Requerida patenteia na sua resposta (vide, por exemplo, o artigo 80.º) que também considera que aqueles critérios se encontravam plenamente preenchidos no caso dos Activos ... (apenas se equivocando quanto ao facto de, em obediência aos normativos contabilísticos aplicáveis, estes mesmos activos não poderem ser efectivamente registados enquanto tal na contabilidade da Requerente).
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É também essa a posição seguida na jurisprudência arbitral, dando-se como exemplo o decidido na decisão arbitral de 26.02.2024, proferida no processo n.º 103/2023-T, em se sublinha que “o facto do ativo intangível não ser reconhecido no Balanço não significa que ele não existe”.
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Como tal, não é de admirar – antes pelo contrário, será conforme às regras postuladas no SNC e na NCRF 6 – que os C... tenham procedido ao reconhecimento e mensuração dos Activos ... enquanto activo intangível e, por seu turno, a Requerente, dadas as restrições de reconhecimento associadas aos activos gerados internamente, não o tenha podido fazer.
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Do ponto de vista contabilístico, é-se da opinião que a Requerente agiu em conformidade com aquelas que eram as regras que decorriam da DC 7, primeiro, e da NCRF 6, depois, em não proceder ao reconhecimento ao conjunto de activos que compõem o ... como um “activo intangível”.
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E agiu igualmente bem a Requerente ao, por referência ao ano de 2020 em que alienou os Activos ..., ter feito a devida menção e o devido destaque nas suas demonstrações financeiras, nomeadamente da demonstração de resultados, no anexo ao balanço e demonstração de resultados e na demonstração de fluxos de caixa, nos moldes como se encontram descritos na matéria de facto dada como provada nestes autos.
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Sendo que a informação contabilística constante destas demonstrações financeiras é consistente com as descrições constantes quer no “Asset Purchase Agreement”, datado de 17 de Dezembro de 2020, celebrado entre a Requerente e os C..., quer na factura n.º 2FC-2020/..., emitida por aquela a estes em 28 de Dezembro de 2020.
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Acresce que não corresponde à verdade a ideia perpassada pela Requerida de que as demonstrações financeiras da Requerente teriam, caso a mesma tivesse “observado, como lhe competia, os normativos contabilísticos”, de evidenciar “os ativos em causa nos presentes autos, eventualmente, como ativos intangíveis”.
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Com efeito, à luz desses mesmos normativos contabilísticos, em particular o POC, é possível que:
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todas as despesas associadas ao reconhecimento inicial e de desenvolvimento do produto, pudessem ter sido registadas como gastos, ou
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tais despesas, ainda que fossem (verificados critérios restritivos) capitalizadas e como tal reconhecidas enquanto activo intangível, se encontrassem – à data dos factos ora em análise – totalmente amortizadas e, consequentemente, tivessem um valor de “€ 0,00” no Balanço da Requerente.
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Acresce que, mesmo no cenário em que aquelas despesas tivessem sido capitalizadas como activo intangível, com a entrada em vigor do SNC, os balanços deixaram de apresentar informação sobre as quantias brutas da rubrica do activo e o valor das respectivas deduções resultantes de amortizações, reintegrações e ajustamentos de activos e passaram as rubricas dos activos a serem apresentados numa base líquida.
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Como tal, mesmo que a Requerente tivesse capitalizado as despesas de investigação e desenvolvimento associadas aos Activos ..., ainda assim as suas demonstrações financeiras não teriam de evidenciar, separada e individualizadamente, tais activos como activos intangíveis.
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Das obrigações contabilísticas das empresas e do processo de documentação fiscal
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Tendo presente o exposto até ao presente momento, importa, agora, chamar à colação o disposto no artigo 123.º, do Código do IRC, o qual institui as obrigações contabilísticas que os sujeitos passivos deste imposto devem cumprir.
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Diz-nos este artigo o seguinte:
“1 — As sociedades comerciais ou civis sob forma comercial, as cooperativas, as empresas públicas e as demais entidades que exerçam, a título principal, uma actividade comercial, industrial ou agrícola, com sede ou direcção efectiva em território português, bem como as entidades que, embora não tendo sede nem direcção efectiva naquele território, aí possuam estabelecimento estável, são obrigadas a dispor de contabilidade organizada nos termos da lei que, além dos requisitos indicados no n.º 3 do artigo 17.º, permita o controlo do lucro tributável.
2 — Na execução da contabilidade deve observar-se em especial o seguinte:
a) Todos os lançamentos devem estar apoiados em documentos justificativos, datados e susceptíveis de serem apresentados sempre que necessário;
b) As operações devem ser registadas cronologicamente, sem emendas ou rasuras, devendo quaisquer erros ser objecto de regularização contabilística logo que descobertos.
3 — Não são permitidos atrasos na execução da contabilidade superiores a 90 dias, contados do último dia do mês a que as operações respeitam”.
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Ora, conforme decorre do acima enunciado e no que interessa para a boa resolução da causa, crê-se que a Requerente respeitou os normativos contabilísticos relevantes no que tange à contabilização dos Activos ... e como tal, cumpriu com a obrigação de “dispor de contabilidade organizada” nos termos da norma acima citada.
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Não se ignora que não é esta a opinião veiculada pela Requerida, ao arguir que a Requerente, independentemente da “antiguidade subjacente ao produto ...”, “devia de dispor em cada momento de encerramento de contas de elementos suficientes por forma a que todos os lançamentos estivessem apoiados em documentos justificativos, uma vez que só dessa forma é que se pode aferir do correto ou incorreto apuramento de Mais ou Menos-valias contabilísticas e fiscais” …
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…e que consequentemente, se a Requerente agora não tinha forma de apresentar essa prova (referente a “identificar registos ou movimentos autónomos ao nível do ativo intangível ou qualquer valor líquido contabilístico relativamente ao conjunto de elementos objeto de transmissão que compõem o....”) tal ausência de comprovação equivaleria a não ter cumprido com o seu ónus de prova.
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Ora, a este respeito, importa recordar que o artigo 130.º, n.º 1, do Código do IRC, prescreve – somente – que “[o]s sujeitos passivos de IRC (…) são obrigados a manter em boa ordem, durante o prazo de 10 anos, um processo de documentação fiscal relativo a cada período de tributação (…) com os elementos contabilísticos e fiscais a definir por portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças”.
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E que, na mesma linha, o artigo 19.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 28/2019, de 15 de Fevereiro (para o qual o artigo 125.º, n.º 1, do Código do IRC, remete), também prescreve que “[o]s sujeitos passivos são obrigados a arquivar e conservar em boa ordem todos os livros, registos e respetivos documentos de suporte por um prazo de 10 anos (…)”.
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Ou seja, estas normas contrariam a posição veiculada pela Requerida na sua resposta, uma vez que não é aceitável que a mesma pretenda “impor aos contribuintes uma conservação ad aeternum de todos os elementos que suportem o valor de aquisição dos seus activos” (cfr. decisão arbitral de 15.01.2025, proferida no processo n.º 623/2024-T).
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Como entendeu o Pleno do Supremo Tribunal Administrativo, no acórdão de 08.11.2006, no processo n.º 0244/06 (citado na decisão arbitral n.º 253/2022-T, de 12.12.2022), “não tendo o contribuinte apresentado quaisquer elementos justificativos dos valores considerados como valores de aquisição de imóvel, alegando que já não os possuía "pelo decurso do tempo", não pode a Administração Fiscal concluir que aquele não fez a prova dos elementos que compõem o respectivo valor de aquisição, designadamente daqueles que sejam diferentes do preço propriamente dito e levar em consideração o valor constante da escritura para efeito de cálculo de menos/mais-valias”.
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Como tal, considerando a antiguidade de todos os registos contabilísticos associados aos Activos ... (activos esses que se reportam à década de 60, do século passado), não é de todo aceitável que a Requerida pudesse exigir à Requerente a exibição de documentos contabilísticos com vista à comprovação de determinada realidade quando esta, na verdade, já não era (nem é) obrigada a conservá-los, não podendo, por isso, as regras do ónus da prova, prescritas no artigo 74.º, n.º 1, da LGT, operar contra si.
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Do regime do reinvestimento
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O regime do reinvestimento dos valores de realização, vigente à data dos factos, prescrito no artigo 48.º, n.ºs 1, 2 e 5, do Código do IRC, rezava assim:
“1 - Para efeitos da determinação do lucro tributável, a diferença positiva entre as mais-valias e as menos-valias, calculadas nos termos dos artigos anteriores, realizadas mediante a transmissão onerosa de ativos fixos tangíveis, ativos intangíveis e ativos biológicos não consumíveis, detidos por um período não inferior a um ano, ainda que qualquer destes ativos tenha sido reclassificado como ativo não corrente detido para venda, ou em consequência de indemnizações por sinistros ocorridos nestes elementos, é considerada em metade do seu valor, quando:
a) O valor de realização correspondente à totalidade dos referidos ativos seja reinvestido na aquisição, produção ou construção de ativos fixos tangíveis, de ativos intangíveis ou, de ativos biológicos não consumíveis, no período de tributação anterior ao da realização, no próprio período de tributação ou até ao fim do 2.º período de tributação seguinte;
b) Os bens em que seja reinvestido o valor de realização:
1) Não sejam bens adquiridos em estado de uso a sujeito passivo de IRS ou IRC com o qual existam relações especiais nos termos definidos no n.º 4 do artigo 63.º;
2) Sejam detidos por um período não inferior a um ano contado do final do período de tributação em que ocorra o reinvestimento ou, se posterior, a realização.
2 — No caso de se verificar apenas o reinvestimento parcial do valor de realização, o disposto no número anterior é aplicado à parte proporcional da diferença entre as mais-valias e as menos-valias a que o mesmo se refere.
(…)
5 — Para efeitos do disposto nos n.ºs 1 e 2, os sujeitos passivos devem mencionar a intenção de efetuar o reinvestimento na declaração a que se refere a alínea c) do n.º 1 do artigo 117.º do período de tributação em que a realização ocorre, comprovando na mesma e nas declarações dos dois períodos de tributação seguintes os reinvestimentos efetuados”.
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Em resultado da pandemia associada ao COVID-19, que marcou, sobretudo, o ano de 2020, o artigo 6.º, da Lei 21/2021, de 20 de Abril de 2021, instituiu uma medida extraordinária de contagem de prazos no âmbito do IRC, nos termos da qual ficou suspensa, durante os períodos de tributação de 2020 e 2021 a contagem do prazo de reinvestimento previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 48.º do Código do IRC.
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Como tal, uma vez que ao abrigo do regime-regra, a Requerente dispunha de um prazo para proceder ao reinvestimento dos valores de realização que findava no final do segundo período de tributação seguinte ao da realização – isto é, até 2022 – com a aplicação daquele regime suspensivo, o prazo que a mesma dispunha para reinvestir foi alargado para os dois períodos de tributação seguintes, ou seja, até ao final do período de tributação de 2024.
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Ora, ao abrigo deste regime de reinvestimento, constata-se que o mesmo não contém qualquer regra, nem prescreve qualquer especial exigência quanto aos moldes como um determinado activo (seja ele tangível, intangível ou biológico não consumível) deverá estar registado na contabilidade do sujeito passivo.
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Nesse sentido, o disposto no artigo 48.º, n.º 1, do Código do IRC, é distinto, por exemplo, do previsto no artigo 45.º-A, do mesmo Código, o qual prescreve expressamente que “[o] custo de aquisição dos seguintes ativos intangíveis quando reconhecidos autonomamente, nos termos da normalização contabilística, nas contas individuais do sujeito passivo, é aceite como gasto fiscal” (com negrito e sublinhado nossos).
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Atenta à regra de que o intérprete deve sempre assumir que o legislador se soube exprimir adequadamente, há que dar o devido valor à circunstância de aquele mesmo legislador ter sido silente quanto aos moldes como os activos deveriam ser reconhecidos na contabilidade dos sujeitos passivos, para efeitos de se poderem inserir dentro do âmbito de incidência objectiva do regime de reinvestimento previsto no artigo 48.º, do Código do IRC.
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Nesse sentido, o facto de os Activos ... não poderem ser reconhecidos nas demonstrações financeiras da Requerente, não só não significam que os mesmos não existem (e, mesmo que estivessem registados na contabilidade, sempre teriam um valor igual a “zero”) e também não impede que os mesmos possam ser considerados para efeitos de aplicação do regime do reinvestimento previsto no artigo 48.º, do Código do IRC.
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Conforme é explicitado na supra citada decisão arbitral de 26.02.2024, no processo n.º 103/2023-T, “[a]ssim, considerar, como faz a AT, que, para a aplicação do disposto no artigo 46º do CIRC, é necessário estarmos perante um “activo intangível que preencha os requisitos que impõem o seu reconhecimento no balanço”, extravasa a letra da lei e não é, por esta, uma interpretação permitida.
Caso o legislador tivesse querido limitar a aplicação do artigo 46.º do CIRC aos casos de alienação de “ativos intangíveis que preencham os requisitos que impõem o seu reconhecimento no balanço”, tê-lo-ia dito, expressamente, à semelhança do que fez relativamente a outras situações”.
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Face ao exposto, conclui-se que os Activos ..., enquadrando-se como um activo intangível, se enquadram no âmbito de incidência objectiva do artigo 48.º, do Código do IRC, razão pela qual ao respectivo valor de realização poderia ser aplicado o regime do reinvestimento enunciado neste artigo.
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Decorrendo da matéria de facto dada como provada – em particular da documentação junta aos autos pela Requerente, orientada para a confirmação sobre se os valores de reinvestimento por si indicados no pedido de pronúncia arbitral se estavam documentados se os activos em relação aos quais o reinvestimento foi realizado haviam sido reconhecidos contabilisticamente nas rubricas de activos fixos tangíveis e ativos intangíveis - concluiu-se no ponto 78 r) a Requerente realizou um reinvestimento, documentalmente suportado, no montante total € 15.948.457,94, sendo que deste total, a importância de € 13.220.026,55 correspondia a activos que foram reconhecidos contabilisticamente em contas de activos fixos tangíveis.
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Pelo que ficou provado que o reinvestimento do valor de realização resultante da alienação dos Activos ... foi concretizado parcialmente pelo montante de € 13.220.026,55 (uma vez mais veja-se o facto dado como provado no ponto 78 r)).
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Em face do exposto, julga-se parcialmente procedente o pedido formulado pela Requerente, no que tange à declaração de ilegalidade parcial do acto de autoliquidação de IRC, referente ao período de tributação de 2020, resultante da declaração periódica de rendimentos Modelo 22, submetida no dia 02.07.2021, a qual originou a liquidação de IRC nº 2021..., na qual apurou um valor total de € 5.241.106,89, consequentemente da ilegalidade também parcial da decisão de indeferimento tácito da reclamação graciosa identificada sob o n.º ...2023..., formado em 03.11.2023.
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Do reembolso do imposto liquidado e pago indevidamente e dos juros indemnizatórios
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Em face desta decisão e em face dos pedidos formulados pela Requerente, há que restabelecer a situação que existiria se a ilegalidade em causa não tivesse sido praticada, em conformidade com os artigos 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT, e 100.º, da LGT.
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Esse restabelecimento da situação que existiria caso a ilegalidade não tivesse sido praticada implica, nos presentes autos, a condenação da Requerida de reembolsar a Requerente do montante de imposto indevidamente liquidado e pago, sendo que o valor exacto desse reembolso dependerá de actos materiais de execução desta decisão arbitral anulatória a praticar pela Requerida, bem como o pagamento de juros indemnizatórios que se mostrarem devidos.
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O direito a tais juros encontra-se regulado no artigo 43.º, n.º 1, da LGT, que, ao que importa, estabelece que “[s]ão devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.”.
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Ora, resultando provado que o acto de autoliquidação contestado enferma de vício de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de facto e de direito, e considerando-se que tal erro é imputável aos serviços, é devido pela Requerida o pagamento de juros indemnizatórios, contados sobre o valor do imposto indevidamente pago, desde a data do pagamento indevido, à taxa legal supletiva e até à data da emissão da correspondente nota de crédito, nos termos conjugados dos artigos 43.º, n.º 1, e 100.º, da LGT, 61.º, do CPPT, e 24.º, n.º 5 do RJAT.
DECISÃO
Termos em que, com os fundamentos de facto e de direito que supra ficaram expostos, decide o Tribunal Arbitral Colectivo:
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Julgar procedente a excepção dilatória de incompetência material do Tribunal Arbitral, quanto ao segundo pedido formulado pela Requerente, absolvendo, quanto a este pedido, a Requerida da instância;
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Julgar improcedente as demais excepções dilatórias;
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Julgar parcialmente procedente o pedido de pronúncia arbitral formulado pela Requerente e, em consequência, declarar a ilegalidade parcial do acto de autoliquidação de IRC, referente ao período de tributação de 2020, e, bem assim, da ilegalidade também parcial da decisão de indeferimento tácito da reclamação graciosa;
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Condenar a Requerida a, em conformidade com o disposto no artigo 24.º, n.º 1, do RJAT, a praticar os actos consequentes à condenação dos pedidos anteriores;
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Condenar a Requerida ao pagamento dos juros indemnizatórios; e
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Condenar a Requerida e a Requerente no pagamento das custas do processo na medida do decaimento.
VALOR DO PROCESSO
Atendendo ao disposto no artigo 97.º-A do CPPT, aplicável 2 artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 2.612.500,01 (dois milhões, seiscentos e doze mil e quinhentos euros e um cêntimo).
CUSTAS
Nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, as custas são no valor de € 33.660,00[1], a Requerida pagará a proporção de 67,40%, o que corresponde ao montante de € 22.687,63, e a Requerente pagará a proporção de 32,60%, o que corresponde ao montante de € 10.972,37, face aos decaimentos, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem.
Notifique-se.
Lisboa, 3 de Abril de 2025
Os árbitros,
Carla Castelo Trindade
(Presidente)
Victor Simões
Sónia Martins Reis
[1] De acordo com o Despacho de Retificação de 2025-04-15.
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