SUMÁRIO
1. A inscrição no registo de residentes não habituais, tem natureza exclusivamente declarativa, e não efeitos constitutivos do direito a ser tributado nos termos do respectivo regime.
2. Nos casos em que o contribuinte demonstre inequivocamente que pretende beneficiar do respectivo regime no ano em que se torne residente fiscal em Portugal, nomeadamente pela entrega da modelo 3 do IRS com o anexo L com indicação do código de actividade AEVA, ainda que o mesmo pedido seja efectuado para além da data-limite de 31 de Março do ano seguinte àquele em que se torne residente em Portugal, deve beneficiar do regime a partir desse mesmo ano.
DECISÃO ARBITRAL
O Árbitro João Santos Pinto, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (adiante designado apenas por CAAD) para formar o Tribunal Arbitral Singular, constituído em 27/09/2024, decide no seguinte:
1. Relatório
A..., (adiante designada por “Requerente”), NIF..., residente na ..., ..., ..., ...-... ..., requereu a constituição de Tribunal Arbitral e apresentou pedido de pronúncia arbitral (“PPA”), nos termos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, adiante designado por “RJAT”), em que é Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (adiante designada por “AT” ou “Requerida”).
O Requerente peticionou ao Tribunal Arbitral que declare a ilegalidade tendo em vista a anulação do acto de liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (“IRS”) liquidação de IRS n.º 2023... relativa ao ano de 2022, no valor total de € 8.111,00, ordenando-se ainda a condenação da AT ao reembolso do imposto pago em excesso e no pagamento de juros indemnizatórios.
O Requerente alegou em síntese que a inscrição no registo de residentes não habituais tem natureza exclusivamente declarativa e que o pedido de inscrição para além do prazo previsto no n.º 10 do artigo 16.º do CIRS, não obsta a que beneficie do aludido regime.
O requerimento de constituição do Tribunal Arbitral foi apresentado a 22/07/2024, tendo sido aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD na mesma data e seguido a sua normal tramitação.
Em conformidade com os artigos 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a) e 11.º, n.º 1, alínea a), todos do RJAT, o Conselho Deontológico do CAAD designou o árbitro do Tribunal Arbitral Singular, aqui signatário, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.
Em 09/09/2024, foram as Partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.
Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral Singular foi constituído em 27/09/2024. Nesse mesmo dia, foi a Requerida notificada para apresentar Resposta nos termos do artigo 17.º do RJAT.
Em 04/11/2024, a Requerida apresentou Resposta, defendendo-se por impugnação.
Em 30/12/2024, o Tribunal Arbitral Singular proferiu o seguinte Despacho Arbitral:
“Para a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT, também destinada a produção de prova testemunhal, designo o dia 14 de Janeiro de 2025, às 10h00. Notifique-se a Requerente para informar o CAAD se as testemunhas irão estar presentes nas instalações do CAAD de Lisboa ou do Porto e ambas as partes para informar se os mandatários participam na diligência presencialmente nas instalações do CAAD de Lisboa ou do Porto ou on-line via WEBEX.
Mais se notifica a AT para proceder à junção do PA em falta.”
No dia 02/01/2025 a AT procedeu à junção do processo administrativo.
Em 10/01/2025 o Requerente requereu a alteração do rol de testemunhas.
Em 11/01/2025, o Tribunal Arbitral Singular proferiu o seguinte Despacho Arbitral:
“Em face das razões invocadas pelo Requerente no requerimento datado de 10/01/2025 para a substituição da testemunha, ao abrigo do princípio da autonomia na condução do processo, previsto no artigo 16.º, alínea c) do RJAT, admite-se a substituição da testemunha C... por D...”
A reunião do artigo 18.º do RJAT teve lugar no dia 14/01/2025, na sede do CAAD em Lisboa. Ouvidas as partes e com o seu acordo, o Tribunal decidiu prescindir da realização da inquirição de testemunhas, porquanto a matéria em discussão é apenas de Direito e não há qualquer factualidade controvertida.
No final da inquirição o Tribunal notificou o Requerente e a Requerida para, por esta ordem e de modo sucessivo, apresentarem alegações escritas no prazo de 15 dias.
A audiência foi gravada e dela foi lavrada acta junta aos autos.
Em 29/01/2025 o Requerente apresentou alegações, tendo ainda junto aos autos comprovativo de pagamento da taxa arbitral subsequente.
Em 19/02/0025 a Requerida apresentou alegações.
2. Saneamento
O Tribunal Arbitral Singular é competente e foi regularmente constituído.
As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão devidamente representadas (cf. artigo 4.º e n.º 2 do artigo 10.º, ambos do RJAT, e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
O processo não enferma de nulidades.
3. Matéria de Facto
3.1. Factos Provados
Analisada a prova produzida no âmbito do presente Processo Arbitral, este Tribunal Arbitral Singular considera provados, com relevo para a presente Decisão Arbitral, os seguintes factos:
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O Requerente é um cidadão romeno que entre o ano de 2017 e até ao final de 2021 residiu em Espanha. [Cf. Doc. 3, 5 e 6 do PPA]
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Em 05/11/2021 o Requerente foi inscrito em Portugal no cadastro fiscal como não residente [Cf Doc 10 do PPA].
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Em 13/01/ 2022 o Requerente alterou no cadastro fiscal a sua morada para Portugal e na mesma data registou-se na Câmara Municipal de ... para efeito de obtenção do Certificado de Registo de Cidadão da União Europeia (CREU). [Cf. Doc 4 e 13 do PPA].
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O Requerente foi contratado em 15/10/2021 para o cargo de Gestor Agrícola Sénior - Senior Farm Manager pela sociedade B..., Lda. [Cf. Doc 4 do PPA].
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No ano de 2021 o Requerente prestou serviços à sociedade B..., Lda. na qualidade de não residente [Cf. Doc. 3, 5, 6 e 10 do PPA]
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Nos recibos de vencimento relativos ao ano de 2022, atendendo a que o Requerente já era residente em território português e os rendimentos de trabalho dependente respeitavam à sua atividade profissional enquanto Senior Farm Manager, foi aplicada a taxa de retenção na fonte de 20% [Cf Doc 14 do PPA].
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No exercício de 2022 o Requerente auferiu enquanto Senior Farm Manager rendimentos de trabalho dependente no valor global de € 72.460,64 [Cf Doc 15 do PPA]
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A declaração Modelo 3 do IRS referente ao ano de 2022 foi apresentada com o Anexo L, tendo sido preenchido o campo 4 A, referente a rendimentos obtidos no território nacional, com o código AEVA 13.11.1 a que se refere a Diretor de produção na agricultura [Cf Doc 16 do PPA]
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Após a apresentação da aludida declaração Modelo 3 de IRS foi emitida pela AT em 06/07/2023, a notificação que indica que a declaração apresentada pelo Requerente contém erros centrais, identificando-se o seguinte erro: “L55 – SE NIF titular não é residente não habitual” [Cf Doc 17 do PPA]
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O Requerente procedeu à correção em conformidade da declaração modelo 3 do IRS, através da apresentação de nova declaração de rendimentos Modelo 3 do IRS, sem o Anexo L respeitante aos rendimentos obtidos por residentes não habituais.
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Posteriormente, a AT emitiu a liquidação de IRS n.º 2023..., relativa ao ano de 2022, objeto do presente processo e do qual resulta o valor de imposto a pagar de € 8.111,00 [Cf Doc 2 do PPA]
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Em 24/11/2023 o Requerente submeteu através do portal das Finanças o seu pedido de inscrição como residente não habitual [Cf Doc 19 do PPA]
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O pedido de inscrição como residente não habitual efectuado através do portal das Finanças apenas permitiu que fosse indicado como ano de inscrição o ano de 2023 [cfr. facto alegado pela Requerente e não contestado pela Requerida].
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Face a esta situação, o Requerente apresentou um requerimento autónomo, através do E-balcão, a indicar que o pedido de inscrição como residente não habitual se reporta ao ano de 2022 e não ao ano de 2023, como foi obrigado a indicar no seu pedido de inscrição, em virtude da limitação técnica existente no sistema informático que o impediu de colocar o ano de 2022. [Cf Doc 20 do PPA]
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Até à presente data a Autoridade Tributária não proferiu decisão final quanto ao pedido de inscrição como Residente Não Habitual do Requerente.
3.2. Factos Não Provados
Com relevo para a decisão, não existem outros factos alegados que devam considerar-se não provados.
3.3. Fundamentação da Fixação da Matéria de Facto
Relativamente à matéria de facto, o Tribunal não tem o dever de se pronunciar sobre toda a matéria alegada, tendo antes o dever de selecionar a que interessa para a decisão, levando em consideração a causa (ou causas) de pedir que fundamenta(m) o pedido formulado pelo autor, conforme n.º 1 do artigo 596.º e n.º 2 a 4 do artigo 607.º, ambos do Código Processo Civil (CPC), aplicável ex vi alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT, e consignar se a considera provada ou não provada, conforme n.º 2 do artigo 123.º Código do Procedimento e do Processo Tributário (CPPT), aplicável ex vi alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT.
Segundo o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal baseia a sua decisão, em relação às provas produzidas, na sua íntima convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com a sua experiência de vida e conhecimento das pessoas, conforme n.º 5 do artigo 607.º do CPC. Somente quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (e.g. força probatória plena dos documentos autênticos, conforme artigo 371.º do Código Civil) é que não domina, na apreciação das provas produzidas, o princípio da livre apreciação.
A factualidade julgada não provada ficou a dever esse juízo negativo, quanto à sua ocorrência, à absoluta falta de prova sobre ela.
Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas Partes e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja validade terá de ser aferida em relação à concreta matéria de facto consolidada.
Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes à luz do artigo 110.º, n.º 7, do CPPT, a prova documental, bem como o processo administrativo junto aos autos, consideram-se provados, com relevo para a decisão, os factos supra elencados.
4. Matéria de Direito
- Da ilegalidade da liquidação de IRS impugnada
A vexata questio é a de saber se o pedido de inscrição como residente não habitual, tem ou não natureza meramente declarativa e, em caso positivo, a partir de que momento em que o deve o ser considerado, isto é, se a partir do ano em que passou a ser residente ou a apenas a partir do ano em que o tenha solicitado, caso tal pedido tenha ocorrido posteriormente a 31 de Março do ano seguinte em que se tornou residente fiscal.
Por um lado, o Requerente alega que a inscrição como residente não habitual tem natureza meramente declarativa. Por outro, a AT veio em sede de resposta sustentar que se está perante um benefício fiscal dependente de reconhecimento por parte da AT (cf Artigo 7.º). Acrescenta ainda no mesmo articulado que o Requerente ao se ter tornado residente fiscal em Portugal em 13/01/2022, deveria tê-lo feito até 31/03/2023, pelo que ao ter solicitado em 12/12/2023, tal pedido é intempestivo. (Cf. artigo 11.º)
Cumpre antes de mais tomar posição sobre este tema.
Analise-se:
O regime do residente não habitual foi inicialmente previsto no artigo 23.º do Código Fiscal do Investimento, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 249/2009, de 23 de setembro, tendo criado o regime fiscal para o residente não habitual em sede do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS), tendo em vista atrair para Portugal profissionais não residentes qualificados em atividades de elevado valor acrescentado ou da propriedade intelectual, industrial ou know-how, bem como beneficiários de pensões obtidas no estrangeiro.
Considerando o ano dos factos em análise (2022), o regime do Estatuto do Residente não Habitual regia-se pela redação dos n.ºs 8 a 10 do artigo 16.º Código do IRS, conforme segue:
8 - Consideram-se residentes não habituais em território português os sujeitos passivos que, tornando-se fiscalmente residentes nos termos dos n.os 1 ou 2, não tenham sido residentes em território português em qualquer dos cinco anos anteriores.
9 - O sujeito passivo que seja considerado residente não habitual adquire o direito a ser tributado como tal pelo período de 10 anos consecutivos a partir do ano, inclusive, da sua inscrição como residente em território português.
10 - O sujeito passivo deve solicitar a inscrição como residente não habitual, por via eletrónica, no Portal das Finanças, posteriormente ao ato da inscrição como residente em território português e até 31 de março, inclusive, do ano seguinte àquele em que se torne residente nesse território.
Constata-se assim que os critérios para ter o estatuto do Residente Não Habitual são definidos pelo respectivo n.º 8 do artigo 16.º CIRS. O n.º 8 estabelece um critério positivo e negativo. Assim, para poderem beneficiar do estatuto de Residente Não Habitual, as pessoas singulares têm que preencher cumulativamente os seguintes pressupostos:
i.) Tornarem-se fiscalmente residentes nos termos do n.º 1 e 2 do artigo 16.º do Código do IRS (1.ª parte do n.º 8 do artigo 16.º do Código do IRS) (critério positivo), e
ii.) Não terem sido residentes em território português nos cinco anos anteriores (2.ª parte do n.º 8 do artigo 16.º do Código do IRS); (critério negativo).
Por sua vez, o n.º 10 do mesmo artigo, refere que o mesmo contribuinte “deve” solicitar a sua inscrição até ao dia 31 de Março do ano seguinte em que se torne residente fiscal em Portugal. E compreende-se que, em nosso entender, o legislador tenha indicado tal data (31 de Março) coincidente com o dia anterior ao prazo do início da entrega da Modelo 3 do IRS (1 de Abril), previsto no artigo 60.º do CIRS, com vista a facilitar a tarefa de organização administrativa do cadastro, mormente com a liquidação do IRS dos beneficiários de tal estatuto.
Deste modo, do confronto dos números 8 a 10 do artigo 16.º do CIRS, dúvidas não restam que os requisitos estão unicamente previstos no respectivo número 8, ao contrário do que entende a AT ao defender que o prazo previsto no n.º 10 é um 3.º requisito.
Concluindo-se assim que, a respectiva inscrição, bem como a data-limite prevista no respectivo n.º 10, tem natureza exclusivamente declarativa, e não tem efeitos constitutivos do direito a ser tributado nos termos do respectivo regime.
Voltando ao caso dos autos, dúvidas não restam que o Requerente não foi residente fiscal em Portugal nos 5 anos anteriores (2017 a 2021) em que se tornou residente no território Português. Facto que, aliás, nem sequer é contestado pela Requerida.
Acresce ainda que, pela entrega da respectiva declaração modelo 3 do IRS com o anexo L e o pedindo da inscrição como residente Não Habitual, é inequívoco que pretende beneficiar de tal regime, dado que cumpre o respectivo requisito da sua atribuição.
A que acresce inclusivamente o facto de nos recibos de vencimento relativos ao ano de 2022 ter sido aplicada a taxa especial de retenção na fonte de 20% aplicável à AEVA[1].
Tal como foi decidido na decisão arbitral com processo n.º 777/2020-T, CAAD, acompanha-se o entendimento no sentido de que vale “(…) a junção dos anexos L à declaração de rendimentos como pedido, dirigido à AT, para ser tributado pelo regime dos “residentes não habituais (…)”
E concorda-se igualmente com mesma decisão arbitral na parte em que decidiu que:
“(…) o que interessa aferir nos presentes autos é apenas se o registo como “residente não habitual,” previsto no n.º 8 (à data dos factos) do art.º 16.º, constitui um requisito formal necessário para que o sujeito passivo possa beneficiar do regime respetivo.
Atente-se na redação do n.º 7 do art.º 16º: “O sujeito passivo que seja considerado residente não habitual adquire o direito a ser tributado como tal pelo período de 10 anos consecutivos a partir do ano, inclusive, da sua inscrição como residente em território português.”
O direito a ser tributado como residente não habitual depende, portanto, e como se vê, apenas de o sujeito passivo “ser considerado residente não habitual”.
Para que o sujeito passivo possa “ser considerado residente não habitual”, a lei não exige o registo. Pelo contrário, o n.º 6 é perfeitamente expresso e inequívoco ao dizer que “Consideram-se residentes não habituais em território português os sujeitos passivos que, tornando-se fiscalmente residentes nos termos dos n.os 1 ou 2, não tenham sido residentes em território português em qualquer dos cinco anos anteriores.”
Ou seja, para que o sujeito passivo possa “ser considerado residente não habitual”, basta que se verifiquem dois requisitos, não sendo nenhum deles o registo como residente não habitual.
São esses requisitos:
a) Ter-se o sujeito passivo tornado fiscalmente residente num determinado ano;
b) Não ter o sujeito passivo sido residente em território português em qualquer dos cinco anos anteriores.
Afigura-se assim evidente que a letra das disposições relevantes não permite a conclusão de que o registo como residente habitual é requisito para a aplicação do regime.”
E, acompanha-se igualmente a fundamentação do processo nº 188/2020-T, CAAD:
“Não obstante, como por regra ocorre, a interpretação da lei fiscal não pode, nem deve, ficar-se pelo teor literal dos normativos imediatamente aplicáveis, devendo, antes, e mais não seja pela imposição da realização dos princípios da tributação da capacidade contributiva e da justiça material, decorrentes dos artigos 4.º, n.º 1, e 5.º, n.º 2, da LGT, identificar-se a finalidade material do regime a aplicar, através da compreensão da natureza das normas convocáveis, das finalidades por si visadas, e do contexto sistemático das mesmas.
Sob esta perspectiva, a norma do n.º 10 do artigo 16.º do CIRS, que disciplina a data limite até à qual os sujeitos passivos que reúnam os pressupostos materiais de que depende a tributação de acordo com o regime dos residentes não habituais podem requerer a inscrição como residente não habitual - até 31 de Março, inclusive, do ano seguinte àquele em que se torne residente em território nacional -, deverá entender-se como uma norma essencialmente procedimental, de organização do sistema operacional de tributação, que visa assegurar sua efectividade e o seu normal funcionamento, sendo, especialmente e desde logo de notar que a norma em causa, não tem subjacentes quaisquer finalidades de evitar a fraude ou a evasão fiscal.
E, nem se diga, como faz a AT, que não tendo o Requerente respeitado o prazo previsto no n.º 10 do artigo 16.º do Código do IRS para requerer a sua inscrição como residente não habitual, não pode beneficiar desse regime em qualquer um dos dez anos a que teria direito se tivesse apresentado o pedido dentro do prazo. Tratando-se a obrigação de apresentar o pedido de inscrição como residente não habitual, de uma obrigação meramente declarativa e, portanto não constitutiva do direito a beneficiar daquele regime, o atraso na entrega de declarações constitui uma contraordenação tributária prevista e punida nos termos do artigo 116.º do RGIT, e não deverá ter como consequência, sem mais, o não enquadramento no regime do residente não habitual.”
E se dúvidas restassem é patente a diferença de redacção com a anterior versão do n.º 2 do artigo 23.º Código Fiscal do Investimento, como bem observa o processo n.º 705/2022-T, CAAD:
“Esta interpretação mostra-se corroborada pelo confronto com a anterior regulação do regime dos residentes não habituais. Recorde-se que, na versão do Decreto-Lei n.º 249/2009, o art. 23.º, n.º 2 do Código Fiscal do Investimento dispunha que: “O sujeito passivo que seja considerado residente não habitual adquire o direito a ser tributado como tal, pelo período de 10 anos consecutivos, renováveis, com a inscrição dessa qualidade no registo de contribuintes da DGCI” e o então n.º 7 do art. 16.º do CIRS afirmava, do mesmo modo, que: “O sujeito passivo que seja considerado residente não habitual adquire o direito a ser tributado como tal pelo período de 10 anos consecutivos, renováveis, com a inscrição dessa qualidade no registo de contribuintes da Direcção-Geral dos Impostos”. Como se observa, a ligação que então se fazia entre a inscrição da qualidade de residente não habitual no registo dos contribuintes e a aquisição do direito a ser tributado como tal desapareceu da regulação vigente, a qual apenas conexiona a aquisição do direito a ser tributado como residente não habitual à consideração como tal em atenção à factualidade de os sujeitos passivos se tornarem fiscalmente residentes nos termos dos n.ºs 1 ou 2 do art. 16.º do CIRS e não terem sido residentes em território português em qualquer dos cinco anos anteriores, que são, pois, os únicos requisitos de que depende essa condição.”
Conclui-se assim que, o Requerente cumpre o requisito previstos no n.º 8 do artigo em causa, os quais, como já se viu, são os únicos requisitos exigidos por lei para que um sujeito passivo possa beneficiar do regime dos residentes não habituais. Igualmente se conclui que, por seu turno, a inscrição no registo de residentes não habitais, tem natureza exclusivamente declarativa, e não efeitos constitutivos do direito de ser tributado nos termos do respectivo regime.
No mesmo sentido, vejam-se a título meramente exemplificativo os processos n.º 188/2020-T, 777/2020-T, 705/2022-T, todos do CAAD, bem como o acórdão do STA datado de 29/05/2024 já anterior citado.
Vem ainda a Requerida em sede de alegações invocar o acórdão do STA datado de 15/01/2025 processo número 175022.6BEPRT para defender que o Requerente não tem direito a ser considerado residente não habitual quanto ao ano de 2022 e, consequentemente, manter-se o acto de liquidação impugnado, bem como a decisão de indeferimento da reclamação graciosa.
Ora, conforme foi decidido no aludido acórdão:
“(…) o acto de inscrição como residente não habitual é condição de aplicação do respectivo regime fiscal, sendo através desse acto que a A. Fiscal tem a possibilidade de verificar e controlar os pressupostos legais da atribuição desse estatuto. No entanto, não resultado normativo supra transcrito que a aplicação do regime fiscal - residente não habitual – dependa de acto de reconhecimento por parte da Fazenda Pública (cfr.artº.5, do E.B.Fiscais), pelo que, o acto de inscrição do sujeito passivo como residente não habitual tem natureza meramente declarativa, mais devendo a sua constituição reportar-se à data de verificação dos respectivos pressupostos (cfr.artº.12, do E.B.Fiscais; ac.S.T.A-2ª.Secção, 29/05/2024, rec.0843/23.9BESNT; Ricardo da Palma Borges e Pedro Ribeiro de Sousa, O novo regime fiscal dos residentes não habituais, in Estudos em Memória do Prof. Doutor J. L. Saldanha Sanches, Volume V, Coimbra Editora, 2011, pág.709 e seg.).”
Entendimento este na mesma linha da presente decisão arbitral e da jurisprudência supra citada no sentido de atribuir a natureza declarativa quanto ao pedido do RNH.
Contudo, entende este mesmo acórdão que:
“Nesta sede, a partir do momento em que estão reunidos os requisitos para a concessão do estatuto de residente não habitual previstos no artº.16, nº.8, do C.I.R.S., os quais, conforme aludido supra, são aferidos em função do ano de inscrição como residente (no caso 2020 - cfr.nºs.1, 2 e 4do probatório supra), a apresentação do pedido de inscrição como residente não habitual, fora do prazo previsto no nº.10, do preceito, tem como consequência que o regime só será aplicável para o futuro, ou seja, só é aplicável a partir do ano de inscrição como residente não habitual (cfr.artº.12,do C.Civil). Tal equivale a dizer que nada obsta à inscrição, em 2022, da ora autora/recorrida como residente não habitual, ainda que a sua inscrição como residente tenha sido feita em 2020 (cfr. ac.S.T. A-2ª.Secção, 29/05/2024, rec.0843/23.9BESNT).O acabado de relatar implica a parcial procedência do recurso, dado que não se pode manter a sentença recorrida que decidiu no sentido de se reconhecer o direito da autora/recorrida a ser inscrita, na base cadastral da A. Fiscal, como residente não habitual a partir do ano de 2020, inclusive. Mais condenando a entidade recorrente a proceder a tal inscrição a partir do mesmo ano. No entanto, tal somente pode ser reconhecido, assim se condenando a entidade recorrente a tal, a partir do ano fiscal de 2022.”
Conforme se vê, entendeu o STA nesta decisão que, apesar do pedido de reconhecimento do estatuto do RNH se tratar de uma obrigação acessória, o pedido para além do prazo limite previsto no n.º 16 do artigo 16.º do CIRS, em vigor à data dos factos, apenas poderia valer para o ano do respectivo pedido.
Razão pela qual a AT entende que quanto ao ano de 2022 o Requerente não poderia beneficiar do estatuto do RNH pelo facto do pedido ter sido apenas efectuado em 2023, já depois portanto do aludido prazo de 31 de Março.
Contudo, ainda assim, entende este Tribunal que face à factualidade dada como provada nos autos não deve ser aplicado este entendimento.
Vejamos porquê.
Recorde-se que o Requerente se inscreveu como residente fiscal em Portugal logo a partir de 10/01/2022, exercendo as funções de Senior Farm Manager.
E desde esse momento foi-lhe aplicado mensalmente uma retenção na fonte do seu vencimento bruto à taxa especial de 20%, correspondente à taxa especial para AEVA (Actividade de Elevado Valor Acrescentado), nos termos da Portaria nº 12/2010, de 07/01 e do nº 10 do art. 72º do CIRS[2], na redacção em vigor à data dos factos.
Ora, a Portaria n.º 230/2019 de 23 de Julho que procedeu à alteração à Portaria n.º 12/2010, de 7 de janeiro, aprovou uma nova tabela de atividades de elevado valor acrescentado para efeitos do disposto no n.º 10 do artigo 72.º e no n.º 5 do artigo 81.º do Código do IRS (ambos em vigor à data dos factos), de onde se inclui 13 - Diretores de produção e de serviços especializados, cuja actividade está densificada no códigos da Classificação Portuguesa de Profissões (CPP)[3]. Tendo o Requerente por seu turno, aquando da entrega da modelo 3 do IRS relativa ao ano de 2022 entregue o anexo L com indicação da AEVA 13.11.1 a que se refere a Diretor de produção na agricultura.
Por último, e não menos importante, quando o Requerente pretendeu efectuar o pedido do RNH, o sistema já não permitia selecionar o ano de 2022, mas apenas o de 2023. Como é consabido, a AT até à data-limite de 31 de Março permite a escolha do ano anterior e do próprio ano, e posteriormente àquela data, para efeitos do pedido RNH, o ano anterior deixa de estar disponível como opção. Factualidade esta alegada pelo Requerente não contestada pela AT. Portanto, dúvidas não restam de que o Requerente pretendia beneficiar ab initio do estatuto do RNH a partir do ano de 2022.
Em suma,
Resulta da matéria de facto provada que, no período compreendido entre 2017 e 2021, o Requerente residiu e exerceu a actividade profissional em Espanha.
O Requerente juntou documentos emitidos por entidades estrangeiras nomeadamente carta de condução espanhola, fatura de electricidade e certificado de residência espanhol (CREU), que atestam a residência do Requerente no estrangeiro nos anos em questão. Informação que é corroborada pelos recibos de vencimento e comprovativos de retenção na fonte juntos pelo Requerente.
Com efeito, dos documentos juntos aos autos resulta demonstrado que o Requerente não foi residente fiscal em Portugal nos cinco anos anteriores àquele em que se tornou residente em Portugal.
Resulta também dos factos provados que o Requerente se tornou residente fiscal em Portugal no ano de 2022, tendo nesse ano efectuado retenções na fonte como residente.
Com efeito, encontram-se preenchidos os dois pressupostos previstos no artigo 16.º, n.º 8 do CIRS de que depende o enquadramento no regime do residente não habitual.
Não tendo, como acima se referiu, o pedido de inscrição como residente não habitual, natureza constitutiva do direito a ser tributado enquanto tal e, cumprindo o Requerente os requisitos materiais de que depende a aplicação daquele regime, sempre deveria o Requerente ser tributado de acordo com aquele regime.
Em consequência, pelo facto de não ter sido aplicado o regime dos residentes não habituais, o acto de liquidação em causa é ilegal por erro nos pressupostos de direito, o que implica a sua anulação nos termos do n.º 1 do artigo 163.º do Código do Procedimento Administrativo.
- Restituição da quantia indevidamente paga e juros indemnizatórios
O Requerente formula pedido de restituição da quantia arrecadada pela AT, bem como o pagamento de juros indemnizatórios.
Nos termos do n.º 5 do artigo 24.º do RJAT, é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário.
Nos termos do n.º 1 do artigo 43.º da Lei Geral Tributária (LGT), são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.
No caso sub judice, dada a anulação da liquidação de IRS impugnada, há que reconhecer o direito ao reembolso do montante pago em excesso, por força dos citados arts. 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e 100.º da LGT, de modo a restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da anulação ora decretada não tivesse sido praticado.
Quanto aos juros indemnizatórios, dado que a Requerida efetuou a liquidação impugnada por sua iniciativa com a ilegalidade verificada, é-lhe imputável tal situação, pelo que, nos termos do n.º 1 do art. 43.º da LGT, cabe reconhecer à Requerente o direito a juros indemnizatórios, contados desde a data do pagamento da liquidação relativa ao ano de 2022 até integral reembolso da quantia paga, à taxa legal supletiva, nos termos dos artigos 43.º, n.º 4 e 35.º, n.º 10, da LGT.
Ficam, assim, as custas decorrentes do presente processo arbitral a cargo da AT (Requerida), nos termos do artigo 536.º, n.º 3, e 527.º do CPC (aplicáveis ex vi o artigo 29.º, n.º 1, al. e), do RJAT).
5. Decisão
Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:
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julgar procedente, nos termos expostos, o pedido objecto da presente pronúncia arbitral e, em consequência, anular a liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares n.º 2023... (relativa ao ano de 2022), com as legais consequências;
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condenar a Requerida na restituição do montante indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios à taxa legal, desde a data dos respectivos pagamentos até integral reembolso;
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condenar a Requerida nas custas processuais.
6. Valor do processo
Fixa-se ao processo o valor de € 9.846,59, indicado pelo Requerente, respeitante ao montante da liquidação do IRS de 2022 (valor da utilidade económica do pedido), e não impugnado pela Requerida, de harmonia com o disposto nos artigos 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”), 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT e 306.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, este último ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.
7. Custas arbitrais
Nos termos do disposto na Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o valor das custas do Processo Arbitral em € 918, a cargo da Requerida, de acordo com o artigo 22.º, n.º 4, e 13.º, n.º 1, ambos do RJAT.
Notifique-se.
Lisboa, 11 de Março de 2025
O Árbitro,
(João Santos Pinto)
[1] Actividades de Elevado valor Acrescentado.
[2][2] Os rendimentos líquidos das categorias A e B auferidos em atividades de elevado valor acrescentado, com carácter científico, artístico ou técnico, a definir em portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças, por residentes não habituais em território português, são tributados à taxa de 20 %.
[3] anexa à Deliberação n.º 967/2010 correspondente à 14.ª Deliberação da Secção Permanente de Coordenação Estatística do Conselho Superior de Estatística (CSE) de 5 de maio de 2010, publicada no Diário da República, 2.ª série, n.º 106, de 1 de junho de 2010.