Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 793/2024-T
Data da decisão: 2025-03-10  ISV  
Valor do pedido: € 528.600,47
Tema: ISV – Artigo 5.º do CISV – Facto gerador de imposto – Veículos de coleção
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SUMÁRIO:

I - O artigo 5.º, n.º 1, do CISV, determina que constitui facto gerador de imposto o fabrico, montagem admissão ou importação dos veículos tributáveis em território nacional, que estejam obrigados à matrícula nacional.

II - Por sua vez, a alínea d) do n.º 2 do artigo 5.º do CISV dispõe que, para além dos factos descritos no n.º 1, constitui ainda facto gerador de imposto a permanência do veículo no território nacional em violação das obrigações previstas no código.

III – O facto gerador de imposto verifica-se quando ocorre uma das circunstâncias descritas na lei que origina a liquidação e cobrança do imposto, neste caso, do ISV.

IV – No caso em apreço, verifica-se que o Requerente, importou e admitiu veículos em território nacional, tendo optado por mantê-los armazenados numa garagem, sem o cumprimento de quaisquer formalidades, aduaneiras e fiscais. Assim, e contrariamente ao que alega e ficou provado não é pelo facto de os manter armazenados e fora de circulação (na medida em que fazem parte da coleção particular do Requerente, sendo que nessa medida, nunca se destinaram a circular na via pública, mas sim a permanecer em domínio exclusivamente privado) que está dispensado do cumprimento das formalidades a que estava legalmente obrigado.

 

 

 

 

ACÓRDÃO ARBITRAL

Os árbitros Guilherme W. d'Oliveira Martins (Presidente), António de Barros Lima Guerreiro e Marcolino Pisão Pedreiro (vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o presente Tribunal Arbitral, acordam no seguinte:

 

1RELATÓRIO

 

  1. A..., NIF..., Impugnante no âmbito do processo de impugnação judicial iniciado em 22/11/2017, que correu termos que corre termos na Unidade Orgânica 1 do Tribunal Tributário de Lisboa sob o n°. de processo 2268/17.4BELRS, tendo por objeto as liquidações oficiosas de ISV com os n°s. ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., todas de 18/09/2017, todas no valor total de € 528.600,47 (quinhentos e vinte e oito mil e seiscentos euros e quarenta e sete cêntimos), que lhe foram notificadas através do ofício n°. ISV-...datado de 2017- 09-20, tendo desistido da instância com vista à apresentação de pedido de constituição de tribunal arbitral e a consequente remessa daquele processo para este tribunal arbitral, nos termos e para os efeitos previstos no artigo no artigo 268° da Lei n. ° 82/2023 de 29 de dezembro vem pelo presente formular pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo da alínea a) do n°. 1 do artigo 2° do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (RJAT), para efeitos de impugnação daquelas liquidações.

 

2. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD, em 25.06.2024, e automaticamente notificado à Requerida.

 

3. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do art. 6.º e da alínea b) do n.º 1 do art. 11.º do RJAT, o Senhor ++Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os três árbitros do tribunal arbitral coletivo, no dia 09.08.2024.

 

4. As partes foram devidamente notificadas dessa nomeação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do art. 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT, e dos art.s 6.º e 7.º do Código Deontológico e, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do art. 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral ficou constituído em 28.08.2024.

 

5.A AT, tendo para o efeito sido devidamente notificada, ao abrigo do disposto no artigo 17.º do RJAT, apresentou a sua resposta, em 02.10.2024, onde, por exceção e impugnação, sustentou a improcedência, respetivamente, da instância e do pedido, por não provado, e a absolvição da Requerida.

 

6. Foi realizada audiência de inquirição de testemunhas no dia 24.01.2025, tendo na sequência as partes apresentado alegações. 

 

1.1Dos factos alegados pela Requerente

 

7. Vem o Impugnante notificado do ofício n°. ISV-... remetido pela Alfândega Jardim do Tabaco, datado de 2017-09-20, com o assunto "NOTIFICAÇÃO PARA PAGAMENTO" (cuja cópia se junta como doc. n°. 1), contendo informação sobre as seguintes liquidações oficiosas de ISV feitas por aquela alfândega, no valor total de € 528.600,47 (quinhentos e vinte e oito mil e seiscentos euros e quarenta e sete cêntimos):

- ... de 18/09/2017, relativa à motorizada de marca Benelli, com o quadro n°...., no montante de € 155,00;

- ... de 18/09/2017, relativa à motorizada de marca Benelli, com o quadro n°...., no montante de € 155,00;

- ... de 18/09/2017, relativa à motorizada de marca Benelli, com o quadro n°...., no montante de € 206,00;

- ... de 18/09/2017, relativa à motorizada de marca Kawasaki, com o quadro n°...., no montante de € 206,00;

- ... de 18/09/2017, relativa à motorizada de marca Kawasaki, com o quadro n°...., no montante de € 206,00;

- ... de 18/09/2017, relativa à motorizada de marca Kawasaki, com o quadro n°...., no montante de € 206,00;

- ... de 18/09/2017, relativa à motorizada de marca Kawasaki, com o quadro n°..., no montante de € 206,00;

- ... de 18/09/2017, relativa à motorizada de marca Honda, com o quadro n°...., no montante de € 206,00;

- ... de 18/09/2017, relativa à motorizada de marca Honda, com o quadro n°. ..., no montante de € 206,00;

—... de 18/09/2017, relativa ao veiculo de marca Porsche, com o quadro n°...., no montante de € 20.237,42;

—... de 18/09/2017, relativa ao veiculo de marca Porsche, com o quadro n°...., no montante de € 9.806,81;

- ... de 18/09/2017, relativa ao veiculo de marca Porsche, com o quadro n°...., no montante de € 18.208,46;

- ... de 18/09/2017, relativa ao veiculo de marca Porsche, com o quadro n°...., no montante de € 15.761,79;

- ... de 18/09/2017, relativa ao veiculo de marca Porsche, com o quadro n°...., no montante de € 19.637,26;

— ... de 18/09/2017, relativa ao veiculo de marca Porsche, com o quadro n°..., no montante de € 25.800,91;

- ... de 18/09/2017, relativa ao veiculo de marca Porsche, com o quadro n°...., no montante de € 19.646,66;

- ... de 18/09/2017, relativa ao veiculo de marca Porsche, com o quadro n°...., no montante de € 19.646,66;

- ... de 18/09/2017, relativa ao veiculo de marca Porsche, com o quadro n°...., no montante de € 15.752,39;

- ... de 18/09/2017, relativa ao veiculo de marca Porsche, com o quadro n°..., no montante de € 21.061,36;

- ... de 18/09/2017, relativa ao veiculo de marca Porsche, com o quadro n°..., no montante de € 19.646,66;

- ... de 18/09/2017, relativa ao veiculo de marca Porsche, com o quadro n°...., no montante de € 21.061,36;

- ... de 18/09/2017, relativa ao veiculo de marca Porsche, com o quadro n°...., no montante de € 20.237,43;

- ... de 18/09/2017, relativa ao veiculo de marca Porsche, com o quadro n°...., no montante de € 19.651,36;

- ... de 18/09/2017, relativa ao veiculo de marca Mercedes, com o quadro n°. ..., no montante de € 26.815,39;

- ... de 18/09/2017, relativa ao veiculo de marca Mercedes, com o quadro n°...., no montante de € 26.815,39;

- ...  de 18/09/2017, relativa ao veiculo de marca Mercedes, com o quadro n°...., no montante de € 26.815,39;

- ... de 18/09/2017, relativa ao veiculo de marca Mercedes, com o quadro n°...., no montante de € 26.801,29;

- ... de 18/09/2017, relativa ao veiculo de marca Ford, com o quadro n°...., no montante de € 44.780,43;

-... de 18/09/2017, relativa ao veiculo de marca Ford, com o quadro n°..., no montante de € 30.539,22 (este veículo é na realidade da marca Honda Acura);

- ...de 18/09/2017, relativa ao veiculo de marca Ferrari, com o quadro n°...., no montante de € 15.704,76;

- ... de 18/09/2017, relativa ao veiculo de marca Lancia, com o quadro n°...., no montante de € 6.626,84;

- ... de 18/09/2017, relativa ao veiculo de marca Porsche, com o quadro n°...., no montante de € 10.493,76;

- ... de 18/09/2017, relativa ao veiculo de marca Porsche, com o quadro n°...., no montante de € 9.430,40;

- ... de 18/09/2017, relativa ao veiculo de marca Porsche, com o quadro n°...., no montante de € 9.825,89;

- ... de 18/09/2017, relativa ao veiculo de marca Porsche, com o quadro n°...., no montante de € 9.430,40;

- ... de 18/09/2017, relativa ao veiculo de marca Porsche, com o quadro n°...., no montante de € 16.612,78.

 

8. As liquidações em causa contra a qual o Impugnante formula o presente pedido de tutela de legalidade enfermam de invalidade devido a flagrantes violações de lei, devendo por conseguinte ser declaradas nulas ou anuladas com todas as consequências legais daí advenientes.

 

9. Conforme consta do teor da notificação das liquidações impugnadas, as mesmas foram efetuadas pelo Senhor Diretor da Alfandega Jardim do Tabaco na sequência do despacho da Senhora Diretora da Alfandega Marítima de Lisboa, Dra. ..., de 06/01/2016, "uma vez, que o Sistema de Fiscalidade Automóvel, que permite a liquidação do imposto sobre Veículos, não se encontra instalado naquela alfândega” (cfr. doc. n°. 1).

 

10. As liquidações impugnadas foram emitidas na sequência de ação de natureza fiscalizadora na sequência da qual foram os veículos acima identificados apreendidos, sem qualquer contemplação pelo alegado múltiplas vezes pelo Impugnante, no sentido de se tratarem de veículos não destinados a matrícula nos termos do artigo 24° n°. 1 do código do ISV, em virtude de se destinarem a "circulação ou permanência em domínio exclusivamente privado, colecionismo" (artigo 24° n°. 1 do código do ISV).

 

11. É contra essas liquidações de Imposto Sobre Veículos (ISV), acima identificadas individualmente e constantes do ofício aqui junto como doc. n°. 1 que o Impugnante deduz a presente impugnação.

 

 

1.2Argumentos das partes

12. O Requerente sustenta a ilegalidade das liquidações acima mencionadas com os argumentos de facto e de direito que a seguir se sintetizam:

  1. O Requerente reside na Suíça e é um ávido colecionador de automóveis antigos,
  2. dispondo atualmente de uma coleção, hoje praticamente toda localizada no seu país de residência, que chega à centena de veículos antigos.
  3. O seu contacto com o nosso país prende-se com a circunstância de o Impugnante aqui dispor de uma propriedade agrícola que frequentemente visita, e pelos círculos sociais que frequenta, entre os quais conta-se a comunidade de automóveis clássicos, onde é por todos reconhecido como um importante colecionador de clássicos da história automóvel (doc. n°. 3).
  4. O Impugnante, ao longo dos muitos anos que coleciona e até aos dias de hoje, é frequentemente contactado por diversas entidades no sentido de disponibilizar algumas unidades da sua coleção, sendo contribuidor habitual para exposições tanto no nosso país como no estrangeiro, destacando-se o Museu ... .
  5. Unidades que disponibiliza com todo o gosto e com o amor que tem pelas peças que coleciona, todas elas monumentos à engenharia e peças históricas representativas da cultura e da indústria ocidental do séc. XX.
  6. Os veículos sobre os quais incidiram as liquidações aqui impugnadas fazem parte da sua coleção particular, possuindo maior valor sentimental do que patrimonial.
  7. Nessa medida, nunca se destinaram a circular na via pública, mas sim a permanecer em domínio exclusivamente privado.
  8. Pelo que não se destinam - nunca se destinaram - a ser matriculados.
  9. Como veremos, este caso é de tal modo caricato que, durante todo o tempo em que os veículos em causa estiveram no território da UE, (i) até hoje não circularam na via publica a não ser transportados através de outros meios de transporte (...), e (ii) quando não estiveram a ser transportados permaneceram sempre em domínio exclusivamente privado.
  10. Nessa qualidade, no ano de 2014, o Impugnante decidiu proceder ao armazenamento de alguns veículos automóveis (os acima identificados), numa garagem em Portugal.
  11. E fê-lo porque os custos de armazenamento são substancialmente mais baixos do que aqueles que teria de suportar na Suíça.
  12. É que não só o custo do arrendamento de um espaço privado para a sua armazenagem é manifestamente mais baixo do que na Suíça, como a exigência de os espaços a utilizar para o efeito naquele país serem necessariamente climatizados (dadas as temperaturas abaixo de zero durante a maior parte do ano), ainda mais encarece aqueles custos.
  13. A decisão em manter aqueles veículos em espaço exclusivamente privado em Portugal prende-se única e exclusivamente com a intenção de os armazenar e reparar a custos reduzidos.
  14. As liquidações impugnadas foram emitidas na sequência de ação de natureza fiscalizadora na sequência da qual foram os veículos acima identificados apreendidos, sem qualquer contemplação pelo alegado múltiplas vezes pelo Impugnante, no sentido de se tratarem de veículos não destinados a matrícula nos termos do artigo 24° n°. 1 do código do ISV, em virtude de se destinarem a "circulação ou permanência em domínio exclusivamente privado, colecionismo" (artigo 24° n°. 1 do código do ISV).
  15. No que se seguiu a esse facto, o Impugnante nunca foi destinatário de um procedimento justo, já que a sua participação procedimental nunca foi objeto de apreciação adequada, e em muitos casos, não tendo sido sequer apreciadas as suas razões e documentos, sendo sempre tratado em petição de princípio.
  16. Como por diversas vezes se manifestou à Alfândega Marítima de Lisboa, o que o Requerente pretendeu e pretende é apenas e só pagar as coimas que são eventualmente devidas pela ausência de cumprimento de quaisquer formalidades aduaneiras de transito temporário e proceder à transferência dos mesmos veículos de volta para a Suíça, onde reside, onde estes veículos são matriculados, situação que pretende manter.
  17. Os veículos em causa: (1) nunca tiveram matrícula portuguesa, (2) nunca se fizeram circular pelas estradas portuguesas, (3) têm matrícula do país de residência do Requerente e (4) este sempre pretendeu transferir para o seu país de origem.
  18. Não existe qualquer motivo para que o Requerente se veja obrigado a pagar o tributo habitualmente imposto a todos aqueles que pretendem admitir automóveis à circulação em território nacional, e menos ainda, a com eles circular e promover a sua introdução definitiva no espaço aduaneiro da União.
  19. Seja como for, a liquidação efetuada - que é um ato de natureza administrativa e por conseguinte dotado de autotutela declarativa, sendo por isso imediatamente vinculativo aos particulares afetados a quem se dirige — deve ser obedecida como foi, pelo Requerente, sem prejuízo da sua anulação, oportunamente peticionada e pelo meio próprio.
  20. O Requerente nunca pretendeu fazer os veículos em causa circular nas estradas portuguesas e por isso nunca requereu nem quis em qualquer momento requerer matrícula portuguesa, não podendo aquela liquidação ser entendida como qualquer introdução forçada daquelas mercadorias no território aduaneiro da União, sob pena de comprimir de forma intolerável o direito a uma tutela efetiva da legalidade dos atos da administração (artigo 268° n°s. 4 e 5 da CRP).
  21. Descreve ainda o processo que correu na alfândega, identificando como um “longo calvário” e assinala a “inaceitável diferença de tratamento do impugnante em idêntica situação por diferentes serviços periféricos regionais, como reveladora da ilegalidade das liquidações impugnadas.
  22. O Impugnante, sendo colecionador de veículos históricos, não tem qualquer intenção de circular com os mesmos na via pública.
  23. Como é sabido, o colecionismo constitui uma prática que consiste em reunir, guardar, organizar, selecionar, conservar e expor diversos itens por categoria, em função de seus interesses pessoais.
  24. O interesse social de diferentes tipos de coleção prende-se com o valor cultural dos objetos colecionados, que no caso dos automóveis é significativo, sobretudo para temas como a antropologia, a sociologia, a história do século XX em particular a história industrial, da mecânica e do design.
  25. A prática do colecionismo é incompatível com uma utilização normal dos bens objeto da coleção, suscetível de expor os bens colecionados ao desgaste a que a estes habitualmente sujeita uma utilização diária ou habitual.
  26. Ao invés, o principal interesse do Impugnante enquanto colecionador é a de que os bens que compõem a coleção resistam tanto quanto possível à passagem do tempo, de maneira a que, com o aumento da distância temporal e com o consequente aumento da objetividade com que podem ser analisados, permitam que essas peças sejam apreciadas pelo seu verdadeiro valor cultural, histórico ou científico.
  27. Os veículos objeto da presente liquidação não foram adquiridos para revenda, introdução em consumo, livre prática ou livre circulação.
  28. O Impugnante não se dedica nem habitual, nem ocasionalmente, à compra para revenda dos veículos integrados na sua atividade de colecionador.
  29. Aliás, nos últimos dez anos o Impugnante não vendeu nem trocou qualquer um dos veículos integrantes da sua coleção.
  30. Compra para guardar e enriquecer a sua coleção de automóveis históricos e não tem em vista vir a alienar os veículos atrás identificados.
  31. O que pretende isso sim, é conservá-los o melhor possível de modo a potenciar tanto quanto a sua longevidade enquanto não se encontra um local onde os mesmos possam ser expostos em benefício exclusivo da cultura e daqueles que, como o Impugnante, se interessam por estes objetos de arte e engenharia.
  32. Daí que tenha promovido a sua transferência temporária para Portugal, com a única e exclusiva finalidade de aqui serem armazenados e reparados.
  33. A maior parte deles não está sequer em condições de funcionar, nunca circularam na via publica em Portugal a não ser transportados através de outros meios de transporte, permanecendo sempre que não estivessem a ser transportados, em domínio exclusivamente privado.
  34. A Administração Tributária e Aduaneira não cumpriu o disposto no n°. 1 do artigo 22° do código do Imposto Sobre Veículos (ISV), que obriga a notificar o proprietário dos veículos relativamente aos quais se verifique uma irregularidade aí prevista, para que proceda à sua regularização.

 

13. A AT defende a manutenção do ato impugnado com base nos fundamentos sinteticamente elencados:

 

  1. O Requerente vem peticionar a nulidade ou anulação de 36 atos de liquidação de Imposto Sobre Veículos (ISV), conforme listagem constante do art.º 1.º/ponto 1 do Pedido de Pronúncia Arbitral (PPA), efetuados em 18-09-2017 pela Alfândega do Jardim do Tabaco, decorrentes da regularização da situação fiscal e aduaneira de veículos importados, que entraram em território nacional provenientes de país terceiro.
  2. Requerendo, a final, a restituição dos montantes pagos ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 9.º da LGT, acrescidos dos juros indemnizatórios correspondentes, nos termos do artigo 43.º da LGT.

 

POR EXCEÇÃO – DA INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA DO TRIBUNAL ARBITRAL PARA DECIDIR SOBRE PRETENSÕES RELATIVAS A DIREITOS ADUANEIROS E DEMAIS IMPOSTOS INDIRETOS QUE INCIDAM SOBRE MERCADORIAS SUJEITAS A DIREITOS DE IMPORTAÇÃO

 

  1. A arbitragem tributária reveste-se de especificidades próprias.
  2. O respeito pelo Princípio da indisponibilidade, aplicável à AT, conduziu a que o legislador - cfr. artigo 4.º do RJAT - tivesse sido exigente ao ponto de determinar que a comum convenção de arbitragem sofresse aqui adaptações e, assim, que a AT se vinculasse à via da arbitragem, previamente, por Portaria.
  3. De onde decorre que a competência do Tribunal Arbitral se afere pelo disposto a este respeito no RJAT em conjugação com o disposto na Portaria de vinculação - Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.
  4. Portaria através da qual uma das partes, a AT, veio previamente vincular-se à jurisdição dos Tribunais Arbitrais a funcionar sob a égide do CAAD, decidindo, assim, submeter-se, nos termos e condições que aí definiu.
  5. Ora, se por um lado no RJAT a competência dos Tribunais Arbitrais é estabelecida nos termos do seu artigo 2.º, n.º 1, por outro, nos termos do artigo 2.º da referida Portaria, a AT exclui daquela delimitação de competência a apreciação das pretensões relativas a determinadas situações, a que não aceitou vincular-se.
  6. Efetivamente o artigo 2.º do RJAT prevê a competência dos tribunais arbitrais, por referência às pretensões que se pretendem ver apreciadas, contemplando, no seu n.º 1, alínea a), "a declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos ( .. .)", pretensão esta que corresponde à que é deduzida no presente pedido de tribunal arbitral.
  7. No entanto, o n.º 1 do artigo 4.º do mesmo regime ressalva que "a vinculação da administração tributária à Jurisdição dos tribunais constituídos nos termos da presente lei depende da portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça, que estabelece designadamente, o tipo e o valor máximo dos litígios abrangidos·.
  8. A  Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, aprovada ao abrigo do artigo  4.º ,  n.º 1, do RJAT, veio regular a vinculação da Administração Tributária à jurisdição dos tribunais arbitrais instituídos por aquele Regime,  prevê no seu artigo 2.º sob      a epígrafe " objecto  da vinculação":

“Artigo 2.º

Objecto da vinculação

Os serviços e organismos referidos no artigo anterior vinculam-se à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD que tenham por objecto a apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida referidas no n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de  Janeiro,  com excepção das seguintes:

(...)

c) Pretensões relativas a direitos aduaneiros sobre a importação e demais impostos indirectos que incidam sobre mercadorias sujeitas a direitos de importação;

(...)”.

  1. Uma vez que, no presente caso, está em causa uma pretensão relativa a ISV na importação, que é um imposto indireto que incide sobre mercadorias sujeitas a direitos de importação decorrente da sua entrada no território da União, no caso Portugal (cfr. artigo 5.º, n.º 1, n.º 2, alínea d) e n.º 3, alínea b), do CISV), a matéria está indiscutivelmente excluída da vinculação da AT à jurisdição dos tribunais arbitrais, nos termos dos referidos artigos 4.º, n.º 1, do RJAT e 2.º, alínea c) da Portaria n.º 112-A/2011.
  2. Não se inclui, pois, na auto-vinculação da AT à jurisdição dos Tribunais Arbitrais – apreciações por estes, de pretensões relativas a direitos aduaneiros sobre a importação e demais impostos indiretos que incidam sobre mercadorias sujeitas a direitos de importação, como é o caso.
  3. Sendo que, no caso vertente, a pretensão do Requerente respeita a impostos indiretos, no caso a ISV, que incidiu sobre mercadorias sujeitas a direitos de importação, concretamente veículos que foram importados para o território da União Europeia.

 

POR IMPUGNAÇÃO

 

  1. Dos elementos constantes do Processo Administrativo (PA), que se junta, constituído pelos procedimentos da Alfândega Marítima de Lisboa e da Alfândega do Jardim do Tabaco retiram-se os factos que se descrevem.
  2. A Alfândega Marítima de Lisboa (AML) efetuou uma ANF (Ação de Natureza Fiscalizadora – n.º OI2015...), no âmbito da qual foram detetados, nas instalações de uma garagem (Restauradora Lusa, Unipessoal Lda., situada em Alcabideche) 52 veículos em situação aduaneira e fiscal irregular.
  3. Não obstante terem sido detetados 52 veículos em situação irregular, o PPA respeita apenas a liquidações relativas a 36 veículos originários de países terceiros.
  4. Na identificada ANF da AML, com referência a 40 veículos veio a constatar-se que estes se encontravam em situação aduaneira/fiscal   irregular:
  • em violação do disposto no art.º 202.º e nos art.º s 38.º a 41.º e segundo travessão do art.º 177.º do CAC (Código Aduaneiro Comunitário) relativamente aos veículos originários de países terceiros; e
  • em violação do disposto na alínea d) do n.º 1 do art.º 5.º do CISV (Código do Imposto sobre Veículos).
  1. Todos os veículos foram importados (provenientes de país terceiro) ou admitidos (aquisição intracomunitária) no território nacional sem o cumprimento das obrigações declarativas, dentro dos prazos prescritos no Código Aduaneiro Comunitário e Disposições de Aplicação do CAC (CAC e DACAC), e do CISV (cf. artigos 24.º e 25.º).
  2. Os veículos não foram apresentados à alfândega/estância aduaneira competente para efeitos aduaneiros e fiscais, não tendo sido cumpridas quaisquer formalidades ou comunicação às autoridades aduaneiras, seja para efeitos da sua importação, seja para efeitos da sua introdução no consumo, e, tendo sido ultrapassados os prazos legalmente previstos para o efeito, a AML considerou ter havido introdução irregular no consumo.
  3. Sendo que, quanto ao ISV, a importação e a permanência irregular dos veículos no território nacional constituem facto gerador de imposto, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 5.º alínea d) e n.º 2 do mesmo artigo, sendo exigível nos termos do n.º 2 do artigo 6.º, ambos do CISV.
  4. Em conformidade com o constatado quanto à situação (irregular) dos veículos, a AML remeteu o processo à Alfândega do Jardim do Tabaco (competente em matéria de ISV) para efeitos de liquidação e cobrança do ISV devido.
  5. Nos presentes autos arbitrais vêm impugnadas 36 liquidações oficiosas do ISV – n.ºs ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ... e ... - no valor total de 528.600,47 € (conforme Registos de Liquidação identificados no PA), efetuadas pela Alfândega do Jardim do Tabaco, que foram notificadas ao então importador através do ofício n.º ISV-..., datado de 20-09-2017.
  6. Em 24-06-2024, na sequência da desistência apresentada no processo de impugnação judicial n.º 2268/17.4BELRS do TTL, o Requerente apresentou junto da Instância Arbitral o presente pedido de constituição de tribunal arbitral, peticionando a anulação das liquidações de ISV e a restituição do montante de 528.600,47 €. 

 

 

1.3. Saneamento  

 

14. O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, nos termos n.º 1 do artigo 10.º do RJAT e as partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade processual e mostram-se devidamente representadas.

 

15. O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído (artigos 5.º, n.º 2, 6.º, n.º 1, e 11.º do RJAT), e é materialmente competente (artigos 2.º, n.º 1, alínea a) do RJAT), de acordo com os fundamentos infra. 

 

16. O processo não padece de nulidades podendo prosseguir-se para a decisão sobre o mérito da causa.

 

2FUNDAMENTAÇÃO

2.1Factos dados como provados

  1. Vem o Impugnante notificado do ofício n°. ISV-... remetido pela Alfândega Jardim do Tabaco, datado de 2017-09-20, com o assunto "NOTIFICAÇÃO PARA PAGAMENTO" (cuja cópia se junta como doc. n°. 1), contendo informação sobre as seguintes liquidações oficiosas de ISV feitas por aquela alfândega, no valor total de € 528.600,47 (quinhentos e vinte e oito mil e seiscentos euros e quarenta e sete cêntimos):

- ... de 18/09/2017, relativa à motorizada de marca Benelli, com o quadro n°...., no montante de € 155,00;

- ... de 18/09/2017, relativa à motorizada de marca Benelli, com o quadro n°...., no montante de € 155,00;

- ... de 18/09/2017, relativa à motorizada de marca Benelli, com o quadro n°...., no montante de € 206,00;

- ... de 18/09/2017, relativa à motorizada de marca Kawasaki, com o quadro n°...., no montante de € 206,00;

- ... de 18/09/2017, relativa à motorizada de marca Kawasaki, com o quadro n°...., no montante de € 206,00;

- ... de 18/09/2017, relativa à motorizada de marca Kawasaki, com o quadro n°..., no montante de € 206,00;

- ... de 18/09/2017, relativa à motorizada de marca Kawasaki, com o quadro n°...., no montante de € 206,00;

- ... de 18/09/2017, relativa à motorizada de marca Honda, com o quadro n°..., no montante de € 206,00;

- ... de 18/09/2017, relativa à motorizada de marca Honda, com o quadro n°..., no montante de € 206,00;

— ... de 18/09/2017, relativa ao veiculo de marca Porsche, com o quadro n°. ..., no montante de € 20.237,42;

— ... de 18/09/2017, relativa ao veiculo de marca Porsche, com o quadro n°..., no montante de € 9.806,81;

- ... de 18/09/2017, relativa ao veiculo de marca Porsche, com o quadro n°..., no montante de € 18.208,46;

- ... de 18/09/2017, relativa ao veiculo de marca Porsche, com o quadro n°. ..., no montante de € 15.761,79;

- ... de 18/09/2017, relativa ao veiculo de marca Porsche, com o quadro n°. ..., no montante de € 19.637,26;

— ... de 18/09/2017, relativa ao veiculo de marca Porsche, com o quadro n°..., no montante de € 25.800,91;

- ... de 18/09/2017, relativa ao veiculo de marca Porsche, com o quadro n°..., no montante de € 19.646,66;

- ... de 18/09/2017, relativa ao veiculo de marca Porsche, com o quadro n°..., no montante de € 19.646,66;

- ... de 18/09/2017, relativa ao veiculo de marca Porsche, com o quadro n°. ..., no montante de € 15.752,39;

- ... de 18/09/2017, relativa ao veiculo de marca Porsche, com o quadro n°...., no montante de € 21.061,36;

- ... de 18/09/2017, relativa ao veiculo de marca Porsche, com o quadro n°...., no montante de € 19.646,66;

- ... de 18/09/2017, relativa ao veiculo de marca Porsche, com o quadro n°. ..., no montante de € 21.061,36;

- ... de 18/09/2017, relativa ao veiculo de marca Porsche, com o quadro n°...., no montante de € 20.237,43;

- ... de 18/09/2017, relativa ao veiculo de marca Porsche, com o quadro n°. ..., no montante de € 19.651,36;

- ... de 18/09/2017, relativa ao veiculo de marca Mercedes, com o quadro n°...., no montante de € 26.815,39;

- ... de 18/09/2017, relativa ao veiculo de marca Mercedes, com o quadro n°. ..., no montante de € 26.815,39;

- ... de 18/09/2017, relativa ao veiculo de marca Mercedes, com o quadro n°. ..., no montante de € 26.815,39;

- ... de 18/09/2017, relativa ao veiculo de marca Mercedes, com o quadro n°..., no montante de € 26.801,29;

- ... de 18/09/2017, relativa ao veiculo de marca Ford, com o quadro n°..., no montante de € 44.780,43;

- ... de 18/09/2017, relativa ao veiculo de marca Ford, com o quadro n°..., no montante de € 30.539,22 (este veículo é na realidade da marca Honda Acura);

- ... de 18/09/2017, relativa ao veiculo de marca Ferrari, com o quadro n°. ..., no montante de € 15.704,76;

-... de 18/09/2017, relativa ao veiculo de marca Lancia, com o quadro n°...., no montante de € 6.626,84;

- ... de 18/09/2017, relativa ao veiculo de marca Porsche, com o quadro n°...., no montante de € 10.493,76;

- ... de 18/09/2017, relativa ao veiculo de marca Porsche, com o quadro n°..., no montante de € 9.430,40;

- ... de 18/09/2017, relativa ao veiculo de marca Porsche, com o quadro n°..., no montante de € 9.825,89;

- ... de 18/09/2017, relativa ao veiculo de marca Porsche, com o quadro n°..., no montante de € 9.430,40;

- ... de 18/09/2017, relativa ao veiculo de marca Porsche, com o quadro n°..., no montante de € 16.612,78.

  1. Conforme consta do teor da notificação das liquidações impugnadas, as mesmas foram efetuadas pelo Senhor Diretor da Alfandega Jardim do Tabaco na sequência do despacho da Senhora Diretora da Alfandega Marítima de Lisboa, Dra. ..., de 06/01/2016, "uma vez, que o Sistema de Fiscalidade Automóvel, que permite a liquidação do imposto sobre Veículos, não se encontra instalado naquela alfândega” (cfr. doc. n°. 1).
  2. As liquidações impugnadas foram emitidas na sequência de ação de natureza fiscalizadora na sequência da qual foram os veículos acima identificados apreendidos, sem qualquer contemplação pelo alegado múltiplas vezes pelo Impugnante, no sentido de se tratar de veículos não destinados a matrícula nos termos do artigo 24° n°. 1 do código do ISV, em virtude de se destinarem a "circulação ou permanência em domínio exclusivamente privado, colecionismo" (artigo 24° n°. 1 do código do ISV);
  1. Da prova testemunhal realizada, resulta provado que os veículos adquiridos não se destinam a circular, mas para fazem parte da sua coleção particular, possuindo maior valor sentimental do que patrimonial, sendo que nessa medida, nunca se destinaram a circular na via pública, mas sim a permanecer em domínio exclusivamente privado.

 

2.2Factos não provados

 

18. Com relevo para a decisão do caso em juízo, não existem factos dados como não provados.

 

2.3Motivação

 

19. Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da matéria não provada (cf. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

 

20. Os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis das questões objeto do litígio (v. 596.º, n.º 1, do CPC, ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

 

2.4 Sobre a exceção de incompetência

 

21. Em face do que antecede, como síntese da formulação da AT, mostra-se necessário que o Tribunal Arbitral aprecie os termos em que vem formulado o pedido de pronúncia arbitral, para determinar qual é, em termos substantivos, o objeto que neste se enuncia como decidendum.

22. Com efeito, de acordo com a explanação da causa de pedir e do pedido que consta do ppa. a Requerente impugna a legalidade da liquidação de ISV feita pela AT, a qual, de acordo com a alínea d) do nº 2 do art. 5º do CISV, se fundamentou, não em qualquer ato de importação mas na permanência dos veículos em território nacional sem cumprimento das obrigações previstas no CISV, facto temporalmente subsequente a   possível importação e por si só autonomamente gerador do imposto .

23. Isso quer significar que todos os atos que precedem a liquidação de ISV nada têm que ver com o presente processo, a saber – se está em causa uma pretensão relativa a ISV na importação, que é um imposto indireto que incide sobre mercadorias sujeitas a direitos de importação decorrente da sua entrada no território da União, no caso Portugal (cfr. artigo 5.º, n.º 1, n.º 2, alínea d) e n.º 3, alínea b), do CISV). Ora, manifestamente não é o que a Requerente peticiona.

24. Ora, o Tribunal Arbitral restringe a apreciação à verificação da legalidade/ ilegalidade da liquidação de imposto – alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT –, cabendo subsequentemente à AT dar cumprimento ao disposto no n.º 1 do artigo 24.º do mesmo diploma, caso se venha a julgar no sentido de julgar procedente a tese da ilegalidade. Não cabe, seguramente, ao Tribunal Arbitral pronunciar-se para lá disso, incluindo sobre direitos d importação. Esta posição não colide com a expressa nas Decisões Arbitrais  nºs 115/2012/T e 94/2023- T, referidas na Resposta da Requerida, em que o Tribunal Arbitral se declarou incompetente para conhecer a ilegalidade da liquidação de direitos aduaneiros agrícolas e do IVA que recaiam sobre atos de importação, mas não se pronunciou, porque isso lhe não foi pedido, sobre a  sua competência para o conhecimento da legalidade de quaisquer outros atos a  jusante da importação, subsequentes  à entrada dos bens em território nacional.

Assim, tem-se por improcedente a exceção de incompetência do Tribunal Arbitral.

 

2.5Questão decidenda

 

25. Está em causa no presente processo unicamente a aplicação das regras da incidência e exigibilidade do imposto em sede de ISV, que constam do art.  6º do CISV, de acordo com o nº 1 do qual o imposto se torna exigível no momento da introdução no consumo, considerando-se esta verificada no momento da apresentação do pedido de introdução no consumo pelos operadores registados e reconhecidos ou no momento da apresentação da declaração aduaneira de veículos pelos particulares.  O artigo 22º do CIVA que regula o regime dos veículos automóveis em circulação visa, não derrogar essas regras, mas garantir a sua execução.

26. Antes de mais, e conforme se encontra densificado na doutrina e jurisprudência, o ISV não é   um imposto de matrícula/registo, que são formalmente   atos   administrativos . O facto tributário, nos termos do nº 1 do artigo 5º, é o fabrico, montagem, admissão ou importação dos veículos tributáveis em território nacional, que estejam obrigados à matrícula em Portugal, considerando-se haver também facto tributário quando se verifiquem as circunstâncias específicas enunciadas no nº 2 desse artigo. A este propósito, e como bem refere a Requerida, cite-se A. Brigas Afonso e Manuel T. Fernandes – Imposto sobre Veículos e Imposto Único de Circulação – Códigos Anotados[1], que, em comentário ao artigo 3.º (incidência subjetiva), a págs. 41, referem:

«Sendo o ISV um imposto monofásico, não são, como regra, sujeitos passivos do ISV os consumidores, à semelhança do que acontece com os impostos especiais de consumo harmonizados a nível comunitário (vide artigo 3.º do Código dos IEC), mas sim todos os que procedem à introdução no consumo dos veículos tributáveis, que esta introdução seja efetuada regularmente pelos operadores registados, operadores reconhecidos ou pelos particulares em nome dos quais seja emitida a declaração aduaneira de veículo, quer as pessoas que, de modo irregular, introduzam no consumo os veículos tributáveis».

27. Afirmando, ainda, na mesma obra, em comentário ao artigo 5.º (facto gerador), a págs. 48:

«(...) Ao contrário do que sucede em muitos Estados-Membros, em que a atribuição da matrícula é o facto gerador típico do imposto, em Portugal, a atribuição da matrícula, apesar de ser um importante instrumento de controlo do imposto, não constitui, em regra, um facto gerador de imposto, a não ser nos casos em que esta é atribuída de novo após o seu cancelamento voluntário, caso tal facto tenha dado lugar ao reembolso»

28. Ora, no presente pedido arbitral, o Requerente pretende afastar a ocorrência de facto gerador, alegando que os veículos cuja liquidação está aqui a ser impugnada, por fazerem parte de um espólio de colecionismo, não se destinam a circular na via pública.

29. Importa, por isso, clarificar o seguinte:

  1. o artigo 5.º, n.º 1, do CISV, determina que constitui facto gerador de imposto o fabrico, montagem admissão ou importação dos veículos tributáveis em território nacional, que estejam obrigados à matrícula nacional.
  2. por sua vez, a alínea d) do n.º 2 do artigo 5.º do CISV dispõe que, para além dos factos descritos no n.º 1, constitui ainda facto gerador de imposto a permanência do veículo no território nacional em violação das obrigações previstas no código.

Assim, o facto gerador de imposto verifica-se quando ocorre uma das circunstâncias descritas na lei que origina a liquidação e cobrança do imposto, neste caso, do ISV.

30. No caso em apreço, verifica-se que o Requerente, importou e admitiu veículos em território nacional, tendo optado por mantê-los armazenados numa garagem, sem o cumprimento de quaisquer formalidades, aduaneiras e fiscais.

Assim, e contrariamente ao que alega e ficou provado, não é pelo facto de os manter armazenados e fora de circulação (na medida em que fazem parte da coleção particular do Requerente, sendo que nessa medida, nunca se destinaram a circular na via pública, mas sim a permanecer em domínio exclusivamente privado) que está dispensado do cumprimento das formalidades a que estava legalmente obrigado.

31. Até porque, se o importador/proprietário pretendia que os veículos em causa, por motivos de colecionismo, ou qualquer outra razão, como, por exemplo, restauro, fossem excluídos da sujeição a matrícula nacional e consequentemente afastados da sujeição a ISV, deveria ter apresentado, conforme refere a Requerida na Resposta, as respetivas DAVs ao abrigo do  nº 1 do artigo 24.º do CISV, no prazo de 10 dias úteis após a entrada dos mesmos em território nacional, o que não  fez.

32. Assim, não o tendo feito, incumpriu um ónus   legal de cuja satisfação   dependia a aplicação do regime da não sujeição de ISV do qual pretende beneficiar e, nessa medida, ocorreu facto gerador de imposto.

33. Acresce ainda que, o n.º 2 do artigo 6.º, sob a epígrafe “Exigibilidade”, estabelece que “Nos casos mencionados no n.º 2 do artigo anterior (artigo 5.º, “Facto gerador”), considera-se verificada a introdução no consumo no momento da ocorrência do facto gerador do imposto, ou, sendo este indeterminável, no momento da respetiva constatação”.

Ora, à data em que os veículos foram detetados em situação irregular no desenvolvimento de ação inspetiva dirigida à Requerente, há muito que tinham dado entrada em território nacional, tornando-se o imposto exigível, já que para tal basta a permanência dos veículos em Portugal  sem que sejam  cumpridas as formalidades previstas no CISV.

O argumento de que, por os veículos automóveis não se destinarem a circular, a Requerente não estava obrigada à obtenção de matrícula nacional, apenas seria relevante se os veículos não tivessem anteriormente permanecido em Portugal ou, tendo permanecido, tivessem sido  atempadamente cumpridas as formalidades previstas no art. 24º do CISV.

34. Sendo também de acrescentar que, ainda que os veículos tivessem sido sujeitos ao regime previsto no artigo 24.º do CISV, não tendo sido esse o caso pois, como já referido, o Requerente não diligenciou nesse sentido, os veículos encontram-se no âmbito de incidência do ISV uma vez que esta norma não exclui os veículos matriculados no estrangeiro que permaneçam em Portugal   da incidência do imposto.

 Somente  o artigo 24.º do CISV permite, quando devidamente solicitado, é que, perante circunstâncias especiais e devidamente justificadas, e enquanto tais circunstâncias se mantiverem, os veículos entrados em Portugal fiquem dispensados da sujeição a matrícula nacional e, assim , possam beneficiar do mesmo  regime fiscal  de não sujeição  dos veículos não destinados a matrícula nacional e , por isso, impedidos de  circular em  território português,  nos termos do nº 1 do art. 117º do Código da Estrada.

35. No entanto, tal regime, como é bom de ver, e resulta desde logo do próprio n.º 4 do artigo 24.º do CISV, não afasta os veículos da exclusão de incidência do imposto, uma vez que, sempre que se pretenda a sua introdução no consumo, os veículos ficam sujeitos a ISV, sendo o imposto determinado em função das taxas em vigor no momento da apresentação da DAV.

Pelo exposto, o presente pedido arbitral deve improceder na totalidade, com as legais consequências, ficando todas as questões invocadas prejudicadas. Na verdade, não está em causa qualquer tributação sancionatória inconstitucional. A tributação resulta necessariamente do incumprimento pelo interessado dos requisitos de acesso a um regime fiscal de natureza especial. Do mesmo modo, não há incumprimento do dever de notificação do sujeito passivo para apresentação da DAV estabelecido no nº 1 do artigo 22º do CISV, que a Requerente considera ter sido violado: é que esse   dever é   apenas aplicável quando os veículos forem detetados em circulação e não quando apenas se verifique estarem armazenados em dado local, sem circularem.

Na verdade, existindo uma norma de incidência clara que presidiu a respetiva liquidação em causa, que não afasta os veículos em causa da exclusão de incidência do imposto e tendo sido cumpridos os procedimentos e formalidades conducentes à sua liquidação, considera-se prejudicado, por inutilidade, o conhecimento dos demais vícios às mesmas imputados pela Requerente.

 

 

3DECISÃO

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:

 

  1. Julgar totalmente improcedente o pedido de pronúncia arbitral formulado;
  2. Condenar a Requerente no pagamento das custas deste processo atento o decaimento.

 

 

4VALOR DO PROCESSO

 

Fixa-se o valor do processo em € 528.600,47, nos termos do artigo 306.º, n.º 1 do CPC e do 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, interpretados em conformidade com o artigo 10.º, n.º 2, alínea e), do RJAT.

 

5CUSTAS

 

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 8.262,00, a cargo da Requerente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e do artigo 4.º, n.º 4, do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária e da Tabela I anexa ao mesmo.

Notifique-se.

 

Lisboa, 10 de março de 2025

 

Os Árbitros

 

 

 

Guilherme W. d'Oliveira Martins 

(Presidente)

 

 

António de Barros Lima Guerreiro
(Vogal)

 

 

Declaração de voto de vencido do árbitro Marcolino Pisão Pedreiro

 

Acompanho o entendimento constante  da decisão do processo 803/2024-T de 31 de Janeiro de 2025 ( junta aos autos pelo Requerente),  com identidade de partes e pedido e, no essencial, também  com identidade de factos relevantes à luz da fundamentação jurídica da decisão, onde se pode ler seguinte:

 

“6.44. Para efeitos de análise, refira-se preliminarmente que “a interpretação das normas de incidência do ISV, tem de ser feita em conjugação com a interpretação das normas do CE, designadamente com a norma prevista artigo 106.º nº 2 do CE que prevê que os automóveis ligeiros ou pesados, incluem-se, segundo a sua utilização, nos seguintes tipos: a) De passageiros - os veículos que se destinam ao transporte de pessoas; b) De mercadorias - os veículos que se destinam ao transporte de carga. O nº 3 da norma prevê que os automóveis de passageiros e de mercadorias que se destinam ao desempenho de função diferente do normal transporte de passageiros ou de mercadorias são considerados especiais, tomando a designação a fixar em regulamento, de acordo com o fim a que se destinam” (sublinhado nosso).[2]

 

6.45. Assim, pode dizer-se que quando se destinem “ao desempenho de função diferente do normal transporte de passageiros ou de mercadorias”, devem os veículos automóveis ser considerados veículos especiais de acordo com o fim a que se destinam (nos termos do disposto no referido artigo 106º, nº 3 do Código de Estrada).

 

6.46. Assim, também no mesmo sentido, deve ser interpretado o disposto no artigo 2º do Código do ISV (norma de incidência objetiva do ISV) que prevê, no que ao caso interessa, que estejam “(…) sujeitos ao imposto os (…) automóveis ligeiros de passageiros, considerando-se como tais os automóveis com peso bruto até 3500 kg e com lotação não superior a nove lugares, incluindo o do condutor, que se destinem ao transporte de pessoas; (…)”.

 

6.47. Uma leitura do disposto no artigo 2º do Código do ISV determina que estão abrangidos pelo âmbito de aplicação objetivo deste Código, os veículos automóveis que se destinem ao (i) ao transporte de pessoas; (ii) ao transporte, alternado ou simultâneo, de pessoas e carga; (iii) ao transporte de carga, de caixa aberta, fechada ou sem caixa; iv) fins a que também se destinam os veículos previstos nas alíneas (d) a (f) do artigo 2.º do CISV, sendo que, a exclusões do nº 2 do artigo 2º aplicam-se a situações específicas, como os veículos não motorizados ou elétricos ou as ambulâncias, sendo estas últimas definidas também em função do fim a que se destinam (“destinados ao transporte de pessoas doentes ou feridas dotados de equipamentos especiais para tal fim”).

 

6.48. Assim, e como se refere na decisão arbitral proferida no âmbito do P 700/2019-T, de 13-07-2020, com as necessárias adaptações, “resulta claramente que uma interpretação do disposto no artigo 2º do CISV em conjugação com o artigo 106.º do CE, que os veículos  que estão abrangidos pelo âmbito de incidência objetivo do ISV (artigo 2.º), são os veículos destinados ao normal transporte de passageiros ou de  mercadorias, ficando de fora do âmbito de incidência da norma os veículos qualificados como “veículos especiais”, por se destinarem a fim distinto do normal transporte de passageiros ou de mercadorias. Esta é a leitura que resulta expressamente da letra do artigo 2.º do CISV, cujo sentido tem de ser analisado em conjugação com o disposto no artigo 106.º do CE, para que se obtenha uma interpretação que respeite a unidade do sistema jurídico (vide artigo 9.º do Código Civil). Esta interpretação é reforçada pelo disposto no artigo 24.º do CISV (…)” ao referir que “os veículos que entrem em território nacional e não se destinem a ser matriculados, por se destinarem a desmantelamento, circulação ou permanência em domínio exclusivamente privado, colecionismo ou qualquer outra razão que dispense a atribuição de matrícula nacional (…)” (sublinhado nosso).

6.49. Neste âmbito, os veículos que se “destinem ao desmantelamento, circulação ou

permanência em domínio exclusivamente privado, colecionismo ou qualquer outra razão que dispense a atribuição de matrícula nacional são veículos que não se destinam ao normal transporte de passageiros ou de mercadorias, e exclusivamente por esse motivo, não cabem no âmbito da norma de incidência objetiva do ISV (artigo 2.º). O que significa que o artigo 24.º do CISV não alarga (nem reduz) o âmbito da incidência do ISV, uma vez que é o próprio artigo 2.º que afasta os veículos que não se destinam ao normal transporte de passageiros e mercadorias (…)” (sublinhado nosso).

6.50. Com efeito, os veículos que se destinem ao colecionismo por não se destinarem a circular na via pública nas mesmas condições que os veículos que se destinam ao normal transporte de passageiros ou de mercadorias estão dispensados de atribuição de matrícula nacional, não estando, por isso, sujeitos às regras incluídas no regime jurídico de aprovação e atribuição de matrícula e, consequentemente, sujeitos a ISV (não obstante a necessidade de terem de ser observadas algumas formalidades).

 

6.51. Ora, uma vez que os veículos que se destinam ao colecionismo estão afastados da norma de incidência objectiva prevista no disposto no artigo 2º do Código do ISV, por não se destinarem ao normal transporte de passageiros ou de mercadorias (conforme exposto supra), não há-que atribuir relevância ao acto de atribuição de matrícula (nos termos do Decreto-Lei nº 180/2014, de 24-12), enquanto acto gerador do imposto, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 5º do Código do ISV que acaba por os ressalvar ao referir no seu nº 1 que “constitui facto gerador do imposto (…) [a] admissão ou importação dos veículos tributáveis em território nacional, que estejam obrigados à matrícula em Portugal” (sublinhado nosso)

 

6.52. Assim, neste âmbito, considerando-se que são tributáveis em território nacional os veículos automóveis que se enquadrem no disposto no artigo 2º do CISV (norma de

incidência objectiva), o que não é o caso dos veículos de que se destinem ao colecionismo, de acordo com o disposto no artigo 24º daquele Código, verificando-se que o critério determinante da incidência do ISV, nos termos do disposto no artigo 2º do CISV, é o destino do veículo automóvel.

 

6.53. E, estando dispensados de atribuição de matrícula, os veículos afectos ao colecionismo, ficam de fora a previsão do artigo 5º, nº 1 do Código do ISV, situação que a própria Requerida elenca na notificação para pagamento que enviou ao Requerente (Ofício nº..., de 14-03-2017, junto com o PPA como Doc. nº 1).

 

6.54. Assim, estando afastada a incidência do ISV dos veículos de coleção, não poderia a Requerida ter liquidado o imposto com fundamento no não apuramento do regime de AA, referindo a Requerida que “(…) a alínea d) do n.º 2 do artigo 5.º do CISV dispõe que a permanência do veículo no território nacional, em violação das obrigações previstas no Código, é também facto gerador do imposto, sem excecionar qualquer tipo de veículo ou destino final”, porquanto o facto gerador só pode acontecer relativamente a viaturas que estejam objectivamente abrangidas pela incidência de ISV o que, como acima exposto, não se verifica.

 

6.55. Por outro lado, refira-se que, “nos termos do disposto no artigo 103º da Constituição, os impostos são criados por lei, que determina a incidência, a taxa, os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes” sendo que “(…) nos termos do princípio da legalidade, não pode o intérprete querer abranger pelo âmbito de incidência da norma fiscal realidades que a norma fiscal expressamente afasta (...)”.

 

6.56. Note-se que o critério escolhido pelo legislador na escolha da norma de incidência

(destino do veículo) é perfeitamente adequado, uma vez que nos permite com maior rigor respeitar o princípio da equivalência previsto no disposto no artigo 1.º do CISV, que determina que a lei visa onerar os veículos destinados ao normal transporte de passageiros ou de mercadorias, que são os veículos que representam um maior custo “nos domínios do ambiente, infra-estruturas viárias e sinistralidade rodoviária em concretização de uma regra geral de igualdade tributária”.

 

6.57. Em conclusão, entende este Tribunal Arbitral que os veículos destinados ao colecionismo, pelo fim específico a que se destinam, não estão abrangidos pelo âmbito de incidência objectiva do ISV, previsto nos termos do artigo 2º do Código do ISV, pelo que não deveriam ter sido emitidas as liquidações em crise (vide ponto 6.24., supra).”

 

Esta decisão está  em linha com o entendimento que já havia sido sustentado na decisão arbitral do proc. 700/2019-T, onde, na mesma linha, consta o seguinte:

 

“Os veículos que se “destinem” ao “desmantelamento, circulação ou permanência em domínio exclusivamente privado, colecionismo ou qualquer outra razão que dispense a atribuição de matrícula nacional” são veículos que NÃO se destinam ao normal transporte de passageiros ou de mercadorias, e exclusivamente por esse motivo, não cabem no âmbito da norma de incidência objetiva do ISV (artigo 2.º). O que significa que o artigo 24.º do CISV não alarga (nem reduz) o âmbito da incidência do ISV, uma vez que é o próprio artigo 2.º que afasta os veículos que não se destinam ao normal transporte de passageiros e mercadorias (veículos estes que podem ou não obter uma matrícula especial).”

 

O critério determinante da incidência do ISV, nos termos do disposto no artigo 2.º do CISV, é o destino do veículo automóvel(…).

 

Nos termos do disposto no artigo 103.º da Constituição “Os impostos são criados por lei, que determina a incidência, a taxa, os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes”. Ora, o âmbito da incidência objetiva do ISV é determinado muito claramente pelo disposto no artigo 2.º do CISV, norma que atribui relevância ao destino do veículo (normal transporte de passageiros ou de mercadorias)(…).

 

Note-se que o critério escolhido pelo legislador na escolha da norma de incidência (destino do veículo) é perfeitamente adequado, uma vez que nos permite com maior rigor respeitar o princípio da equivalência previsto no disposto no artigo 1.º do CISV, que determina que a lei visa onerar os veículos destinados ao normal transporte de passageiros ou de mercadorias, que são os veículos que representam um maior custo “nos domínios do ambiente, infra-estruturas viárias e sinistralidade rodoviária em concretização de uma regra geral de igualdade tributária”.

 

Sustentando também a não incidência   escrevem A. Brigas Afonso e Manuel T. Fernandes – Imposto sobre Veículos e Imposto Único de Circulação – Códigos Anotados (Coimbra Editora, 2009), em anotação ao artigo 24º do CISV:

“Este artigo consagra uma importante inovação legislativa, dado que, pela primeira vez, se consagra a não sujeição a ISV dos veículos que não se destinem a ser matriculados, por se destinarem a desmantelamento, circulação ou permanência em domínio exclusivamente privado, colecionismo ou qualquer outra razão que dispense a atribuição de matrícula nacional” (meu destaque).

 

Efetivamente, no caso em apreço não existe qualquer substância económica do suposto facto tributário, uma vez que o mesmo resultará, tão-só, do incumprimento de formalidades.

 

Porém, o incumprimento de formalidades deve ser objeto de tratamento em sede de direito contraordenacional. Liquidar imposto com este fundamento  constitui, no meu entender, e como refere o Requerente, uma  sanção, o  que é alheio à natureza e conceito de imposto [3]. Este deve alicerçar-se na capacidade contributiva ou, no caso, na equivalência (art. 1º do CISV) que na situação em apreço não se verifica, porquanto os veículos em  causa  se destinam ao colecionismo e não ao transporte.

 

Ainda que  fosse correta a interpretação da lei perfilhada pela tese  que fez vencimento, entendo que a mesma com tal interpretação  não seria conforme à constituição, pois equivaleria a punir o incumprimento de formalidades pelo CISV e pelo RGIT, simultaneamente, em violação dos princípios da proporcionalidade e do ne bis in idem

 

Por último, não se  pode também  deixar de se discordar da decisão,  na parte em que julgou:

todas as questões invocadas prejudicadas(…)

Na verdade, existindo uma norma de incidência clara que presidiu a respetiva liquidação em causa, que não afasta os veículos em causa da exclusão de incidência do imposto e tendo sido cumpridos os procedimentos e formalidades conducentes à sua liquidação, considera-se prejudicado, por inutilidade, o conhecimento dos demais vícios às mesmas imputados pela Requerente.”

 

 

Como é manifesto, as questões sobre as quais a decisão não se pronunciou (”Da invalidade da liquidação por ausência da fundamentação por ausência da fundamentação legalmente exigida” (arts. 148 e segs do PPA) e “Da invalidade da liquidação por preterição de outras formalidades legais: a desconsideração dos meios de prova oferecidos pelo impugnante com falta de justificação da sua desconsideração e consequente invalidade da liquidação por violação dos princípios do inquisitório e da decisão”, arts. 156º e segs do PPA só ficariam prejudicadas,  caso o vício de violação de lei tivesse sido –como deveria, na minha opinião –julgado procedente, acrescendo que para se afirmar que foram “cumpridos os procedimentos e formalidades conducentes à sua liquidação” seria necessário apreciar os referidos vícios invocados.

 

Na verdade, como refere Jorge Lopes de Sousa:

“O estabelecimento desta ordem de conhecimento dos vícios, tem como pressuposto que, conhecendo de um vício que conduza à eliminação jurídica do acto impugnado, o tribunal deixará de conhecer dos restantes(…)

(…)o  reconhecimento  da existência de um vício leva a considerar prejudicado o conhecimento dos restantes (…)” (CPPT anotado e comentado, Áreas Editora, 2006,  p. 893, meus destaques)

 

 

Assim, a decisão arbitral deveria ter conhecido dos vícios em causa, e não o tendo feito, tal traduz-se, no meu entender, em   omissão de pronuncia.

 

Em suma, entendo:

  1. Que o pedido de pronuncia arbitral  deveria ter sido julgado procedente, por vício de violação de lei.
  2. Caso o não fosse, como não foi, deveriam ter sido apreciados e julgados os demais vícios invocados pelo Requerente.

 

Pelas razões expostas, discordo da decisão e, consequentemente, voto vencido.

 

 

 

Marcolino Pisão Pedreiro 

(Vogal)

 

 

 



[1] Coimbra Editora, 2009

[2] A decisão cita a decisão arbitral nº 700/2019-T, de 13-07-2020.

[3] Cfr.,  José Casalta Nabais, DIREITO FISCAL, Almedina, 3ª ed., 2005, pag. 11; Ana Paula Dourado, DIREITO FISCAL, Almedina, 2023, 7ª Ed., reimpressão, pag. 52 .