SUMÁRIO
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A “prova por amostragem” constitui um meio de prova idóneo em sede arbitral, sendo especialmente relevante quando os documentos comprovativos dos factos alegados pelo sujeito passivo ultrapassam a centena de milhar.
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Dispõe o artigo 58.º da LGT que: “A administração tributária deve, no procedimento, realizar todas as diligências necessárias à satisfação do interesse público e à descoberta da verdade material, não estando subordinada à iniciativa do autor do pedido”. Daqui se retira que é dever da Autoridade Tributária inteirar-se da real situação contributiva do sujeito passivo e dos factos que este alega, sobretudo quando este apresenta, em sede de reclamação graciosa, elementos comprovativos do que alega e demonstra a sua inteira disponibilidade para colaborar com a Autoridade Tributária no apuramento da verdade material.
DECISÃO ARBITRAL
Os árbitros Professora Doutora Rita Correia da Cunha (Presidente), Dr. Augusto Vieira e Dra. Magda Feliciano (Vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formarem o Tribunal Arbitral no processo identificado em epígrafe, acordam no seguinte:
RELATÓRIO
A..., S.A., Pessoa Coletiva n.º..., ... inscrita junto do Banco de Portugal sob o número ..., com sede no ..., ..., ...-... ... (“a Requerente”), tendo sido notificada do despacho do Senhor Diretor do Serviço Central da Unidade dos Grandes Contribuintes que indeferiu a reclamação graciosa n.º ...2023..., apresentada contra os atos de liquidação de Imposto do Selo (“IS”), relativos ao período compreendido entre novembro de 2021 e dezembro de 2022, veio, em 20-06-2024, nos termos do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, alínea a) do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), e nos artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, requerer a constituição de tribunal arbitral tributário e apresentar pedido de pronúncia arbitral (“PPA”), em que é requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (“AT” ou “Requerida”), com vista à declaração de ilegalidade e anulação dos referidos atos tributários.
O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD, em 21-06-2024, e automaticamente notificado à Requerida.
Não tendo a Requerente designado árbitro nos termos do RJAT, foram as partes devidamente notificadas da nomeação dos árbitros ora signatários, não tendo manifestado vontade de a recusar.
O Tribunal Arbitral ficou constituído em 28-08-2024.
A AT apresentou a sua resposta em 30-09-2024, defendendo-se por impugnação, e juntou o processo administrativo.
A reunião do artigo 18.º do RJAT teve lugar em 27-11-2024, tendo a testemunha arrolada pela Requerente sido inquirida (Sr. I...), a Requerente notificada para juntar novos documentos em 15 dias, e a AT Requerida para se pronunciar também no prazo de 15 dias sobre os mesmos, no exercício do seu direito ao contraditório. As partes foram ainda notificadas para, querendo, apresentarem alegações finais escritas (simultâneas) no prazo de 10 dias a contar do requerimento apresentado para AT Requerida no exercício do seu direito ao contraditório.
Em 11-12-2024, a Requerente veio juntar imagens da interface de base de dados, explicitação de campos de query para apuramento de imposto de selo nas DMIS dos períodos em causa e uma listagem exaustiva, relativa a todos os períodos, dos dados extratados das operações subjacentes (tendo esta listagem 1813 páginas).
As partes apresentaram alegações finais em 07-01-2025 (Requerente) e 16-01-2024 (Requerida).
SANEAMENTO
O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído e é materialmente competente (cf. artigo 2.º, n.º 1, alínea a), do RJAT).
O PPA é tempestivo porquanto foi apresentado no prazo de 90 dias previsto no n.º 1 do artigo 10.º do RJAT.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, e mostram-se devidamente representadas.
Não foram identificadas nulidades. As partes não invocaram exceções que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
QUESTÃO DECIDENDA
A Requerente explora um cartão de crédito que permite a clientes das lojas ... proceder ao pagamento dos bens e serviços adquiridos de forma fracionada, sem juros ou encargos adicionais, ficando a isenção de juros e encargos condicionada ao cumprimento do plano de pagamento contratualmente estabelecido. Entre novembro de 2021 e dezembro de 2022, a Requerente liquidou IS sobre o valor de aquisições de bens ou serviços que entende não ser legalmente devido, no montante total de € 463.523,77.
Considerando a posição das partes, expressas nos respetivos articulados, conclui-se que as partes acordam que pagamentos fracionados através de cartões de crédito, quando não haja cobrança de juros e o pagamento ocorra dentro do prazo contratualmente estabelecido, não se encontram sujeitos a IS, porquanto não está em causa uma utilização de crédito para efeitos do IS, mas apenas um diferimento do pagamento, sobre o qual não incide IS.
Na decisão de indeferimento da reclamação graciosa apresentada pela Requerente, a AT concluiu que os meios de prova apresentados pela Requerente foram insuficientes para suportar o pedido de anulação dos atos tributários de liquidação de IS impugnados, por não ter ficado demonstrado que: (a) os valores das bases tributáveis sobre as quais foi liquidado IS respeitam efetivamente a planos de pagamentos fracionados sem juros, e (b) relativamente a tais planos, não ocorreu qualquer evento de incumprimento que determinasse a existência de uma relação creditícia entre as partes. Esta posição é mantida em sede arbitral. Já a Requerente entende ter oferecido prova suficiente para demonstrar a verificação dos factos controvertidos.
Considerando o alegado pelas partes e a prova produzida no decorrer do procedimento de reclamação graciosa em causa e do presente processo arbitral, interessa, apenas e tão só, apurar se se deve dar como provado que: (a) as bases tributáveis sobre as quais foi liquidado IS respeitam efetivamente a planos de pagamentos fracionados sem juros, e (b) relativamente a tais planos, não ocorreu qualquer evento de incumprimento que determinasse a existência de uma relação creditícia entre as partes.
MATÉRIA DE FACTO
Factos provados
Com base nos documentos trazidos aos autos pelas partes e na prova testemunhal produzida na audiência de 27-11-2024, são dados como provados os seguintes factos relevantes para a decisão do caso sub judice:
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A Requerente é uma Instituição de Moeda Eletrónica, que está autorizada pelo Banco de Portugal para a emissão de moeda eletrónica e para a prestação de serviços de pagamento previstos nas alíneas a), b), c), d) e e) do artigo 4.º do Regime Jurídico dos Serviços de Pagamento e da Moeda Eletrónica, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 91/2018, de 12 de novembro (“RJSPME”), incluindo a concessão de crédito nos termos previstos na alínea b) do n.º 2 do artigo 14.º e no artigo 15.º do RJSPME e o exercício da atividade de intermediação de crédito, e está integrada no Grupo B... (cf. alegado nos artigos 1.º e 2.º do PPA, e decisão de indeferimento de reclamação graciosa junta ao PPA como Documento 1, facto não contestado pela Requerida).
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No contexto da sua atividade, a Requerente dedica-se, entre o mais, à exploração do denominado “Cartão ...”, o qual consiste num “cartão de utilização universal (crédito e débito), que permite pagar as suas compras (em lojas online e em mais de 50 milhões de lojas físicas em todo o mundo), efetuar levantamentos, fazer pagamentos de contas e serviços, pagamentos ao Estado e transferências. Em todas estas transações pode escolher a modalidade de pagamento que preferir (Fim do Mês, 3x, 6x ou 12x)” (cf. alegado no artigo 3.º do PPA, facto não contestado pela Requerida).
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O Grupo B... acordou com a Requerente a disponibilização de modalidades especiais para a utilização do referido Cartão... nas suas lojas de venda a retalho, as quais se caracterizam pela oferta de campanhas de pagamento fracionado sem juros ou encargos adicionais, ficando a isenção de juros e encargos dependente do cumprimento integral do plano de pagamento contratualmente estabelecido com o cliente (cf. alegado nos artigos 5.º, 6.º e 15.º do PPA, e Documentos 2 e 3 juntos ao PPA, prova testemunhal, facto não contestado pela Requerida).
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Por lapso, entre novembro de 2021 e dezembro de 2022, a Requerente liquidou IS sobre o valor das aquisições de bens ou serviços em modalidades fracionadas sem juros por clientes do Cartão..., nos termos das Verbas 17.1 (€ 248.368,37) e 17.2 (€ 215.155,40) da Tabela Geral do Imposto do Selo, no montante total de € 463.523,77, sem que tenha ocorrido incumprimento por parte dos mesmos clientes (cf. alegado no artigo 19.º do PPA, Quadro constante do artigo 10.º do PPA, Documentos 1, 4 e 5 juntos ao PPA, prova testemunhal).
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Por entender que estas transações não se encontram sujeitas a IS, a Requerente apresentou reclamação graciosa (autuada sob o n.º ...2023...), à qual juntou documentos contendo o detalhe dos montantes da base tributável sobre a qual incidiu o IS (i.e., aquisições de bens ou serviços em modalidades fracionadas sem juros por clientes do Cartão...), tendo ainda manifestado a sua total disponibilidade para prestar todos os esclarecimentos e juntar todos os documentos que a AT entendesse necessários ao conhecimento do pedido (cf. Documento 1 junto ao PPA).
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No projeto de decisão com data de 15-01-2024, a AT considerou que a Requerente não fez prova que “no período compreendido entre novembro de 2021 a dezembro de 2022, todos os valores constantes das bases tributáveis sobre as quais foi liquidado IS das verbas 17.1.1 e 17.1.2 da TGIS relativamente aos contratos abrangidos pela reclamação graciosa (…) são respeitantes a montantes de pagamento fracionado sem juros, bem como a inexistência de qualquer incumprimento durante o período em causa” (cf. Documento 6 junto ao PPA).
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A Requerente exerceu o seu direito de audição prévia (cf. Documento n.º 7 junto ao PPA), (a) tendo junto, por amostragem, contratos celebrados na modalidade de pagamento fracionado sem juros relativamente aos quais não existiram situações de incumprimento e contratos celebrados em que existiu uma falha no pagamento da mensalidade de um plano fracionado sem juros, (b) explicando que os montantes atribuídos aos seus clientes ao abrigo de planos de pagamento fracionado sem juros não se encontram autonomizados na contabilidade da Reclamante (i.e., encontram-se agregados os montantes referentes à modalidade de pagamento fracionado com juros e à modalidade pagamento fracionado sem juros), e que o seu sistema informático e de controlo interno permitia efetuar o levantamento, em cada momento, do tempo e dos valores globais respeitantes aos aludidos planos de pagamento fracionado, e (c) tendo manifestando novamente a sua total disponibilidade para prestar todos os esclarecimentos e juntar todos os documentos que a AT entendesse necessários ao conhecimento do pedido:
“A este respeito, não pode, desde já, a Reclamante deixar de manifestar a sua surpresa pelo teor do aludido Projeto de Decisão, em particular por ter sido indeferida a sua pretensão por alegada insuficiência de prova, quando se manifestou inteiramente disponível, ao abrigo do espírito de colaboração que sempre pautou a sua relação com a Autoridade Tributária, a prestar todos os esclarecimentos que esta entendesse necessários – inclusive para receber os Serviços nas suas instalações e efetuar uma demonstração dos procedimentos utilizados para efetuar o levantamento dos montantes referentes a planos de pagamento sem juros e dos sistemas de controlo implementados – e juntar quaisquer documentos adicionais para a apreciação da Reclamação Graciosa” (cf. artigo 12.º do Documento n.º 7 junto ao PPA)
“Neste contexto, dada a importância da adequada compreensão do sistema informático e de controlo implementado pela Reclamante para a apreciação da presente Reclamação Graciosa, esta reitera novamente a sua inteira disponibilidade para receber os Serviços da UGC nas suas instalações com vista a demonstrar presencialmente o respetivo funcionamento” (cf. artigo 18.º do Documento n.º 7 junto ao PPA)
“Ademais, a Reclamante manifesta igualmente a sua integral disponibilidade para a colaboração com a AT na produção de prova referente a quaisquer aspetos que esta entenda relevantes para a apreciação do pedido em questão, para o que indica a sua total disponibilidade na tomada de declarações das seguintes testemunhas:
-I..., com domicílio profissional na sede da Reclamante – onde pode ser notificado;
- J..., com domicílio profissional na sede da Reclamante – onde pode ser notificado” (cf. artigo 19.º do Documento n.º 7 junto ao PPA)
“De todo o modo, a Reclamante novamente reitera a sua inteira disponibilidade para permitir a consulta presencial de quaisquer elementos documentais que a AT considere imprescindíveis para a adequada apreciação do pedido formulado” (cf. artigo 26.º do Documento n.º 7 junto ao PPA).
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A reclamação graciosa apresentada pela Requerente veio a ser integralmente indeferida através de despacho do Senhor Diretor do Serviço Central da Unidade dos Grandes Contribuintes, ora impugnado, no qual, entre o mais, se pode ler:
“Para fazer prova, deve o Requerente por exemplo juntar ao processo todos os contratos celebrados com os clientes na modalidade de pagamento fracionado sem juros, as faturas decorrentes de cada contrato, bem como extrato de conta cartão de forma a que consiga provar que os valores em causa são referentes única e exclusivamente saldos de pagamento fracionados sem juros e que os mesmos foram cumpridos nos prazos acordados.
(...) a questão nuclear presente nesta reclamação graciosa é à questão de prova, ou melhor à falta de prova que permita sustentar a pretensão da Reclamante.
A Reclamante, apresenta apenas cópias das DMIS entregues (documento nº 1), dois exemplos acordos-quadro assinados com entidades do Grupo B... (documentos nº 2 e nº 3), com a possibilidade de serem efetuadas campanhas em que existe a oferta das referidas modalidades de pagamento fracionado sem juros, aos subscritores do Cartão ..., na aquisição dos produtos por elas comercializados e um mapa resumo (documento nº 4) com as bases tributáveis e o IS liquidado.
Ora, com o devido respeito, o case que se aprecia não se compagina apenas com a análise de DMIS. Fica em falta a identificação do contrato/cartão de crédito para aferição da data da celebração dos contratos, período das concessões de crédito, inicio e fim do pagamento fracionado.
(...)
De forma a comprovar-se que os valores das bases tributáveis em causa estão não sujeitos a tributação de IS, (no caso das verbas 17.1.1 e 17.1.2 da TGIS), têm que ser necessariamente comprovados documentalmente e fundamentados legalmente.
(...)
Não obstante o princípio do inquisitório, segundo o qual cabe à Administração Tributária o dever de procurar a verdade material, continuam a ser os particulares (quando o ónus da prova lhes é atribuído) com o dever de demonstração de determinados factos. A inexistência ou insuficiência desse demonstração terão como consequência a desconsideração do facto, que se terá como não verificado.
(...)
Rejeita-se assim a tentativa da Reclamante em transferir para a AT o ónus da comprovação do que afirma, quando a obtenção e detenção desses elementos só a ele, legal e regulamentarmente, lhe diz respeito.
Ademais, o Reclamante sustenta a sua pretensão, apenas com a petição e protocolos de cooperação, não é prova suficiente que determine sem margem de dúvidas que os valores tributados diziam respeito à utilização do Cartão ... em modalidades de pagamento fracionado sem juros, que não existiu qualquer incumprimento em qualquer um dos acordos estabelecidos entre os utilizados de cartão “...” e as entidades que assinaram o protocolo de cooperação com a Reclamante.
Concluímos, assim, que a ora Reclamante não trouxe prova suficiente de modo a percebermos se aos valores tributados pelas verbas 17.1.1. e 17.1.2, dizem apenas respeito aos valores utilizados pelo cartão ... na modalidade de pagamentos fracionados sem juros, e que não ocorreu qualquer caso de incumprimento.
(...)
DO EXERCÍCIO DO DIREITO DE AUDIÇÃO
(...)
Da análise dos mesmos documentos, não se consegue verificar qual o movimento referente ao contrato em análise, nem tão pouco o montante de imposto do selo ora reclamado por cada contrato e não juntou a totalidade dos contratos, nem tão pouco identificou os titulares do encargo do imposto do selo entregue nas respetivas DMIS e os respetivos montantes, fazendo apenas um valor global por meses.”
(cf. Documento 1 junto ao PPA).
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Em 20-06-2024, a Requerente apresentou o PPA que deu origem aos presentes autos, tendo junto dois exemplares dos acordos-quadro celebrados com entidades do Grupo B..., no âmbito dos quais se encontra abrangida a possibilidade de serem oferecidas aos clientes finais subscritores do Cartão ... as referidas modalidades de pagamento fracionado sem juros na aquisição dos produtos por estas comercializados (cf. Documentos n.ºs 2 e 3 juntos ao PPA).
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Notificada para o efeito, em 11-12-2024, a Requerente veio juntar imagens da interface de base de dados, explicitação de campos de query para apuramento de imposto de selo nas DMIS dos períodos em causa, e uma listagem exaustiva, relativa a todos os períodos, dos dados extratados das operações subjacentes (documento com 1813 páginas).
Factos não provados
Com relevo para a decisão do caso, não existem factos dados como não provados.
Fundamentação da matéria de facto
O Tribunal Arbitral tem o dever de selecionar os factos pertinentes para a decisão da causa, com base na sua relevância jurídica e tendo em consideração as várias soluções plausíveis das questões de Direito suscitadas pelas partes, bem como o dever de discriminar os factos provados e não provados. Porém, o Tribunal Arbitral não tem um dever de pronúncia quanto a toda a matéria de facto alegada pelas partes, em conformidade com o disposto no n.º 2 do artigo 123.º do CPPT e no n.º 1 do artigo 596.º, bem como no n.º 3 do artigo 607.º, ambos do CPC, aplicáveis ex vi alíneas a) e e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT.
Na audiência que teve lugar no dia 27-11-2024 foi ouvido o Sr. I..., administrador da Requerente até novembro de 2023, na qualidade de testemunha. A testemunha explicou os termos do Cartão ..., o funcionamento do sistema de gestão de transações dos clientes, e o procedimento interno implementado pela Requerente para determinar a base de incidência das transações para efeitos de IS. Confrontado com a tabela junta ao PPA como Documento 4, a testemunha notou também que são efetuadas mais de 50.000 transações por mês com referência ao Cartão ... . O Tribunal Arbitral considerou este depoimento sincero, não encontrando motivo fundado para questionar a veracidade do mesmo.
Considerando (i) a dificuldade e onerosidade da produção de prova relativamente a todos os contratos em apreço, dado o seu muito elevado número (centenas de milhar), (ii) que é manifesto que, quer no procedimento de reclamação graciosa em causa, quer no presente processo arbitral, a Requerente demonstrou a sua inteira disponibilidade para colaborar na descoberta da verdade material, e cumpriu, com a diligência exigível, os deveres de esclarecimento que sobre ela impendiam ao abrigo do dever de colaboração estatuído no n.º 1 do art.º 59.º da LGT, e (iii) que a AT, não obstante alegar repetidamente que a Requerente não satisfez o ónus da prova previsto no artigo 74.º da LGT, não invocou quaisquer indícios de que o alegado pela Requerente não teria correspondência com a verdade material, como lhe incumbia à luz do princípio do inquisitório, temos ser de considerar a prova por amostragem em apreço, suportada pela prova testemunhal produzida, e os restantes documentos juntos pela Requerente, e dar como provado, com base em juízos de lógica e na experiência dos árbitros, que, entre novembro de 2021 e dezembro de 2022: (1) o valor das aquisições de bens ou serviços em modalidades fracionadas sem juros por clientes do Cartão ..., correspondeu a € 463.523,77, e (2) relativamente a estes planos, não ocorreu qualquer evento de incumprimento que determinasse a existência de uma relação creditícia entre as partes.
Neste contexto, interessa, por último, relembrar o dito pelo Tribunal na Relação de Coimbra no Acórdão proferido no processo n.º 171/10.8TBSAT.CI:
“No julgamento da matéria de facto não se visa o conhecimento ou apreensão absoluta de um acontecimento, tanto mais que intervêm, irremediavelmente, inúmeras fontes possíveis de erro, quer porque se trata de conhecimento de factos situados no passado, quer porque assenta, as mais das vezes, em meios de prova que, pela sua natureza, se revelam particularmente falíveis.
A prova de um facto não visa, pois, obter a certeza absoluta, irremovível, da verificação desse facto.
A prova tem, por isso mesmo, atenta a inelutável precariedade dos meios de conhecimento da realidade de contentar-se com certo grau de probabilidade do facto: a probabilidade bastante, em face das circunstâncias concretas, para convencer o decisor, conhecer das realidades do mundo e das regras de experiência que nele se colhem, da verificação da realidade do facto.
As provas não têm forçosamente que criar no espírito do juiz uma certeza absoluta acerca do facto a provar, certeza essa que seria impossível ou geralmente impossível: o que elas devem é determinar um grau de probabilidade tão elevado que baste para as necessidades da vida.
Nestas condições, uma prova, considerada de per se ou criticamente conjugada com outras, é suficiente para demonstrar a realidade – não ontológica, mas jurídico-prática – de um facto quando, em face dela seja de considerar altamente provável a sua veracidade ou, ao menos, quando essa realidade seja mais provável que a ausência dela”.
MATÉRIA DE DIREITO
Da anulação dos atos tributários impugnados
Tal como referido supra, as partes não contendem quanto à interpretação dos preceitos aplicáveis, ao invés acordando que os pagamentos fracionados através de cartões de crédito, quando não haja cobrança de juros e o pagamento ocorra dentro do prazo contratualmente estabelecido, não se encontram sujeitos a IS (porquanto não está em causa uma utilização de crédito para efeitos do IS, mas apenas um diferimento do pagamento, sobre o qual não incide IS).
E, tal como referido supra, considerando o alegado pelas partes e a prova produzida, o Tribunal Arbitral deu como provado que, entre novembro de 2021 e dezembro de 2022, (1) o valor das aquisições de bens ou serviços em modalidades fracionadas sem juros por clientes do Cartão ..., correspondeu a € 463.523,77, e (2) relativamente a estes planos, não ocorreu qualquer evento de incumprimento que determinasse a existência de uma relação creditícia entre as partes
Note-se, a este propósito que a “prova por amostragem” constitui um meio de prova idóneo para efeitos de formação de presunção judicial, admissível nos termos do artigo 351.º do Código Civil (cf. Decisão Arbitral de 17-12-2014, processo n.º 871/2023-T). Está em causa uma prova indiciária admitida para se permitir presumir factos (desconhecidos) com base em juízos de lógica e na experiência, conforme se retira do sumário do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 19-09-2017, processo n.º 93/17.1RRLSB.L1-7:
“II.–A prova por amostragem visa a demonstração de um universo de coisas ou situações tomando por base apenas parte desse universo.
III.–Quer isto dizer que, exigir-se-á algum cuidado na utilização da prova por amostragem, tendo de aferir-se sobre a confiabilidade da mesma prova e, eventualmente até, da aceitabilidade das técnicas utilizadas.
IV.–Seja como for, o juízo probatório não tem de ter por pressuposto um juízo de certeza absoluta nem assentar num mero exercício de lógica, cabendo nomeadamente a utilização de presunções como meio de prova, a partir de determinados indícios que as autorizam”.
Note-se também que nenhum indício, e menos ainda um indício sério, foi apresentado pela AT Requerida relativamente aos dois factos controvertidos, pelo que, nesse ponto, acompanhamos conclusões encontradas na fundamentação da Decisão Arbitral proferida no processo n.º 720/2021-T:
“Face ao regime de repartição do ónus da prova, não basta que a AT enuncie uma situação de dúvida, de resto não fundamentada, sobre os documentos apresentados pela Requerente (…)
Ora, as suspeições da AT devem assentar em factualidade de que se possa extrair um juízo fundado de dúvida de que as declarações do sujeito passivo não refletem uma realidade tributária verosímil. Por conseguinte, não tendo sido apresentados elementos idóneos pela AT que permitam afastar a presunção estabelecida no artigo 75º, nº 1, da LGT, entende-se que a documentação existente nos autos, comprova de modo suficiente (…).”
Note-se, por último, o disposto no artigo 100.º do CPPT, sob a epígrafe “Dúvidas sobre o facto tributário e utilização de métodos indirectos”:
“1 - Sempre que da prova produzida resulte a fundada dúvida sobre a existência e quantificação do facto tributário, deverá o acto impugnado ser anulado.
2 - Em caso de quantificação da matéria tributável por métodos indirectos não se considera existir dúvida fundada, para efeitos do número anterior, se o fundamento da aplicação daqueles consistir na inexistência ou desconhecimento, por recusa de exibição, da contabilidade ou escrita e de mais documentos legalmente exigidos ou a sua falsificação, ocultação ou destruição, ainda que os contribuintes invoquem razões acidentais (…).”
Aderimos, neste tema, à opinião de Elisabete Louro Martins (in O Ónus da Prova no Direito Fiscal, 2010, Coimbra Editora, p. 266):
“existe no art. 100.º do CPPT uma regra de ónus de prova objectivo, que determina que, em caso de dúvida insanável resultante da actividade probatória dos intervenientes no processo, o acto de liquidação deverá ser anulado, o que significa que o Tribunal deverá ficcionar que a Administração não demonstrou os factos constitutivos do direito de tributar, regra que é justificada pelo princípio da legalidade e pelo princípio da prossecução do interesse público, que constituem os princípios basilares da actividade da Administração, a qual não pode actuar como parte no processo
No caso sub judice, não nos restam dúvidas quanto à dificuldade e onerosidade da produção de prova relativamente a todos os contratos em apreço, dado o seu muito elevado número (mais de 50.000 contratos por mês), e que não seria razoável exigir à Requerente que remetesse cópia de todos os contratos à AT, durante o procedimento gracioso, ou ao Tribunal Arbitral, em sede de impugnação arbitral.
É também manifesto que, quer no procedimento de reclamação graciosa, quer no presente processo arbitral, a Requerente demonstrou a sua inteira disponibilidade para colaborar na descoberta da verdade material, e cumpriu, com a diligência exigível, os deveres de esclarecimento que sobre ela impendiam ao abrigo do dever de colaboração estatuído no n.º 1 do art.º 59.º da LGT.
Por sua vez, a AT não só optou por não se deslocar às instalações da Requerente para verificar o procedimento interno implementado pela Requerente para determinar a base de incidência das transações para efeitos de IS e o cumprimento dos planos de pagamento em causa, como não invocou quaisquer indícios de que o alegado pela Requerente não teria correspondência com a verdade material, como lhe incumbia à luz do princípio do inquisitório e em cumprimento do dever de descoberta material.
Dispõe o artigo 58.º da LGT que: “A administração tributária deve, no procedimento, realizar todas as diligências necessárias à satisfação do interesse público e à descoberta da verdade material, não estando subordinada à iniciativa do autor do pedido”. Daqui se retira que é dever da AT inteirar-se da real situação contributiva do sujeito passivo e dos factos por este alegados, sobretudo quando este apresenta, através de reclamação graciosa, elementos comprovativos do que alega e demonstra a sua inteira disponibilidade para colaborar no apuramento da verdade material.
No Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 07/05/2013, processo n.º 06418/13, pode ler-se o seguinte:
“O princípio do inquisitório, está consagrado no âmbito do procedimento gracioso tributário, no artº.58, da L.G.Tributária, de acordo com o qual devendo a A. Tributária proceder às diligências que considere convenientes para a descoberta da verdade material. O princípio do inquisitório justifica-se pela obrigação de prossecução do interesse público imposta à actividade da Administração Tributária (artº.266, nº.1, da C.R.P., e artº.55, da L.G.T.) e é corolário do dever de imparcialidade que deve nortear a sua actividade (artº.266, nº.2, da C.R.P., e artº.55, da L.G.T.). Este dever de imparcialidade, reclama que a Fazenda Pública procure trazer ao procedimento todas as provas relativas à situação fáctica em que vai assentar a decisão, mesmo que elas tenham em vista demonstrar factos cuja prova seja contrária aos interesses patrimoniais da Administração. Concluindo, este princípio, obriga a administração tributária a realizar todas as diligências que se afigurem necessárias à satisfação do interesse público e à descoberta da verdade material. Quer isto dizer, que todas as diligências devem ser efectuadas ainda que as mesmas não tenham sido requeridas, não dependendo por isso de um qualquer impulso procedimental do sujeito passivo.”
In casu, ao ignorar os elementos de prova oferecidos pela Requerente com o objetivo de comprovar a sua situação tributária no âmbito de procedimento de reclamação graciosa, a AT violou o princípio do inquisitório e o seu dever de descoberta da verdade material (contidos no artigo 58.º da LGT).
Em face de todo o exposto, cumpre ao Tribunal Arbitral (i) anular os atos tributários de liquidação de IS ora impugnados, no valor de € 463.523,77, e a decisão de indeferimento da reclamação graciosa que versou sobre os mesmos, aqui também impugnada, e (ii) condenar a AT na restituição do valor indevidamente liquidado e pago pela Requerente (€ 463.523,77), o que se determina.
Dos juros indemnizatórios
De acordo com o disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a Administração Tributária, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo, cabendo-lhe “restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito”, o que está em sintonia com o preceituado no artigo 100.º da LGT, aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT.
No que diz respeito ao direito a juros indemnizatórios, dispõe o artigo 43.º da LGT:
“Artigo 43.º
Pagamento indevido da prestação tributária
1 – São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.
2 – Considera-se também haver erro imputável aos serviços nos casos em que, apesar da liquidação ser efectuada com base na declaração do contribuinte, este ter seguido, no seu preenchimento, as orientações genéricas da administração tributária, devidamente publicadas.
3. São também devidos juros indemnizatórios nas seguintes circunstâncias:
a) Quando não seja cumprido o prazo legal de restituição oficiosa dos tributos;
b) Em caso de anulação do acto tributário por iniciativa da administração tributária, a partir do 30.º dia posterior à decisão, sem que tenha sido processada a nota de crédito;
c) Quando a revisão do acto tributário por iniciativa do contribuinte se efectuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à administração tributária.
d) Em caso de decisão judicial transitada em julgado que declare ou julgue a inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma legislativa ou regulamentar em que se fundou a liquidação da prestação tributária e que determine a respetiva devolução.
4. A taxa dos juros indemnizatórios é igual à taxa dos juros compensatórios.
5. No período que decorre entre a data do termo do prazo de execução espontânea de decisão judicial transitada em julgado e a data da emissão da nota de crédito, relativamente ao imposto que deveria ter sido restituído por decisão judicial transitada em julgado, são devidos juros de mora a uma taxa equivalente ao dobro da taxa dos juros de mora definida na lei geral para as dívidas ao Estado e outras entidades públicas.”
No caso sub judice, os erros que afetam liquidações de IS contestadas não são imputáveis à AT, visto que não foram por ela praticadas. No entanto, o mesmo não sucede com o indeferimento da reclamação graciosa apresentada pela Requerente. A verdade é que deveria a AT deferido a reclamação graciosa apresentada pela Requerente no prazo de quatro meses (nos termos do artigo 57.º, n.º 1, da LGT). Não o tendo feito, a AT manteve uma situação de ilegalidade, sendo-lhe assim imputável erro de direito enquadrável no n.º 1 do artigo 43.º da LGT. Conforme se pode ler no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo proferido no âmbito do processo n.º 0890/16, em 18-01-2017: “[e]m caso de retenção na fonte e havendo lugar a impugnação administrativa (reclamação graciosa ou recurso hierárquico) o erro passa a ser imputável à AT depois de eventual indeferimento da pretensão deduzida pelo contribuinte”.
Nestes termos, conclui-se que não poderá deixar de proceder o pedido de condenação quanto aos juros indemnizatórios, com fundamento em erro imputável aos serviços (no mesmo sentido, v. Decisão Arbitral de 14-05-2019, processo n.º 637/2018-T; Decisão Arbitral de 27-05-2019, processo n.º 678/2018-T; Decisão Arbitral de 13-07-2022, processo n.º 115/2022-T; Decisão Arbitral de 28-07-2022, processo n.º 816/2021-T).
No que se refere ao momento a partir do qual são devidos os juros indemnizatórios, pronunciou-se o Supremo Tribunal Administrativo no Acórdão proferido no âmbito do processo n.º 0360/11.8BELRS, de 07 de abril de 2021:
“(…) afigura-se-nos justo e equitativo que a indemnização ao contribuinte (decorrente do pagamento de juros indemnizatórios, pela AT) não retroaja ao momento da prática do ato de retenção na fonte (da responsabilidade do substituto tributário), porquanto, tratando‑se de uma situação de autoliquidação, só com a competente impugnação administrativa, atempada, os serviços da AT ficam em condições de conhecer e reparar uma cometida ilegalidade, sendo, a partir do momento em que não assumem a respetiva reparação, justificado o ressarcimento do sujeito passivo, decorrente de não receber e passar a dispor desde esse momento (que podia ter sido de viragem) do imposto indevidamente entregue ao Estado, através do mecanismo da substituição tributária.”
Nestes termos, os juros indemnizatórios começam a contar (a) da data da decisão de indeferimento da reclamação graciosa, ou (b) do término do prazo de quatro meses referido no artigo 57.º, n.º 1, da LGT, se este ocorrer antes da data da decisão de indeferimento da reclamação graciosa.
DECISÃO
Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral julgar o pedido de pronúncia arbitral procedente e:
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Anular os atos de liquidação de Imposto do Selo impugnados, relativos ao período compreendido entre novembro de 2021 e dezembro de 2022, no valor global de € 463.523,77;
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Anular a decisão de indeferimento da reclamação graciosa n.º ...2023...;
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Condenar a AT Requerida ao reembolso do montante total de Imposto de Selo entregue, em excesso, pela Requerente, no valor de € 463.523,77;
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Condenar a AT Requerida no pagamento de juros indemnizatórios, sobre o montante de € 463.523,77, calculados nos termos supra expostos.
VALOR DO PROCESSO
Fixa-se o valor do processo em € 463.523,77, nos termos do artigo 306.º, n.º 1, do CPC e do 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT.
CUSTAS
Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 7.344,00, a cargo da Requerida, em razão do decaimento.
Notifique-se.
CAAD, 13 de março de 2025
O Tribunal Arbitral,
Rita Correia da Cunha
Augusto Vieira
Magda Feliciano
(Com declaração de voto vencido)
VOTO DE VENCIDO
Não acompanho a presente Decisão Arbitral pelas seguintes razões que, sinteticamente, exponho:
1 – O Requerente impugnou no processo arbitral a decisão de indeferimento da reclamação graciosa que apresentou contra os actos de auto-liquidação de IS relativos ao período entre Novembro de 2021 e Dezembro de 2022.
2 – A reclamação graciosa apresentada pelo Requerente teve como fundamento lapso imputável ao Requerente no procedimento de liquidação de IS relativamente aos saldos acumulados na modalidade de pagamento fraccionado sem juros;
3 – Em consequência do erro de procedimento de liquidação de IS pelo Requerente, peticiona aquele pela anulação da decisão de indeferimento da reclamação graciosa e, em consequência dos actos de auto-liquidação de IS referidos, com fundamento no erro de liquidação de IS relativamente a todas as transacções realizadas e declaradas entre Novembro de 2021 e Dezembro de 2022, por não estarem aqueles factos tributários sujeitos à verba 17.1.1 da TGIS, na medida em que não houve “utilização de crédito por prazo igual ou superior a 1 ano”;
4 – Para prova do direito de anulação da decisão sobre a reclamação graciosa apresentada, por falta de subsunção das operações de crédito comunicadas pelo Requerente à AT na norma de incidência prevista na verba 17.1.1 da TGIS, o Requerente juntou, em sede de Reclamação Graciosa, 6 documentos, consubstanciados na DM de IS do referido período, um protocolo de colaboração entre C..., D..., S.A. E E..., S.A. F..., S.A. G..., S.A. H..., S.A., uma tabela elaborada pelo Requerente com as suas contas sobre o IS a receber e informações fiscais sobre a concessão de crédito e o IS.
5 – Em sede de audição-prévia, a AT notificou o Requerente da falta de prova dos factos alegados, nos seguintes termos:
“Acontece que, na situação que se aprecia, consideramos insuficiente peticionar a devolução de € 463.523,77, referentes a Imposto do Selo alegadamente liquidado sobre bases tributáveis que não estão sujeitas a tributação do IS apenas com base nos protocolos de colaboração entre a Reclamante “A..., S.A." e as entidades aderentes do Grupo B... Estas situações têm de ser cabalmente comprovadas e documentalmente fundamentadas. Rejeita-se assim a tentativa da Reclamante em transferir para a AT o ónus da comprovação do que afirma, quando a obtenção e detenção desses elementos só a ele, legal e regulamentarmente, lhe diz respeito. Ademais, o Reclamante sustenta a sua pretensão, apenas com a petição e protocolos de cooperação, não é prova suficiente que determine sem margem de dúvidas que os valores tributados diziam respeito a utilização do Cartão ... em modalidades de pagamento fracionado sem juros, que não existiu qualquer incumprimento em qualquer um dos acordos estabelecidos entre os utilizadores de cartão “..." e as entidades que assinaram o protocolo de cooperação com a Reclamante. Concluímos, assim, que a ora Reclamante não trouxe prova suficiente de modo a percebermos se aos valores tributados pelas verbas 17.1.1 e 17.1.2, dizem apenas respeito aos valores utilizados pelo cartão ... na modalidade de pagamentos fracionados sem juros, e que não ocorreu qualquer caso de incumprimento.
6 – Face à invocada insuficiência de prova, o Requerente em sede de resposta em audição-prévia, juntou aos autos de reclamação, alguns contratos de concessão de crédito, onde não chegaram a ser cobrados juros, cujo pagamento terá sido efectuado dentro do prazo de até 1 ano;
7 – Tendo a AT mantido a decisão de indeferimento, em face da falta de prova dos factos tributários relevantes, o Requerente deduziu a PA, que deu lugar a este processo, impugnando a referida decisão de indeferimento da RG e juntando aos autos para prova do direito à anulação da decisão 9 documentos, que correspondem em grande parte e no que releva para a prova dos factos relevantes, aos documentos que já tinha remetido em sede de RG.
8 - Entendeu-se na presente Decisão que a AT violou o princípio do inquisitório no procedimento administrativo, porque não atendeu aos elementos comprovativos dos factos que o Requerente alegou, ainda que por amostragem.
9 - Ora, no m entender, a AT não ignorou os elementos de prova oferecidos pelo Requerente, mas antes os considerou insuficientes, o que fundamentou, e requereu a produção de prova adicional sobre os factos tributários relevantes, logo em sede de audição-prévia (vide ponto 5 deste voto).
10 - Em todo o caso, sempre se dirá ainda que o princípio do inquisitório, que se justifica pela obrigação e prossecução do interesse público da AT na descoberta da verdade material, não dispensa os interessados particulares da obrigação de colaborarem na produção de provas, como se prevê no art. 59.º da LGT.
11 - Só a falta de realização pela AT de diligências que lhe seja possível levar a cabo ou a falta de solicitação aos interessados de elementos probatórios necessários à instrução do procedimento, constitui vício deste, susceptível de implicar a anulação da decisão nele tomada. (Cfr. LGT, Comentada e Anotada, Diogo Leite Campos, Benjamim Silva Rodrigues ee Jorge Lopes de Sousa, pag.269);
12 – No caso em apreço, resulta dos documentos juntos aos autos, em especial do projecto de decisão e da decisão final sobre o procedimento administrativo que a AT fundamentou a insuficiência de prova dos factos invocados pelo Requerente e requereu a produção de prova adicional sobre os factos tributários relevantes.
13 – Parece-me assim, em conformidade com a jurisprudência do STA, que a AT satisfez o princípio do inquisitório no procedimento administrativo relacionado com a impugnação das autoliquidações de IS levadas a cabo pelo Requerente, na medida em que a AT, em sede de audição-prévia, solicitou a produção de prova adicional sobre os factos tributários relevantes, tendo fundamentado a sua pretensão, de forma a que o Requerente ficou a saber que a prova dos factos tributários deveria ser evidenciada pelos contratos de crédito e outros documentos que revelem a falta de subsunção de cada um das operações de crédito às verbas 17.1. e 17.2 da TGIS;
14 – O Requerente, ao abrigo do princípio da colaboração, deveria, portanto, ter fornecido a informação e demais dados relevantes para o caso, que só o mesmo dispõe, de forma a habilitar a AT a decidir o pedido de anulação que apresentou. (Ac. STA, Proc. 31158, de 15.03.1994, Ac. STA, Proc. 23036, de 30.04.1994)
15 – Ao invés, escusou-se o Requerente ao cumprimento de tal obrigação com base no facto de estarem em causa centenas de operações e contratos, sendo, portanto essa sua obrigação dispensável e fazendo crer que a mesma obrigação seria da AT.
16 – Sucede que, a obrigação de investigação da AT não impõe à AT o ónus da prova dos factos constitutivos do direito à anulação da decisão sobre a reclamação graciosa apresentada pelo Requerente.
17 – Acresce que os actos impugnados pelo Requerente não beneficiam da presunção de veracidade prevista no artigo 75.º, n.º 1 da LGT, uma vez que é o Requerente que “desfaz” aquela presunção ao invocar erro daqueles actos de auto-liquidação.
18 - Esta circunstância determina, na prática, uma verdadeira inversão do ónus da prova relativamente aos factos a que se refere a omissão/erro invocada, pois à AT caberá apenas provar a existência da deficiência na contabilidade ou escrita.
19 - No caso sub judice, é o próprio Requerente que confessa o erro/deficiência da sua da sua contabilidade, pelo que o ónus da AT fica assim satisfeito, em face do afastamento da presunção de veracidade da contabilidade do Requerente, não lhe cabendo a contra prova por indícios, aplicável apenas nas situações previstas no n.º 1 do artigo 75.º da LGT, isto é, que beneficiam da presunção de veracidade.
20 - De notar ainda que, não obstante, a impugnação conjunta dos actos tributários de IS subjacentes à decisão de indeferimento da reclamação graciosa impugnada, cada operação de crédito dá lugar ou não a um pagamento de IS consoante se verifiquem ou não os pressupostos de aplicação do IS.
21 - Em consequência, independentemente do princípio do inquisitório e em face das regras sobre o ónus da prova, cabia ao Requerente a prova dos factos constitutivos do seu direito à anulação do IS liquidado em cada uma das operações de crédito declaradas pelo Requerente como sujeitas a IS, por lapso.
22 - Pretendendo o Requerente anular os próprios factos tributários comunicados à AT, cabia-lhe provar que não se verificam os factos previstos nas normas de incidência previstas na verba 17.1 e verba 17.2 da TGIS, nomeadamente, que cada uma das operações de concessão de crédito identificadas não se consubstanciaram numa real utilização de crédito, com cobrança de juros, por período superior a 1 ano.
23 - Contudo, o Requerente apenas juntou alguns contratos de crédito, peticionando, no entanto, pela anulação da cobrança de IS em relação a todos e cada um dos actos de IS impugnados (centenas de operações de crédito).
24 - A prova da não cobrança de juros e da não utilização de crédito por período superior a 1 ano constituem factos constitutivos do direito ao não pagamento de IS, e do direito ao reembolso, em relação a cada uma das operações de crédito.
25 - É, assim naturalmente insuficiente para prova e anulação de centenas de operações de crédito liquidadas a centenas de pessoas diferentes, a junção de meia dúzia de contratos relativamente a meia dúzia de operações declaradas como sujeitas a IS.
26 - Escusa-se o Requerente, no entanto, na dimensão e complexidade do procedimento de concessão deste crédito, para alegar um pretenso direito a fazer prova por amostragem ou na obrigação da AT se deslocar aos seus escritórios para entender a forma de funcionamento do sistema informático de gestão dos seus contratos de crédito.
27 - Entendo, no entanto, que a proposta de prova da Requerente – imputando a falta de diligência neste sentido da AT – é desadequada ao fim pretendido e desproporcional, pois, se o sistema informático de gestão dos contratos de crédito da Requerente fosse idóneo, o Requerente não teria, por lapso, processado IS a mais, como alega, por falta de subsunção dos contratos em face da Lei de forma correcta.
28 - Ademais, a complexidade do sistema de gestão de crédito que o Requerente criou, na sua organização de negócio, com vista a obter rendimentos/lucros, não dispensa o Requerente de cumprir com as suas obrigações contabilísticas, conforme resulta do seguinte do artigo 53.º do Código do IS:
“Obrigações contabilísticas
1 - As entidades obrigadas a possuir contabilidade organizada nos termos dos Códigos do IRS e do IRC devem organizá-la de modo a possibilitar o conhecimento claro e inequívoco dos elementos necessários à verificação do imposto do selo liquidado, bem como a permitir o seu controlo.
2 - Para cumprimento do disposto no n.º 1, são objeto de registo as operações e os atos realizados sujeitos a imposto do selo.
3 - O registo das operações e atos a que se refere o número anterior é efetuado de forma a evidenciar:
-
O valor das operações e dos atos realizados sujeitos a imposto, segundo a verba aplicável da Tabela;
-
O valor das operações e dos atos realizados isentos de imposto, segundo a verba aplicável da Tabela;
-
O valor do imposto liquidado, segundo a verba aplicável da Tabela;
-
As alterações efetuadas através da apresentação da declaração prevista no n.º 3 do artigo 52.º-A.”
4 - As entidades que, nos termos dos Códigos do IRC e do IRS, não estejam obrigadas a possuir contabilidade organizada, bem como os serviços públicos, quando obrigados à liquidação e entrega do imposto nos cofres do Estado, devem possuir registos adequados ao cumprimento do disposto no n.º1.
29 – De facto, resulta da Lei que as utilizações de crédito que o Requerente invoca como fundamento do seu direito deviam ter expressão na sua contabilidade, isto é, ser suportados pelos respectivos documentos (Vide. Tributação do Património, IMI-IMT e IS Anotado e Comentados, António Santos rocha e Eduardo José Martins Brás, pp. pag. 685-686, Almedina 2015).
30 - É que, no caso sub judice, estando em causa um elevado número de operações e factos tributários relacionados com contratos de crédito, a prova dos movimentos de crédito e débito não pode ser substituída por prova testemunhal, circunscrita ao depoimento de dois ex-colaboradores do Requerente, em face da obrigação acessória prevista no artigo 53.º do Código do IS.
31 - A prova testemunhal, ainda que possa completar ou esclarecer a prova documental, não pode substituir-se à prova legal dos movimentos contabilísticos a que se refere o artigo 53.º do Código do Imposto de Selo.
32 - Também a prova por amostragem carreada para os autos é, em face do quadro legal aplicável neste caso, totalmente inidónea à prova da falta de incidência de IS sobre cada um dos factos tributários declarados pelo Requerente.
33 - Na verdade, detectando o Requerente que as declarações de IS entregues continham erros, deveria ter procedido à apresentação de uma declaração de alterações dessa declaração com erros, nos termos previstos no artigo 53.º do Código do IS.
34 - Não obstante os indícios que possam resultar da pequena amostra carreada para os autos pelo próprio Requerente dessa amostra, os factos constitutivos do direito ao reembolso do valor total reclamado pelo Requerente, não podem ser presumidos ou indiciados, têm de ser, neste caso concreto, provados, por força do princípio da legalidade tributária, através de documentos, como resulta do artigo 53.º do Código do IS.
35 - Não tendo o Requerente feito prova dos factos constitutivos dos direitos que invoca, não é aqui aplicável qualquer dúvida, que possa sustentar a aplicação do artigo 100.º do CPPT.
36 - Pelas razões sumariamente expostas, considero o PA totalmente improcedente.
Magda Feliciano