Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 620/2014-T
Data da decisão: 2015-01-13  IRS  
Valor do pedido: € 1.404.549,98
Tema: IRS – mais-valias; regime transitório da categoria G
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Decisão Arbitral

 

Processo arbitral n.º 620/2014-T

Requerentes: A...e B...

Requerida: Autoridade Tributária e Aduaneira

Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (“IRS”), 2010

 

 

 

ACÓRDÃO ARBITRAL

 

 

       Os árbitros, Jorge Lino Ribeiro Alves de Sousa (árbitro presidente), Alexandra Coelho Martins e Jorge Júlio Landeiro de Vaz, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”), de acordo com o disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a) do Decreto-lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, para formarem o Tribunal Arbitral Colectivo, constituído em 15 de Outubro de 2014, acordam no seguinte:

 

 

I.         RELATÓRIO

 

A..., contribuinte n.º …, e B..., contribuinte n.º …, ambos residentes na Rua …, Lisboa, adiante “Requerentes”, requereram a constituição de Tribunal Arbitral ao abrigo dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 10.º, n.º 1, alínea a) do Decreto-lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”).

 

O pedido de pronúncia arbitral tem por objecto a apreciação da legalidade e a anulação do acto tributário de liquidação de IRS emitido sob o n.º 2014 ..., referente ao ano 2010, no valor de € 1.404.549,98, e, bem assim, a condenação da Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT”) ao pagamento de uma indemnização pela prestação de garantia indevida, conforme previsto no artigo 53.º, n.ºs 1 e 3 da Lei Geral Tributária (“LGT”).

 

       Os Requerentes fundamentaram a sua pretensão em vícios formais e substantivos, alegando, em síntese:

 

(a)    A preterição de formalidades legais essenciais no procedimento inspectivo, por este ter sido classificado pela AT como interno, não obstante configurar, na realidade, um procedimento de inspecção externo, extravasando assim o âmbito da Ordem de Serviço notificada e gerando a anulabilidade do acto de liquidação ao abrigo dos artigos 46.º, n.º 2 e 49.º, n.º 1 do Regime Complementar do Procedimento de Inspecção Tributária (“RCPIT”), a que acresce a ultrapassagem do prazo de duração legalmente previsto para o procedimento de inspecção;

 

(b)   O vício de falta de fundamentação do acto tributário, por terem sido notificados de um acto de liquidação de imposto no valor de € 1.404.549,98, o qual não tem justificação no relatório de inspecção, pois este prevê uma correcção de IRS substancialmente inferior, de € 560.000,00, resultante da tributação de uma mais-valia de € 2.800.000,00 à taxa de 20%. Segundo os Requerentes, a falta de fundamentação do acto implica a nulidade do mesmo, por ofensa do direito constitucionalmente consagrado de os contribuintes conhecerem os fundamentos dos actos que alteram a sua esfera jurídica;

 

(c)    A violação do artigo 10.º, n.º 3 do Código do IRS e, bem assim, do regime transitório de não sujeição a este imposto, previsto no artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de Novembro.

 

Neste âmbito, de acordo com os Requerentes, o estabelecimento comercial “C...” ingressou na titularidade da Requerente B... em 1986, sendo irrelevante para efeitos fiscais o facto dessa transmissão ter sido formalizada por escritura de trespasse celebrada apenas em 2 de Abril de 1990 e de o respectivo registo apenas ter ocorrido nesse ano, uma vez que a posse efectiva (“entrega física”) do estabelecimento remonta a 1986 e foi acompanhada do pagamento integral do preço. 

 

Em seu entender, a subsequente transmissão do dito estabelecimento pela Requerente B..., a 31 de Agosto de 2006, para a titularidade de uma sociedade por quotas unipessoal detida por aquela (através de aumento do capital por entrada em espécie), configurou não uma transmissão, mas uma afectação de património enquadrável no artigo 10.º, n.º 3, alínea b) do Código do IRS, ficando a tributação suspensa até ao momento da ulterior alienação onerosa dos bens ou de outro facto de efeito equivalente, no caso concreto, a venda das quotas em 2010.

 

Reconhecem que a venda das quotas realizada em 2010 se enquadra no artigo 10.º, n.º 1, alínea b) do Código do IRS, devendo o respectivo ganho ser apurado pela diferença entre o valor de realização e o valor de aquisição (cf. artigo 10.º, n.º 4, alínea a) do mesmo diploma).

 

No entanto, invocam as especificidades do caso para considerar que o valor de aquisição deve ser reportado ao momento da aquisição inicial do estabelecimento (e não da quota) pela Requerente B..., o que entendem ter-se verificado em 1986, ficando o ganho decorrente da alienação do estabelecimento excluído de tributação, de acordo com o Regime transitório da categoria G estabelecido pelo artigo 5.º do Decreto-lei n.º 442-A/88, de 30 de Novembro, que aprovou o Código do IRS.

 

Consideram os Requerentes que o que está em causa é o valor de aquisição do estabelecimento e não da quota, em virtude da aplicação do artigo 10.º, n.º 3, alínea b) do Código do IRS, e que a data de aquisição relevante apenas pode ser a do estabelecimento (e não a da quota).

 

Por fim, analisam o regime do artigo 38.º do Código do IRS, sobre a entrada de património para a realização do capital de sociedade, para reforçar a aplicação do regime previsto no artigo 10.º, n.º 3, alínea b) do Código do IRS, e concluir que a afectação do estabelecimento, ocorrida em 2006, não consubstanciou uma verdadeira transmissão. Deste modo, apenas teria ocorrido uma aquisição em 1986 (do estabelecimento) e uma alienação em 2010 (de quotas), estando as correspondentes mais-valias excluídas de tributação, na parte correspondente ao aumento de capital, por aplicação do regime transitório previsto no artigo 5.º do diploma que aprova o Código de IRS.

 

Peticionam a anulação do acto de liquidação adicional de IRS referente ao ano 2010 e a condenação da AT no pagamento de uma indemnização por prestação de garantia indevida, ao abrigo do artigo 53.º, n.ºs 1 a 3 da LGT.

 

Com a petição foram juntos documentos e arroladas quatro testemunhas.

 

Dentro do prazo previsto no artigo 13.º, n.º 1 do RJAT, o acto tributário controvertido de liquidação de IRS foi parcialmente revogado por despacho do Director-Geral da AT, datado de 15 de Setembro de 2014, reduzindo-se ao valor de € 560.000,00.

 

Os Requerentes, notificados do despacho de revogação parcial do acto tributário, pronunciaram-se no sentido da manutenção do pedido de pronúncia arbitral, pelo montante remanescente de € 560.000,00, sustentando, não obstante, que a anulação deveria ser integral, em virtude de o vício de falta de fundamentação afectar todo o acto, uno e indivisível.

 

A AT apresentou resposta arguindo que:

 

(i)     Não se verifica a preterição de formalidades essenciais no procedimento inspectivo, sendo correcta a classificação da acção inspectiva como interna. A mera solicitação de prova documental dirigida aos Requerentes, na sequência da identificação de mais-valias não declaradas – mediante cruzamento das declarações modelo 3 com informação de que a AT dispunha sobre a compra e venda de participações sociais – não configura uma acção inspectiva externa. Se assim fosse, qualquer pedido de esclarecimento ou diligência efectuada nas instalações da AT seriam tidos como acção inspectiva externa, tornando inaplicável o artigo 13.º, alínea a) do RCPIT e comprometendo as receitas do Estado protegidas no artigo 103.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa (“CRP”).

 

Acrescentam que a realização de uma diligência de audição de testemunhas teve lugar a pedido dos próprios Requerentes e ocorreu nas instalações da AT, não existindo qualquer deslocação ao domicílio ou instalações dos Requerentes ou de terceiros, e que não foi com base na informação enviada pelos sujeitos passivos que se fundamentou o relatório inspectivo, mas sim na ausência da entrega do anexo G da respectiva declaração de IRS;

 

(ii)    Foram dadas a conhecer aos Requerentes, de forma clara, congruente e suficiente, as razões de facto e de direito que alicerçam as correcções efectuadas, tendo estes sido notificados para exercer o direito de audiência prévia relativamente ao projecto de relatório de inspecção e exerceram tal faculdade. Acresce que numa situação de falta de fundamentação tinham ao seu dispor o mecanismo previsto no artigo 37.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”) que não accionaram. O lapso de cálculo reflectido na liquidação de IRS foi corrigido em sede de revogação parcial, mantendo intocáveis os fundamentos constantes do relatório inspectivo;

 

(iii)   Não existe qualquer violação do artigo 10.º do Código do IRS. Está em causa a tributação das mais-valias da venda de participações sociais, no ano 2010, de uma sociedade constituída em 2006, ou seja, fora do âmbito de aplicação temporal da disposição transitória do artigo 5.º do Decreto-lei n.º 442-A/88, de 30 de Novembro.

 

No que se refere à precedente entrada em espécie do estabelecimento na sociedade, ocorrida em 2006, esta consubstancia uma transmissão desse estabelecimento da Requerente B... para a esfera da sociedade, ambas dotadas de personalidade jurídica e tributária, e não é objecto dos autos. Em apreciação está uma outra operação, subsequente (2010), de venda das quotas da sociedade pela Requerente. O estabelecimento passou a ser um activo da sociedade e é uma realidade distinta da participação social. Não é objecto da tributação a mais-valia incidente sobre um bem que compõe o activo da sociedade mas sim a relativa à venda da quota.

 

Por outro lado, o regime transitório seria inaplicável, mesmo na tese das Requerentes, pois caso se tivesse comprovado a aquisição da posse do estabelecimento em 1986, tal não implicaria a exclusão de tributação, porquanto a aquisição de um determinado bem dá-se pela transferência da titularidade, não pela mera posse e o efeito jurídico translativo da propriedade teve lugar em 1990, após a entrada em vigor do Código do IRS.

 

A AT conclui dever a acção ser julgada improcedente e a entidade Requerida absolvida do pedido. 

 

Juntou a estes autos um documento e juntou o processo administrativo, do que se deu conhecimento aos Requerentes.

 

Na sequência da notificação, em 29 de Setembro de 2014, de um novo acto de liquidação de IRS, sob o n.º 2014 ..., no valor de € 618.700,32, da demonstração de liquidação de juros, no valor de € 61.711,32, e da demonstração de acerto de contas que apura um saldo de € 0,00, os Requerentes requereram a ampliação do pedido, por forma a ser também apreciada a legalidade destes actos, cuja emissão consideram extemporânea e, bem assim, ilegal por falta de fundamentação. 

 

A Requerida, no exercício do contraditório, sustenta ser evidente que se trata tão-só do acerto da liquidação anterior, que não resultou de uma requalificação de factos tributários ou de uma nova regulação da situação jurídica, sendo um mero recálculo. 

 

Considera a AT que não ocorre extemporaneidade, nem, de igual modo, falta de fundamentação, encontrando-se esta última vertida no despacho de revogação parcial do acto de liquidação. No tocante à diferença de valores a mesma respeita à imputação de juros compensatórios como se retira da análise da nota de liquidação. Conclui que não há razão para ampliação do pedido, mas, antes, para a sua redução.

 

Não tendo sido articulada matéria susceptível de discussão na reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT e constando do processo todos os elementos para decidir de direito foi dispensada a aludida reunião e a produção da prova testemunhal arrolada, relegando-se para final o conhecimento da questão de ampliação do pedido. Fixou-se em 12 de Janeiro de 2014 a data de prolação da decisão final.

 

 

II.      QUESTÕES A DECIDIR

 

São quatro as principais questões a apreciar e decidir:

 

(a)    Admissibilidade da ampliação do pedido;

 

(b)   Preterição de formalidades legais essenciais no procedimento inspectivo (interno ou externo) e efeito invalidante do acto de liquidação;

 

(c)    Falta de fundamentação do acto tributário, quer relativamente ao primeiro acto de liquidação adicional de IRS, quer ao ulterior acto correctivo que resultou da revogação parcial dessa liquidação; 

 

(d)   Aplicabilidade do regime transitório de exclusão de tributação em IRS, previsto no artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de Novembro, aos rendimentos em causa (mais-valias resultantes da venda de participações sociais de uma sociedade constituída em 2006), assente no pressuposto do enquadramento da operação e respectivos rendimentos gerados no artigo 10.º, n.º 3, alínea b) do Código do IRS.

 

Importa, por fim, aquilatar dos fundamentos e extensão do pedido de condenação da AT ao pagamento aos Requerentes de indemnização por prestação de garantia indevida.

 

 

III.   FUNDAMENTAÇÃO

 

1.        DOS FACTOS

 

1.1.Factos provados

 

Com relevo para a apreciação e decisão das questões suscitadas consideram-se assentes os seguintes factos:

 

A.    Em 2 de Abril de 1990, no … Cartório Notarial de Lisboa, foi celebrada a escritura de trespasse do estabelecimento de Farmácia denominado “C...”, sito em Lisboa, na Avenida …, pelo preço de 25.000.000$00 (vinte e cinco milhões de escudos), em benefício da Requerente mulher, B..., na qualidade de trespassária, tendo sido declarado por todos os outorgantes, incluindo os aqui Requerentes, que aquela tomou posse efectiva do estabelecimento no dia 31 de Março de 1990 – cf. cópia da escritura de trespasse junta com a Resposta da AT e constante do processo administrativo (“PA”), no ficheiro PA 2.

 

B.    Em 22 de Fevereiro de 2006, a Requerente mulher constituiu a sociedade “D... –s Unipessoal, Lda.”, com o capital social por si integralmente detido de € 100.000,00, realizado em dinheiro, tendo a sociedade iniciado a sua actividade, para efeitos de IVA, em 1 de Junho de 2006 – cf. Relatório de Inspecção Tributária (“RIT”), p. 8, constante do ficheiro PA. 

 

C.    Em 31 de Agosto de 2006 a sociedade “D... –, Lda.” aumentou o respectivo capital social por novas entradas no montante global de € 300.000,00, dos quais € 500,00 em numerário e € 299.500,00 em espécie – passando a sociedade a ter o capital social nominal de € 400.000,00, representado por uma quota única pertencente à Requerente mulher – cf. RIT, p. 8, constante do ficheiro PA.  

 

D.    A entrada em espécie respeitou ao estabelecimento “C...” e foi objecto de Relatório de Revisor Oficial de Contas, datado de 12 de Junho de 2006, emitido nos termos do artigo 28.º do Código das Sociedades Comerciais, o qual confirmou o valor atribuído ao estabelecimento, de € 299.500,00 – cf. RIT, p. 8, e Relatório do ROC constantes do ficheiro PA.

 

E.    Em 4 de Janeiro de 2010, a Requerente mulher dividiu a sua quota na sociedade “D... –Unipessoal, Lda.” em duas novas quotas, passando a deter uma quota com o valor nominal de € 380.000,00 e outra com o valor nominal de € 20.000,00 que cedeu, nessa mesma data, a título oneroso, pelo preço total de € 3.200.000,00, respectivamente:

(a)        À sociedade “E...– Farmácia Unipessoal, Lda.”, pelo preço de € 3.040.000,00; e

(b)        A F..., pelo preço de € 160.000,00,

cf. RIT, pp. 6 a 8, e cópia da escritura de divisão, cessões de quotas, renúncia, transformação de sociedade e alteração de pacto, constantes do ficheiro PA.

 

F.    Os Requerentes apresentaram, em 4 de Maio de 2011, a Declaração de IRS modelo 3 relativa aos rendimentos do ano 2010, mas não entregaram o anexo G, referente a mais-valias e outros incrementos patrimoniais. A Declaração entregue originou uma colecta líquida nula e IRS a recuperar no valor de € 3.516,93, conforme constante da liquidação n.º 2011 5002582677 – cf. RIT, pp. 4, 5 e 7, constante do ficheiro PA.

 

G.   Da análise interna efectuada à Declaração modelo 3 apresentada pelos Requerentes, a AT constatou que apesar destes terem celebrado uma escritura de cessão de quotas de uma sociedade, pelo valor de € 3.200.000,00, não entregaram o respectivo Anexo G (mais-valias e outros incrementos patrimoniais), tendo sido iniciado um procedimento inspectivo ao ano 2010, com base na Ordem de Serviço n.º OI2013..., de 1 de Fevereiro de 2013, de âmbito parcial – cf. RIT, p. 4, constante do ficheiro PA.

 

H.   Por ofício datado de 6 de Agosto de 2013, a Direcção de Finanças de Lisboa dirigiu à Requerente mulher um “Pedido de Informações e Esclarecimentos – Art.º 59º e 69º da Lei Geral Tributária (LGT) e Art.º 48º do Regime Complementar do Procedimento e Inspecção Tributária (RCPIT)”, dando nota do início de um procedimento interno de inspecção ao ano 2010 e solicitando os elementos/esclarecimentos a seguir indicados:

 

1. Justificar a não inclusão dos anexos G ou G1 da declaração de rendimentos Modelo 3 entregue neste exercício, uma vez que em 2010-01-04 a Dra. B... cedeu juntamente com o seu marido Sr. A..., as quotas que detinha na sociedade D..., Lda., pelo preço de € 3 200 000,00.

2.           Indicar a data em que a farmácia com o Alvará nº ... de 19-12-1949, entrou na posse da Dra. B..., bem como o valor de aquisição da mesma. (…)”.

cf. RIT, p. 7, e cópia do ofício ... da Direcção de Finanças de Lisboa , constantes dos ficheiros PA e PA 2.

 

I.      Em resposta a este pedido de elementos e esclarecimentos, os Requerentes informaram que:

 

·         A farmácia entrou na sua posse em 1 de Novembro de 1986, tendo na altura pago 25.000.000$00 (vinte e cinco mil contos); e que

·         A não inclusão dos anexos G ou G1 ficou a dever-se ao disposto no artigo 5º do Decreto-lei n.º 442-A/88, de 30 de Novembro, que aprovou o Código do IRS, referente ao regime transitório da categoria G,

       – cf. RIT, p. 7, e cópia do documento de resposta, constantes dos ficheiros PA e PA 2.

 

J.     A Direcção de Finanças de Lisboa solicitou adicionalmente aos Requerentes, via e-mail, o envio de “cópia de documento comprovativo em como a Farmácia “”, com o alvará nº ..., entrou na posse da Dra. B... em 1/11/1986”, ao que estes responderam, em 23 de Outubro de 2013, que não foi possível localizar o paradeiro do contrato que serviu de base ao negócio, nem comprovativo do pagamento, requerendo uma inquirição de testemunhas para prova da posse naquela data – cf. RIT, p. 7, e cópia do documento de resposta, constantes dos ficheiros PA e PA 2.

 

K.   Em 23 de Dezembro de 2013, a Direcção de Finanças de Lisboa voltou a dirigir um pedido aos Requerentes para junção de cópia do relatório de avaliação do ROC relativo ao aumento de capital social em espécie da sociedade “D... –, Lda." – cf. cópia do ofício n.º ..., constante do ficheiro PA 2.

 

L.    A diligência de inquirição de testemunhas teve lugar em 27 de Dezembro de 2013 nas instalações da Direcção de Finanças de Lisboa – cf. cópia do ofício ..., de 13 de Dezembro de 2013 e transcrição das inquirições constantes do ficheiro PA 2.

 

M.  Em 31 de Janeiro de 2014, foram os Requerentes notificados do projecto de Relatório de Inspecção relativo ao ano 2010 que, para além de propor correcções não contestadas aos rendimentos prediais dos Requerentes, considera que estes auferiram mais-valias no valor global de € 2.800.000,00, tributáveis em IRS como rendimentos da categoria G, ao abrigo dos artigos 9.º e 10.º do Código do IRS, em resultado da alienação das duas quotas detidas pela Requerente mulher na sociedade “D... –, Lda.”, conforme ilustrado nos termos do quadro abaixo reproduzido na p. 9 do projecto de Relatório (cf. projecto junto como documento 2 com o pedido arbitral):

 

 

 

Realização (1)

Aquisição (2)

 

Mais-valia =(1) - (2)

Ano

Mês

Valor

Ano

Mês

Valor

 

2006

02

(a) € 95.000,00

 

2006

08

(b) € 285.000,00

2010

01

€ 3.040.000,00

 

€ 380.000,00

€ 2.660.000,00

 

2006

02

€ 5.000,00

 

2006

08

€ 15.000,00

 

2010

01

€ 160.000,00

 

€ 20.000,00

€ 140.000,00

Total

€ 2.800.000,00

 

N.    Segundo o projecto de Relatório, “pela aplicação da taxa especial (tributação autónoma) do nº 4 do art.º 72º, aos rendimentos de mais-valias de alienação de participações sociais, verifica-se um acréscimo da colecta líquida do sujeito passivo para o ano de 2010, no montante de € 560.000,00 = (€ 2 800 000,00 * 20%).”, cuja liquidação se propõe – cf. projecto junto como documento 2 com o pedido arbitral).

 

O.    Os Requerentes exerceram, em 28 de Fevereiro de 2014, o direito de audição prévia apresentando as razões de facto e de direito pelas quais entendem não ser de aceitar o montante de IRS apurado a título de mais-valias – cf. cópia do direito de audição junto como documento 3 com o pedido arbitral e constante do ficheiro PA.

 

P.     Em 19 de Março de 2014, os Requerentes foram notificados do Relatório Final de Inspecção (“RIT”), que converte em definitivas as correcções propostas no projecto, em concreto no que se refere à liquidação de IRS na importância de € 560.000,00 referente a rendimentos de mais-valias. O ofício de notificação refere o rendimento alterado/apurado relativo ao ano 2010 é de € 2.822.359,52 – cf. cópia do RIT junto como documento 4 com o pedido arbitral e constante do ficheiro PA.

 

Q.    O RIT reafirma, no essencial, a fundamentação do projecto, pronunciando-se ainda sobre o direito de audição, conforme se transcreve parcialmente:

 

1.3. – Mais-valias – alienação de quotas

(…)

A sociedade comercial por quotas que foi alienada no dia 2010/01/04 foi constituída em 2006/02/22 e girava sob a firma “D... –, Lda.

A sociedade comercial foi constituída com o capital social de € 100.000,00, o qual era titulado unicamente pela B.... (…)

Sociedade comercial, que embora sendo unipessoal, é sem dúvida, uma sociedade que passou a dispor de um património pertencente a um sujeito jurídico distinto e autónomo relativamente à sócia. Ou seja, a sociedade constituída é uma entidade jurídica distinta da pessoa (sócia) que a constitui, tendo personalidade jurídica própria.

À data da constituição da sociedade unipessoal por quotas, o sujeito passivo continuou a ser titular em nome individual do estabelecimento comercial “C...” e só em 2006/08/31 aquando da deliberação de aumento de capital decidiu integrá-lo no património da sociedade unipessoal por quotas, na modalidade de entradas em espécie a que foi atribuído o preço de € 299.500,00 (montante atestado por um ROC).

Assim sendo, a “Farmácia” existente em 1986 apenas foi para o património da unipessoal criada em 2006, através do aumento de capital realizado em espécie, pelo que não se pode confundir a quota do sócio com o valor do estabelecimento comercial com o qual a quota foi realizada.

O aumento de capital, verificado na sociedade unipessoal por quotas traduziu-se na transferência da titularidade dos bens que constituíam o activo e passivo do estabelecimento comercial e que estavam na titularidade da pessoa singular Dra. B... para integrarem o património da sociedade unipessoal por quotas.

À data do referido aumento de capital o estabelecimento passou a ser titulado pela sociedade unipessoal por quotas, e a quota única no valor nominal de €400.000,00 é detida pelo sujeito passivo.

Ora, em 2010/01/04 a sociedade unipessoal por quotas divide a sua quota única em duas e cede onerosamente estas a “E...– Unipessoal Lda.”, com o NIF 505409046 e a F..., com o número de identificação fiscal ..., é esta alienação que obrigatoriamente terá de ser objecto de correcção.  

Tal alienação constitui rendimento da categoria G de IRS, conforme prescrito pelo n.º 1, al. a) do art.º 9, do Código do IRS (CIRS) e n.º 1 al. b), do art.º 10, também do CIRS (…).

O valor de realização da alienação das quotas, seria o valor da contraprestação, conforme o descrito no contrato:

O cálculo da Mais-Valia é obtido pela diferença entre o valor de realização e o valor de aquisição conforme a al.a do nº 4 do art. 10º do CIRS. Assim, há lugar ao preenchimento do quadro 8 do anexo G da declaração de rendimentos modelo 3, referente ao ano em que se realizou a transmissão – 2010.

A mais-valia total obtida, determinada com base no disposto nos nº(s) 1 e 3 do art.º 43º, nº1 da al. f), do 44º e al. b) do 48º, todos do CIRS é de € 2 800 000,00, tal como demonstrado no quadro seguinte:

Tendo em conta o disposto no nº 4 do art.º 72º do CIRS, a mais-valia apurada é tributada à taxa de 20% (tributação autónoma). (…)

Assim, e pela aplicação da taxa especial (tributação autónoma) do nº 4 do art.º 72º, aos rendimentos de mais-valias de alienação de participações sociais, verifica-se um acréscimo da colecta líquida do sujeito passivo para o ano de 2010, no montante de € 560.000,00 = (€ 2 800 000,00 * 20%). (…)

 

VIII – DIREITO DE AUDIÇÃO – FUNDAMENTAÇÃO

(…)

6) Tal como enfatiza a Administração Tributária “a sociedade unipessoal por quotas D... – Unipessoal, Lda – foi constituída originariamente em 2006/02/22, com uma entrada em numerário no montante de EUR 100.000,00 sem recurso a qualquer entrada em espécie, cujo acto constitutivo se traduziu num negócio jurídico unilateral “ex novo” e o capital social se realizou unicamente”.

7) No ordenamento jurídico português é pacífico, aliás, que a transferência e a incorporação de património - e não a mera afectação como refere o sujeito passivo – são actos jurídicos autónomos, com efeitos jurídicos diferenciados e susceptíveis, portanto, de produzir novas qualificações jurídico-societárias (é o que ocorre por exemplo, no âmbito do regime jurídico das fusões e em muitas outras áreas do direito fiscal, comercial e até civil).

8) Ora, sendo incontornável que a “Farmácia” existente em 1986 apenas foi transferida para o património da sociedade unipessoal [constituída em 22/02/2006] aquando da deliberação de aumento de capital, em 31 de Agosto de 2006, parece evidente que terá de ser esta última a data a considerar para efeitos da consideração das mais-valias existentes, à luz do Código do IRS.

Porém, mesmo que assim não se entendesse, não assistiria razão ao sujeito passivo. Senão vejamos:

9) É indiscutível, tal como sublinhou o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 4 de Novembro de 2004, que, no caso das mais-valias, “estamos perante um facto tributário de formação sucessiva, integrado por dois momentos: a aquisição e a transmissão”.

10) É também indiscutível, conforme menciona o sujeito passivo, que, nos termos do art. 5º do Decreto-Lei nº 442-A/88, de 30 de Novembro “os ganhos que não eram sujeitos ao imposto de mais-valias (…) só ficam sujeitos a IRS se a aquisição dos bens ou direitos a que respeitam tiver sido efectuada depois da entrada em vigor do Código do IRS”.

11) No entanto, deve ser sublinhado que o Decreto-lei nº 442-A/88 de 30 de Novembro exige que os bens ou direitos a que respeitam as referidas mais-valias tenham sido adquiridos antes da entrada em vigor do Código do IRS, a 1 de Janeiro de 1989.

12) Estamos a referir-nos, por isso, tal como tem sublinhado a jurisprudência maioritária, ao conceito de propriedade e não ao conceito de mera posse, que não deve confundir-se com aquele, nem do ponto de vista material, nem do ponto de vista dogmático.

13) Ora, em exposição apresentada a estes Serviços de Inspecção Tributária, com data de 29/08/2013, vem o sujeito passivo informar que a não inclusão dos anexos G ou G1 na declaração periódica ficou a dever-se ao disposto no artigo 5º do Decreto-Lei nº 442-A/88 de 30 de Novembro e que “a farmácia entrou na posse da ora exponente em 01/11/1986, tendo na altura pago 25.000.000$00”.

14) Ora, a realização da escritura de trespasse ocorreu em 02/04/1990 e foi realizada no 5º Cartório Notarial de Lisboa, facto que não é contestado pelo sujeito passivo nem pelos seus mandatários.

15) O que o sujeito passivo alega é que, não obstante, a efectiva posse da farmácia ocorreu antes de 01/01/1989, independentemente de a transmissão jurídica da propriedade apenas ter ocorrido em 1990, já na vigência do Código do IRS.

16) Este raciocínio não pode, no entanto, ser sustentado no âmbito do ordenamento jurídico português.

17) Por um lado, as regras de direito civil subsidiariamente aplicáveis distinguem claramente o direito de propriedade e a situação de posse, como duas realidades jurídicas e dogmáticas distintas (ver, especificamente, 1251º e seguintes e 1302º e seguintes, todos do Código Civil).

18) Já se referiu que a ratio legis do artigo 5º do Decreto-Lei nº 442-A/88, de 30 de Novembro foi evitar que o novo regime de tributação de ganhos obtidos com a valorização de prédios rústicos tivesse efeitos retroactivos. Com o novo CIRS, todas as transmissões onerosas de imóveis passaram a ser tributadas como rendimentos da categoria G (incrementos patrimoniais), incluindo alienações que até aí não estavam abrangidas pelo revogado Código de Imposto de Mais Valias (CIMV). Para evitar a retroactividade do novo regime, estabeleceu-se que para serem tributadas tais transmissões era necessário que os bens abrangidos fossem adquiridos dentro da vigência da nova lei, com excepção daqueles que já eram antes tributados por força do CIMV, ou seja, os terrenos para construção, os quais passariam agora a ser tributados nos termos do CIRS.

19) Como nota o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 30/01/2013 “a racionalidade que inspira a norma transitória é ponto de referência para um outro recorte: não estão sujeitos ao IRS os ganhos das alienações […] que não seriam sujeitas ao imposto de mais-valias se tivessem sido efectuadas antes da entrada em vigor do CIRS. Se em 1/1/89 o alienante não podia transmitir validamente o bem, também não poderiam existir ganhos que, pela proibição constitucional da retroactividade, tivessem que ficar subtraídos ao novo imposto. Dai que a expressão normativa “aquisição de bens e direitos” tenha que ser interpretada no sentido de aquisição que legitime ao titular poder dispor validamente do bem ou direito adquirido”.

20) E, como sublinha ainda o mesmo acórdão, a questão será, nestes casos, a de saber se à data da entrada em vigor do Código (01/01/1989), o sujeito passivo era já titular do direito de domínio (que não se confunde com a posse), isto é “obter o título formal para efeitos de registo”. E, de forma particularmente enfática para o caso aqui em análise, conclui o mesmo tribunal que “não valendo entre nós a regra “posse vale título”, era necessário que o recorrente em 1/1/89 tivesse legitimidade para transferir validamente o direito de propriedade sobre o bem possuído”, isto é, que o titular tivesse, a 01/01/1989, o título de propriedade formal.

21) Isto significaria que, apenas em caso de usucapião que pudesse ser invocada aquando da entrada em vigor do Código do IRS, poderia estar em causa o circunstancialismo fáctico alegado pelo sujeito passivo, ainda que a data do trespasse tivesse ocorrido posteriormente, já em 1990.

22) Porém, não é isto o sucedido no caso sub judice, na medida em que é o próprio sujeito passivo que alega ter iniciado a posse do estabelecimento comercial no ano de 1986.

Conclusão

23) Apesar da alegada posse iniciada em 1986, a sociedade comercial objecto da alienação – e portanto facto económico e tributário gerador da mais-valia – apenas foi constituída em 22/02/2006, com a firma “D... –Unipessoal, Lda”, já em plena vigência do Código do IRS.

24) Sendo incontornável que a “Farmácia” existente em 1986 apenas foi transferida para o património da sociedade unipessoal (constituída em 22/02/2006) aquando da deliberação de aumento de capital, em 31 de Agosto de 2006, parece evidente que terá de ser esta última a data a considerar para efeitos de consideração das mais-valias existentes, à luz do Código do IRS.

25) Ainda que assim não se entendesse, face à legislação fiscal e civil portuguesas, não fica demonstrado o alegado no ponto 17 do direito de audição prévia exercido pelo sujeito passivo, isto é, que o “estabelecimento comercial tenha sido adquirido em 1986”.

26) Pelo contrário, face ao supramencionado, deve forçosamente concluir-se que o estabelecimento comercial em causa foi “adquirido” a 02/04/1990, data da realização da escritura do trespasse no … Cartório Notarial de Lisboa.

27) Face ao exposto, carecem de ser analisados outros argumentos – nomeadamente o facto de que a sociedade comercial por quotas em causa foi formalmente constituída em 2006/02/22 e que em 2006/08/31 o sujeito passivo realizou um aumento de capital no montante de EUR 300.000,00 -, uma vez que não se encontra sequer preenchido o requisito jurídico-material determinante da argumentação exposta no âmbito do direito de audição exercido: a aquisição do estabelecimento comercial em causa anteriormente à entrada em vigor do Código do IRS.

28) Consequentemente, deve o cálculo das mais-valias obtidas ser efectuado tal como apresentado na p. 9 do Projecto de Correcções validamente notificado ao sujeito passivo, com Despacho da Directora de Finanças de Lisboa de 30 de Janeiro de 2014.” cf. cópia do RIT, pp. 6 a 14, constante do ficheiro PA.

 

R.    Em 15 de Abril de 2014, os Requerentes foram notificados do acto de liquidação adicional de IRS emitido sob o n.º 2014 ..., com data de 29 de Março de 2014, referente ao ano 2010, que fixa o valor de rendimento global em € 2.826.711,79 e apura o valor a pagar de € 1.404.549,98 – cf. cópia do acto de liquidação junto como Documento 1 ao pedido arbitral. 

 

S.     Foi instaurado contra os Requerentes um processo de execução fiscal para cobrança da dívida de IRS originada naquela liquidação adicional, no âmbito do qual estes apresentaram um pedido de dispensa de garantia, aguardando a decisão do Serviço de Finanças – cf. Documento 5 junto com o pedido arbitral.

 

T.    Não se conformando com o referido acto tributário de liquidação de IRS, em 13 de Agosto de 2014, os Requerentes apresentaram requerimento de constituição de Tribunal Arbitral Colectivo junto do CAAD, do qual foi dado conhecimento à AT no dia 18 de Agosto de 2014 – cf. requerimento electrónico e informação constante do sistema do CAAD.

 

U.    Em 15 de Setembro de 2014, o acto de liquidação adicional de IRS emitido sob o n.º 2014 ..., no valor de € 1.404.549,98 foi parcialmente revogado, por despacho do Director-Geral da AT, que se encontra junto aos autos, com fundamento na Nota Jurídica n.º 0445/2014, de que se retira o seguinte excerto:

 

     “Foi solicitada pela DSCJC pronúncia à DF de Lisboa, relativamente à manutenção do acto de liquidação n.º 2014... de IRS correlacionado com o exercício de 2010, cujo valor +e de € 1.404.549,98.

     Por informação e despacho datado de 10 de Setembro de 2014 foi proposta pela Exma. Sra. Directora de Finanças de Lisboa a revogação parcial do acto de liquidação nos termos e fundamentos constantes na informação anexa à presente nota.

     Neste sentido, propõe-se à consideração do Exmo. Sr. Director geral da AT a revogação parcial do acto de liquidação supra identificado, envolvendo a redução económica do valor do pedido de pronúncia arbitral de € 1.404.549,98, para € 560.000,00. (…)”.

 

V.    Em 18 de Setembro de 2014, os Requerentes foram notificados do despacho de revogação parcial do acto de liquidação de IRS n.º 2014 ..., objecto do pedido arbitral – cf. notificação constante do sistema do CAAD.

 

W.  Em 29 de Setembro de 2014, os Requerentes foram notificados da liquidação adicional de IRS identificada com o n.º 2014 ..., datada de 15 de Setembro de 2014, no valor total de € 618.700,32, dos quais € 61.711,32 correspondem a juros compensatórios (campo 27), tendo ainda nessa data recebido a demonstração de liquidação de juros com o n.º 2014 ... (no referido valor de € 61.711,32) e a demonstração de acerto de contas sob o n.º 2014 ..., que apura um saldo de € 0,00 – cf. cópias dos referidos documentos supervenientes juntas pelos Requerentes.

 

X.   Da nota demonstrativa desta segunda liquidação adicional de IRS n.º 2014 ..., o referido valor total de € 618.700,32 obtém-se das seguintes parcelas (cf. cópia da liquidação de IRS junta pelos Requerentes):

 

1

Rendimento global

26.105,13

2

Deduções específicas

4.852,27

3

Perdas a recuperar

0,00

4

Abatimentos

0,00

5

Deduções ao rendimento

0,00

6

Rendimento colectável                                                      [1-(2+3+4+5)]

21.252,86

7

Quociente rendimentos anos anteriores/Propriedade intelectual

0,00

8

Rendimentos isentos englobados para determinação da taxa

0,00

9

Total do rendimento para determinação da taxa                    (6+8-7)

21.252,86

10

Coeficiente conjugal 2 : taxa 24,080 %

 

 

11

Importância apurada                                                      (9 : coef. x taxa)

2.558,85

12

Parcela a abater

881,09

13

Imposto anos anteriores/Propriedade intelectual

0,00

14

Imposto correspondente a rendimentos isentos

0,00

15

Taxa adicional    [( 0,00 x 0,0 %    /   0,00 x 0 %) x 2 ]

0,00

16

Imposto relativo a tributações autónomas

560.138,15

17

Colecta total                              [(11 - 12)x(1 ou 2) + 13 – 14 + 15 + 16]

563.493,67

18

Deduções à colecta

3.229,91

19

Benefício municipal                                                   ( 0,00 % da colecta)

0,00

20

Acréscimos à colecta

0,00

21

Colecta líquida                                                  [17 – 18 – 19 ( » = 0 ) + 20]

560.263,76

 

22

Pagamentos por conta

0,00

23

Retenções na fonte

3.274,76

24

Imposto apurado                                                                 [21 – (22 + 23)]

556.989,00

25

Juros de retenção-poupança

0,00

26

Sobretaxa-resultado

0,00

27

Juros compensatórios

61.711,32

28

Juros indemnizatórios

0,00

 

 

 

 

VALOR A PAGAR

618.700,32

 

2.1.Factos não provados

       Não se provaram outros factos que, à face das possíveis soluções de direito, tenham relevância para a decisão da causa. 

       Relativamente à alegação de que o estabelecimento “C...” foi adquirido pela Requerente em 1986, não tendo ficado provada, a mesma é irrelevante para a decisão, que se prende com o regime de tributação, ou não, de rendimentos derivados de uma transacção de alienação de quotas e não do referido estabelecimento comercial.

 

2.2.Motivação da decisão de facto

 

A decisão da matéria de facto efectuou-se com base no exame e apreciação crítica dos documentos e informações juntos ao processo e acima discriminados, cuja autenticidade e veracidade não foi questionada pelas partes.

 

 

3.         DO DIREITO

 

3.1.Ampliação do pedido

 

Após a apresentação do pedido de constituição do Tribunal Arbitral e a subsequente revogação parcial do acto tributário objecto desse pedido por parte da AT, os Requerentes foram confrontados com a emissão de uma segunda liquidação adicional de IRS, referente ao mesmo imposto (IRS) e período (2010), que lhes foi notificada em 29 de Setembro de 2014, no valor global de € 618.700,32, dos quais € 61.711,32 referentes a juros compensatórios.

 

Pretendem os Requerentes que a legalidade desse(s) acto(s) tributário(s), que qualificam de actos novos e  não meramente correctivos, seja também apreciada na presente acção, requerendo, para esse efeito, a ampliação do pedido nos termos do disposto no artigo 70.º, n.º 3 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (“CPTA”).

 

A AT pronuncia-se no sentido do indeferimento da ampliação do pedido, porquanto entende que o segundo acto de liquidação notificado se limita à concretização da revogação parcial do primeiro acto que foi oportunamente notificada aos Requerentes e ao Tribunal Arbitral, não envolvendo uma nova regulação da situação jurídica ou a requalificação dos factos.

 

Sobre esta matéria importa compulsar o disposto no artigo 13.º do RJAT que prevê, no seu n.º 1, que a “administração tributária pode, no prazo de 30 dias a contar do conhecimento do pedido de constituição do tribunal arbitral, proceder à revogação, ratificação, reforma ou conversão do acto tributário cuja ilegalidade foi suscitada, praticando, quando necessário, acto tributário substitutivo”. (realce nosso)

 

Se o acto tributário objecto do pedido de pronúncia arbitral for, total ou parcialmente, alterado ou substituído por outro, rege o n.º 2 do citado artigo 13.º do RJAT que o “dirigente máximo do serviço da administração tributária procede à notificação do sujeito passivo para, no prazo de 10 dias, se pronunciar, prosseguindo o procedimento relativamente a esse último acto se o sujeito passivo nada disser ou declarar que mantém o seu interesse.”. 

 

Assim, na situação em apreço, ainda que os Requerentes o não tivessem expressamente requerido, o procedimento deveria prosseguir relativamente ao acto substitutivo.

 

De notar que, nos casos em que a alteração ou substituição do acto ocorra após a constituição do Tribunal Arbitral, na pendência do processo, a possibilidade de modificação objectiva da instância tem assento no artigo 20.º do RJAT, prosseguindo o processo contra o novo acto, conforme remissão expressa do seu n.º 2 para o artigo 64.º do CPTA.

 

A modificação objectiva da instância é admitida, de igual modo, no processo de impugnação judicial, de que o processo arbitral tributário se pretende sucedâneo, quando factos supervenientes, objectiva ou subjectivamente para o impugnante, lhe proporcionem a tomada de conhecimento de vícios de que não podia conhecer no momento da apresentação da petição.

 

Veja-se, a título de exemplo, o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (“STA”) n.º 030/11, de 29 de Junho de 2011, cujo elucidativo sumário se transcreve:

 

“I – É admissível, em processo de impugnação judicial, a ampliação do pedido e da causa de pedir, nos termos do disposto no artigo 63.º do CPTA, ex vi do artigo 2.º, alínea e) do CPPT, sempre que se verifiquem factos supervenientes para o impugnante que lhe proporcionem a tomada de conhecimento de vícios de que não podia conhecer no momento da apresentação da petição inicial, assim permitindo ao impugnante invocar novos factos ou imputar novos vícios ao acto impugnado.

II – É o que sucede quando a AT, já na pendência da impugnação, emitiu demonstração de acerto de contas e nova liquidação, na sequência de reclamação graciosa apresentada pelo impugnante.” (realce nosso)

 

Esta é a solução que mais se coaduna com os princípios constitucionais do acesso ao direito e da tutela jurisdicional efectiva (cf. artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa), permitindo a apreciação no mesmo processo dos vícios dos diversos actos materialmente conformadores da (mesma) relação jurídico-tributária que venham a ser praticados no âmbito do procedimento e/ou na pendência do processo.

 

Estes princípios inspiram, de igual modo, a disciplina do CPTA que prevêem que o objecto do processo seja ampliado ou que o processo prossiga contra o novo acto. Referimo-nos, em particular, ao disposto nos artigos 63.º, 64.º e 70.º do CPTA:

 

“Artigo 63.º – Modificação objectiva da instância

     1 – Quando, por não ter sido decretada, a título cautelar, a suspensão do procedimento em que se insere o acto impugnado, este tenha seguimento na pendência do processo, pode o objecto ser ampliado à impugnação de novos actos que venham a ser praticados no âmbito desse procedimento, bem como à formulação de novas pretensões que com aquela possam ser cumuladas.

     2 – (…)

     3 – Para o efeito do disposto nos números anteriores, deve a Administração trazer ao processo a informação da existência dos eventuais actos conexos com o acto impugnado que venham a ser praticados na pendência do mesmo.

Artigo 64.º – Revogação do acto impugnado com efeitos retroactivos

     1 – Quando, na pendência do processo, seja proferido acto revogatório com efeitos retroactivos do acto impugnado, acompanhado de nova regulação da situação, pode o autor requerer que o processo prossiga contra o novo acto, com a faculdade de alegação de novos fundamentos e do oferecimento de diferentes meios de prova.

     2 – (…)

     3 – O disposto no n.º 1 é aplicável a todos os casos em que o acto impugnado seja, total ou parcialmente, alterado ou substituído por outro com os mesmos efeitos, e ainda no caso de o acto revogatório já ter sido praticado no momento em que o processo foi intentado, sem que o autor disso tivesse ou devesse ter conhecimento.

 

Artigo 70.º - Alteração da instância

     1 – (…)

     2 – (…)

     3 – Quando, na pendência do processo, seja proferido um acto administrativo que não satisfaça integralmente a pretensão do interessado, pode ser cumulado o pedido de anulação ou declaração de nulidade ou inexistência deste acto, devendo o novo articulado ser apresentado no prazo de 20 dias.

     4 – (…)”

 

Retomando o caso em apreço, o pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi deduzido em 13 de Agosto de 2014 e a nova liquidação, que baseia a ampliação do pedido, emitida em 15 de Setembro e notificada aos Requerentes em 29 de Setembro.

 

O novo acto tributário é, assim, inequivocamente superveniente ao pedido arbitral. E dúvidas não restam de que esta nova liquidação de IRS tem o mesmo âmbito subjectivo (os Requerentes), respeita ao mesmo imposto e ao mesmo ano do acto tributário que constitui o objecto do pedido arbitral inicial, portanto, alterando-o ou substituindo-o.

 

Encontram-se, desta forma, preenchidos os pressupostos do artigo 13.º, n.ºs 1 e 2 do RJAT devendo o procedimento de constituição do tribunal arbitral prosseguir de forma a abranger também o novo acto tributário, independentemente de este reduzir, manter ou aumentar o valor da liquidação alterada ou substituída.

 

Acresce salientar que os actos meramente correctivos e não inovatórios podem ter vícios próprios e exclusivos, designadamente formais, para além dos que enferma o acto rectificado, justificando-se a ampliação do pedido de molde a ficarem abrangidos pela pronúncia jurisdicional.

 

Em síntese, a peticionada “ampliação do pedido” não só é admissível, como imposta pela lei (cf. artigo 13.º, n.ºs 1 e 2 do RJAT), sendo adequada à apreciação dos novos actos tributários, por forma a favorecer uma decisão jurisdicional de mérito que defina global e definitivamente a relação material tributária subjacente, razão pela qual se defere.

 

3.2.Extemporaneidade e inadmissibilidade da segunda liquidação de IRS n.º 2014 ...

 

Os Requerentes suscitam a extemporaneidade do segundo acto de liquidação de IRS por incumprimento do prazo de 30 dias previsto no artigo 13.º n.º 1 do RJAT, a contar do conhecimento, por parte da AT, do pedido de constituição do tribunal arbitral.

 

Importa notar que estamos numa fase que precede a constituição do Tribunal e, por essa razão, o prazo em questão reveste natureza procedimental e não processual, obedecendo à regra de contagem dos prazos constante do artigo 72.º, n.º 1 do CPA, de aplicação subsidiária, atento o disposto no artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e d) do RJAT e no artigo 2.º alínea d) do CPPT, suspendendo-se nos sábados, domingos e feriados. 

 

Neste âmbito resulta da matéria de facto a seguinte sequência de eventos:

 

ü  Do pedido de constituição do Tribunal Arbitral, deduzido a 13 de Agosto de 2014, foi enviada mensagem à AT, por via electrónica, em 18 de Agosto de 2014;

ü  O despacho de revogação parcial do acto de liquidação objecto do pedido arbitral e a segunda liquidação de IRS foram ambos emitidos em 15 de Setembro de 2014;

ü  Em 18 de Setembro de 2014 os Requerentes foram notificados do despacho de revogação parcial do (primeiro) acto de liquidação;

ü  Em 29 de Setembro de 2014 foram os Requerentes notificados do segundo acto de liquidação de IRS.

 

Na medida em que a mensagem foi enviada à AT em 18 de Agosto de 2014, descontando os sábados, domingos e feriados, o último dia do prazo de 30 dias seria precisamente o dia 29 de Setembro de 2014, pelo que não só a segunda liquidação foi emitida como notificada dentro do prazo legal para o efeito[1].

 

Deste modo, não se verifica o vício de extemporaneidade suscitado pelos Requerentes relativamente à notificação do segundo acto de liquidação.

 

Os Requerentes aludem ainda ao facto de a segunda liquidação de IRS não ter enquadramento no artigo 13.º, n.º 1 do RJAT (que somente contempla a possibilidade de revogação, ratificação, reforma ou conversão do acto tributário), por configurar um acto novo e não meramente correctivo em relação ao acto tributário substituído, o que a ocorrer teria de se basear em factos novos que justificassem a sua emissão.

 

Acrescentam que, mesmo na hipótese de a segunda liquidação configurar um acto correctivo, uma vez que o primeiro acto de liquidação de IRS enferma de nulidade por vício de falta de fundamentação o mesmo não pode ser sanado face ao preceituado no artigo 137.º, n.º 1 do CPA.

 

Não podemos concordar com os Requerentes. Este segundo acto de liquidação de IRS concretiza e vem no seguimento do despacho de revogação parcial da primeira liquidação que lhes foi notificada (aliás a revogação parcial e a segunda liquidação datam do mesmo dia, 15 de Setembro de 2014), o qual reduziu e fixou o valor da liquidação de IRS em € 560.000,00.

 

Secundamos, neste ponto, a AT, consubstanciando a segunda liquidação tão-só um acto correctivo que não contempla uma nova regulação ou conformação da relação jurídico-tributária. Esta nova liquidação não resultou de uma requalificação dos factos tributários, sendo um mero acerto/recálculo da liquidação anterior.

 

No que se refere à impossibilidade de sanação ou correcção, por alegada nulidade do primeiro acto de liquidação de IRS, antecipa-se desde já que o vício de falta de fundamentação não é sancionado com a nulidade, mas com a anulabilidade, conforme decorre do cotejo dos artigos 133.º e 135.º do CPA e é reconhecido pela jurisprudência dos nossos tribunais superiores e pela doutrina, como adiante melhor se aprofunda. Estamos, desta forma, fora do campo de aplicação do artigo 137.º do CPA ao contrário do que sustentam os Requerentes. 

 

Por fim, os Requerentes suscitam o vício de falta de fundamentação do segundo acto tributário, o qual se analisa conjuntamente com o arguido para primeira liquidação. 

 

3.3.Preterição de formalidades legais essenciais no procedimento inspectivo

 

Segundo os Requerentes, o procedimento inspectivo que conduziu à liquidação adicional de IRS foi um procedimento de inspecção externo e não interno como o classificou a AT. Partindo desse pressuposto, i.e., de que o acto tributário derivou de uma acção inspectiva de carácter externo, os Requerentes assinalam múltiplos vícios na respectiva tramitação e, em consequência, reputam inválida a liquidação adicional de IRS decorrente da ilegalidade do procedimento. 

 

Neste ponto, é fundamental começar por analisar a distinção entre inspecção interna e externa, pois os dois tipos de procedimentos comportam importantes diferenças de regime. Dispõe nesta matéria o artigo 13.º do RCPIT:

 

“Artigo 13.º - Lugar do procedimento de inspecção

Quanto ao lugar da realização, o procedimento pode classificar-se em:

a) Interno, quando os actos de inspecção se efectuem exclusivamente nos serviços da administração tributária através da análise formal e de coerência dos documentos;

b) Externo, quando os actos de inspecção se efectuem, total ou parcialmente, em instalações ou dependências dos sujeitos passivos ou demais obrigados tributários, de terceiros com quem mantenham relações económicas ou em qualquer outro local a que a administração tenha acesso.” (realce nosso)

 

O critério distintivo dos dois tipos de procedimento é, assim, o lugar da sua realização, prendendo-se as diferenças de regime essencialmente com o carácter potencialmente invasivo dos procedimentos externos e o seu nível de perturbação e ingerência na esfera dos sujeitos passivos, o que não se verifica nos internos (vejam-se, neste sentido, Diogo Leite de Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, Lei Geral Tributária Comentada e Anotada, 4.ª edição, Encontro da Escrita, 2012, p. 271, e António Lima Guerreiro, Lei Geral Tributária Anotada, Rei dos Livros, 2001, p. 293).

 

Estas diferenças regime prendem-se, por um lado, com a suspensão do prazo de caducidade do direito à liquidação que se encontra consagrada no artigo 46.º, n.º 1 da LGT, suspensão essa que não se verifica nos casos de inspecção interna – cf. Nuno de Oliveira Garcia, Rita Carvalho Nunes, “Inspecção Tributária Externa e a Relevância dos Actos Materiais de Inspecção”, in Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal, Ano IV, n.º 1, Março de 2011, p. 249-268. Por outro lado, a limitação da sucessão de procedimentos plasmada no princípio da irrepetibilidade de inspecções, vertido no artigo 63.º, n.º 4 da LGT, “é aplicável apenas às inspecções externas, não incluindo, assim, as inspecções internas que podem ser repetidas as vezes necessárias[2]cf. António Lima Guerreiro, Lei Geral Tributária Anotada, Rei dos Livros, 2001, p. 293.

 

Compreende-se esta solução, pois o principal objectivo do preceito delimitador dos poderes de fiscalização da AT é o de evitar “que um mesmo contribuinte ou obrigado tributário seja sobrecarregado com os incómodos que as acções de fiscalização externas são susceptíveis de lhes provocar”, conforme salientado por Diogo Leite de Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, Lei Geral Tributária Comentada e Anotada, 4ª edição, Encontro da Escrita, 2012, p. 271, em consonância com o princípio da proporcionalidade acolhido de forma expressa pelos artigos 5.º e 7.º do RCPIT.

 

Na acção inspectiva interna, a AT não se desloca às instalações ou domicílio do sujeito passivo e os actos de inspecção efectuam-se através da análise formal e de coerência dos documentos, designadamente do cruzamento de informação disponível nas suas bases de dados com as declarações fiscais dos sujeitos passivos.

 

Analisando a situação concreta, constata-se cumprida a primeira condição da alínea a) do artigo 13.º do RCPIT, de que os actos de inspecção decorreram exclusivamente nos serviços da AT.

 

A questão que se coloca é, pois, a de saber se os actos de inspecção se efectuaram através da análise formal e de coerência dos documentos, ou se o facto de a AT ter dirigido pedidos de informação e esclarecimentos aos Requerentes, extravasa o âmbito da análise formal e de coerência dos documentos e caracteriza a acção inspectiva como um procedimento externo.

 

Entendemos que no caso concreto tal não se verifica. Com efeito, a AT identificou por sua iniciativa exclusiva e pelos seus próprios meios, sem qualquer intervenção dos Requerentes e mediante o mero cruzamento dos dados de que dispunha, a omissão declarativa, por parte daqueles, de mais-valias resultantes da alienação de quotas.

 

Os esclarecimentos ulteriores solicitados pela AT aos Requerentes revestiram natureza complementar e desempenharam a meritória função de interpor uma etapa de contraditório antes da emissão do Projecto de Correcções, sem que tal represente a transformação da inspecção em externa.

 

De ressaltar que logo no primeiro pedido de esclarecimentos a AT revela na notificação endereçada aos Requerentes o início de um procedimento interno de inspecção ao ano 2010 no qual foram detectadas incongruências, cuja justificação solicita, relativas à não inclusão dos anexos das mais-valias na Declaração anual de rendimentos do ano 2010, mais-valias estas originadas na cedência de quotas da sociedade “D..., Lda.” pelo preço de € 3.200.000,00.

 

Assim, os principais elementos da correcção preconizada já se encontravam materializados e foram de modo transparente comunicados pela AT aos Requerentes.

 

Por outro lado, a realização de uma inquirição de testemunhas partiu da iniciativa dos Requerentes, ao que a AT acedeu, tendo-se realizado nas suas instalações desta.

 

Afigura-se que o carácter meramente complementar do pedido de esclarecimentos dirigido aos Requerentes e o facto de não terem ocorrido quaisquer actos inspectivos fora das instalações da AT militam no sentido da natureza materialmente interna do procedimento, em linha com a classificação formal que lhe foi atribuída pela AT, pelo que não extravasa o artigo 13.º, alínea a) do RCPIT ou a Ordem de Serviço Interna.

 

Os Requerentes invocam em amparo da pretendida requalificação da acção inspectiva em procedimento externo o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul (“TCA Sul”), n.º 04371/10, de 20 de Março de 2012, de que se transcrevem os seguintes excertos elucidativos:

 

“II – Decorrendo do conteúdo do relatório e dos fundamentos que serviram de base às correcções efectuadas que o procedimentos não visou apenas a recolha de informação, antes se podendo afirmar que foi muito mais do que isso, pois foi nessa informação que se fundamentou toda a acção inspectiva, estamos perante uma inspecção materialmente externa. A dita inspecção “interna” não resultou de uma mera inspecção de análise sobre a correcção formal dos documentos entregues e sua coerência com as declarações apresentadas.

III – É que, havendo uma sequência de inspecção iniciada com o procedimento de 10/11 de Dezembro de 2007, que se orientou para a identificação de eventuais infracções e análise da contabilidade da impugnante de modo a que pudessem resultar correcções à matéria tributável, impõe-se concluir que aquele procedimento não foi apenas de recolha de informação, antes tendo dado início à inspecção realizada ao sujeito passivo, a qual revestiu carácter externo.

IV – E visto que não foi notificada ao sujeito passivo e se prolongou por período superior ao prazo previsto na lei (Artº 36 nº 2 RCPIT), sem qualquer despacho de prorrogação, tal configura um vício gerador de anulabilidade das liquidações baseadas em tal procedimento (Artº 135 do CPA).”

 

       Porém, a situação sub iudice é totalmente distinta. Nesse aresto, a AT havia iniciado a inspecção procedendo a diligências diversas de recolha de informação nas instalações do sujeito passivo, informação essa, recolhida nas instalações da empresa, na qual se fundamentou toda a acção inspectiva.

 

       Diferentemente, no caso dos presentes autos, não só os elementos determinantes das correcções – a identificação da falta de reporte de mais-valias numa operação de cedência de quotas de € 3.200.000,00 – foram obtidos através de cruzamento de dados da própria AT e não junto dos contribuintes, como não ocorreu qualquer levantamento ou recolha de informação nas instalações ou domicílio destes.

 

Estabelecida a classificação do procedimento como interno, importa constatar que o seu início não carece de ser notificado.

 

Com efeito a obrigação de notificação vigora apenas para a inspecção externa. Dispõe a este respeito o artigo 49.º, n.º 1 do RCPIT que “O procedimento externo de inspecção deve ser notificado ao sujeito passivo ou obrigado tributário com uma antecedência mínima de cinco dias relativamente ao seu início” e o 51.º, n.º 2 do RCPIT que “O sujeito passivo ou obrigado tributário ou o seu representante deve assinar a ordem de serviço indicando a data da notificação, a qual, para todos os efeitos, determina o início do procedimento externo de inspecção”.

 

Não sendo devida a notificação não o é a sua assinatura. Neste ponto não há qualquer irregularidade a assinalar.

 

Os Requerentes alegam que foi ultrapassado o prazo máximo de duração legalmente previsto para o procedimento de inspecção de acordo com o artigo 36.º, n.ºs 2 e 3 do RCPIT, que determina que este é contínuo e deve ser concluído no prazo máximo de seis meses a contar da notificação do seu início, o qual pode ser prorrogado por mais dois períodos de três meses, correspondendo, portanto, a um prazo máximo absoluto de um ano.

 

Contudo, a aplicabilidade deste regime circunscreve-se ao procedimento de inspecção externa, dado o seu potencial de lesividade. Esta conclusão é reforçada pela inserção sistemática do artigo 36.º do RCPIT no Capítulo II - Local, horário dos actos de inspecção e prazo do procedimento o qual, evidentemente, só pode referir-se a procedimentos externos (no sentido de que o artigo 36.º do RCPIT se refere ao procedimento externo, vide Acórdão Arbitral, n.º 14/2012-T, de 29 de Junho de 2012).

 

Salienta-se que mesmo no campo de aplicação do artigo 36.º, n.ºs 2 e 3 do RCPIT (ou seja, no dos procedimentos externos) a jurisprudência do STA vem entendendo, sem excepção, que o excesso de duração do procedimento inspectivo não invalida o acto de liquidação. A consequência da ultrapassagem do prazo é a do artigo 46.º, n.º 1 da LGT: o prazo de caducidade, que estava suspenso, cessa esse efeito, contando-se desde o seu início (Acórdãos do STA, n.º 695/06, de 29 de Novembro de 2006, e n.º 0955/07, de 27 de Fevereiro de 2008). E mais nenhuma.

 

Posição que o Tribunal Constitucional veio a sufragar no Acórdão n.º 457/08, publicado no DR n.º 209, Série II, de 2008-10-28, ao declarar a conformidade constitucional da interpretação normativa dos artigos 46.º, n.º 1 da LGT e 36.º, n.ºs 1 e 2 do RCPIT, de acordo com a qual o desrespeito pelo prazo de seis meses neles definido para a realização da inspecção tributária apenas releva no âmbito do instituto da caducidade.

 

Adicionalmente, cabe notar que a contagem deste prazo efectuada pelos Requerentes não é correcta. Com efeito, se estivéssemos no âmbito de uma inspecção externa (que não estamos) e fosse de convocar a limitação de prazo do artigo 36.º do RCPIT, o início do mesmo não se reportaria à data da Ordem de Serviço (em 1 de Fevereiro de 2013), mas ao momento da notificação do início da inspecção.

 

Ora, a primeira interacção que a AT teve com os Requerentes, notificando-os da inspecção interna e pedindo esclarecimentos, foi em 6 de Agosto de 2013, pelo que seria esta data a equivalente à de notificação do início de inspecção. O prazo máximo absoluto (1 ano) não estaria ultrapassado, atento o facto de a notificação do RIT, que conclui o procedimento de inspecção nos termos do artigo 62.º do RCPIT, ter ocorrido em 19 de Março de 2014.

 

Sem prejuízo do exposto, ainda que se constatassem vícios no procedimento não seria de concluir sem mais que a ilegalidade do procedimento se projectaria no consequente desvalor e invalidade do acto tributário de liquidação.

 

O procedimento inspectivo é distinto do de liquidação ainda que, de acordo com o artigo 11.º do RCPIT, tenha um “carácter meramente preparatório ou acessório dos actos tributários ou em matéria tributária”. Em resultado deste carácter preparatório ou acessório atribuído ao procedimento de inspecção, a regra é que as ilegalidades nele cometidas se podem projectar na liquidação, acto definidor da situação tributária do sujeito passivo, mas nem sempre tal sucede.

 

Com efeito, constitui jurisprudência consolidada do STA que os vícios procedimentais não geram necessariamente a invalidade do acto tributário de liquidação, pelo que mesmo que a posição da Requerente fosse de sufragar (que não o é) os suscitados vícios poderiam não produzir o efeito invalidante do acto tributário de liquidação (cf. entre outros, os seguintes Acórdãos do STA: processo n.º 0955/07, de 27 de Fevereiro de 2008; processo n.º 080/08, de 10 de Dezembro de 2008; processo n.º 0102/08, de 10 de Dezembro de 2008; e processo n.º 103/08, de 4 de Junho de 2008). 

 

É o que se verifica quando a lei estatui outras consequências jurídicas, por exemplo, nos casos acima citados dos artigos 46.º e 63.º da LGT; ou as formalidades essenciais se degradam em não essenciais por estarem acautelados os interesses que as normas procedimentais visavam tutelar; ou seja de convocar o princípio de aproveitamento dos actos.

 

À face do exposto não se verifica o vício de preterição de formalidades essenciais no procedimento inspectivo, não assistindo razão aos Requerentes neste ponto.

 

3.4.Falta de fundamentação

 

       Segundo os Requerentes, o Relatório de Inspecção não constitui fundamentação do acto de liquidação de IRS, porque aquele conclui pela falta de liquidação de IRS no montante de € 560.000,00 e este último foi emitido pelo valor de € 1.404.549,98. Esta discrepância de valores é, para os Requerentes, incompreensível e configura erro grosseiro dos serviços, padecendo o acto de liquidação, por essa razão, de vício de falta de fundamentação que determina a sua nulidade.

 

Alegam também os Requerentes que, no tocante ao segundo acto de liquidação (que, como vimos tem natureza correctiva do primeiro acto), o mesmo é desprovido de qualquer referência ao primeiro acto tributário, não sendo possível decifrar o cálculo dos valores.

 

Vejamos.

 

O acto tributário impugnado (referimo-nos à primeira liquidação adicional de IRS) constitui o desfecho de um procedimento inspectivo, no qual os Requerentes foram ouvidos, tendo sido notificados, quer do projecto de correcções, quer, após o exercício do direito de audição, do Relatório Final de Inspecção.

 

Da leitura do Relatório Final resulta com clareza que a liquidação adicional de IRS é o corolário da tributação de mais-valias, quantificadas em € 2.800.000,00, obtidas em resultado da venda de quotas da sociedade “D... –, Lda.”, que os Requerentes não haviam declarado e relativamente às quais não haviam pago oportunamente a prestação tributária correspondente, resultante da aplicação da taxa de tributação autónoma prevista no artigo 72.º, n.º 4 do Código do IRS, à data de 20%, perfazendo o valor de IRS em falta de € 560.000,00.

 

Não subsistem quaisquer dúvidas quando à clareza, congruência e suficiência da fundamentação e ao itinerário cognoscitivo e valorativo da mesma, mencionando o Relatório os factos relevantes – origem, natureza e valor dos rendimentos – e o quadro jurídico que está na origem da incidência de IRS: artigos 9.º, n.º 1, alínea a); 10.º, n.º 1, alínea b); 43.º, n.ºs 1 e 3; 44.º, n.º 1, alínea f); 48.º, alínea b) e 72.º, n.º 4, todos do Código do IRS.

 

A decisão do procedimento está, pois, fundamentada quanto à importância de IRS de € 560.000,00, cumprindo os parâmetros do artigo 77.º, n.ºs 1 e 2 da LGT.

 

O Relatório definitivo foi notificado em 19 de Março de 2014 e antecedeu o acto de liquidação adicional de IRS, este datado de 29 de Março de 2014 e notificado aos Requerentes em 15 de Abril de 2014.

 

É certo que o acto de liquidação não contém uma referência expressa à fundamentação do Relatório definitivo (a dita decisão do procedimento). Contudo, não só essa fundamentação existe, como é anterior ao acto de liquidação e já tinha sido notificada aos Requerentes, pelo que seria redundante notificá-lo de novo com a liquidação. O acto de liquidação em causa representa o culminar de um procedimento inspectivo do qual os Requerentes tiveram conhecimento, tendo nele participado e tendo sido notificados da decisão final desse procedimento.

 

Acresce que os Requerentes, em caso de subsistir alguma dúvida, tinham ao seu dispor o mecanismo do artigo 37.º do CPPT. Distingue neste ponto Jorge Lopes de Sousa o acto de notificação e o acto notificado, ensinando que o artigo 37.º do CPPT só tem a ver com a notificação dos actos, visando estabelecer as consequências das deficiências das notificações e não o regime dos vícios dos actos notificados.

 

Ora, na situação vertente a fundamentação existia e se a notificação do acto de liquidação a omitiu o não uso da faculdade prevista neste artigo 37.º tem como consequência que o destinatário perdeu o direito a ser notificado dessa fundamentação – cf. Código de Procedimento e de Processo Tributário Anotado e Comentado, Volume I, 6.ª edição, 2011, pp. 349-351.

 

A questão que aqui verdadeiramente se coloca é a de saber se a discrepância de valores entre a prestação de IRS apurada no acto de liquidação e aquela que preconizava o Relatório de Inspecção que constitui o seu fundamento, superior ao dobro do quantitativo de imposto que devia ser liquidado, deve ser qualificada como falta de fundamentação que invalide in totum o acto tributário em apreço, considerado uno e indivisível, ou se esse acto é divisível e válido na parte quantitativa que está abrangida pela decisão do procedimento vertida no Relatório de Inspecção (€ 560.000,00).

 

Dito de outro modo, a questão equacionada prende-se com a aferição da possibilidade de anulação parcial do acto de liquidação.

 

Recordemos os factos. O Relatório de Inspecção concluiu pelo valor de IRS a pagar de € 560.000,00 e pela fixação de um valor de rendimentos alterado para o ano 2010 de € 2.822.359,52. A liquidação de IRS foi emitida por um valor a pagar muito superior, de € 1.404.549,98, incluindo juros compensatórios, calculado sobre o rendimento global de € 2.826.711,79.

 

Acompanhamos os Requerentes na qualificação desta discrepância de valores de erro grosseiro dos serviços (com eventuais consequências em sede de responsabilidade civil que não cabe aqui aprofundar).

Na sua génese está um erro de cálculo, patente no acto de liquidação, por não ter sido apurado o imposto com base na taxa especial autónoma de 20% então aplicável às mais-valias (nos termos do artigo 72.º, n.º 4 do Código do IRS), mas sim como se se tratasse de um rendimento sujeito a englobamento (rendimento global) aplicando-lhe as taxas gerais.

 

Seguindo a jurisprudência do STA, os actos de liquidação, por definirem uma quantia são naturalmente divisíveis, sendo-o também juridicamente, por a lei prever a possibilidade de anulação parcial daqueles actos no artigo 100.º da LGT (vide, por exemplo, e por mais recentes, os Acórdãos da Secção de Contencioso Tributário n.º 583/10, de 12 de Novembro de 2011; n.º 1374/12, de 30 de Novembro de 2012, n.º 121/13, de 10 de Julho de 2013, e do Pleno, n.º 298/12, de 30 de Abril de 2013, todos in www.dgsi.pt).

 

Refere o citado Acórdão do Pleno que o “critério para determinar se o acto deve ser total ou parcialmente anulado passa por determinar se a ilegalidade afecta o acto tributário no seu todo, caso em que o acto deve ser integralmente anulado ou apenas em parte, caso em que se justifica a anulação parcial.” No caso de ilegalidade corrigível mediante mera operação aritmética que expurgue o valor justificado “haverá lugar à anulação apenas parcial do acto sindicado, que não à sua anulação total”.

 

Na situação em análise, afigura-se que o erro de que enferma o acto de liquidação de IRS é corrigível por mera operação aritmética, e a falta de fundamentação do valor remanescente (na parte que excede os € 560.000,00) não contamina toda a liquidação de IRS. O que vem sendo dito é aplicável, quer à primeira, quer à segunda liquidação de IRS.

 

Tendo a própria AT constatado o erro cometido, corrigiu a liquidação inicial, dentro do prazo previsto no artigo 13.º, n.º 1 do RJAT, e emitiu uma nova liquidação de IRS. A fundamentação desta nova liquidação de IRS consta do despacho de revogação parcial da primeira, em tempo notificado aos Requerentes, que precedeu a notificação do segundo acto de liquidação.

 

Este despacho explicita que se pretende a redução do valor de € 1.404.549,98, para € 560.000,00, ajustando assim o valor em excesso do acto tributário inicial ao quantitativo que o mesmo devia apresentar, ou seja, IRS no montante de € 560.000,00.

 

Os Requerentes arguem que, mesmo quanto a este segundo acto, não conseguem decifrar o cálculo dos valores constantes das liquidações. Apesar de reconhecermos alguma complexidade e dificuldade de compreensão das diversas etapas e operações algébricas de apuramento de imposto constante dos actos de liquidação de IRS, derivados em grande medida da forma como estes são apresentados e do carácter marcadamente sintético da informação deles constante, não concordamos com o carácter “indecifrável” que é imputado a este segundo acto de liquidação de IRS.

 

Com efeito, esta nova liquidação correctiva (que não resultou de uma requalificação dos factos tributários, sendo uma correcção dos cálculos da liquidação anterior) apresenta um valor a pagar de € 618.700,32 que resulta, para além da consideração dos rendimentos que já haviam sido declarados pelos Requerentes na sua Declaração Modelo 3, ajustados das correcções efectuadas aos rendimentos prediais que foram aceites por aqueles (campo 1, € 26.105,13) e das deduções específicas (campo 2, € 4.852,27):

(a)    Do acréscimo do valor de € 560.138,15 de “imposto relativo a tributações autónomas  (campo 16);

(b)   Do acréscimo de juros compensatórios no montante de € 61.711,32 (campo 27);

(c)    Da subtracção das deduções à colecta de € 3.229,91 (campo 18); e

(d)   Da subtracção das retenções na fonte suportadas pelos Requerentes, no valor de € 3.274,76 (campo 23).

 

Ao contrário dos Requerentes, não se avalia que a aritmética deste acto de liquidação seja indecifrável. Apenas não encontramos explicação para o valor (imaterial, saliente-se) de € 138,15 que surge, na alínea (a) acima, a acrescer ao valor do IRS corrigido de € 560.000,00 previsto no Relatório de Inspecção.

 

É perceptível a razão de ser da emissão deste segundo acto de liquidação de IRS, fundado no despacho de revogação parcial que corrigiu o primeiro acto objecto do pedido arbitral e não subsistem dúvidas sobre a sua natureza simplesmente correctiva de recálculo dos valores devidos e não inovatória. É, pois, de manter a conclusão de que o mesmo está fundamentado quanto ao valor de IRS de € 560.000,00, independentemente de se concordar com essa fundamentação.

 

O vício de falta de fundamentação ocorre apenas “quando não é possível para um destinatário normal aperceber-se das razões pelas quais quem decidiu tomou a decisão que tomou e não quando o entendimento adoptado é errado, pois, neste último caso, se ocorrer efectivamente o erro, estar-se-á perante vício de erro sobre os pressupostos de facto ou de erro sobre os pressupostos de direito” – cf. Acórdão proferido no processo arbitral n.º 86/2012-T CAAD, de 16 de Novembro de 2012.

 

A conclusão a que se chegou relativa à fundamentação da liquidação de IRS, não é, porém, extensível à componente dos juros compensatórios liquidados, cuja fundamentação é omissa.

 

De facto, nem a decisão do procedimento, nem o acto tributário de liquidação de IRS contêm qualquer fundamento de juros compensatórios. O Relatório de Inspecção é totalmente omisso em matéria de juros e a primeira notificação da liquidação de IRS limita-se a enunciar “Juros compensatórios € 140.094,71.”, encontrando-se desprovida de justificação para a sua liquidação e não explicitando a sua base e forma de cálculo.

 

Os juros compensatórios são devidos “quando, por facto imputável ao sujeito passivo, for retardada a liquidação de parte ou da totalidade do imposto devido ou a entrega de imposto a pagar antecipadamente, ou retido ou a reter no âmbito da substituição tributária” e fazem parte integrante da própria dívida de imposto, com o qual são conjuntamente liquidados, encontrando-se abrangidos pelo dever de fundamentação, quanto às razões da respectiva existência e à forma de cálculo, como expressamente preceitua o artigo 35.º, n.ºs 1 e 9 da LGT e decorre das regras gerais constantes do artigo 77.º da LGT e do artigo 125.º do CPA.

 

Ainda que, no caso dos juros compensatórios, se adira a uma teoria de fundamentação de minimis, o conteúdo mínimo da declaração fundamentadora deve conter a referência ao montante de imposto sobre o qual foram liquidados os juros, à taxa aplicável e ao período de tempo que são exigíveis, menções que como acima se assinalou, não constam do RIT nem do acto tributário de liquidação de IRS. Acompanhamos aqui o Acórdão do STA, n.º 0619/11, de 30 de Novembro de 2011, para o qual se remete.

 

Tais deficiências não podem ser sanadas posteriormente.

 

Na segunda liquidação, meramente correctiva da primeira, os juros compensatórios são reduzidos para o valor de € 61.711,32 e acompanhados de uma demonstração de liquidação de juros, que já discrimina os elementos essenciais ao seu cálculo (valor base, período de cálculo e taxa aplicável).

 

No entanto, esta fundamentação, a julgar-se suficiente, é posterior ao acto tributário que se pretende corrigido, não sendo admissível no nosso sistema jurídico a fundamentação posterior ou sucessiva, mas apenas a mera comunicação dos fundamentos omitidos na notificação da decisão, nos termos da lei (artigo 37.º do CPPT). A fundamentação deve, pois, ser contemporânea do acto e figurar, directamente ou por remissão, no mesmo instrumento formal de decisão, devendo também ser expressa. 

 

Assim, é forçoso concluir pela verificação de vício de forma por falta de fundamentação do acto de liquidação na parte referente aos juros compensatórios, no montante de € 61.711,32, não sendo de atender à sua fundamentação a posteriori, com a consequência jurídica da anulabilidade.

 

Relativamente ao desvalor do vício de falta de fundamentação dos actos tributários que, para os Requerentes, implica a nulidade do acto, por ofensa do direito constitucionalmente consagrado de os contribuintes conhecerem os fundamentos dos actos que alteram a sua esfera jurídica, sufragamos posição diversa, em consonância com a linha jurisprudencial dominante.

 

A fundamentação dos actos é uma imposição constitucional, mas não constitui um direito de natureza fundamental cuja ofensa possa determinar a sua nulidade. Vejam-se, nesta matéria, por todos, os Acórdãos do STA, n.º 91/11, de 25 de Maio de 2011, e n.º 761/09, de 25 de Novembro de 2009.

 

Esta posição teve acolhimento no Acórdão n.º 594/08 do Tribunal Constitucional, de que se transcrevem alguns excertos ilustrativos:

 

Pode dizer-se que o dever de fundamentação cumpre, essencialmente, três funções: a de propiciar a melhor realização e defesa do interesse público; a de facilitar o controlo da legalidade administrativa e contenciosa do acto e a de permitir aos órgãos hierarquicamente superiores ou tutelares controlar, mais eficazmente, a actividade dos órgãos subalternos ou sujeitos a tutela. A natureza deste dever de fundamentação – se direito fundamental integrante do direito fundamental ao recurso contencioso, se direito autónomo análogo a direito ou garantia fundamental, se direito de natureza não fundamental ou simples imposição objectiva, dirigida imediatamente à Administração, não atributiva de um direito subjectivo – é objecto de controvérsia. […]

Pensa-se, todavia, como no referido Acórdão nº 150/85, que a fundamentação dos actos administrativos não constitui pressuposto juridicamente necessário, ou condição insuprível, do exercício do direito de recurso contencioso, mas unicamente condição ou factor da sua maior viabilidade prática.

A fundamentação constitui um instrumento institucional administrativo cuja existência potencia o conhecimento dos pressupostos de facto ou de direito, com base nos quais se praticou o acto ou deliberação administrativas, com certo conteúdo ou disposição constitutiva - a motivação e a justificação do acto [Acórdão nº 53/92] - e, consequentemente, das possíveis causas da sua invalidade.

Ora, o direito de acção ou de recurso contencioso tem por conteúdo a garantia da possibilidade do acesso aos tribunais para a defesa desses direitos e interesses legalmente protegidos, afectados ou violados por actos administrativos.

A fundamentação, apenas, propicia, na perspectiva de um eventual exercício desse direito ou garantia fundamental e da sua efectividade, a obtenção do material de facto e de direito cujo conhecimento poderá facilitar ao administrado, de modo mais ou menos determinante e decisivo, a interposição da concreta acção e o seu êxito, através da qual se pretende obter a tutela dos concretos direitos ou interesses legalmente protegidos cuja ofensa é imputada ao concreto acto e deliberação.

Por mor da sujeição da administração ao princípio da legalidade administrativa e através desse instituto, o cidadão terá à mão, porventura, mais facilmente do que acontece nas relações privadas, onde lhe caberá desenvolver a actividade investigatória que tenha por pertinente, os elementos de facto e de direito com bases nos quais se pode determinar, pelo recurso aos tribunais, configurar os concretos termos da causa e apetrechar-se dos meios de prova, para a defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos.

O dever de fundamentação não tem, pois, uma relação de necessidade com o direito de acesso aos tribunais, existindo este sem aquele.

Nesta perspectiva, pode concluir-se que o dever de fundamentação não constitui uma condição indispensável da realização ou garantia do direito fundamental de recurso contencioso contra actos administrativos lesivos dos direitos e interesses legalmente protegidos dos administrados.

[…] Estabelecendo, embora, o dever da fundamentação, a referida norma constitucional não fixa, todavia, as consequências do seu incumprimento. Como diz José Carlos Vieira de Andrade, caberá, por isso, à lei ordinária esclarecer, por exemplo, se o vício é [ou é sempre] causa de invalidade do acto administrativo, que tipo de invalidade lhe corresponderá, bem como em que condições serão admissíveis a sanação do vício ou o aproveitamento do acto.
Assim sendo, bem poderá, em princípio, o legislador ordinário, na sua discricionariedade constitutiva, sancionar a falta de fundamentação, apenas, com a anulabilidade, erigida a sanção-regra [artigo 135º do CPA], e não com a nulidade, assumida, legislativamente, como sanção específica [artigo 133º do CPA], bem como subordiná-las a diferentes prazos de arguição.
E, dizemos em princípio, porque a violação da ordem jurídica pode ser de tal gravidade que, para se manter o essencial da força jurídica da garantia institucional constitucional do dever de fundamentação, tenha a sanção para a sua falta de constituir na nulidade.
Serão situações especiais em que a falta de fundamentação assume, ou uma natureza própria de elemento essencial do acto, acabando por cair debaixo do critério legislativo constante do nº 1 do artigo 133º do CPA, ou uma natureza paralela à de ofensa ao conteúdo essencial de um direito fundamental [artigo 133º nº 2 alínea d) do CPA].

Tal acontecerá sempre que, para além da imposição genérica da fundamentação, a lei prescrever, em casos determinados, uma declaração dos fundamentos da decisão em termos tais que se possa concluir que ela representa a garantia única ou essencial da salvaguarda de um valor fundamental da juricidade, ou então da realização do interesse público específico servido pelo acto fundamentando ou quando se trate de actos administrativos que toquem o núcleo da esfera normativa protegida [pelos direitos, liberdades e garantias fundamentais] e apenas quando a fundamentação possa ser considerada um meio insubstituível para assegurar uma protecção efectiva do direito liberdade e garantia [José Carlos Vieira de Andrade, obra citada[3], página 293]. […]”.

 

3.5.Violação do disposto no artigo 10.º do Código do IRS

 

Os Requerentes entendem que o acto tributário padece de erro de direito, por considerarem que os rendimentos (mais-valias) da venda das quotas estão excluídos de tributação, ao abrigo do regime transitório previsto no artigo 5.º do Decreto-lei n.º 442-A/88, de 30 de Novembro, diploma que aprovou o Código do IRS, de acordo com o qual:

 

“Artigo 5.º - Regime transitório da categoria G

 Os ganhos que não eram sujeitos ao imposto de mais-valias, criado pelo código aprovado pelo Decreto-Lei n.º 46 373, de 9 de Junho de 1965, bem como os derivados da alienação a título oneroso de prédios rústicos afectos ao exercício de uma actividade agrícola ou da afectação destes a uma actividade comercial ou industrial, exercida pelo respectivo proprietário, só ficam sujeitos ao IRS se a aquisição dos bens ou direitos a que respeitam tiver sido efectuada depois da entrada em vigor deste Código.”´(realce nosso)

 

 Para tanto invocam que o estabelecimento comercial “C...” foi adquirido em 1986 e que o ganho decorrente da sua alienação está reflectido, na respectiva proporção, nas quotas cedidas, enquadrando-se no citado artigo 5.º em conjugação com o artigo 10.º, n.º 3, alínea b) do Código do IRS o qual estabelece que “Nos casos de afectação de quaisquer bens do património particular a actividade empresarial e profissional exercida pelo seu proprietário, o ganho só se considera obtido no momento da ulterior alienação onerosa dos bens em causa ou da ocorrência de outro facto que determine o apuramento de resultados em condições análogas”.

 

Sustentam, assim, os Requerentes ter ocorrido uma afectação do estabelecimento comercial “C...”, cuja tributação devida ficou suspensa, nos termos do artigo 10.º, n.º 3, alínea b) do Código do IRS. Em 2010, quando as quotas da sociedade foram alienadas, a mais valia-gerada ficou isenta por aplicação do regime transitório acima transcrito.

 

Todavia, a concreta situação jurídico-tributária em apreciação não tem enquadramento nas citadas normas, cuja aplicabilidade resulta de uma construção imaginativa dos Requerentes desprovida de arrimo nos factos e na disciplina jurídico-tributária vigente.

 

Com efeito, as mais-valias cuja incidência se discute nos autos respeitam a uma venda de participações sociais (quotas) efectuada em 2010, de uma sociedade constituída em 2006, e não à afectação ou alienação do estabelecimento comercial “C...”.

 

Resulta da matéria de facto que a Requerente B... constituiu, em 22 de Fevereiro de 2006, uma sociedade unipessoal por quotas com o capital de € 100.000,00. Em 31 de Agosto desse mesmo ano aumentou o capital social dessa sociedade por novas entradas, uma em numerário e outra em espécie. A entrada em espécie teve por objecto o estabelecimento comercial “C...”.

 

Este estabelecimento encontrava-se na titularidade da Requerente mulher e havia por esta sido adquirido por escritura de trespasse em 2 de Abril de 1990.

 

A primeira falsa premissa de que partem os Requerentes no enquadramento que propõem é a de que a entrada de capital em espécie do estabelecimento comercial na sociedade unipessoal, da qual a Requerente mulher era sócia, consubstanciou uma afectação de bens do  património particular à actividade empresarial exercida pela Requerente, hipótese a que efectivamente se refere o artigo 10.º, n.º 3, alínea b)[4] do Código do IRS, cujo regime invocam.   

 

Diferentemente, da hipótese do artigo 10.º, n.º 3, alínea b) do Código do IRS, a entrada em espécie da “C...”, em 2006, na sociedade unipessoal operou a transmissão estabelecimento, a transferência da titularidade da “C...” da esfera jurídica da Requerente para a da sociedade, com o inerente efeito translativo do direito de propriedade.

 

Não existe aqui qualquer afectação de património pessoal a uma actividade empresarial no seio da mesma pessoa jurídica (a Requerente)[5], mas uma transmissão do direito de propriedade de um activo entre dois sujeitos de direito (da Requerente para a sociedade unipessoal).

 

Atento o que vem sendo dito, estamos claramente fora do campo de aplicação do regime de suspensão da tributação previsto no artigo 10.º, n.º 3, alínea b) do Código do IRS.  A transmissão do estabelecimento, concretizada através da entrada em espécie no capital da sociedade não constitui uma mera afectação patrimonial e está sujeita ao regime geral de tributação das mais-valias reportada ao momento da sua realização. De qualquer forma, esta operação de entrada de capital ocorrida em 2006 não é objecto do acto de liquidação controvertido, nem da presente acção arbitral.

 

Prosseguindo a análise dos factos, em Janeiro de 2010, a Requerente dividiu a sua quota na sociedade unipessoal em duas quotas, uma de € 380.000,00 e outra de € 20.000,00, e cedeu-as a terceiros pelo preço de € 3.040.000,00 e de € 160.000,00, respectivamente, realizando uma mais-valia global de € 2.800.000,00.

 

Esta mais-valia resultou do produto da venda de participações sociais de uma sociedade constituída em 2006 sendo, pela natureza das coisas, impossível que a aquisição de tais participações pela Requerente se reportasse a momento anterior ao da entrada em vigor do Código do IRS (1 de Janeiro de 1989) e, por conseguinte, ao da própria constituição da sociedade cujas partes de capital foram transaccionadas.

 

O regime transitório do artigo 5.º do diploma que aprovou o Código do IRS não tem aqui, por falta de preenchimento dos seus pressupostos, campo de aplicação. 

 

Por outro lado, não se vislumbra qualquer justificação ou razão de ser para defender que sendo as mais-valias provenientes da venda de participações sociais, a data de aquisição relevante para efeitos de determinação do respectivo regime de tributação seria a da aquisição de um estabelecimento comercial pela Requerente. O bem que gerou a mais-valia em 2010 foi a participação social e não um estabelecimento comercial. A data de aquisição relevante terá de ser a da participação social, pois é a operação que está a ser tributada e não outra.

 

Também não se vislumbra qualquer fundamento para considerar que há uma “parte” da mais-valia derivada da transferência do estabelecimento em 2006 e outra da cessão de quotas. Só está aqui em causa uma mais-valia relativa à cessão de quotas que não é passível de ser decomposta.

 

 

Em conclusão,

 

À face do exposto, conclui-se pela justeza da tributação, em IRS, à taxa de 20% das mais-valias no valor de € 2.800.000,00 realizadas pelos Requerentes na venda das quotas da sociedade unipessoal detidas pela Requerente mulher, ao abrigo do disposto nos artigos 9.º, n.º 1, alínea a); 10.º, n.º 1, alínea b); 43.º, n.ºs 1 e 3; 44.º, n.º 1, alínea f); 48.º, alínea b) e 72.º, n.º 4, todos do Código do IRS, na redacção aplicável à data dos factos (2010).

 

Neste âmbito, o acto tributário de liquidação de IRS no valor global de € 618.700,32 é parcialmente anulável no montante de imposto de € 138,15 e na parte respeitante aos juros compensatórios no valor de € 61.711,32, em ambos os casos por vício de falta de fundamentação, nos termos dos artigos 77.º e 35.º, n.º 9 da LGT e do regime previsto no artigo 135.º do CPA, de aplicação subsidiária, atento o disposto nos artigos 2.º alínea d) do CPPT e 29.º, n.º 1, alíneas a) e d) do RJAT. 

 

3.6.Sobre a indemnização por prestação de garantia indevida

 

Os Requerentes deduzem um pedido de condenação no pagamento de indemnização por prestação de garantia bancária indevida, com fundamento em erro imputável aos serviços na liquidação do imposto, nos termos do disposto artigo 53.º da LGT, segundo o qual: 

 

Artigo 53.º Garantia em caso de prestação indevida

1 - O devedor que, para suspender a execução, ofereça garantia bancária ou equivalente será indemnizado total ou parcialmente pelos prejuízos resultantes da sua prestação, caso a tenha mantido por período superior a três anos em proporção do vencimento em recurso administrativo, impugnação ou oposição à execução que tenham como objecto a dívida garantida.

2 - O prazo referido no número anterior não se aplica quando se verifique, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços na liquidação do tributo.

4 – A indemnização referida no n.º 1 tem como limite máximo o montante resultante da aplicação ao valor garantido da taxa de juros indemnizatórios prevista na presente lei e pode ser requerida no próprio processo de reclamação ou impugnação judicial, ou autonomamente.

4 - A indemnização por prestação de garantia indevida será paga por abate à receita do tributo do ano em que o pagamento se efectuou.”

 

Neste âmbito, estabelece ainda o artigo 171.º do CPPT, sob a epígrafe “Indemnização em caso de garantia indevida”, que:

1 - A indemnização em caso de garantia bancária ou equivalente indevidamente prestada será requerida no processo em que seja controvertida a legalidade da dívida exequenda.

2 - A indemnização deve ser solicitada na reclamação, impugnação ou recurso ou em caso de o seu fundamento ser superveniente no prazo de 30 dias após a sua ocorrência.

 

Sobre esta matéria recorda-se que o artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril, autorizou o Governo a legislar “no sentido de instituir a arbitragem como forma alternativa de resolução jurisdicional de conflitos em matéria tributária”, de modo a que o processo arbitral tributário constituísse um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial.

 

A autorização legislativa veio a ser concretizada pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (RJAT), abrangendo o processo arbitral a apreciação de pretensões que se dirijam à declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos. 

 

Considerando que a indemnização por prestação de garantia indevida deve ser solicitada no processo em que se discute a legalidade da dívida, e pode ser objecto de pedido deduzido através do meio processual da impugnação judicial, da qual o processo arbitral é sucedâneo (sem prejuízo das restrições e limitações constantes da Portaria de Vinculação (Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março) afigura-se inequívoco que tal pedido (de indemnização por prestação de garantia indevida) tem cabimento no processo arbitral, à semelhança do que sucede com a pretensão de juros indemnizatórios. 

 

Assim, como resulta expressamente do artigo 171.º, n.º 1 do CPPT o processo arbitral é adequado ao conhecimento e apreciação do pedido de indemnização por prestação de garantia indevida.

 

Na situação em apreço, a anulação parcial liquidação de IRS, quer na parte do imposto, quer na dos juros compensatórios, está alicerçada no vício formal imputável à Autoridade Tributária e Aduaneira que não fundamentou contemporaneamente, como se lhe impunha, a liquidação de tais juros e a importância de € 138,15 referente a tributação autónoma.

 

De acordo com o entendimento jurisprudencial dominante, a utilização da palavra “erro” (imputável aos serviços) e não “vício” ou “ilegalidade”, tem o alcance de significar que a norma (artigo 53.º, n.º 2 da LGT) visou o erro sobre os pressupostos e não vícios formais, à semelhança dos disposto sobre juros indemnizatórios previstos no artigo 43.º da LGT.

 

Assim, se a anulação do acto não tiver por fundamento um erro deste tipo, como sucede no caso em apreço em que a anulação se funda em vício formal e não substantivo, a indemnização só é devida se a garantia tiver sido mantida por mais de três anos, pressuposto que não se verifica.

 

Deste modo, não assiste aos Requerentes o direito a serem indemnizados pelos prejuízos resultantes da prestação de garantia bancária.

 

3.7.Sobre a fixação do valor da causa

 

A fixação do valor da causa não é regulada pelo RJAT que se refere apenas à definição na decisão arbitral do montante das custas e à sua repartição pelas partes, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4 do RJAJ.

 

Neste âmbito, estabelece o artigo 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”) que “o valor da causa é determinado nos termos do artigo 97.º-A do Código de Procedimento e de Processo Tributário” e, segundo o n.º 3 do mesmo preceito, é o da liquidação a que o sujeito passivo, no todo ou em parte, pretenda obstar.

 

De acordo com o artigo 3.º, n.º 2 do RCPAT, “o valor da causa é determinado nos termos do artigo 97.º-A do Código de Procedimento e de Processo Tributário” e, segundo o n.º 3 do mesmo preceito, é o da liquidação a que o sujeito passivo, no todo ou em parte, pretenda obstar.

 

O artigo 97.º-A do CPPT contém a disciplina material relevante para a determinação do valor da causa nos processos judiciais tributários, indexando-o, quando seja impugnada a liquidação, à importância cuja anulação se pretende – cf. artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT. Solucionada, desta forma, a questão do critério para apuramento do quantum, fica por resolver a questão temporal, i.e., do momento com referência ao qual esse valor deve ser determinado.

 

Neste ponto, o artigo 31.º, n.º 4 do CPTA, subsidiariamente aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea c) do RJAT (e por remissão sucessiva do artigo 2.º, alínea c) do CPPT), remete para o disposto na lei processual civil, cuja disciplina atribui ao juiz a competência para fixar o valor da causa, sem prejuízo do dever de indicação que impende sobre as partes. Nos processos em que não haja lugar a despacho saneador o valor da causa é fixado na sentença – cf. artigo 306.º, n.ºs 1 e 2 do CPC.

 

Relativamente ao momento em que o valor da causa deve ser fixado, importa compulsar o artigo 13.º, n.º5 do RJAT, segundo o qual são atribuídos à apresentação do pedido arbitral os efeitos da apresentação de impugnação judicial. E de acordo com o artigo 299, n.º1 do CPC, na determinação do valor da causa deve atender-se ao momento em que a acção é proposta. Nos termos do artigo 259, n.º1 do CPC, a instância inicia-se pela proposição da acção e esta considera-se proposta, intentada ou pendente, logo que seja recebida na secretaria a respectiva petição inicial.

 

Na situação sub judice, no momento da apresentação do pedido arbitral, o valor a que os requerentes pretendiam obstar era o da liquidação adicional de IRS no valor de € 1.404.549,98, pelo que se atribui ao valor da causa essa importância.

 

 

 

IV.           DECISÃO

 

Termos em que, acorda o colectivo dos árbitros deste Tribunal Arbitral em:

 

(a)    Julgar parcialmente procedente o pedido arbitral de declaração de ilegalidade e anulação do acto tributário de liquidação de IRS e juros compensatórios, emitido sob o n.º 2014 ..., relativo a 2010, anulando-o no montante parcial de € 61.849,47 [€ 138,15 (tributação autónoma) + € 61.711,32 (juros compensatórios)];

(b)   Julgar improcedente o pedido de condenação da AT em indemnização por prestação de garantia indevida.

 

* * *

 

Valor do processo: € 1.404.549,98, de harmonia com o disposto nos artigos 3.º, n.ºs 2 e 3 do RCPAT, 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT e 306.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil.

 

O montante das custas é fixado em € 18.972,00, na proporção de 1/2 a cargo de cada uma das partes, de acordo com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4 do RJAT; 4.º, n.º 4 do RCPAT e Tabela I anexa e, ainda, com a regra geral processual em matéria de custas constante do artigo 527.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil, atendendo a que a AT deu causa à redução do pedido arbitral.

Notifique.

Lisboa, 13 de Janeiro de 2015

 

Texto elaborado em computador, nos termos do artigo 131.º, n.º 5 do Código de Processo Civil, aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT, com versos em branco e revisto pelo colectivo de árbitros.

 

A redacção do presente acórdão arbitral rege-se pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990.

 

 

Os árbitros,

 

 

Jorge Lino Ribeiro Alves de Sousa

(árbitro presidente)

 

 

Alexandra Coelho Martins

 

 

Jorge Júlio Landeiro de Vaz

 

 

 



[1] Acresce que este prazo resultaria alargado em 3 dias se tivéssemos em conta, conforme preconiza a AT, o disposto no artigo 248.º do CPC (ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT), segundo o qual se presume que a notificação é feita no terceiro dia posterior ao da elaboração, o que representaria um alargamento desse prazo até ao dia 2 de Outubro de 2014. No entanto, temos dúvidas acerca da aplicabilidade do regime do CPC a este prazo de natureza procedimental.

[2] Podendo também uma acção externa suceder a uma interna. Veja-se a este propósito o Acórdão do TCA Sul, n.º 05303/12, de 10 de Julho de 2012, segundo o qual “a lei apenas proíbe a existência de mais de um procedimento de inspecção externa (…) mas não que, na sequência de uma acção de inspecção interna possa iniciar outra de cariz externa (…).

 

[3] José Carlos Vieira de Andrade, O Dever de Fundamentação Expressa de Actos Administrativos, Almedina, 1991.

[4] Sobre o âmbito de aplicação desta norma em sentido coincidente com o que preconizamos veja-se José Guilherme Xavier de Basto, IRS Incidência Real e Determinação dos Rendimentos Líquidos, Coimbra Editora, 2007, p. 467.

[5] Ademais, o estabelecimento comercial não integrava o património pessoal da Requerente (ponto de partida da pretensa afectação) mas sim a sua actividade empresarial e profissional.