Sumário:
I – O nosso sistema jurídico permite que o repercutido tenha legitimidade para fazer valer os seus direitos e interesses legalmente protegidos no âmbito do procedimento e do processo tributário. No caso do IVA, o acesso à via graciosa ou aos tribunais deve ser realizado “nos termos das leis tributárias”.
II – O pedido direto de reembolso do IVA liquidado apenas surge na esfera do repercutido legal nas situações em que se afigure “impossível ou excessivamente difícil para o adquirente obter, junto dos fornecedores, o reembolso do IVA indevidamente faturado e pago”.
III – Não se provando essa impossibilidade, o repercutido carece de legitimidade para requerer a anulação de atos de autoliquidação
DECISÃO ARBITRAL
I. Relatório
1. A... - Sociedade Gestora de Organismos de Investimento Coletivo, S.A., com o número de identificação fiscal n.º … e sede Avenida da …, nº … - …, … Lisboa, veio, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e dos n.os 1 e 2 do artigo 10.º, ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária ou “RJAT”) e dos artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 Março, requereu a constituição de Tribunal Arbitral para se pronunciar sobre a (i)legalidade da decisão de indeferimento do Pedido de Revisão Oficiosa, datada de 18 de dezembro de 2023, apresentado pela Requerente com vista à contestação dos atos tributários de autoliquidação de Imposto sobre o Valor Acrescentado (“IVA”) efetuados pelas entidades que lhe prestaram serviços durante os períodos de tributação de setembro de 2019 a dezembro de 2020, peticionando a condenação da AT à restituição da quantia de € 260 624,01, acrescida do pagamento de juros indemnizatórios.
É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA, (AT).
2. O pedido de constituição do tribunal arbitral, apresentado em 20 de março de 2024, foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 22 de março de 2024.
Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Conselho Deontológico procedeu à designação dos árbitros, que comunicaram a sua aceitação no prazo legal.
Notificadas dessa designação, as partes não manifestaram vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação dada pela Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral foi constituído no dia 4 de junho de 2024.
Nesse mesmo dia, foi prolatado o despacho determinado pelo artigo 17.º, n.º 1, do RJAT, na redação dada pela Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro.
No dia 8 de julho de 2024, a Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT”) apresentou resposta, suscitando matéria de exceção, tendo procedido à junção do Processo Administrativo.
Em 11 de julho de 2024, foi proferido despacho o despacho previsto no artigo 18.º do RJAT, determinando-se a produção de alegações.
No dia 25 de setembro, foi determinada a substituição do árbitro-ajunto, Dra. Raquel Montes Fernandes pelo Prof. Doutor João Pedro Rodrigues.
Perante tal facto, o prazo para prolação de acórdão arbitral foi sucessivamente prorrogado nos termos do disposto no artigo 21.º, n.º 2, do RJAT.
O tribunal arbitral foi regularmente constituído, ex vi o disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do RJAT.
II. Saneamento
3. As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, e estão devidamente representadas, como determinado pelos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, não enfermando o processo de quaisquer nulidades.
4. Matéria de exceção
4.1. Na sua Resposta, a Requerida começa por suscitar a questão da ilegitimidade da Requerente, invocando que, não sendo esta sujeito passivo de IVA, mas suportando apenas o imposto por repercussão legal, carece de legitimidade para requerer a anulação de atos de autoliquidação, “cabendo ao sujeito passivo do imposto e não àquele a quem o imposto foi repercutido o direito de decidir pela regularização ou não de tal imposto”.
Nas suas alegações, a Requerente considera existir legitimidade enquanto entidade repercutida para requerer o reembolso de imposto pago em excesso, acrescentando que realizou “todos os esforços necessários junto dos fornecedores para que estes procedessem à substituição das faturas previamente emitidas de tal modo que, aquando da anulação das mesmas e subsequente emissão de novas faturas, estas passassem a refletir o correto enquadramento em sede de IVA.
Estando em causa matéria que, a proceder, obsta ao conhecimento de mérito, cumpre começar por apreciá-la.
Para tal, há que estabilizar a factualidade relevante.
4.2. Matéria de facto
4.2.1. Factos Provados
Com interesse para a apreciação da matéria de exceção, consideram-se provados os seguintes factos:
4.2.1.1. A Requerente é uma sociedade anónima, e encontra-se registada na Comissão dos Mercados dos Valores Mobiliários (“CMVM”) como intermediário financeiro autorizado, desde 29 de julho de 1991; (cfr. facto não controvertido).
4.2.1.2. No âmbito da sua atividade, a Requerente adquiriu serviços de software e consultoria informática; tesouraria, faturação, contabilidade, auditoria e revisão legal de contas; assessoria jurídica e legal; e consultoria e assessoria financeira, tendo suportado IVA na aquisição desses serviços, num total de € 260.624,01 de acordo com a seguinte tabela:
(cfr. Documento n.º 2 a 8)
4.2.1.3. As referidas prestações de serviços foram faturadas à Requerente com IVA à taxa de 23%;
4.2.1.4. No dia 16 de outubro de 2023, a Requerente deduziu, nos termos do artigo 78.º da LGT, um pedido de revisão oficiosa, requerendo a “anulação parcial dos atos tributários de autoliquidação relativos aos períodos mensais de tributação compreendidos entre setembro de 2019 e dezembro de 2020, concretizados através das Declarações Periódicas referentes a tais períodos pelas referidas entidades prestadoras de serviços de administração e gestão de fundos de investimento”; (cfr. Documento 1 e Processo Administrativo)
4.2.1.5. Por despacho de 17 de novembro de 2023, foi determinada a notificação da Requerente para exercício do direito de audição face ao projeto de indeferimento do pedido de revisão oficiosa. (cfr. Processo Administrativo)
4.2.1.6. Da informação n.º …-ISC/2023 dada no procedimento atrás referido, consta, entre o mais, a seguinte argumentação “perscrutando a petição apresentada pela Requerente, não se vislumbra sequer a existência de qualquer erro nas autoliquidações efetuadas, uma vez que as mesmas encontram-se conforme às disposições legais aplicáveis à questão em análise [...] Ora, dos factos alegados, bem como dos elementos disponibilizados, não resulta que a mesma [Requerente] tenha solicitado aos prestadores de serviços em causa a mencionada regularização, pelo que não dispõe de legitimidade para vir nos presentes autos suscitar a regularização do imposto em análise”, considerando “precludida a apreciação do mérito/legalidade das demais questões colocadas, em concreto, a aferição da suscetibilidade das operações em causa se enquadrarem, para efeito de tributação em sede de IVA, no âmbito da norma de isenção constante da subalínea g), da alínea 27 do artigo 9.º do CIVA”. (cfr. Processo Administrativo)
4.2.1.7. Por despacho de 18 de dezembro de 2023, o pedido foi rejeitado liminarmente, com os fundamentos constantes da informação n.º …-ISC/2023, que aqui se dá por reproduzida. (cfr. Processo Administrativo)
4.2.1.8. No dia 30 de novembro de 2023 foram expedidas por via postal, cartas, datadas de dia 27 desse mês, dirigidas aos seguintes fornecedores: B... – Gestão, Negócios e participações, Lda.; D..., S.A.; E… Portugal – Sistemas de informação, Lda.; F..., Lda.; H... – accounting and taxation, Lda.; I…, S.A.; J... &Associados, SP RL. (cfr. Documento n.º 9)
4.2.1.9. Relativamente ao fornecedor O… Portugal, Lda., foram redigidas duas cartas, uma, em inglês, datada de 30 de janeiro de 2024 e outra, em português, datada de 27 de novembro de 2023. (cfr. Documento n.º 9)
4.2.1.10. As cartas referidas supra tinham como “assunto” um “pedido de substituição de faturas”, sendo acompanhadas da seguinte exposição:
“(...)
-
Na sequência da realização de uma revisão de procedimentos fiscais levada a cabo pela R..., tendo em vista aferir o enquadramento em sede de IVA a conferir aos serviços de consultoria e assessoria financeira prestados (...) à R... durante o período compreendido entre agosto de 2019 e dezembro de 2020, a mesma constatou que tal enquadramento não se encontra conforme a legislação aplicável (conforme resulta do entendimento expresso no parecer elaborado pelos consultores fiscais que apoiaram a R... na referida revisão de procedimentos (...)”.
-
Neste sentido, tendo tomado conhecimento da atual jurisprudência proferida pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (“TJUE”) neste particular, constatou que os serviços externalizados pelas sociedades gestoras, sempre que, formando um conjunto distinto, tenham um nexo intrínseco com as funções legal ou contratualmente obrigatórias para a gestão da carteira e/ou a gestão dos fundos de investimento devem beneficiar da isenção de IVA prevista na subalínea g) da alínea 27.º do artigo 9.º do Código do IVA, sendo a mesma aplicável às prestações de serviços de “administração ou gestão de fundos de investimento” (cf. Acórdão do TJUE, de 17 de junho de 2021, prolatado nos processos apensos C-58/20 e C-59/20).
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Atendendo a que a R... adquiriu junto da (...) serviços de (...) que apresentam um claro nexo intrínseco com as funções legal ou contratualmente obrigatórias para a gestão de um fundo de investimento, encontram-se preenchidos os requisitos elencados pelo TJUE para que estes devam ser considerados isentos ao abrigo da isenção de IVA supra referida.
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Neste contexto, estabelece o n.º 7 do artigo 29.º do CIVA que “quando o valor tributável de uma operação ou o imposto correspondente sejam alterados por qualquer motivo, incluindo a inexatidão, deve ser emitido documento retificativo da fatura”.
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Deste modo, e face ao supra exposto, gostaríamos de averiguar a Vossa disponibilidade para se proceder à retificação e consequente anulação das faturas emitidas pela (...) à R... durante o período compreendido entre (...) e a emissão de novas faturas com a respetiva aplicação da isenção deste imposto prevista na subalínea g) da alínea 27.º do artigo 9.º do Código do IVA”.
4.2.1.11. Por carta datada de 4 de fevereiro de 2024, a fornecedora B...– Gestão, Negócios e participações, Lda., respondeu informando “que não é possível dar seguimento ao pretendido por V. Exas, sem que se conheça uma posição formal da Autoridade Tributária sobre esta matéria”. (cfr. Documento n.º 10)
4.2.1.12. Por carta datada de 8 de janeiro de 2024, a D..., S.A., respondeu informando que “foi concluído que não estamos em posição de emitir as notas de crédito sem uma indicação clara por parte da Autoridade Tributária e Aduaneira, ou na ausência desta, sem uma decisão judicial”. (cfr. Documento n.º 10)
4.2.1.13. A F... respondeu em 28 de dezembro de 2023 informando que iria solicitas um pedido de informação vinculativa à Autoridade Tributária e, em 9 de janeiro de 2024, informou que “assim que tivermos uma confirmação da AT sobre o enquadramento dos serviços da F... no supra artigo, relativamente à isenção dos serviços prestados pela F..., então procederemos à retificação das faturas”. (cfr. Documento n.º 10)
4.2.1.14. Por carta de 25 de janeiro de 2024, a H... – accounting and taxation, Lda., respondeu informando ter contactado a AT “que remeteu a responsabilidade de solicitação do IVA indevidamente suportado para a A... – Sociedade Gestora de Organismos de Investimento Coletivo, S.A., não devendo a H... Accouting and Taxation proceder à emissão de notas de crédito e novas faturas de anos antecedentes”. (cfr. Documento n.º 10)
4.2.1.15. Por carta datada de 5 de março de 2024, a J... & Associados respondeu solicitando o “envio de informação vinculativa emitida pela Administração Tributária sobre a temática em apreço”. (cfr. Documento n.º 10)
4.2.1.16. As cartas referidas supra foram expedidas após a Requerente ter deduzido o pedido de revisão oficiosa.
4.2.1.17. A Requerente não deduziu o IVA suportado nas aquisições dos serviços supra mencionadas. (cfr. Documento n.º 11)
4.2.1.18. O pedido de pronuncia arbitral foi remetido em 20 de março de 2024.
4.2.2. Factos não provados:
4.2.2.1. Não se provou que fosse impossível obter dos fornecedores de serviços a retificação das faturas e a obtenção do reembolso do imposto pago.
4.2.3. Considerando o disposto nos artigos 596.º, n.º 1 e 607.º, n.os 2 a 4, ambos do Código de Processo Civil (por remissão do disposto no artigo 29.º, n.º 1, do RJAT), incumbe ao Tribunal o dever de selecionar a matéria de facto pertinente para a decisão.
No caso sub iudicio, a decisão sobre os factos provados e não provados radicou no acervo documental presente nos autos, juntos com o pedido de pronúncia arbitral e com o Processo Administrativo, inexistindo impugnação desses documentos.
Relativamente aos factos não provados, cumpre esclarecer que os fornecedores de serviços que responderam à Requerente não se opuseram ao pedido formulado, antes estabeleceram uma condição – a existência de uma pronúncia da AT, designadamente em sede de pedido de informação vinculativa – para que procedessem à “substituição” das faturas emitidas, como resulta, aliás, da matéria de facto dada como provada. Por outro lado, circunstanciando essa factualidade no tempo, é mister relevar que nenhum pedido foi feito antes da apresentação do pedido de revisão oficiosa, nem se logrou demonstrar nesse procedimento a existência de tal impossibilidade.
4.3. Apreciação
A questão da falta de legitimidade para despoletar uma revisão oficiosa quando não se demonstre ser muito difícil ou impossível obter do sujeito passivo de IVA a retificação das faturas em virtude de um errado enquadramento em sede de IVA foi já considerada por este CAAD.
No processo n.º 471/2023-T (Conselheiro Jorge Lopes de Sousa, Prof. Doutor Júlio Tormenta e Prof.ª Doutora Ana Paula Marques Rocha), em apreciação a questão simétrica, deixaram-se consignados os seguintes argumentos:
“(...)
Ao abrigo do disposto no artigo 29.º, n.º 7 do Código do IVA, quando “o valor tributável de uma operação ou o imposto correspondente sejam alterados por qualquer motivo, incluindo inexatidão, deve ser emitido documento retificativo de fatura”. No mesmo sentido, o artigo 78.º, n.º 1 do Código do IVA prevê que as “disposições dos artigos 36.º e seguintes [referentes aos prazos e às formalidades de emissão das faturas] devem ser observadas sempre que, emitida a fatura, o valor tributável de uma operação ou o respetivo imposto venham a sofrer retificação por qualquer motivo”, prevendo-se depois, nos restantes números desta norma legal, as exatas condições para o exercício deste direito por parte do sujeito passivo de imposto. A este respeito, Clotilde Celorico Palma in Introdução ao Imposto Sobre o Valor Acrescentado (N.º 1 da Colecção) – 6.ª Edição, p. 80 esclarece que “os sujeitos passivos deverão proceder à regularização do IVA” precisamente nos termos previstos nesta disposição legal sendo que, “caso não se cumpram os requisitos previstos no artigo 78.º, as rectificações são consideradas nulas, com os efeitos legais daí subjacentes”.
Ora, no presente caso está em causa a questão de saber se a retificação/restituição do IVA incorrido em fatura pode ser diretamente solicitada à AT por alguém que, não sendo o sujeito passivo da relação jurídico-tributária, assume a posição de repercutido legal do valor liquidado por aquele sujeito passivo.
Afigura-se-nos pacífico que, como refere Rui Duarte Morais in Manual de Procedimento e Processo Tributário, Almedina, 2016, p. 58, a verificação de uma situação em que seja liquidado imposto de montante superior ao devido terá para o repercutido “consequências económicas negativas (daí o serem, muitas vezes, designados por contribuintes de facto)”. Nesta medida, e em decorrência do princípio da tutela jurisdicional efetiva consagrado no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, o artigo 18.º, n.º 4, alínea a) da LGT, em conjugação com o artigo 9.º do CPPT, reconhece ao repercutido legal o direito de reclamar, recorrer, impugnar ou requerer pronúncia arbitral nas questões legais em que tenha um interesse legalmente protegido, isto é, em que tenha interesse direto em contradizer.
Sucede que, por expressa previsão da norma da LGT acabada de referir, tal reclamação, recurso, impugnação ou pedido de pronúncia arbitral deve ser realizada “nos termos das leis tributárias”, sendo mister tomar ainda em consideração a posição assumida pela doutrina nacional e, principalmente, pela jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia (doravante, TJUE) a este respeito.
Ora, sendo parcos os estudos, em território nacional, sobre os direitos processuais do repercutido legal, importa chamar à colação a posição defendida já em 2008 por Bruno Botelho Antunes in Da repercussão fiscal no IVA, Almedina. No âmbito do IVA, defende este Autor que “o direito do repercutido previsto no art. 18.º, n.º 4 al. a), da LGT foi consagrado para fazer face a situações em que, o sujeito passivo, após ter sido instado pelo repercutido para retificar o imposto que lhe foi liquidado em excesso, não agiu nesse sentido. Nessa base, consagrou-se a possibilidade de o repercutido reaver o seu dinheiro diretamente do Estado (…)”. E esta posição afigura-se concordante com a posição assumida pelo TJUE a este respeito.
Com efeito, pode ler-se no Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia (doravante, TJUE) de 26 de abril de 2017, Farkas, C‑564/15, EU:C:2017:302 que:
“50 A este respeito, o Tribunal de Justiça já declarou que, não havendo regulamentação da União em matéria de pedidos de restituição de impostos, cabe ao ordenamento jurídico interno de cada Estado Membro prever as condições em que esses pedidos podem ser exercidos, devendo estas condições respeitar os princípios da equivalência e da efetividade, isto é, não devem ser menos favoráveis do que as condições relativas a reclamações semelhantes baseadas em disposições de direito interno, nem organizadas de modo a impossibilitar na prática o exercício dos direitos conferidos pela ordem jurídica da União (v., neste sentido, acórdão de 15 de março de 2007, Reemtsma Cigarettenfabriken, C 35/05, EU:C:2007:167, n.o 37).
51 Uma vez que cabe, em princípio, aos Estados Membros determinar as condições em que o IVA indevidamente faturado pode ser regularizado, o Tribunal de Justiça reconheceu que um sistema em que, por um lado, o vendedor do bem que pagou por erro o IVA às autoridades tributárias pode exigir o seu reembolso e, por outro, o adquirente do bem pode intentar uma ação cível para repetição do indevido contra esse vendedor respeita os princípios da neutralidade e da efetividade. Com efeito, esse sistema permite ao referido adquirente que suportou o encargo do imposto faturado por erro obter o reembolso dos montantes pagos indevidamente (v., neste sentido, acórdão de 15 de março de 2007, Reemtsma Cigarettenfabriken, C 35/05, EU:C:2007:167, n.os 38, 39 e jurisprudência referida).
52 Além disso, segundo jurisprudência constante, na falta de regulamentação da União na matéria, as vias processuais destinadas a garantir a proteção dos direitos que decorrem para os cidadãos do direito da União dependem da ordem jurídica interna de cada Estado Membro, por força do princípio da autonomia processual dos Estados Membros (v., designadamente, acórdãos de 16 de maio de 2000, Preston e o., C 78/98, EU:C:2000:247, n.o 31, e de 15 de março de 2007, Reemtsma Cigarettenfabriken, C 35/05, EU:C:2007:167, n.o 40).
53 No entanto, se o reembolso do IVA se tornar impossível ou excessivamente difícil, designadamente em caso de insolvência do vendedor, o princípio da efetividade pode exigir que o adquirente possa requerer o reembolso diretamente às autoridades tributárias. Por conseguinte, os Estados Membros devem prever os instrumentos e as vias processuais necessárias para permitir ao referido adquirente recuperar o imposto indevidamente faturado, de modo a que o princípio da efetividade seja respeitado (v., neste sentido, acórdão de 15 de março de 2007, Reemtsma Cigarettenfabriken, C 35/05, EU:C:2007:167, n.o 41)”. (nosso negrito)
Portanto, e de acordo com este entendimento do TJUE (já anteriormente sufragado no acórdão de 15 de março de 2007, Reemtsma Cigarettenfabriken, C 35/05, EU:C:2007:167), o repercutido legal pode requerer diretamente o reembolso do IVA à AT se e na medida em que a regularização do IVA por parte do sujeito passivo de imposto “se tornar impossível ou excessivamente difícil, designadamente em caso de insolvência do vendedor”. Mais recentemente, o TJUE voltou a reafirmar esta posição no acórdão de 13 de outubro de 2022, HUMDA, C 397/21, EU:C:2022:790, no qual se pode ler que “a Diretiva IVA, lida à luz dos princípios da efetividade e da neutralidade do IVA, deve ser interpretada no sentido de que se opõe a uma regulamentação de um Estado-Membro em aplicação da qual um sujeito passivo, ao qual outro sujeito passivo prestou um serviço, não pode pedir diretamente à Autoridade Tributária o reembolso do montante correspondente ao IVA que lhe foi indevidamente faturado pelo referido prestador e que este último pagou à Fazenda Pública, quando a recuperação desse montante junto do prestador de serviços for impossível ou excessivamente difícil pelo facto de este último ter sido objeto de um processo de liquidação, e quando não for possível imputar a estes dois sujeitos nenhuma fraude ou abuso, de modo que não há risco de perda de receitas fiscais para este Estado-Membro” (nosso sublinhado).
Como decorre que vem de ser dito, o acórdão do TJUE de 7 de setembro de 2023, Schütte, C453/22, ECLI:EU:C:2023:639 (por diversas vezes citado pelo Requerente) insere-se no espírito das anteriores decisões do TJUE sobre o tema em apreço, sufragando que “se for impossível ou excessivamente difícil para o adquirente obter, junto dos fornecedores, o reembolso do IVA indevidamente faturado e pago, este adquirente, não lhe sendo imputado nenhum abuso, fraude ou negligência, tem o direito de dirigir o seu pedido de reembolso diretamente à Autoridade Tributária”, esclarecendo, contudo, que “(…) quanto à questão de saber se o facto de não haver insolvência dos fornecedores pode ter uma incidência sobre o direito ao reembolso do IVA à luz da jurisprudência mencionada no n.o 23 do presente acórdão, é pacífico que a utilização sistemática do advérbio «designadamente» nesta jurisprudência demonstra que a hipótese da insolvência dos fornecedores é apenas uma das circunstâncias em que pode ser impossível ou excessivamente difícil obter o reembolso do IVA indevidamente faturado e pago (…)” (§ 26 e 29).
Portanto, da jurisprudência do TJUE acabada de referir, resulta à saciedade que o direito ao pedido direto de reembolso do IVA liquidado apenas surge na esfera do repercutido legal nas situações em que se afigure “impossível ou excessivamente difícil para o adquirente obter, junto dos fornecedores, o reembolso do IVA indevidamente faturado e pago”. Como tal, e descendo ao caso concreto, cumpre então perceber se se verifica no caso sub judice a impossibilidade ou dificuldade excessiva relatada na jurisprudência do TJUE. E entendemos que não.
Com efeito, o que resulta do probatório é que o Requerente apenas contactou a C... já depois de apresentado o pedido de constituição do presente processo arbitral, tendo encetado conversações com esta entidade no sentido de regularização do IVA liquidado apenas no passado mês de outubro do corrente ano (i.e., há sensivelmente dois meses). Nesta medida, e ao contrário do alegado pelo Requerente, não se encontra no probatório qualquer “recusa veemente” dos responsáveis da C... em seguirem as regras legais previstas no ordenamento jurídico português para a regularização do IVA, antes se encontrando, no último e-mail que consta do probatório (datado de 30 de outubro), a disponibilidade para manter a discussão sobre o tema em análise mediante a prestação de determinadas informações por parte do Requerente.
Nesta medida, não se encontra no probatório qualquer elemento que permita concluir pela impossibilidade ou excessiva dificuldade em cumprir os normais trâmites dos pedidos de restituição de IVA previstos no ordenamento jurídico português, tanto mais que ainda não decorreu o prazo de quatro anos previsto no artigo 98.º n.º 2 do Código do IVA para o efeito, que o Supremo Tribunal Administrativo vem entendendo que se aplica nos casos de erros de direito (conforme Acórdãos deste Tribunal proferidos a 28-06-2017 no processo n.º 01427/14, a 03-06-2020 no processo n.º 0498/15.2 BEMDL, a 17-06-2020 no processo n.º 0443/13.0BEPRT, a 07-04-2021 no processo n.º 0796/15.5BEVIS, a 12-05-2021 no processo n.º 01023/15.0BELRS e a 07-04-2022 no processo 0379/16.2BEVIS). Ademais, e do ponto de vista da justiça material, não se vislumbra qualquer razão para “forçar” uma interpretação distinta, já que o Requerente não só contactou a C... já depois de apresentada a reclamação graciosa e o pedido de pronúncia arbitral (sendo que poderia ter, por sua exclusiva iniciativa, antecipado tal contacto) como foi precisamente o Requerente que, por esquecimento ou negligência, não deu continuidade à conversa encetada com a C... nesses termos (não respondendo ao e-mail de 30 de outubro com as informações que lhe são pedidas por esta entidade).
Nestes termos, e considerando que o Requerente não cumpre os pressupostos que lhe permitam ser titular direto do direito ao reembolso do IVA que alega ter suportado em montante superior ao devido, não tem a mesma legitimidade material, substantiva ou ad actum para figurar no presente processo arbitral. Como tal, e considerando que “A legitimidade material, substantiva ou “ad actum” consiste num complexo de qualidades que representam pressupostos da titularidade, por um sujeito, de certo direito que o mesmo invoque ou que lhe seja atribuído, respeitando, portanto, ao mérito da causa” (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Proc. 5297/12.0TBMTS.P1.S2 e a decisão arbitral proferida a 14 de fevereiro de 2022 no Processo n.º 513/2021-T), julga-se verificada a exceção perentória inominada de ilegitimidade material do Requerente arguida pela Requerida, ao abrigo do disposto nos artigos 576.º, n.ºs 1 e 3 e 579.º do CPC, aplicáveis ex vi o artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.
(...)”.
Posteriormente, o CAAD voltou a pronunciar-se sobre a mesma questão no Processo n.º 474/2023-T (Prof. Doutor Guilherme W. d’Oliveira Martins, Fernando Marques Simões e Nuno Maldonado Sousa), onde, para além de se acolherem os fundamentos da jurisprudência atrás citada, se aduziu:
“(...)
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Intui-se do disposto nos n.ºs 1 e 4 do artigo 9.º do CPPT (aplicáveis ex vi do art.º 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT) que “(...) têm legitimidade no procedimento tributário, além da administração tributária, os contribuintes, incluindo substitutos e responsáveis, outros obrigados tributários, as partes dos contratos fiscais e quaisquer outras pessoas que provem interesse legalmente protegido.” Por outro lado, diz-nos o n.º 4 do mesmo normativo que “[T]êm legitimidade no processo judicial tributário, além das entidades referidas nos números anteriores, o Ministério público e o representante da fazenda Pública.”
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Prosseguindo na enunciação do quadro normativo que estritamente conforma o pressuposto processual da legitimidade ativa, adequado se mostra ainda trazer aqui à colação o disposto no art.º 30.º do CPC (também aplicável ex vi do art.º 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT) que estatui como segue: “[1] - O autor é parte legítima quando tem interesse direto em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse direto em contradizer. 2 - O interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da ação e o interesse em contradizer pelo prejuízo que dessa procedência advenha. 3 - Na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor.”
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Sobre a temática da legitimidade activa na jurisprudência dos tribunais podem ver-se as seguintes decisões, apud, decisão arbitral proferida no Processo n.º 278/2017-T que pode ser consultada in https://caad.org.pt/tributario/decisoes/decisao.php?listPageSize=100&listPage=30&id=3133 e onde se trazem à colação os seguintes arrestos: i) Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, proferido em 05/05/1999, no processo n.º 023105 e cujo sumário diz: “I – A legitimidade dos contribuintes para impugnarem atos tributários está dependente da existência de um interesse direto, pessoal e legítimo na anulação dos atos impugnados (…). II – O interesse relevante para tal efeito será o benefício que a anulação do ato, complementada pela subsequente execução do julgado, traz ao recorrente. (…) IV – (…) deverá entender-se só poderão ser relevantes para aquele efeito os erros desfavoráveis aos contribuintes.”; ii) Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, proferido em 15/10/2010, no processo n.º 00049/10.5BECBR e cujo sumário refere: “I. A legitimidade é o pressuposto processual pelo qual a lei seleciona os sujeitos de cada lide judicial, e o interesse em agir o pressuposto pelo qual a parte, legítima, justifica a carência da tutela judiciária; II. A legitimidade terá a ver com o interesse substantivo, que decorre da posição da parte relativamente à relação jurídica litigada, enquanto o interesse em agir terá a ver com um interesse adjetivo, que decorre da situação, objetivamente existente, de necessidade de proteção judicial daquele interesse substantivo;” iii) Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, proferido em 22/01/2015, no processo n.º 08203/14 e cujo sumário refere: “(...) 2. A legitimidade das partes (“legitimatio ad causam”) é o pressuposto processual que, traduzindo uma correta ligação entre as partes e o objeto da causa, as faculta para a gestão do processo. Como regra (legitimidade direta), serão partes legítimas os titulares da relação material controvertida (cfr. art.º 30.º, n.º 3, do C.P.Civil, "ex vi" do art. 2.º, al. e), do C.P.P.Tributário; art.º 9.º do C.P.P.Tributário), assim se assegurando a coincidência entre os sujeitos que, em nome próprio, intervêm no processo e aqueles em cuja esfera jurídica a decisão judicial vai diretamente produzir a sua eficácia. Da análise do art.º 30.º, n.º 3, do C. P. Civil, conclui-se que o critério supletivo de aferição da legitimidade processual se deve basear no interesse em demandar ou contradizer, face ao objeto inicial do processo, individualizado pela relação material controvertida tal como o A. a configura. 3. Se qualquer das partes carecer de legitimidade o Tribunal deve abster-se de conhecer do mérito da causa e absolver o réu da instância (cfr. arts. 278.º, n.º 1, al. d), 576.º, n.º 2, e 577.º, al. e), todos do C.P. Civil, aplicáveis “ex vi” do art. 2.º, al. e), do C.P.P. Tributário), sendo tal exceção dilatória de conhecimento oficioso (cfr. art.º 578.º do C.P. Civil). 4. A legitimidade das partes deve ser determinada de acordo com a lei vigente no momento em que é proferida a decisão sobre a mesma.”
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Dito isto e sabendo-se que a aqui Requerente não era o contribuinte/sujeito passivo do imposto que interveio no procedimento de autoliquidação do IVA aqui em causa, mas sim, por via da repercussão do IVA, operada nos termos e em conformidade com o disposto no art.º 37º do CIVA, a destinatária do IVA liquidado e, portanto, tão-só, a repercutida naquela obrigação de liquidação do IVA, a questão que se coloca é a de saber se aquela, com fundamento no acima transcrito art.º 9.º do CPPT, tem legitimidade processual activa para estar na presente acção como Autora que pretende a anulação parcial das autoliquidações de IVA produzidas pelas suas fornecedoras ou prestadoras de serviços, emergindo, tal legitimidade processual, por via da sua subsunção na última parte do n.º 1 do art.º 9º do CPPT, aplicável por remissão do n.º 4 do mesmo normativo, que refere: “(...) quaisquer outras pessoas que provem interesse legalmente protegido.”
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O Tribunal Arbitral Colectivo começa por admitir, em tese, que, in casu, a legitimidade processual activa da Requerente pode estar verificada, subsumindo-se, exactamente, na parte da norma acima transcrita, do que cuidaremos doravante.
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É bem certo que da letra do n.º 1 do art.º 9º do CPPT, aplicável, como dito, por remissão do n.º 4 do mesmo normativo, se retira que têm desde logo legitimidade activa “os contribuintes”.
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A expressão “contribuintes” não pode deixar de ser interpretada no sentido de que estes são os sujeitos passivos da relação de imposto, tal como os conceitua o n.º 3 do art.º 18.º da LGT que dispõe: “O sujeito passivo é a pessoa singular ou colectiva, o património ou a organização de facto ou de direito que, nos termos da lei, está vinculado ao cumprimento da prestação tributária, seja como contribuinte directo, substituto ou responsável.”
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Acrescendo dizer que o n.º 4 do art.º 18.º da LGT delimita negativamente o conceito de sujeito passivo ao dizer que “Não é sujeito passivo quem: a) Suporte o encargo do imposto por repercussão legal, sem prejuízo do direito de reclamação, recurso, impugnação ou de pedido de pronúncia arbitral nos termos das leis tributárias; b) Deva prestar informações sobre assuntos tributários de terceiros, exibir documentos, emitir laudo em processo administrativo ou judicial ou permitir o acesso a imóveis ou locais de trabalho.”
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Resultando meridianamente claro da letra daquele normativo que o repercutido não é sujeito passivo, sem prejuízo de a estes ser conferida legalmente legitimidade activa para estarem no procedimento ou no processo tributário desde que invoquem e provem interesse legalmente protegido.
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No Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, 2.ª Secção, de 28.10.2020, tirado no processo n.º 0581/17.0BEALM refere-se a dado passo o seguinte: “(...) A repercussão fiscal consiste na transferência do imposto que legalmente incide sobre um sujeito passivo, para um terceiro, alheio à relação jurídica tributária, com quem aquele tem relações económicas (cfr. art.º 37.º do C.I.V.A.). Nas palavras de alguns autores, o repercutido será um mero "contribuinte de facto" (titular da capacidade contributiva), por contraposição ao "contribuinte de direito", aquele a quem é juridicamente exigível o pagamento do tributo. Por sua vez, o sujeito activo da relação jurídica tributária não tem qualquer direito que possa exercer, directamente, contra o repercutido, sendo que os meios de que dispõe são contra o sujeito passivo da relação jurídica tributária e não contra o repercutido que, para esse efeito, está colocado num círculo exterior ao da mesma relação jurídica tributária (cfr. Soares Martinez, Direito Fiscal, 8ª. Edição, Almedina, 1996, pág.226 e seg.; Diogo Feio, A Substituição Fiscal e a Retenção na Fonte: o caso específico dos impostos sobre o rendimento, Coimbra Editora, 2001, pág.93 e seg.; Diogo Leite de Campos e Outros, Lei Geral Tributária comentada e anotada, 4ª. Edição, Encontro da Escrita, 2012, pág.187 e seg.; Joaquim Freitas da Rocha e Hugo Flores da Silva, Teoria Geral da Relação Jurídica Tributária, Almedina, 2017, pág.78; Bruno Botelho Antunes, Da Repercussão Fiscal no IVA, Almedina, 2008, pág.45 e 127 e seg.). Ainda de acordo com a doutrina pode fazer-se a distinção entre a repercussão obrigatória ou legal, a qual encontra consagração, por exemplo, em sede de I.V.A (daí o poder falar-se na neutralidade do imposto e da sua repercussão para a frente até ao consumidor final ou repercutido - cfr. por todos, Bruno Botelho Antunes, Da Repercussão Fiscal no IVA, Almedina, 2008, pág.77 e seg.).), por contraposição à repercussão voluntária (...), sendo que, em relação a esta última, resultando a transferência da carga tributária de acordo/relação entre privados, regerão as regras do direito civil. Ora, nas situações de repercussão voluntária, seguramente que se pode concluir que o repercutido, igualmente não tem qualquer direito que possa exercer, directamente, contra o sujeito activo da relação jurídica tributária, sendo que os meios de que dispõe, designadamente, para solicitar o reembolso de quantias indevidamente pagas, devem ser exercidos contra o sujeito passivo da concreta relação jurídico-tributária (cfr. artº.18, nº.4, al.a), da L.G.T. (tal não obsta a que o repercutido disponha do direito de reclamação, recurso ou impugnação judicial, nos termos da lei, uma vez que isso corresponda a um interesse digno de tutela jurídica).; Diogo Leite de Campos e Outros, ob. cit., pág.190; Diogo Feio, ob. cit., pág.97; Bruno Botelho Antunes, ob. cit., pág.177).”
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Retirando-se da letra e ratio dos artigos 9.º e 18.º , n.º 4, alínea a) da LGT, bem como do art.º 9.º do CPPT, que ao repercutido é legalmente conferido o direito “(...) de reclamação, recurso, impugnação ou de pedido de pronúncia arbitral nos termos das leis tributárias.” na medida em que não sendo ele contribuinte/sujeito passivo, é titular de interesse legalmente protegido, porquanto, em princípio, foi ele que procedeu ao pagamento do IVA liquidado e entregue nos cofres do Estado.
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É que a obrigação, prevista no n.º 1 do art.º 37º do CIVA, de o sujeito passivo de IVA estar forçado a adicionar a importância do imposto ao valor da factura que emitirá nos termos e em conformidade com o disposto no art.º 36º do CIVA, garante que são os adquirentes dos bens ou os destinatários dos serviços sujeitos e não isentos de IVA (os repercutidos) e já não os respectivos transmitentes dos bens ou prestadores dos serviços a suportar o valor do imposto.
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Ora, se os repercutidos suportaram o valor do IVA que foi liquidado nas respectivas facturas, tem de lhes ser conferida legitimidade activa para estarem no procedimento ou no processo tributário que vai discutir a legalidade da liquidação do IVA que suportaram e que entendem dever controverter ou sindicar, por se entender que da procedência ou não da discussão da legalidade daquelas liquidações de IVA controvertidas ou sindicadas pode advir um efectivo prejuízo para aqueles(as) [os(as) repercutidos(as), como, in casu, a Requerente].
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E volvendo para o caso dos autos e na medida em que a Requerente parece comportar-se como sujeito passivo totalmente isento ao abrigo do art.º 9º do CIVA, porquanto, só pratica operações activas isentas sem direito à dedução, não se terá desonerado totalmente do IVA que lhe foi liquidado, donde, a concretização do aludido prejuízo e daí a legitimidade para, em princípio, discutir a legalidade da liquidação do IVA empreendida pelas suas fornecedoras ou prestadoras de serviços em conformidade com o disposto no art.º 30.º do CPC, n.ºs 1 e 4 do art.º 9.º do CPPT e n.º 4, alínea a), do art.º 18.º da LGT, aplicáveis, ex vi, do art.º 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT. Neste mesmo sentido ou, rectius, por interpretação a contrario sensu da doutrina ali exposta, se pode trazer aqui à discussão o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo prolatado no Processo n.º 0581/17.0BEALM que pode ser lido in http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/dcdfb0006fb35ca780258615004bac59?OpenDocument&ExpandSection=1
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Intuindo-se daqui que se a Requerente se desonerasse integralmente do IVA liquidado, por via do direito à dedução previsto nos artigos 19.º e seguintes do CIVA, ou seja, caso estivéssemos perante sujeito passivo integral sem limitações no direito à dedução, não se vislumbrava a incorrência do aludido prejuízo, i.e., teria o Tribunal de considerar que não tinha a Requerente legitimidade activa para estar a discutir a legalidade daquelas autoliquidações por ausência de interesse legalmente protegido, consubstanciado na manifesta ausência de prejuízo que aquela pudesse invocar, já que se havia desonerado in totum do imposto que supostamente lhe havia sido liquidado (e que aquela pagou) e que alegadamente enfermava de ilegalidade por erro de direito.
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Isto dito, em princípio e porque em presença de sujeito passivo totalmente isento que afectou os serviços aqui em causa à actividade isenta sem direito à dedução, o Tribunal não podia deixar de reconhecer à Requerente legitimidade activa para contestar aqui o imposto liquidado pelas suas fornecedoras e/ou prestadoras de serviços e alegadamente pago em excesso.
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Ainda assim e não obstante, importará levar na devida conta, a propósito do alcance que o legislador teve em vista ao permitir, como visto, que os repercutidos pudessem valer-se do direito “(...) de reclamação, recurso, impugnação ou de pedido de pronúncia arbitral nos termos das leis tributárias”, na medida em que não sendo eles contribuintes/sujeitos passivos, eram, ainda assim, titulares de interesse legalmente protegido, donde com legitimidade activa para controverter ou sindicar imposto por si pago e enfermado de ilegalidade donde resultava a incorrência de efectivo prejuízo para os repercutidos.
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Para o efeito, importa trazer aqui à discussão os ensinamentos de Bruno Botelho Antunes, igualmente citado no acima transcrito Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, 2.ª Secção, de 28.10.2020, tirado no processo n.º 0581/17.0BEALM, in “A Relação Jurídica Tributaria e a Repercussão Tributaria”, Coimbra, Almedina, p. 188, quando diz: “(...) o direito do repercutido previsto no art.º 18.º, n.º 4 al. a), da LGT foi consagrado para fazer face a situações em que, o sujeito passivo, após ter sido instado pelo repercutido para retificar o imposto que lhe foi liquidado em excesso, não agiu nesse sentido. Nessa base, consagrou-se a possibilidade de o repercutido reaver o seu dinheiro diretamente do Estado ( ... )".
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O que faz todo o sentido e quadra perfeitamente com a ideia de que o repercutido só tem legitimidade activa para discutir a legalidade de uma liquidação que não produziu se invocar e provar interesse legalmente protegido, nos termos do que dispõe o n.º 1 do art.º 9.º do CPPT, por remissão do n.º 4 do mesmo normativo, o que ocorre com a constatação da verificação do prejuízo em que aquele incorreria caso não empreendesse a correspondente discussão.
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Revertendo novamente para o caso sub judicio e não havendo nos autos prova de que foi suscitada a questão da regularização do IVA nos termos do art.º 78.º-A do CIVA, não se materializou tal prejuízo, porquanto, na incerteza sobre a existência de tais diligências, emerge a dúvida sobre se, acaso elas ocorressem, as fornecedoras e/ou prestadoras de serviços da Requerente não aceitariam regularizar, nos termos daquele normativo do CIVA, o erro de direito que aquela diz ter constatado. É bem certo que a Requerente afirma que levou a cabo diligências tendentes a que a regularização fosse conseguida junto dos seus prestadores de serviços, dizendo mesmo ter dirigido uma carta individual a cada um deles; tendo, adicionalmente, efectuado contatos telefónicos junto dos mesmos; como também, que a sua pretensão não acolheu concordância junto daqueles fornecedores que expressaram veemente recusa em fazê-lo, referindo até que os documentos que consubstanciavam tais diligências se encontravam juntos ao requerimento de resposta à excepção suscitada pela Requerida como Doc. n.º 1 e Doc. n.º 2, o que é facto é que esses documentos não se encontram juntos aos autos, entendendo o Tribunal que tais diligências não ficaram provadas, face ao decidido no ponto desta peça reportado aos factos dados como não provados.
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Acrescendo dizer que aceitar-se a correcção do erro de direito sem a intervenção das contrapartes da Requerente, seria até abrir a porta a uma eventual dupla correcção do mesmo (o que seria para o tribunal de todo em todo inaceitável face à mecânica do imposto) que a AT dificilmente poderia controlar: i) atendendo a que os respectivos prestadores têm legitimidade para atacar as liquidações enfermadas de IVA, uma primeira correcção poderia advir do facto daqueles entenderem proceder a tal discussão; ii) uma segunda correcção poderia igualmente advir da circunstância de se admitir que a Requerente (e destinatária desses mesmos serviços) tinha igualmente legitimidade activa para atacar tais enfermadas liquidações de IVA. Não obstante estarmos perante sujeito passivo totalmente isento ao abrigo do art.º 9º do CIVA e, por isso, sem possibilidade de se desonerar do imposto que suporta a montante das actividades que realiza e ainda que não resultasse viável qualquer perda de receita capaz de legitimar a aplicabilidade do art.º 203º da Directiva IVA, fundada na jurisprudência tirada no âmbito do Acórdão do TJUE de 8 de Dezembro de 2022, prolatado no processo C‐378/21, considera o Tribunal que o argumentário esgrimido pela Requerente a tal propósito não pode colher.
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Ora, tal como resulta da factualidade dada como não provada, ficou demonstrado que a aqui Requerente não provou haver solicitado às suas fornecedoras ou prestadoras dos serviços que em alegado erro de direito procederam à liquidação indevida de IVA que lhe foi dirigido e que aquela pagou, a aludida rectificação do imposto, ou, rectius, a regularização desse mesmo imposto nos termos e em conformidade com o disposto no art.º 78.º-A do CIVA, pelo que, entende o Tribunal Arbitral Colectivo que, ipso facto e não obstante tudo quanto acima se explicitou, não tem a Requerente legitimidade activa para vir agora nesta sede arbitral sindicar imposto que foi liquidado e entregue nos cofres do Estado por terceiro que face à prova produzida nos autos poderá não ter sido tido nem achado nesta questão do erro de direito em que alegadamente laborou quando realizou as operações agora sindicadas. (realçados no original)”.
Reportando-nos ao momento anterior ao pedido de revisão oficiosa, os casos supra referidos são idênticos e não se vislumbra qualquer razão que permita inverter o sentido que resulta da citada jurisprudência, à qual, assim se adere e aqui se reitera.
De facto, não subsistindo dúvidas de que o nosso sistema jurídico permite que os repercutidos tenham legitimidade para fazer valer os seus direitos e interesses legalmente protegidos no âmbito do procedimento e do processo tributário, também não é menos verdade que o acesso à via graciosa ou aos tribunais pode sofrer condicionalismos ou pressupostos que cumpre satisfazer, como sucede, no caso do IVA, tanto relativamente aos sujeitos passivos (veja-se o regime do artigo 131.º do CPPT), como, neste caso, perante os repercutidos, o dever de suscitar a prévia regularização do IVA junto do sujeito passivo, nos termos determinados por esse imposto.
Daí, deve extrair-se o entendimento de que a pretensão do repercutido – de obter o reembolso independentemente da regularização do IVA liquidado pelo sujeito passivo –, só merece tutela jurídica, em termos de se permitir o reembolso fora dessas circunstâncias, quando se torne muito difícil ou impossível obter esse efeito do sujeito passivo que procedeu à liquidação do imposto e recebeu o valor do IVA faturado.
Acrescente-se que tal dificuldade ou impossibilidade, tal como pode inferir-se das decisões do TJUE, deve considerar-se ad extra, ou seja pressupondo o nexo com o sujeito passivo, e não ad intra, no sentido em que seja a própria negligência do repercutido – v.g., protelando ao limite a interpelação para a regularização – a dar causa a tal situação de facto.
No caso dos autos, resulta evidente que o pedido de revisão oficiosa não foi apresentado nos termos das leis tributárias (cf. artigo 18.º, n.º 4, da LGT), porquanto, quando tal pedido foi formulado, a Requerente não havia sequer suscitado qualquer regularização do IVA junto dos seus fornecedores, pelo que a decisão da AT, cuja anulação se peticiona, não tem mácula jurídica que possa determinar o juízo pretendido pela Requerente.
Com efeito, sendo esse o momento próprio para aferir da legitimidade do procedimento, a Requerente não logrou infirmar os fundamentos da decisão administrativa. Tão-pouco, no contencioso arbitral, apesar dos contactos tidos com os fornecedores, se provou ser impossível obter a regularização e reembolso do imposto reclamado pela Requerente, nos termos referidos em sede de decisão de matéria de facto.
Assim sendo, há que julgar procedente a exceção invocada pela Requerida, ficando prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas.
III – Decisão
5. Destarte, este Tribunal decide:
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Julgar procedente a exceção da ilegitimidade da Requerente e absolver a Requerida da instância; e
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Condenar a Requerente no pagamento das custas arbitrais.
6. Valor do processo
De harmonia com o disposto nos artigos 296.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, atribui-se ao processo o valor de € 260 624,01.
7. Custas
Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 4.896,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerente.
Lisboa, 26 de março de 2025
Os Árbitros
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(Regina de Almeida Monteiro – Presidente)
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(João Pedro Rodrigues – Vogal e Relator)
(Maria da Graça Martins -Vogal)