Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 832/2024-T
Data da decisão: 2025-03-10  IRC  
Valor do pedido: € 1.430.123,27
Tema: Distribuição de dividendos a entidade não residente - Princípio da liberdade de circulação de capitais – artigo 63º do TFUE
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SUMÁRIO

  1. A interpretação do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) sobre o direito da União Europeia é vinculativa para os órgãos jurisdicionais nacionais, com a necessária desaplicação do direito interno em caso de desconformidade com aquele.
  2. A legislação portuguesa infringe a liberdade de circulação de capitais consagrada no artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE) ao tributar, por retenção na fonte a título liberatório e pelo seu montante ilíquido, os dividendos distribuídos por uma sociedade residente para efeitos fiscais em território português a uma sociedade não residente nesse território, que investiu em ações da primeira sociedade para cobrir obrigações de pagamento no futuro a tomadores de seguros unit-linked, ao passo que as sociedades residentes em idêntica situação têm direito a deduzir os gastos originados pelo aumento das suas obrigações de pagamento no futuro aos tomadores desses seguros e a um crédito de imposto pelas retenções sofridas (conforme resulta do Acórdão do TFEU proferido no processo C-782/22, em 1 de novembro de 2024).

 

 

 

 

DECISÃO ARBITRAL

Os árbitros Rita Correia da Cunha (Árbitro Presidente), José Manuel Parada Ramos e Luís Ricardo Farinha Sequeira (Árbitros Adjuntos), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formarem o Tribunal Arbitral Coletivo, constituído em 10 de setembro de 2024, acordam no seguinte:

RELATÓRIO

A... LIMITED (doravante designada por “Requerente”), sociedade seguradora constituída de acordo com o direito inglês e a operar no Reino Unido, titular do número de identificação fiscal inglês ... e do número de identificação fiscal português ..., com sede social em ..., em Inglaterra, requereu a constituição de Tribunal Arbitral e deduziu pedido de pronúncia arbitral (“PPA”), nos termos do disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea a), e artigo 10.º, ambos do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, na redação vigente, em que é Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante referida por “AT” ou “Requerida”), com vista à declaração de ilegalidade e consequente anulação dos atos tributários de retenção na fonte de IRC, referentes ao período compreendido entre 9 de janeiro de 2020 e 16 de setembro de 2021, no valor de € 1.430.123,27, e da indecisão de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa que sobre eles recaiu, com a consequente restituição do imposto pago e o pagamento de juros indemnizatórios ao abrigo do artigo 43.º da LGT.

Em 4 de julho de 2024, o pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD, e automaticamente notificado à Autoridade Tributaria.

De acordo com o preceituado nos artigos 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a), e 11.º, n.º 1, alínea a), todos do RJAT, por decisão do Senhor Presidente do Conselho Deontológico, devidamente comunicada às partes nos prazos legalmente aplicáveis, as quais nada disseram, foram designados árbitros os signatários que comunicaram ao Conselho Deontológico e ao Centro de Arbitragem Administrativa a aceitação do encargo no prazo regularmente aplicável.

O Tribunal Arbitral Coletivo foi constituído em 10 de setembro 2024.

Em 16 de outubro de 2024, a Requerida apresentou a sua Resposta, em que suscitou a exceção da intempestividade do pedido e defendeu a sua improcedência, juntando à mesma o processo administrativo (“PA”), constituído por um pedido de revisão oficiosa apresentado pela Requerente em 20 de dezembro de 2023, em que esta solicitou a devolução das retenções anteriormente referidas.

Por despacho de 18 de outubro de 2024, foram as partes notificadas de que ficou dispensada a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, atento o facto de não terem arrolado testemunhas nem requererem produção de prova adicional. Mais foram notificadas as partes para, querendo, apresentarem alegações finais escritas no prazo (simultâneo) de 10 dias, de que a decisão arbitral seria proferida até ao final do prazo estabelecido no artigo 21.º, n.º 1, do RJAT e notificado a Requerente para proceder ao pagamento da taxa arbitral subsequente no prazo para alegações.

Em 4 de novembro de 2024, a Requerida e a Requerente apresentaram as suas alegações.

Em 15 de novembro de 2024 a Requerente requereu a junção aos autos de cópia do Acórdão proferido em 7 de novembro de 2024 pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (“TJUE” ou “Tribunal de Justiça”), no âmbito do processo C-782/22.

Em 28 de novembro de 2024 a Requerida requereu que o documento junto aos autos pela requerente em 15 de novembro de 2024 fosse desentranhado do processo. Mais requereu, caso assim não fosse entendido pelo Tribunal, um prazo não inferior a 10 dias para análise do Acórdão do TJUE em causa.

Ao abrigo do princípio do contraditório, em 4 de dezembro de 2024 a Requerente pronunciou-se sobre o requerimento apresentado pela Requerida em 28 de novembro de 2024.

Em 6 de janeiro de 2024, ao abrigo dos princípios do contraditório e da igualdade entre as partes, a Requerida pronunciou-se sobre o referido Acórdão do TJUE, emitido no âmbito do Processo C-782/22 e com data de 7 de novembro de 2024, junto aos autos pela Requerente.

Em 19 de janeiro de 2025, o Tribunal indeferiu o pedido da Requerida quanto ao desentranhamento do Acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça junto aos autos pela Requerente, porquanto o mesmo não constitui produção de prova relativamente à matéria de facto, sendo apenas relevante para a apreciação das questões de direito a decidir pelo Tribunal Arbitral. No mesmo Despacho, o Tribunal ressalvou também que a AT já se havia pronunciado sobre o dito Acórdão, no exercício do seu direito ao contraditório.

SANEAMENTO

O Tribunal foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria, atenta a conformação do objeto do processo dirigido à anulação de atos de retenção na fonte de IRC (cf. artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 5.º do RJAT).

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

É admissível a cumulação de pedidos relativos a diferentes atos e anos tendo em conta que estão em discussão as mesmas circunstâncias de facto (distribuição de dividendos de fonte portuguesa a sociedades seguradoras não residente), e a interpretação e aplicação dos mesmos princípios ou regras de direito, conforme previsto no artigo 3.º, n.º 1, do RJAT.

A Requerida suscitou a exceção de intempestividade do pedido de revisão oficiosa em apreço e do PPA, que será apreciada infra.

QUESTÃO DECIDENDA

A principal questão de direito a decidir respeita à compatibilidade com o Direito da União Europeia, especificamente com a liberdade de circulação de capitais consagrada no artigo 63.º do TFUE, dos atos de liquidação de imposto por retenção na fonte sobre os dividendos de fonte portuguesa auferidos pela Requerente, e alocados a seguros unit-linked por ela geridos e comercializados, por comparação com o regime fiscal aplicável quanto aos rendimentos obtidos em idênticas circunstâncias por sociedades seguradoras residentes em Portugal.

POSIÇÃO DAS PARTES

Posição da Requerente no PPA

Os fundamentos apresentados pela Requerente, em apoio da sua pretensão, foram, em síntese, os seguintes:

  1. A Requerente é uma sociedade comercial residente para efeitos fiscais no Reino Unido, autorizada pelo Banco de Inglaterra a aí atuar como seguradora, que se dedica à comercialização de seguros de pensões unit-linked (“unit-linked pension products”), os quais consubstanciam instrumentos de captação de aforro estruturados, cujo risco do investimento é totalmente assumido pelo tomador do seguro.
  2. Concomitantemente, os tomadores dos seguros unit-linked comercializados pela Requerente têm direito à perceção da totalidade dos rendimentos emergentes dos investimentos gerados pelo respetivo contrato de seguro, assumindo igualmente a totalidade das perdas que deles advenham.
  3. Os seguros unit-linked comercializados pela Requerente são compostos por diferentes ativos, correspondentes aos investimentos realizados pela Requerente. Cada ativo encontra-se alocado a um específico seguro unit-linked, de tal forma que o valor a receber pelo tomador do seguro sofre flutuações em virtude das oscilações no valor dos ativos subjacentes.
  4. A Requerente é a titular dos rendimentos resultantes de cada um dos investimentos por si realizados e alocados a seguros unit-linked, não obstante a sua obrigação futura de, na data do vencimento do respetivo contrato, efetuar um pagamento de igual montante ao tomador do seguro.
  5. Entre 9 de janeiro de 2020 e 16 de setembro de 2021, a Requerente auferiu um conjunto de rendimentos de fonte portuguesa, decorrente da distribuição de dividendos por empresas residentes em território português nas quais a Requerente detinha participações sociais (que, nos termos supra expostos, se encontram economicamente alocados a cada um dos seguros unit-linked por si geridos e comercializados).
  6. Tais rendimentos foram colocados à sua disposição pelo B...– SUCURSAL EM PORTUGAL, entidade que assumiu as vestes de substituto tributário, tendo procedido à retenção na fonte de imposto, no montante global de € 1.430.123,27 EUR, nos termos do artigo 94.º, n.º 1, alínea c), do Código do IRC (“CIRC”).
  7. Alguns dos rendimentos em referência foram sujeitos a retenção na fonte à taxa de 25%, prevista no artigo 87.º, n.º 4, do CIRC e aplicável por via do artigo 94.º, n.º 5, do CIRC. Outros, por seu turno, foram sujeitos a retenção na fonte à taxa de 15%, prevista no artigo 10.º, n.º 2, alínea b), da Convenção para Evitar a Dupla Tributação celebrada entre Portugal e o Reino Unido (“CEDT Portugal-Reino Unido”).
  8. O B... – SUCURSAL EM PORTUGAL apresentou à AT as guias de retenção na fonte, tendo, em conformidade, procedido à entrega, junto dos cofres do Estado, do imposto nelas plasmado e retido à Requerente.
  9. Enquanto sociedade comercial residente no Reino Unido, a Requerente está sujeita e não isenta nesse território a imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas, incidindo tal imposto sobre a globalidade dos rendimentos por si auferidos, independentemente da respetiva proveniência. O imposto em referência incide, entre outras realidades, sobre os dividendos de fonte portuguesa por si auferidos, designadamente os referidos supra, os quais concorrem para a formação do lucro tributável sujeito a imposto no Reino Unido.
  10. Não obstante, por se encontrar obrigada, conforme a regulamentação que rege a atividade seguradora, a transferir futuramente para os tomadores dos seguros os rendimentos alocados a cada um dos seguros unit-linked por si comercializados, as regras contabilísticas e fiscais vigentes no Reino Unido preveem a inscrição de um gasto de montante correspondente ao desses rendimentos.
  11. De acordo com as IFRS, a contabilização de dividendos recebidos por uma entidade seguradora como a Requerente e alocados a seguros unit-linked tem lugar através de uma dupla inscrição: por um lado, inscreve-se um rendimento no montante auferido; por outro, inscreve-se um gasto representando a responsabilidade futura de pagamento ao tomador do seguro. Assim, a técnica de contabilização consiste na relevação de um rendimento e de um gasto, os quais, anulando-se mutuamente, determinam que os dividendos recebidos não sejam tributáveis na esfera da Requerente. Por via disso, não se verifica qualquer efetiva tributação no Reino Unido dos rendimentos em referência.
  12. Perante a ausência de tributação no Reino Unido (e, por conseguinte, de dupla-tributação), as retenções na fonte sofridas em Portugal, relativas aos dividendos de fonte portuguesa, não deram lugar a qualquer crédito de imposto, parcial ou total, no Reino Unido. Ademais, as mencionadas retenções na fonte não geraram qualquer crédito de imposto na esfera dos tomadores dos seguros, inexistindo, aliás, qualquer mecanismo suscetível de transferir o encargo para estes últimos. Assim, o encargo do imposto foi integralmente suportado pela Requerente, não tendo sido objeto de neutralização.
  13. Já no que respeita às entidades residentes em território portugues, embora a perceção dos rendimentos seja igualmente sujeita a retenção na fonte, esta assume natureza provisória (i.e., por conta do imposto devido a final), nos termos do artigo 94.º, n.º 3, do CIRC. Assim, e contrariamente ao que sucede com as entidades não residentes, a retenção efetuada às entidades residentes é posteriormente relevada na liquidação de IRC referente ao exercício no qual haja sido efetuada, através de uma dedução à coleta, diminuindo o imposto a pagar a final e sendo passível de reembolso quando o seu valor exceda o da dívida total de imposto, nos termos dos artigos 90.º, n.º 2, alínea e), e 104.º, n.ºs 2 e 3, do CIRC.
  14. Quanto às taxas de IRC aplicáveis, a tributação liberatória das entidades não residentes e sem estabelecimento estável em Portugal é, em princípio, efetuada à taxa de 25% (cf. artigo 87.º, n.º 4, do CIRC) ou à taxa da CEDT quando aplicável, enquanto as entidades residentes, sofrendo uma retenção na fonte não-liberatória à taxa de 25% (cf. artigo 94.º, n.º 4, do CIRC), são tributadas à taxa geral de 21% prevista no artigo 87.º, n.º 1, do CIRC.
  15. Atento o exposto, à primeira vista, poderia parecer que, independentemente da sua qualidade de residentes ou não residentes em Portugal, todas as entidades – incluindo as seguradoras – estariam sujeitas a carga tributária semelhante.
  16. Sucede, porém, que, no que respeita às seguradoras que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional, as mesmas não são materialmente tributadas, a final, pelo auferimento de dividendos decorrentes da titularidade de participações sociais alocadas a seguros unit-linked por si comercializados.
  17. Embora, perante o auferimento de um dividendo, o Plano de Contas das Empresas de Seguros que se constituem e operem de acordo com a legislação nacional preveja o registo de um rendimento na conta #74 e do correspondente depósito à ordem na conta #21, o mesmo Plano prevê também o registo de um gasto na conta #67, por contrapartida de um passivo, a registar na conta #45. Como todas estas inscrições são pelo mesmo montante – o do dividendo –, há uma anulação do rendimento auferido, de tal forma que o mesmo não concorre para a formação do lucro tributável sujeito a IRC. Significa isto que as seguradoras residentes em Portugal não sofrem tributação sobre o montante destes dividendos, uma vez que, por via da inscrição contabilística do gasto acima referido, o valor contabilístico final do rendimento é zero.
  18. Em suma, enquanto uma seguradora residente em Portugal não é tributada sobre o montante dos dividendos decorrentes da detenção de participações sociais em sociedades comerciais portuguesas, alocadas a seguros de pensões unit-linked por si comercializados, uma seguradora não residente que se encontre em posição semelhante é sujeita a tributação liberatória, à taxa de 25% (ou inferior, se aplicável uma CEDT), sobre os mesmos rendimentos.
  19. É, assim, evidente a existência de um tratamento fiscal diferenciado com fundamento exclusivo na residência do sujeito passivo, em claro detrimento das seguradoras não residentes, o que constitui uma violação dos artigos 63.° e 65.º do TFEU e do artigo 8.º da Constituição da República Portuguesa.

Posição da AT Requerida na resposta ao PPA

Chamada a pronunciar-se, a Requerida defendeu-se por exceção e por impugnação, alegando, em síntese, o seguinte:

  1. Por exceção, a Requerida alega que o pedido de revisão oficiosa é intempestivo, porquanto, não obstante à data da apresentação do mesmo, em 20 de dezembro de 2023, ainda se encontrar a decorrer o prazo de quatro anos a que se refere a segunda parte, do n.º 1, do artigo 78.° da LGT, não se verifica que a liquidação contestada enferme de erro, de facto ou de direito, imputável aos serviços da administração tributária, que possibilite o alargamento do prazo para ser efetuada a sua revisão oficiosa – nem tão pouco a Requerente o alega, tendo-se limitado, no âmbito do pedido pronúncia arbitral, a afirmar que os atos tributários  enfermam “de erro sobre os pressupostos de direito e, por via disso, de vícios de diversa ordem”.
  2. Relativamente ao montante impugnado pela Requerente, a Requerida começa por referir que, de acordo com a informação prestada pela Direção de Serviços de Relações Internacionais (DSRI), foram instaurados os pedidos de reembolso n.º ..., ..., ... e ..., no Sistema de Gestão de Reembolsos Internacionais (SGRI), com base na Guia de retenção n.º ..., tendo a Requerente sido reembolsado em € 2.158,51, pelo que existe duplicação do pedido na parte relativa ao valor de retenção de IRC já recebida, no montante de € 2.010,06.
  3. Quanto ao alegado tratamento discriminatório das seguradoras não residentes sem estabelecimento estável em Portugal, vis-a-vis as seguradoras residentes que comercializem o mesmo tipo de produtos e realizem o mesmo tipo de investimentos, a Requerida começa por notar que, na sua comparação, a Requerente não representa o regime de tributação das seguradoras residentes de forma completa, dado que, à taxa geral de 21% de IRC, se devem ainda juntar as taxas progressivas da derrama estadual (3% a 9% do lucro tributável), a taxa da derrama municipal (até 1,5% do lucro tributável) e, ainda, as taxas de tributação autónoma, tal como previsto nos artigos 87-A.º e 88.º do CIRC e no artigo 18.º da Lei n.º 73/2013, de 3 de setembro.
  4. Acrescentando a Requerida que a retenção na fonte entregue pelas entidades não residentes com carácter liberatório, não só encerra em si a capacidade de satisfação completa e imediata do crédito devido pelo facto tributário numa obrigação única de pagamento, como dispensa tais entidades não residentes da apresentação da declaração anual de rendimentos (modelo 22), nos termos do disposto no artigo 120.º, n.º 4, do CIRC.
  5. A Requerida sublinha que o TJUE tem sistematicamente reafirmado que “(…) os Estados-Membros continuam a ser competentes para determinar os critérios de tributação dos rendimentos”, mas devem exercer essa competência no respeito pelas liberdades fundamentais, no sentido de que o tratamento das situações transfronteiriças não seja discriminatório em comparação com o das situações nacionais. No pleno uso dessa liberdade, o legislador nacional optou por tributar em IRC os rendimentos de dividendos, em particular, e os rendimentos de capitais, em geral, obtidos em território português por não residentes, pelo mecanismo de retenção na fonte com carácter liberatório.
  6. Através desse método de tributação, e por forma a melhor cumprir com o princípio da neutralidade, princípio basilar do direito tributário internacional, o legislador fiscal evitou onerar excessivamente as entidades não residentes em diversas vertentes: por um lado, dispensou tais entidades de se munirem com os conhecimentos técnicos locais, de índole contabilística, societária e tributária, que se mostram necessários para o preenchimento de uma declaração anual de rendimentos (modelo 22); por outro lado, dispensou igualmente tais entidades não residentes da obrigação de efetuarem uma miríade de ajustamentos fiscais sobre o lucro contabilístico, do regime das depreciações e amortizações de ativos ao regime da limitação à dedutibilidade dos gastos de financiamento, a passar pelo regime específico da dedução de prejuízos fiscais, entre muitos outros.
  7. O apuramento do lucro tributável da Requerente será sempre suportado com base em registos contabilísticos estrangeiros, organizados com base nas regras do país da sua sede e que serão aí fisicamente depositados; como tal, e sem prejuízo da obrigação de designação de um representante local, é um facto inegável que a opção por um regime de tributação através de retenção na fonte liberatória acaba por, concomitantemente, dispensar tais entidades não residentes da preparação da sua contabilidade de acordo com as regras impostas localmente, no Estado da Fonte, ao contrário do que ocorre com as entidades residentes.
  8. Assim sendo, a criação de um sistema de tributação por retenção na fonte a título definitivo por parte do legislador fiscal para as entidades não residentes, na verdade, justifica-se por questões de praticidade (i.e., princípio da praticabilidade tributária), permitindo dispensar tais entidades do cumprimento das normas locais, de índole declarativa, contabilística e tributária, que são habitualmente impostas às entidades residentes.
  9. A Requerida refere, ainda, que num cenário em que os ativos alocados a carteiras de seguros unit-linked desvalorizem substancialmente e não for paga qualquer quantia ao tomador do seguro, a correspondente provisão deverá ser revertida, influenciando positivamente o seu lucro tributável.
  10. Torna-se fácil compreender a escolha do legislador fiscal por um sistema de retenção na fonte a título definitivo e liberatório, dado que o controlo e a fiscalização de um ambiente negocial propício a alterações contantes, representadas por movimentos contabilísticos voláteis e por vezes em sentido contrário, exigiria a preparação e depósito de contas ao nível local no Estado da Fonte do rendimento.
  11. Tal exigência hipotética, que resulta como uma consequência inevitável da argumentação da Requerente, se viesse a ocorrer, não só tornaria o controlo de situações abusivas impraticável por motivo da elevada quantidade de dados a comunicar, como acarretaria um ónus extremamente oneroso para os contribuintes que teriam que re-expressar as contas de acordo com as normas contabilísticas locais, apresentando um potencial repulsivo para o investimento estrangeiro direto no país demasiado elevado.
  12. Sem prejuízo do disposto, a Requerida nota igualmente que sobre o regime fiscal a que a Requerente se encontra sujeita no Estado de Residência (Reino Unido), apenas é adiantado que está sujeita e não isenta a um imposto sobre o rendimento, sem possibilidade de deduzir o imposto pago em Portugal, mediante crédito por dupla tributação, sem nada dizer sobre a possibilidade do exercício desse direito por parte dos investidores nem esclarecer sobre a aplicação de eventuais regimes de transparência fiscal (ou similar), no Reino Unido, que possam permitir aos investidores a dedução da retenção na fonte paga em Portugal ao imposto apurado sobre os seus ganhos.
  13. Como salientou o Tribunal de Justiça, no Acórdão de 14 de dezembro de 2006, Denkavit Internationaal e Denkavit France (C-170/05, paras. 44 e segs.), com aplicação ao caso devido à semelhança do modelo de investimento empregue, “a questão da imputação do encargo da retenção na fonte pelo Estado de residência é também um critério determinante para estabelecer a existência de um tratamento desfavorável. Contudo, se por razões do sistema fiscal a imputação não for possível ao nível do OIC e só puder ser feita ao nível dos investidores, então a imputação efetiva ao nível dos investidores é tão relevante como a imputação ao nível do OIC”.
  14. Sendo a finalidade principal dos seguros unit-linked a de permitir aos investidores aceder aos investimentos no mercado de valores mobiliários, ainda que indiretamente, a sua perspetiva é igualmente determinante. Ora, a existir a possibilidade de imputação do imposto retido sobre os rendimentos obtidos pelas seguradoras não residentes em Portugal, naturalmente, a tributação não constitui um fator de dissuasão determinante nas opções de canalização de poupanças pelos investidores para as seguradoras não residentes que realizam investimentos financeiros em Portugal.
  15. Conforme reconheceu a Advogada-Geral nas suas Conclusões sobre o processo C-545/191: “Ora, como resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça no processo que deu origem ao Acórdão Pensioen fonds Metaal en Techniek [processo C-252/14] ao apreciar a questão da restrição da livre circulação de capitais não se deve atender apenas formalmente à isenção de um tipo de impostos. Pelo contrário, há que tomar em consideração todo o contexto fiscal da tributação dos OIC e, portanto, proceder a uma apreciação global (material)”.
  16. Portanto, mutatis mutandis, só pode concluir-se que o regime fiscal aplicável constitui uma restrição à livre circulação de capitais se a diferença de tratamento relativamente as seguradoras não residentes redundar num tratamento global menos favorável do que aquele que é concedido às seguradoras residentes.
  17. Todavia, só é possível extrair uma tal conclusão sobre a existência de um tratamento fiscal discriminatório desfavorável se, no que respeita aos dividendos em causa, a tributação em IRC, por retenção na fonte, à taxa de 25% ou 15%, em conformidade com os normativos supra enunciados, conduzir a que a Requerente e os seus investidores suportem, a final, uma carga fiscal mais pesada do que a imposta aos sujeitos passivos residentes que se encontrem na mesma situação (ou seja, com os mesmos direitos e obrigações).
  18. Em suma, a conclusão sobre a existência do alegado tratamento discriminatório operado pelo artigo 4.º, n.ºs 2 e 3, subalínea 3), artigo 94.º, n.º 1, alínea c), n.º 3, alínea b), do Código do IRC suscetível de provocar flagrante violação do TFUE, ao constituir uma restrição à liberdade de circulação de capitais, não pode resultar da mera invocação daqueles normativos do CIRC, pois, a análise a empreender não se esgota no confronto de uma tributação versus isenção de IRC, implica uma fundamentação mais exigente que evidencie se a aplicação de técnicas de tributação diferentes redunda, ou não, numa carga fiscal menos favorável dos sujeitos passivos não residentes, sem qualquer justificação para tal.
  19. Isto é, considerando, hipoteticamente, que a carga fiscal suportada pela Requerente seria expressivamente superior à que recairia sobre uma seguradora residente que se encontrasse em situação idêntica, i.e., com os mesmos investimentos em ações, prefigurando a existência de uma restrição à livre circulação de capitais entre dois Estados-Membros da UE, haveria que analisar se a mesma é justificada.
  20. Com efeito, estabelece o artigo 63.º, n.º 1, do TFUE: “No âmbito das disposições do presente capítulo, são proibidas todas as restrições aos movimentos de capitais entre Estados-Membros e entre Estados-Membros e países terceiros”.
  21. Existem, contudo, algumas derrogações previstas no artigo 65.º, nos seguintes termos: “1. O disposto no artigo 63. o não prejudica o direito de os Estados-Membros: a) Aplicarem as disposições pertinentes do seu direito fiscal que estabeleçam uma distinção entre contribuintes que não se encontrem em idêntica situação no que se refere ao seu lugar de residência ou ao lugar em que o seu capital é investido; b) Tomarem todas as medidas indispensáveis para impedir infracções às suas leis e regulamentos, nomeadamente em matéria fiscal e de supervisão prudencial das instituições financeiras, preverem processos de declaração dos movimentos de capitais para efeitos de informação administrativa ou estatística, ou tomarem medidas justificadas por razões de ordem pública ou de segurança pública. 2. O disposto no presente capítulo não prejudica a possibilidade de aplicação de restrições ao direito de estabelecimento que sejam compatíveis com os Tratados. 3. As medidas e procedimentos a que se referem os n .os 1 e 2 não devem constituir um meio de discriminação arbitrária, nem uma restrição dissimulada à livre circulação de capitais e pagamentos, tal como definida no artigo 63.º.”
  22. Como bem observa a Requerente, “[r]esulta da jurisprudência do TJUE sobre o referido artigo 65.º do TFUE – em particular dos acórdãos Verkooijen (C-35/98), Manninen (C-319/02) e Amurta (C-379/05) – que, para que uma legislação fiscal como a portuguesa possa ser considerada compatível com as disposições do TFUE relativas à livre circulação de capitais, é necessário que se mostre verificado um dos dois requisitos alternativos”: (1) a diferença de tratamento respeite a situações não comparáveis objetivamente, ou (2) a diferença de tratamento se justifique por razões imperiosas de interesse geral”.
  23. Quanto ao primeiro requisito, a Requerida não considera que as seguradoras residentes e não residentes, que comercializam seguros unit-linked, se encontrem em situações objetivamente comparáveis, dado que estas últimas não se encontram sujeitas, em território nacional, a uma miríade de obrigações, de natureza contabilística e tributária, que são impostas às entidades residentes. Mais ainda, devido a condicionantes muito próprias do tipo de atividade levada a cabo, e devido à elevada onerosidade sobre os contribuintes que seria exigir que organizem registos contabilísticos e fiscais, de acordo com as normas locais, a tributação das seguradoras não residentes de acordo com um método de lucro tendencialmente real seria impraticável, sendo algo que, segundo o mais elementar bom senso, apenas se pode exigir às entidades residentes.
  24. Quanto ao segundo requisito, em linha com as Conclusões da Advogada Geral, no Processo C545/19, a título supletivo, isto é, na hipótese de o TJUE declarar que as situações em confronto são objetivamente comparáveis e que existe uma restrição à livre circulação de capitais, a Requerente considera que esta restrição, diferentemente do alegado pela Requerente, deve ser considerada como devidamente justificada por razões imperiosas de interesse geral, como sejam, a salvaguarda da repartição do poder tributário entre os Estados-Membros, a prevenção da (dupla) não tributação, a eficácia da cobrança e, ainda, a salvaguarda da coerência do sistema fiscal português, devendo acrescentar que a modalidade de tributação via retenção na fonte definitiva é adequada e não ultrapassa o necessário para o cumprimento desse fim, ou seja, não é excessiva.
  25. A Requerida invoca, ainda, o regime das assimetrias híbridas, transposto para a legislação nacional pela Lei n.º 24/2020, de 6 de julho, aplicável aos períodos de tributação com início em, ou após, 1 de janeiro de 2020, defendendo que a imposição de um regime de retenção na fonte, a título definitivo, às seguradoras não residentes que, por motivo de comercializarem seguros unit-linked, obtém a dedução de um gasto de igual montante ao rendimento gerado, no Reino Unido, jamais poderá ser considerado um entrave injustificado à livre circulação de capitais (art.º 65.º do TFUE), dado que, objetivamente, a imposição de tal regime é o único fator que in casu se encontra a impedir a criação de um cenário de dupla não tributação.
  26. No que se refere ao pedido de juros indemnizatórios, o mesmo só pode improceder dado a ausência de erro imputável aos serviços da AT. Ainda que possa admitir-se o direito a juros indemnizatórios, por cautela e dever de patrocínio, sem conceder, o seu cômputo seria sempre apurado nos termos da alínea c) do n.º 3 do artigo 43.º da LGT, norma também invocada pela Requerente.

Alegações

Nas suas Alegações, a Requerida remete e dá por integralmente reproduzido o referido em sede da sua Resposta, salientando em jeito de conclusão alguns dos aspetos nela elencados. Por sua vez, a Requerente contrapõe o seguinte:

  1. Relativamente à matéria de exceção invocada pela Requerida nas suas resposta e alegações, a Requerente alega que a pretensa inamissibilidade da revisão oficiosa no prazo alargado de quatro anos de atos de retenção na fonte contrários ao Direito Europeu não se verifica, pois os erros praticados no ato de retenção por substituto tributário são imputáveis à Administração Tributária, para efeitos do disposto no artigo 78.º, n.º 1, da LGT, pelo que improcedem as exceções dilatórias de inimpugnabilidade e de intempestividade da presente ação arbitral.
  2. Sobre a questão prévia a que a Requerida alude, atinente à pretensa duplicação do pedido no montante de € 2.010,06, valor da retenção que aquela alega ter já reembolsado à Requerente, esta contrapõe não ter a AT fornecido quaisquer detalhes quanto a esses pretensos pagamentos, designadamente no que respeita ao modo e data em que os mesmos alegadamente tiveram lugar, o que naturalmente a impossibilita de aferir acerca da veracidade desta invocação. 
  3. Quanto às taxas progressivas da derrama municipal e da derrama estadual e às taxas de tributação autónoma, nenhuma dessas realidades elimina ou mitiga a discriminação em análise, porquanto:
  1. No que às derramas diz respeito, as mesmas incidem (quando devidas, o que nem sempre sucede) sobre o lucro tributável sujeito a IRC. Os rendimentos em referência, na medida em que não integram o lucro tributável, não serão sujeitos quer a IRC, quer a derrama;
  2. No que respeita às tributações autónomas, as mesmas incidem sobre determinadas realidades, tipicamente encargos e despesas, sendo devidas em situações muito concretas, elencadas no artigo 88.º do CIRC. As tributações autónomas, porque eventuais e totalmente desconexas da perceção dos rendimentos de capitais, não podem ser vistas como meio de compensação pelo tratamento fiscal desfavorável conferido aos sujeitos passivos não residentes.
  1. Sobre o entendimento da Requerida de que a retenção na fonte a título definitivo consubstancia uma vantagem para as entidades seguradoras não residentes, na medida em que as desonera de se “munirem com os conhecimentos técnicos locais, de índole contabilística, societária e tributária que se mostram necessários para o preenchimento de uma declaração anual de rendimentos (modelo 22)”, contrapõe a Requerente que a desoneração do cumprimento de obrigações contabilísticas e fiscais é insuscetível de eliminar a desvantagem decorrente da tributação exclusiva das seguradoras não residentes.
  2. A este respeito, a Requerente acrescenta que se se considerasse diversamente, nunca a tributação exclusiva em IRC de entidades não residentes poderia considerar-se discriminatória, já que as mesmas são geralmente tributadas através de retenção na fonte a título definitivo e desoneradas de qualquer obrigação contabilística ou fiscal adicional e aduz que tal posição contraria a reiterada jurisprudência europeia, de que é exemplo a recentemente firmada no Acórdão Allianz (Processo C-545/19).
  3. Relativamente à eventualidade, referida pela Requerida, de o gasto inscrito contabilisticamente para refletir a responsabilidade com os tomadores de seguro unit-linked não se materializar, o que implicaria a reversão da provisão e concomitante relevação do seu montante para efeitos de apuramento do lucro tributável, contrapõe a Requerente que da legislação portuguesa resulta que uma seguradora residente só será tributada a final pela perceção destes rendimentos no cenário improvável de não os distribuir; pelo contrário, uma seguradora não residente será sempre tributada pela perceção destes rendimentos.
  4. Aduz a Requerente que a legislação portuguesa não permite a uma seguradora não residente que demonstre que os rendimentos foram integralmente transferidos para a esfera dos participantes e que, nessa medida, se residisse em Portugal, não teria revertido a tal provisão técnica; se lhe conferisse essa possibilidade, poderia eventualmente equacionar-se uma hipotética aproximação entre o tratamento fiscal conferido a residentes e a não residentes.
  5. Quanto à razão imperiosa de interesse geral que justifique o tratamento diferenciado de duas situações objetivamente comparáveis e à alusão da Requerida a um pretenso propósito anti-elisivo da legislação nacional, o qual visaria uma dupla não-tributação dos rendimentos em referência, a Requerente contrapõe que:
  1. Não só a legislação portuguesa em referência não tem qualquer propósito desse tipo, como não resulta de modo algum dos autos que a Requerente tenha investido em Portugal com esse intuito;
  2. A desoneração da Requerente dessa carga tributária, não lhe conferiria uma vantagem em virtude da não tributação em dois Estados, mas antes equipararia a carga tributária que incide sobre residentes e não residentes.

MATÉRIA DE FACTO

Factos Provados

Com relevo para a decisão, importa atender aos seguintes factos que se julgam provados:

  1. A Requerente é uma sociedade comercial residente para efeitos fiscais no Reino Unido, aí atuando enquanto seguradora e dedicando-se à comercialização de seguros de pensões unit-linked, os quais consubstanciam instrumentos de captação de aforro estruturados, cujo risco é totalmente assumido pelo tomador do seguro.
  2. A Requerente exerce a sua atividade sob supervisão da UK FINANCIAL CONDUCT AUTHORITY e da UK PRUDENTIAL REGULATION AUTHORITY, estando sujeita ao regime legal aplicável às entidades seguradoras, o qual deriva da Diretiva (EU) 2016/97, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de janeiro de 2016.
  3. Os seguros unit-linked comercializados pela Requerente são compostos por diferentes ativos, correspondentes aos investimentos realizados pela Requerente.
  4. Os tomadores dos seguros comercializados pela Requerente têm direito à perceção da totalidade dos rendimentos emergentes dos investimentos gerados pelo respetivo contrato de seguro, assumindo igualmente a totalidade das perdas que deles advenham.
  5. Apesar de a Requerente ser a titular desses rendimentos resultantes de cada um dos investimentos por si realizados, a perceção desses rendimentos constitui-a na obrigação futura de, na data do vencimento do respetivo contrato, efetuar um pagamento de igual montante ao tomador do seguro.
  6. Enquanto sociedade residente no Reino Unido, a Requerente está sujeita e não isenta nesse território a imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas, incidindo tal imposto sobre a globalidade dos rendimentos por si auferidos, incluindo os dividendos de fonte portuguesa.
  7. Todavia, não se verifica qualquer efetiva tributação no Reino Unido dos dividendos recebidos por uma entidade seguradora como a Requerente, quando respeitantes a ações alocadas a seguros unit-linked por si comercializados, porquanto, de acordo com as regras contabilísticas vigentes e aplicáveis para efeito de apuramento dos rendimentos sujeitos a imposto de uma entidade comercial sediada no Reino Unido, a contabilização dos referidos dividendos tem lugar através de uma dupla inscrição: por um lado, inscreve-se um rendimento no montante auferido; por outro, inscreve-se um gasto de igual montante representando a responsabilidade futura de pagamento ao tomador do seguro.
  8. Perante a ausência de tributação no Reino Unido (e, por conseguinte, de dupla-tributação), as retenções na fonte sofridas em Portugal, relativas aos dividendos de fonte portuguesa, não deram lugar a qualquer crédito de imposto, parcial ou total, no Reino Unido.
  9. No período compreendido entre 9 de janeiro de 2020 e 16 de setembro de 2021, a Requerente recebeu dividendos de capitais de fonte portuguesa, os quais foram sujeitos a retenção na fonte em Portugal, ascendendo a tributação por si suportada a € 1.430.123,27.
  10. Alguns dos rendimentos em referência foram sujeitos a retenção na fonte à taxa de 25%, prevista no artigo 87.º, n.º 4, do CIRC e aplicável por via do artigo 94.º, n.º 5, do CIRC; outros foram sujeitos a retenção na fonte à taxa de 15%, prevista no artigo 10.º, n.º 2, alínea b), da CEDT Portugal-Reino Unido.
  11. O B...– SUCURSAL EM PORTUGAL apresentou à AT as guias de retenção na fonte, tendo, em conformidade, procedido à entrega, junto dos cofres do Estado, do imposto nelas plasmado e retido à Requerente.
  12. Por não se conformar com os atos tributários sub judice, em 20 de dezembro de 2023, a Requerente apresentou pedido de revisão oficiosa, o qual foi tacitamente indeferido pela Autoridade Tributária, nos termos do artigo 57.º da LGT.
  13. Em 2 de julho de 2024, a Requerente apresentou o PPA na origem da presente ação.

Factos não provados

Não se considera provado ter sido a Requerente reembolsada em € 2.010,06 das importâncias que lhe foram retidas e que são objeto do presente processo.

Motivação da decisão da matéria de facto

Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, em face das soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2, do CPPT, 596.º, n.º 1, e 607.º, n.º 3, do CPC (aplicáveis por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT), não tendo o Tribunal que se pronunciar sobre todas as alegações das Partes, mas apenas sobre as questões de facto necessárias para a decisão.

No que se refere aos factos provados, a convicção dos árbitros fundou-se na análise crítica da prova documental junta aos autos pelas partes e nas posições por estas assumidas em relação aos factos, que é consensual. Quanto ao facto não provado elencado supra, temos que ficou por demonstrar o valor eventualmente reembolsado à Requerente. Quanto ao restante, note-se que, na resposta ao PPA, a Requerida apenas manifestou desacordo com a Requerente relativamente à matéria de direito.

 

 

DA EXCEÇÃO DE INTEMPESTIVIDADE

Por exceção, a Requerida alega que não é aplicável o prazo de quatro anos previsto no n.º 1 do artigo 78.º da LGT, porquanto as liquidações contestadas não enfermam de erro, de facto ou de direito, imputável aos serviços da administração tributária. Nas suas resposta e alegações, a Requerente alega que a pretensa inamissibilidade da revisão oficiosa no prazo alargado de quatro anos de atos de retenção na fonte contrários ao Direito Europeu não se verifica, pois os erros praticados no ato de retenção por substituto tributário são imputáveis à AT, para efeitos do disposto no artigo 78.º, n.º 1, da LGT.

Cumpre decidir.

Os prazos para apresentação de pedido de revisão oficiosa estão estabelecidos no artigo 78.º da Lei Geral Tributária, que se transcreve a seguir:

“Artigo 78.º

Revisão dos actos tributários

1 - A revisão dos actos tributários pela entidade que os praticou pode ser efectuada por iniciativa do sujeito passivo, no prazo de reclamação administrativa e com fundamento em qualquer ilegalidade, ou, por iniciativa da administração tributária, no prazo de quatro anos após a liquidação ou a todo o tempo se o tributo ainda não tiver sido pago, com fundamento em erro imputável aos serviços.

2 - (Revogado)

3 - A revisão dos actos tributários nos termos do n.º 1, independentemente de se tratar de erro material ou de direito, implica o respectivo reconhecimento devidamente fundamentado nos termos do n.º 1 do artigo anterior.  

4 - O dirigente máximo do serviço pode autorizar, excepcionalmente, nos três anos posteriores ao do acto tributário a revisão da matéria tributável apurada com fundamento em injustiça grave ou notória, desde que o erro não seja imputável a comportamento negligente do contribuinte. 

5 - Para efeitos do número anterior, apenas se considera notória a injustiça ostensiva e inequívoca e grave a resultante de tributação manifestamente exagerada e desproporcionada com a realidade ou de que tenha resultado elevado prejuízo para a Fazenda Nacional. 

6 - A revisão do acto tributário por motivo de duplicação de colecta pode efectuar-se, seja qual for o fundamento, no prazo de quatro anos. 

7 - Interrompe o prazo da revisão oficiosa do acto tributário ou da matéria tributável o pedido do contribuinte dirigido ao órgão competente da administração tributária para a sua realização.” 

Quanto a esta questão, temos que a Requerida não tem razão, porquanto tem sido entendido pacificamente pela jurisprudência dos tribunais superiores e pela nossa doutrina que o conceito de “erro imputável aos serviços”, para efeitos do artigo 78.º, n.º 1, da LGT compreende qualquer ilegalidade, consubstanciada num erro de direito ou erro material, que seja imputável ao substituto tributário.

A este propósito interessa começar por notar que, sobre o que seja um “erro imputável aos serviços” para efeitos do n.º 1 do artigo 78.º da LGT, é jurisprudência assente que o mesmo é um erro nos pressupostos de facto ou de direito (i) que não seja imputável ao contribuinte por conduta negligente, (ii) independentemente da demonstração da culpa dos funcionários da AT envolvidos na emissão do ato afetado pelo erro. Neste sentido, veja-se o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul:

“No entanto, a revisão do acto tributário ao abrigo do regime previsto no citado artº.78, nº.1, 2ª. parte, da L.G.T., deve ter por fundamento erro imputável aos serviços da A. Fiscal, vector que é posto em causa na presente apelação, levando em consideração o regime das liquidações oficiosas objecto do processo e constante do artº.76, nº.3, do C.I.R.S., conforme mencionado supra. Embora o conceito de "erro imputável aos serviços" a que alude o preceito não compreenda todo e qualquer "vício" (designadamente vícios de forma ou procedimentais) mas tão só "erros", estes abrangem o erro nos pressupostos de facto e de direito, sendo essa imputabilidade aos serviços independente da demonstração da culpa dos funcionários envolvidos na emissão do acto afectado pelo erro. Por outras palavras, o dito "erro imputável aos serviços" concretiza qualquer ilegalidade não imputável ao contribuinte por conduta negligente, mas à A. Fiscal, mais devendo tal erro revestir carácter relevante, gerando um prejuízo efectivo, em virtude do errado apuramento da situação tributária do contribuinte, daí derivando o seu carácter essencial (cfr.ac.S.T.A.-2ª.Secção, 14/3/2012, rec.1007/11; ac.S.T.A.-2ª.Secção, 4/5/2016, rec.407/15; Paulo Marques, A Revisão do Acto Tributário, Cadernos do IDEFF, nº.19, Almedina, 2015, pág.232 e seg.)”[1] (negrito nosso)

Considerando o Supremo Tribunal Administrativo que:

“embora o conceito de “erro imputável aos serviços” aludido na 2ª parte do n.º 1 do 78.º da LGT não compreenda todo e qualquer “vício” (designadamente vícios de forma ou procedimentais) mas tão só “erros”, estes abrangem não só o erro material e o erro de facto, como, também, o erro de direito ou erro nos pressupostos de facto e de direito, sendo essa imputabilidade aos serviços independente da demonstração da culpa dos funcionários envolvidos na emissão do acto afectada pelo erro - Cfr. a jurisprudência consolidada no STA e que se encontra plasmada, entre outros, nos Acórdãos de 06/02/2002, no Proc. n.º 26.690; de 05/06/2002, no Proc. n.º 392/02; de 12/12/2001, no Proc. n.º 26.233; de 16/01/2002, no Proc. n.º 26.391; de 30/01/2002, no Proc. n.º 26231; de 12/11/2009, no Proc. n.º 681/09; de 22/03/2011, no Proc. n.º 1009/10; de 14/06/2012, no Proc. n.º 842/11; e de 14/03/2012, no Proc. n.º 1007/11”[2]  (negrito nosso)

Conforme se refere na decisão arbitral proferida no processo 135/2021-T:

No caso específico da alegada violação de normas de direito comunitário, o STA, em Acórdão de 19-11-2014, relativo ao Proc. n.º 0886/14 estabelece que «(...) tem desde há muito entendido este Supremo Tribunal de forma pacífica que “existindo um erro de direito numa liquidação efetuada pelos serviços da administração tributária, e não decorrendo essa errada aplicação da lei de qualquer informação ou declaração do contribuinte, o erro em questão é imputável aos serviços, pois tanto o n.º 2 do artigo 266° da Constituição como o artigo 55° da Lei Geral Tributária estabelecem a obrigação genérica de a administração tributária atuar em plena conformidade com a lei, razão por que qualquer ilegalidade não resultante de uma actuação do sujeito passivo será́ imputável à própria Administração, sendo que esta imputabilidade aos serviços é independente da demonstração da culpa de qualquer um dos funcionários envolvidos na emissão do acto afetado pelo erro, conforme se deixou explicado, entre outros, no acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Administrativo em 12.12.2001, no recurso n.º 026233, pois “havendo erro de direito na liquidação, por aplicação de normas nacionais que violem o direito comunitário (nosso sublinhado) e sendo ela efetuada pelos serviços, é à administração tributária que é imputável esse erro, sempre que a errada aplicação da lei não tenha por base qualquer informação do contribuinte. Por outro lado, esta imputabilidade aos serviços é independente da culpa de qualquer dos seus funcionários ao efetuar liquidação afetada por erro” já que “a administração tributária está genericamente obrigada a atuar em conformidade com a lei (arts. 266°, n.° 1 da CRP e 55° da LGT), pelo que, independentemente da prova da culpa de qualquer das pessoas ou entidades que a integram, qualquer ilegalidade não resultante de uma actuação do sujeito passivo será́ imputável a culpa dos próprios serviços”. - cfr., por todos, o Acórdão deste STA de 14 de Março de 2012, rec. n.o 1007/11, e numerosa jurisprudência aí citada.»” (sublinhado nosso)

No sentido de um erro nas liquidações de retenção na fonte efetuadas por substituto tributário ser imputável à AT constituir um “erro imputável aos serviços” para efeitos do n.º 1 do artigo 78.º da LGT, cite-se o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, no processo n.º 087/22.5BEAVR, de 09-11-2022:

“Assim, há que ter em conta que in casu estamos perante uma situação de substituição tributária, realizada através do mecanismo de retenção na fonte, em que não há intervenção do contribuinte, e em que o substituto actua por imposição legal.

Depois, impera a realidade em que ocorreu um acto de retenção de imposto de selo a título definitivo, pois, se se tratasse de um acto de retenção na fonte por conta do imposto devido a final, na esteira ainda de Paulo Marques, in “A Revisão do Ato Tributário”, Almedina, pág.202, o acto não seria passível de pedido de revisão, na medida em que constituiria um acto provisório que tem por finalidade a antecipação da receita.

Por fim, não advém da sentença recorrida que os actos de retenção e cobrança do imposto tenham sido despoletados ou originados com base em elementos erróneos indicados pelo sujeito passivo.

Neste conspecto, propendemos a considerar que em tal situação se justifica que os erros praticados no acto de retenção sejam imputáveis à Administração Tributária, para efeitos do disposto no nº 1 do artigo 78º da LGT, pois se afigura inviável responsabilizar o contribuinte pela actuação do substituto, sob pena de violação dos seus direitos garantísticos.

É esse o ponto de vista do Ministério Público apoiado no acórdão deste tribunal de 12/07/2006, tirado no recurso nº 402/06, em que se doutrinou que «A formulação de pedido de revisão oficiosa do acto tributário pode ter lugar relativamente a actos de retenção na fonte, independentemente de o contribuinte ter deduzido reclamação graciosa nos termos do art. 152.º do CPT (ou 132.º do CPPT), pois esta é necessária apenas para efeitos de dedução de impugnação judicial».

Vide, no mesmo sentido, Jorge Lopes de Sousa, in CPP Anotado, II vol., 6ª edição, pág.422 e que foi o relator do aresto acabado de mencionar.” (negrito nosso)

Veja-se ainda, a propósito desta questão, a Decisão Arbitral proferida em 23-05-2024, processo n.º 940/2023-T, e Decisão Arbitral proferida em 31-08-2024, processo n.º 61/2024-T.

Da numerosa doutrina a este respeito, veja-se Casalta Nabais, in Direito Fiscal, 7.ª edição, 2012, página 256:

muito embora tanto em termos legais como em termos doutrinais a substituição tributária seja definida exclusivamente com referência ao contribuinte, o certo é que a figura da substituição não deixa, a seu modo, de se reportar também à Administração Fiscal. Efectivamente, no quadro actual da “privatização” da administração ou gestão dos impostos, o substituto tributário acaba, de algum do, por “substituir” também a Administração Fiscal na liquidação e cobrança dos impostos. O que, de algum modo, não deixa de ser denunciado pela inserção sistemática dos deveres de retenção na fonte os quais aparecem integrados no Código do IRS no capítulo do pagamento e no Código do IRC no capítulo relativo à liquidação”. 

Sobre a mesma temática, veja-se igualmente Jorge Lopes de Sousa, in Código do Procedimento e Processo Tributário, Volume II, 2011, p. 422:

“não se poderia justificar que, nos caso de retenção na fonte, não houvesse possibilidade de revisão oficiosa, no prazo alargado do artigo 78.º, n.º 1, da LGT quando o erro for imputável à administração tributária (o que pode suceder, nomeadamente, quando a retenção foi efetuada de acordo com instruções desta), pois o facto de na retenção se impor aos particulares, que não têm formação em direito tributário, a prática de atos de natureza tributária, até justificará que lhes seja proporcionada uma proteção mais intensa contra ilegalidades de que a prevista para a generalidade dos atos práticos pela administração tributária.”

Desta jurisprudência e doutrina retira-se que a ausência de intervenção da AT na liquidação (retenção na fonte) efetuada pelo substituto tributário não determina a inexistência de erro para efeitos da revisão oficiosa do ato no prazo de quatro anos estipulado pelo artigo 78.º, n.º 1, da LGT. Contrariamente ao defendido pela AT Requerida, os erros praticados no ato de retenção na fonte pelo substituto tributário são, ainda, imputáveis à AT para efeitos do disposto no artigo 78.º, n.º 1, da LGT.

No caso em apreciação, a ilegalidade das retenções na fonte objeto do pedido de revisão oficiosa apresentado pela Requerente em 20 de dezembro de 2023, não teve por base informações erradas do contribuinte, não lhe sendo a ela imputável mas sim ao substituto tributário, e concomitantemente aos serviços da AT. Consequentemente, não se verifica qualquer razão que pudesse obstar a que a Requerente utilizasse o prazo de quatro anos, a contar de cada uma das retenções na fonte, para pedir a sua revisão, nos termos da 2.ª parte do n.º 1 do artigo 78.º da LGT, pelo que improcede a exceção da intempestividade.

Tal como resulta da matéria assente, os atos de retenção na fonte em causa foram praticados entre 9 de janeiro de 2020 e 16 de setembro de 2021 e a Requerente apresentou pedido de revisão oficiosa em 20 de dezembro de 2023. Conclui-se, assim, que a Requerente apresentou o pedido de revisão oficiosa tempestivamente relativamente a todos os atos de retenção na fonte ora sindicatos.

Quanto à tempestividade do PPA, note-se que o pedido de revisão oficiosa, apresentado em 20 de dezembro de 2023, não foi decidido até 20 de abril de 2024, pelo que nesta data se formou indeferimento tácito, nos termos do artigo 57.º, n.ºs 1 e 5, da LGT, para efeitos de impugnação administrativa ou contenciosa (arbitral). Tendo a Requerente optado pela impugnação através de processo arbitral, o prazo aplicável é de 90 dias, a contar da data em que se formou o indeferimento tácito, como resulta do artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, conjugado com a alínea d) do n.º 1 do artigo 102.º do CPPT, para que aquela alínea a) remete.

Iniciando-se o prazo de 90 dias em 21 de abril de 2024, o mesmo terminaria em 20 de julho de 2024. Ora, tendo a Requerente apresentado o PPA em 4 de julho de 2024, concluir-se que o mesmo foi apresentado dentro do referido prazo legal de 90 dias. Nestes termos, julga-se o PPA também tempestivo, porque apresentado no prazo previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, conjugado com o artigo 102.º, n.º 1, alínea d), do CPPT, a contar da data da presunção do indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa deduzida contra os atos tributários impugnados.

Quanto ao requisito de prévia impugnação administrativa dentro do prazo imposto, de acordo com o artigo 132.º, n.º 3 e 4 do CPPT, o Douto Supremo Tribunal Administrativo tem-se pronunciado, repetidamente, no sentido da equiparação do pedido de revisão do ato tributário à reclamação graciosa sobre atos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta (cf. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo n.º 0839/11, de 06-02-2013, Acórdão proferido no processo n.º 087/22.5BEAVR, em 11-09-2022), pelo que também esta exceção deverá ser julgada improcedente.

 

DA VIOLAÇÃO DO DIREITO DA UNIÃO EUROPEIA

Tal como referido supra, a principal questão de direito a decidir respeita à compatibilidade com o direito da União Europeia, especificamente com a liberdade de circulação de capitais consagrada no artigo 63.º do TFUE, dos atos de liquidação de imposto por retenção na fonte sobre os dividendos de fonte portuguesa auferidos pela Requerente alocados a seguros unit-linked por ela geridos e comercializados, por comparação com o regime fiscal aplicável quanto aos rendimentos obtidos em idênticas circunstâncias por sociedades seguradoras residentes em Portugal.

Neste contexto, interessa relembrar que, quando afetos a carteiras de seguros unit-linked, em que o risco do investimento recai integralmente sobre o tomador do seguro, o rendimento reconhecido na contabilidade da Requerente é anulado pela inscrição de um gasto representativo da responsabilidade futura de pagamento ao tomador do seguro. O mesmo se verifica quanto aos dividendos recebidos por seguradoras nacionais e afetos ao mesmo tipo de carteiras, em que o rendimento reconhecido em resultados por contrapartida de maios monetários, é compensado com um gasto de igual montante, por contrapartida de um passivo.

Apesar de, em ambos os casos, os dividendos auferidos de fonte portuguesa serem objeto de retenção na fonte em Portugal (25%), o imposto retido a seguradoras nacionais reveste a natureza de pagamento por conta, diminuindo o imposto a pagar e sendo passível de reembolso quando o seu valor exceda o valor total do imposto apurado na declaração anual de rendimentos (artigos 94.º, n.º 1, alínea c), nº 3 e n.º 7, e 104.º, n.º 2 e n.º 3, todos do CIRC). Já os dividendos recebidos por seguradoras não residentes, são sujeitos a retenção na fonte, a título definitivo, nos termos do disposto nos artigos 4.º, n.º 2, 94.º, n.º 1, alínea c), n.º 3, alínea b), n.ºs 5 e 7, e 87.º, n.º 4, todos do CIRC.

Consequentemente, enquanto o mecanismo de crédito de imposto conferido às sociedades seguradoras residentes, conjugado com o reconhecimento simultâneo de um gasto de montante igual ao dos rendimentos, se traduz, por regra, numa não tributação dos dividendos por elas afetos a carteiras de seguro unit-linked, uma seguradora residente no Reino Unido que se encontre em condições semelhantes é sujeita a tributação liberatória sobre os mesmos rendimentos (à taxa de 25%, ou 15% quando acionada a CEDT Portugal-Reino Unido).

Nestes termos, a questão de direito a decidir respeita à compatibilidade com o Direito da União Europeia, concretamente com a liberdade de circulação de capitais consagrada no artigo 63.º do TFUE, do regime diferenciado de tributação sobre os dividendos distribuídos a uma sociedade seguradora não residente em território português, afetos a carteiras de seguro unit-linked, que estão sujeitos a retenção com caráter liberatório (cf. artigo 94.º, n.º 5, do CIRC), por comparação com os mesmos rendimentos, quando obtidos por uma segura residente em território português, que tem direito a um crédito de imposto relativo às retenções que lhe são efetuadas (cf. artigo 94.º, n.º 3, e artigo 104.º, n.º 2 e n.º 3, ambos do CIRC), levando a que carga fiscal sobre esses dividendos seja nula, devido à consideração no cômputo do seu resultado tributável em IRC dos custos referentes ao aumento das suas obrigações de pagamento futuras.

Este problema jurídico foi equacionado pelo TJUE no Acórdão de 7 de novembro de 2024, proferido no processo de reenvio prejudicial C-782/22, numa situação factual com características essenciais semelhantes às dos presentes autos (suscitada pelo Tribunal de Recurso de Hertogenbosch, Países Baixos).

De facto, neste processo de reenvio estava em causa uma sociedade com sede no Reino Unido (XX) e aí registada como empresa de seguros, que auferiu dividendos de fonte holandesa e sujeitos a um imposto 15% a título liberatório, por ela alocados a contratos qualificados como como “contratos de seguro em unidade de conta” (“unit-linked insurance contracts” na versão em língua inglesa do aludido Acórdão), que se viu confrontada com uma diferença de tratamento fiscal em relação aos contribuintes residentes, cujo imposto sobre os dividendos constitui para eles uma cobrança antecipada por conta do imposto de sociedades de que são devedores, com direito a reembolso do montante inicialmente cobrado em excesso ao imposto sobre as sociedades devido.

Verifica-se, assim, o total paralelismo com o caso sob exame, em que os dividendos distribuídos por sociedades residentes a seguradoras não residentes são objeto de retenção na fonte a título liberatório em Portugal, retenção essa que não é suscetível de ser recuperada sempre que os respetivos rendimentos forem alocados a carteiras de seguros unit-linked, ao passo que as seguradoras residentes recuperam a retenção que lhes é efetuada sobre os rendimentos de idêntica natureza, por a mesma ter a natureza de pagamento por conta.

No referido Acórdão do TJUE, conclui-se o seguinte:

“O artigo 63.°, n.° 1, TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional nos termos da qual os dividendos distribuídos por uma sociedade residente a uma sociedade não residente, que investiu em ações da primeira sociedade para cobrir obrigações de pagamento no futuro, são objeto de um imposto sobre os dividendos de 15 % sobre o seu montante bruto, ao passo que os dividendos distribuídos a uma sociedade residente estão sujeitos a imposto sobre os dividendos retido na fonte, o qual pode ser integralmente imputado no imposto sobre as sociedades devido por esta última sociedade e dar lugar a reembolso, levando a que a carga fiscal que incide sobre esses dividendos seja igual a zero devido à consideração, no cálculo da matéria coletável do imposto sobre as sociedades desta última sociedade, dos custos originados pelo aumento das suas obrigações de pagamento no futuro.”

Note-se que, in casu, não é relevante que o Reino Unido tenha deixado de integrar a União Europeia, porquanto o artigo 63.º do TFUE aplica-se aos movimentos de capitais entre Estados-Membros e países terceiros. Importa, então, analisar a apreciação pelo TJUE do referido processo.

Conforme refere este Tribunal resulta de jurisprudência constante do TJUE que as medidas proibidas pelo artigo 63.°, n.º 1, do TFUE, enquanto restrições aos movimentos de capitais, incluem as medidas que sejam suscetíveis de dissuadir os não residentes de investir num Estado‑Membro ou de dissuadir os residentes desse Estado‑Membro de investir noutros Estados (cf. Acórdãos de 13 de novembro de 2019, College Pension Plan of British Columbia, C‑641/17, EU:C:2019:960, n.° 48, e de 29 de julho de 2024, Keva, C‑39/23, EU:C:2024:648, n.° 40 e jurisprudência referida). Prossegue o TJUE nos seguintes moldes:

  1. Em especial, o facto de um Estado‑Membro conceder aos dividendos pagos às sociedades não residentes um tratamento menos favorável do que aquele que é concedido aos dividendos pagos a sociedades residentes é suscetível de dissuadir as sociedades estabelecidas num Estado‑Membro diferente desse Estado‑Membro de investir neste mesmo Estado‑Membro e constitui, consequentemente, uma restrição à livre circulação de capitais, proibida, em princípio, pelo artigo 63.°,n.° 1, TFUE [v., neste sentido, Acórdãos de 13 de novembro de 2019, College  Pension Plan of British Columbia, C‑641/17, EU:C:2019:960, n.° 49 e jurisprudência referida, e de 7 de abril de 2022,Veronsaajien oikeudenvalvontayksikkö (Isenção dos fundos de investimento contratuais), C‑342/20,EU:C:2022:276, n.° 50]
  2. A aplicação aos dividendos pagos a sociedades não residentes de uma carga fiscal mais elevada do que aquela que é suportada pelas sociedades residentes a título dos mesmos dividendos constitui um tratamento menos favorável. Sucede o mesmo com a isenção, total ou material, dos dividendos pagos a uma sociedade residente, ao passo que os dividendos pagos a uma sociedade não residente estão sujeitos a uma retenção na fonte definitiva (v., neste sentido, Acórdão de 13 de novembro de 2019, College Pension Plan of British Columbia, C‑641/17, EU:C:2019:960, n.o 50 e jurisprudência referida).
  3. Quando um Estado‑Membro retém na fonte o imposto sobre os dividendos distribuídos por sociedades com sede nesse Estado‑Membro, o Tribunal de Justiça já declarou que, para apreciar se a legislação desse Estado‑Membro é compatível com o artigo 63.o, n.º 1, TFUE, incumbe ao órgão jurisdicional nacional em causa, o único a poder conhecer os factos sobre os quais deverá decidir, verificar se a aplicação de uma retenção na fonte aos dividendos distribuídos a uma sociedade não residente conduz a uma situação na qual essa sociedade suporta, a título definitivo e no mesmo Estado‑Membro, uma carga fiscal mais elevada do que a que é suportada pelos residentes relativamente aos mesmos dividendos (v., neste sentido, Acórdão de 17 de setembro de 2015, Miljoen e o., C‑10/14, C‑14/14 e C‑17/14, EU:C:2015:608, n.o 48).
  4. Essa verificação deve ser feita à luz, por um lado, do imposto sobre os dividendos devido pelo contribuinte não residente e, por outro lado, do imposto sobre os dividendos e do imposto sobre os rendimentos ou do imposto sobre as sociedades devido pelo contribuinte residente e que inclui, na matéria coletável, os rendimentos provenientes das ações de que decorrem os dividendos (v., neste sentido, Acórdão de 17 de setembro de 2015, Miljoen e o., C‑10/14, C‑14/14 e C‑17/14, EU:C:2015:608, n.º 74).
  5. No caso em apreço, como o órgão jurisdicional de reenvio salienta, por força da legislação neerlandesa em causa no processo principal, tanto os dividendos distribuídos a uma sociedade não residente como os distribuídos a uma sociedade residente estão sujeitos a imposto sobre os dividendos.
  6. No que respeita a uma sociedade não residente que receba dividendos, esta retenção é efetuada a título definitivo, pelo que os dividendos estão sujeitos a um imposto de 15 % sobre o seu montante bruto.
  7. Em contrapartida, no caso de uma sociedade residente que receba dividendos, há uma cobrança antecipada por conta do imposto sobre as sociedades de que será devedora e que poderá ser integralmente imputado neste e dar lugar a reembolso, no caso de o imposto sobre os dividendos exceder o imposto sobre as sociedades devido por essa sociedade.
  8. Por conseguinte, segundo as explicações do órgão jurisdicional de reenvio, a sociedade residente não é efetivamente tributada sobre os dividendos recebidos, uma vez que, na determinação do lucro tributável sujeito ao imposto sobre as sociedades, é tido em conta, como encargo, o aumento das obrigações para com os clientes decorrentes dos contratos de seguro em unidades de conta, o que leva a que a base líquida do imposto sobre as sociedades a título desses dividendos seja igual a zero.
  9. A este respeito, o Governo Neerlandês contesta a afirmação do órgão jurisdicional de reenvio segundo a qual a carga fiscal dos dividendos distribuídos às sociedades residentes é igual a zero e alega que a carga fiscal representada pelo imposto de 15 % sobre os dividendos brutos a que estão sujeitos os dividendos pagos às sociedades não residentes deve ser comparada à carga fiscal resultante do imposto sobre as sociedades, que, no período em causa no processo principal, recaía sobre os dividendos líquidos a taxas entre os 20 % e os 34 %, estando a ele sujeitos os dividendos pagos às sociedades residentes.
  10. Todavia, importa recordar que, no que se refere à interpretação das disposições nacionais, o Tribunal de Justiça tem, em princípio, de se basear nas qualificações resultantes da decisão de reenvio. Com efeito, segundo jurisprudência constante, o Tribunal de Justiça não é competente para interpretar o direito interno de um Estado‑Membro (v., neste sentido, Acórdão de 5 de dezembro de 2023, Deutsche Wohnen, C‑807/21, EU:C:2023:950, n.o 36 e jurisprudência referida)
  11. Por conseguinte, importa tomar como base a premissa exposta pelo órgão jurisdicional de reenvio e considerar que, mesmo quando é efetuada uma retenção tanto sobre os dividendos pagos às sociedades residentes como sobre os dividendos pagos às sociedades não residentes, a aplicação do mecanismo de imputação do imposto sobre os dividendos no imposto sobre as sociedades, devido pela sociedade residente, bem como do reembolso desse imposto, no caso de o imposto sobre as sociedades devido ser inferior ao imposto sobre os dividendos retido, previsto na legislação neerlandesa em causa no processo principal, conjugada com as modalidades de cálculo da matéria coletável da sociedade residente que permitem a dedução dos encargos ligados ao aumento das obrigações para com os clientes decorrentes dos contratos de seguro em unidades de conta, leva a que os dividendos pagos às sociedades residentes estejam isentos de imposto.
  12. Daqui resulta que os dividendos pagos às sociedades não residentes estão sujeitos a um tratamento fiscal menos favorável do que aquele que é aplicado aos dividendos pagos às sociedades residentes, na medida em que os primeiros estão sujeitos a uma tributação definitiva de 15 %, ao passo que os segundos estão definitivamente isentos de imposto.
  13. Esse tratamento desfavorável dos dividendos por um Estado‑Membro é suscetível de dissuadir as sociedades não residentes de investir nesse Estado‑Membro e constitui, por conseguinte, uma restrição à livre circulação de capitais, proibida, em princípio, pelo artigo 63.o, n.º 1, TFUE.

A este propósito, cumpre referir que,

 

ao abrigo dos princípios do contraditório e da igualdade das partes, a Requerida pronunciou-se sobre o referido Acórdão junto aos autos pela Requerente, apontando desde logo para a seguinte ressalva nele contida “(…) no que se refere à interpretação das disposições nacionais, o Tribunal de Justiça tem, em princípio, de se basear nas qualificações resultantes da decisão de reenvio. Com efeito, segundo jurisprudência constante, o Tribunal de Justiça não é competente para interpretar o direito interno de um Estado‑Membro (v., neste sentido, Acórdão de 5 de dezembro de 2023, Deutsche Wohnen, C‑807/21, EU:C:2023:950, n.º 36 e jurisprudência referida).”

Entende a Requerida que, quanto a ela, não existe qualquer fundo de verdade na afirmação da Requerente segundo a qual as entidades seguradoras residentes se encontram necessariamente isentas de tributação sobre os rendimentos derivados de seguros unit-linked, em contraposição com a sujeição de tais rendimentos na esfera de entidades não residentes.

Como é referido no ponto 39 do supra citado Acórdão, na sua apreciação sobre a existência de uma prática proibida nos termos do artigo 63.º do TFUE, o TJUE tomou “como base a premissa exposta pelo órgão jurisdicional de reenvio e considerar que, mesmo quando é efetuada uma retenção tanto sobre os dividendos pagos às sociedades residentes como sobre os dividendos pagos às sociedades não residentes, a aplicação do mecanismo de imputação do imposto sobre os dividendos no imposto sobre as sociedades, devido pela sociedade residente, bem como do reembolso desse imposto, no caso de o imposto sobre as sociedades devido ser inferior ao imposto sobre os dividendos retido, previsto na legislação neerlandesa em causa no processo principal, conjugada com as modalidades de cálculo da matéria coletável da sociedade residente que permitem a dedução dos encargos ligados ao aumento das obrigações para com os clientes decorrentes dos contratos de seguro em unidades de conta, leva a que os dividendos pagos às sociedades residentes estejam isentos de imposto.”

Esta premissa verifica-se igualmente in casu, competindo a este Tribunal Arbitral apreciar se os dividendos pagos às seguradoras não residentes estão sujeitos a um tratamento fiscal menos favorável do que aquele que é aplicado aos dividendos pagos às seguradoras residentes. E conclui-se que esse é o caso, como considerou o TJUE no supra citado processo, porquanto os dividendos pagos às seguradoras não residentes estão sujeitos a uma tributação definitiva de 25% (ou de 15%), ao passo que os dividendos pagos às seguradoras residentes beneficiam da sua não tributação, em virtude do mecanismo de crédito de imposto previsto no CIRC.

Assim, acompanha-se o Acórdão do TJUE de que esse tratamento desfavorável dos dividendos por parte de um Estado‑Membro é suscetível de dissuadir as sociedades não residentes de investir nesse Estado‑Membro e constitui, por conseguinte, uma restrição à livre circulação de capitais, proibida, em princípio, pelo artigo 63.°, n.º 1, do TFUE.

Por outro lado, o Tribunal de Justiça acrescenta que:

  1. No entanto, nos termos do artigo 65.°, n.° 1, alínea a), TFUE, o disposto no artigo 63.° TFUE não prejudica o direito de os Estados‑Membros aplicarem as disposições pertinentes do seu direito fiscal que estabeleçam uma distinção entre contribuintes que não se encontrem em idêntica situação no que se refere ao seu lugar de residência ou ao lugar em que o seu capital é investido.
  2. Resulta de jurisprudência constante que o artigo 65.°, n.° 1, alínea a), TFUE, enquanto derrogação ao princípio fundamental da livre circulação de capitais, é de interpretação restrita. Por conseguinte, esta disposição não pode ser interpretada no sentido de que qualquer legislação fiscal que comporte uma distinção entre os contribuintes em função do lugar onde residam ou do Estado‑Membro onde invistamos seus capitais é automaticamente compatível com o Tratado [Acórdão de 7 de abril de 2022, Veronsaajien oikeudenvalvontayksikkö (Isenção dos fundos de investimento contratuais), C‑342/20,EU:C:2022:276, n.° 67 e jurisprudência referida].
  3. Com efeito, as diferenças de tratamento autorizadas pelo artigo 65.°, n.° 1, alínea a), TFUE não devem constituir, de acordo com o n.° 3 deste mesmo artigo, um meio de discriminação arbitrária nem uma restrição dissimulada. Assim, o Tribunal de Justiça declarou que semelhantes diferenças de tratamento só podem ser autorizadas se disserem respeito a situações que não são objetivamente comparáveis ou, no caso contrário, se forem justificadas por uma razão imperiosa de interesse geral [Acórdão de 7 de abril de 2022, Veronsaajien oikeudenvalvontayksikkö (Isenção dos fundos de investimento contratuais),C‑342/20, EU:C:2022:276, n.° 68 e jurisprudência referida].

Ou seja, não obstante ser indiscutível que a legislação fiscal portuguesa trata desfavoravelmente as seguradoras não residentes face às seguradoras residentes, em relação à retenção na fonte sobre dividendos de fontes portuguesas afetos a carteiras de seguros unit-linked, tal discriminação não será desconforme ao Direito da União Europeia se se justificar: (i) por dizer respeito a situações que não são objetivamente comparáveis; ou (ii) por uma razão imperiosa de interesse geral.

Importa, assim, verificar se algum destes dois requisitos que justificariam um tratamento diferenciado se verificam.

Quanto à existência de situações objetivamente comparáveis

Sobre a questão de um tratamento diferenciado se justificar por dizer respeito a situações que não são objetivamente comparáveis, a Requerida afirma não poder considerar que as seguradoras residentes e não residentes, que comercializam seguros unit linked, se encontrem em situações objetivamente comparáveis, dado que estas últimas não se encontram sujeitas, em território nacional, a uma miríade de obrigações, de natureza contabilística e tributária, que são impostas às entidades residentes, tais como (i) às tributações autónomas, à derrama estadual e à derrama municipal; (ii) à obrigação de apresentação da declaração anual de rendimentos (modelo 22) e outras obrigações acessórias associadas; (iii) à obrigação de procederem a uma multitude de ajustamentos fiscais sobre o lucro contabilístico, e (iv) à obrigação de preparação da sua contabilidade de acordo com as regras da legislação nacional.

Importa não perder de vista que, como se refere no Acórdão supra citado, resulta de jurisprudência constante que o artigo 65.°, n.° 1, alínea a), do TFUE, enquanto derrogação ao princípio fundamental da livre circulação de capitais, é de interpretação restrita, não podendo ser interpretado no sentido de que qualquer legislação fiscal que comporte uma distinção entre os contribuintes em função do lugar onde residam ou do Estado‑Membro onde invistamos seus capitais é automaticamente compatível com o Tratado [Acórdão de 7 de abril de 2022, Veronsaajien oikeudenvalvontayksikkö (Isenção dos fundos de investimento contratuais), C‑342/20,EU:C:2022:276, n.° 67 e jurisprudência referida].

Assim, sobre o acréscimo de obrigações contabilísticas e declarativas que as seguradoras não residentes teriam de suportar para poderem beneficiar de um regime de crédito de imposto em linha com o regime aplicável às seguradoras residentes, o presente Tribunal Arbitral acompanha a Requerente quando esta alega que a desoneração do cumprimento de obrigações contabilísticas e fiscais não elimina a desvantagem decorrente da tributação mais gravosa exclusiva das seguradoras não residentes, face às seguradoras residentes, na situação em análise.

Relativamente à diferença entre as taxas de tributação que recaem sobre a Requerente (25% ou 15%, a título liberatório) e as impostas às Seguradores residentes (taxa de IRC de 21%, derrama municipal até 1,5%, derrama estadual entre 3% a 9% e tributações autónomas), a realidade é que o mecanismo de crédito de imposto de que beneficiam estas últimas entidades, leva a que o efeito prático das taxas do IRC e das derramas seja nulo sempre que estejam em causa de dividendos afetos a seguros unit-linked, porquanto o rendimento é compensado por um gasto do mesmo montante, verificando-se igualmente que este tipo de rendimentos e gastos não estão sujeitos a qualquer tipo de tributação autónoma.

Assim, enquanto que, por regra, as diferentes taxas de tributação impostas a uma seguradora residente, não têm impacto sobre os dividendos de ações afetas a seguros unit-linked, já as seguradoras não residentes se veem incapacitadas de recuperar a retenção suportada em Portugal, na medida em que a retenção na fonte tem caráter liberatório. Somente na eventualidade de o tomador do seguro não ser ressarcido do seu investimento, é que a seguradora residente será objeto de tributação pela reversão da provisão técnica constituída para fazer face às suas responsabilidades com seguros unit-linked. No entanto, tratando-se de situações tendencialmente residuais, entende o Tribunal não ser de molde a justificar um tratamento diferenciado entre seguradoras residentes e não residentes.

Analisada as questões supra referidas indicadas pela Requerida na sua defesa, importa prosseguir com a análise do Acórdão proferido pelo TJUE no aludido processo C-782/22:

  1. Decorre da jurisprudência do Tribunal de Justiça, por um lado, que o caráter comparável ou não de uma situação transfronteiriça com uma situação interna deve ser examinado tendo em conta o objetivo prosseguido pela legislação nacional em causa assim como o objeto e o conteúdo desta última, e, por outro, que apenas os critérios de distinção pertinentes estabelecidos por essa legislação devem ser tido sem conta para apreciar se a diferença de tratamento resultante de tal legislação reflete uma diferença de situação objetiva (v., neste sentido, Acórdão de 29 de julho de 2024, Keva e o., C‑39/23,EU:C:2024:648, n.° 51 e jurisprudência referida).
  2. A este respeito, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta se a XX se encontra numa situação comparável à de uma sociedade residente beneficiária de dividendos do ponto de vista dos encargos que implica o aumento das obrigações para com os clientes decorrentes dos contratos de seguro em unidades de conta, aumento esse que é consequência do lucro gerado pelas sociedades com as ações em que a XX investiu.
  3. Importa salientar que esse órgão jurisdicional não esclarece o objetivo específico prosseguido pela legislação neerlandesa em causa no processo principal ao permitir à sociedade residente deduzir da matéria coletável os encargos decorrentes do aumento das obrigações para com os clientes dessa sociedade que celebraram contratos como os que estão em causa no processo principal, limitando‑se a salientar que essa dedução é realizada a título das despesas efetuadas.
  4. Resulta de jurisprudência constante do Tribunal de Justiça que, no que respeita às despesas, tal como as despesas profissionais diretamente relacionadas com uma atividade que gerou rendimentos tributáveis num Estado‑Membro, os residentes e os não residentes nesse Estado se encontram numa situação comparável (v., nomeadamente, Acórdãos de 24 de fevereiro de 2015, Grünewald, C‑559/13,EU:C:2015:109, n.° 29; de 8 de novembro de 2012, Comissão/Finlândia, C‑342/10, EU:C:2012:688, n.° 37; de 17 de setembro de 2015, Miljoen e o., C‑10/14, C‑14/14 e C‑17/14, EU:C:2015:608, n.° 57; ede 13 de novembro de 2019, College Pension Plan of British Columbia, C‑641/17, EU:C:2019:960, n.° 74).
  5. Em conformidade com a jurisprudência do Tribunal de Justiça, têm um nexo direto com a atividade em questão as despesas causadas por essa atividade e, portanto, necessárias ao respetivo exercício(Acórdãos de 24 de fevereiro de 2015, Grünewald, C‑559/13, EU:C:2015:109, n.° 30 e jurisprudência referida; de 13 de julho de 2016, Brisal e KBC Finance Ireland, C‑18/15, EU:C:2016:549, n.° 46; e de6 de dezembro de 2018, Montag, C‑480/17, EU:C:2018:987, n.° 33).
  6. O Tribunal de Justiça declarou que estando em causa um rendimento auferido sob a forma de dividendos, esse nexo direto só existe no caso dos custos diretamente relacionados com o recebimento, em si mesmo, dos dividendos (v., neste sentido, Acórdão de 17 de setembro de 2015, Miljoen e o C‑10/14, C‑14/14 e C‑17/14, EU:C:2015:608, n.ºs 58 e 59).
  7. Deste modo, tal nexo não existe no que respeita à dedução do dividendo incluído no preço de aquisição das ações, uma vez que essa dedução se destina a determinar o preço real de aquisição das ações, nem no que respeita aos encargos financeiros, uma vez que estes dizem respeito à detenção, enquanto tal, das ações que estão na origem dos dividendos (v., neste sentido, Acórdão de 17 de setembro de 2015,Miljoen e o C‑10/14, C‑14/14 e C‑17/14, EU:C:2015:608, n.° 60).
  8. É certo que o aumento das obrigações para com os clientes não parece poder estar relacionado com o recebimento, em si mesmo, dos dividendos, na aceção da jurisprudência referida no n.° 50 do presente acórdão.
  9. Todavia, esta circunstância não permite, por si só, concluir pela inexistência de comparabilidade entre as situações de beneficiários de dividendos residentes e não residentes à luz da legislação neerlandesa em causa no processo principal.
  10. Com efeito, nos n.os 55 e 81 do Acórdão de 13 de novembro de 2019, College Pension Plan of British Columbia (C‑641/17, EU:C:2019:960), que é posterior ao Acórdão de 17 de setembro de 2015, Miljoene o. (C‑10/14, C‑14/14 e C‑17/14, EU:C:2015:608), o Tribunal de Justiça declarou, em substância, que um fundo de pensões não residente, que afeta os dividendos recebidos ao aprovisionamento das pensões que deverá pagar no futuro, de forma deliberada ou em aplicação do direito em vigor no seu Estado de residência, se encontra numa situação comparável à de um fundo de pensões residente à luz de uma legislação nacional por força da qual, para o cálculo do imposto sobre as sociedades, o recebimento de dividendos por esse fundo de pensões residente dá lugar a um aumento muito reduzido ou mesmo inexistente, em determinados casos, do lucro tributável. O Tribunal de Justiça salientou efetivamente, nesse n.° 55, que tal recebimento de dividendos tinha por efeito um aumento proporcional das provisões técnicas e que o lucro tributável do fundo de pensões residente em causa aumentava unicamente na hipótese de os rendimentos de investimento extracontabilísticos não serem levados a crédito dos diferentes contratos desse referido fundo de pensões.
  11. Com efeito, nos n.os 79 e 80 do Acórdão de 13 de novembro de 2019, College Pension Plan of British Columbia (C‑641/17, EU:C:2019:960), o Tribunal de Justiça considerou, por um lado, que, no processo que lhe deu origem, existia um nexo de causalidade entre o recebimento de dividendos, o aumento das provisões matemáticas e das outras rubricas do passivo e a inexistência de aumento da matéria coletável do fundo residente, e, por outro, que essa legislação nacional que permite uma isenção, na totalidade ou na quase totalidade, dos dividendos pagos a fundos de pensões residentes facilitava, assim, a acumulação de capitais desses fundos, ao passo que todos os fundos de pensões estão, em princípio, obrigados a investir os prémios de seguro no mercado de capitais a fim de gerar rendimentos sob a forma de dividendos que lhes permitam fazer face às suas obrigações futuras no âmbito dos contratos de seguro.
  12. O Tribunal de Justiça considerou, assim, que as obrigações dos fundos de pensões, relativas ao investimento dos prémios de seguro e à afetação dos dividendos recebidos ao aprovisionamento das pensões, podem servir de base à comparabilidade entre os fundos de pensões residentes e os não residentes à luz de uma legislação nacional que, através das modalidades de cálculo da matéria coletável do imposto sobre as sociedades, permite isentar, na totalidade ou na quase totalidade, os dividendos recebidos por um fundo de pensões residente, quando exista um nexo de causalidade entre o recebimento dos dividendos e os encargos constituídos por essas obrigações decorrentes da atividade desses fundos.
  13. No caso em apreço, o órgão jurisdicional de reenvio salienta que, embora uma sociedade, como a XX, não constitua um fundo de pensões, a sua atividade é, no entanto, caracterizada pelo facto de essa sociedade investir, nomeadamente, em ações nos Países Baixos para cobrir as obrigações para com os clientes no âmbito de contratos em unidades de conta e de os rendimentos do investimento obtidos pela referida sociedade implicarem a alteração correspondente do valor das suas obrigações para com os clientes ao abrigo desses contratos.
  14. O órgão jurisdicional de reenvio considera, além disso, que existe um nexo de causalidade direto entre o rendimento dos investimentos e as variações das suas obrigações e que é precisamente devido a esse nexo que uma sociedade residente não é tributada sobre esses dividendos a título do imposto sobre as sociedades, uma vez que estes constituem lucros distribuídos e que existe uma relação económica entre os referidos dividendos e a alteração do nível das obrigações para com os clientes.
  15. Ora, tendo em conta a finalidade específica das atividades de investimento, se se verificar que a legislação nacional reconhece esse nexo direto entre os dividendos recebidos pelas sociedades residentes e a alteração do nível das obrigações para com os clientes dessas sociedades, o que cabe ao órgão jurisdicional de reenvio determinar, há que constatar que uma sociedade não residente se encontra numa situação objetivamente comparável à de uma sociedade residente relativamente aos dividendos de origem neerlandesa, uma vez que essa sociedade não residente prossegue a mesma atividade e que os dividendos que recebe implicam a alteração do nível das obrigações para com os clientes.

É o que se sucede no presente caso, em que se verifica um nexo de causalidade direto entre os dividendos recebidos de títulos afetos a seguros unit-linked e a alteração das suas obrigações com os tomadores dos mesmos, constatando-se assim que a Requerente se encontra numa situação objetivamente comparável à de uma seguradora residente relativamente aos dividendos de fonte portuguesa, uma vez que prossegue a mesma atividade e que os dividendos que recebe de ativos afetos ao mesmo tipo de carteiras de seguros implicam a alteração do nível das suas obrigações para com os clientes.

Refere, ainda, o TJUE:

  1. Além disso, embora a legislação nacional reconheça um nexo direto entre os dividendos recebidos pelas sociedades residentes e a alteração do nível das obrigações para com os clientes dessas sociedades, suscetível de ser deduzido da matéria coletável do imposto sobre as sociedades, cabe ao órgão jurisdicional de reenvio examinar se esse mecanismo não tem por objetivo uma isenção pura e simples da tributação dos dividendos distribuídos às sociedades residentes que celebram contratos em unidades de conta (v., neste sentido, Acórdão de 8 de novembro de 2012, Comissão/Finlândia,C‑342/10, EU:C:2012:688, n.° 42).
  2. A este respeito, importa recordar que, segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, a partir do momento em que um Estado sujeita, de modo unilateral ou por via convencional, a imposto sobre os rendimentos não só os contribuintes residentes, mas também os não residentes, relativamente aos dividendos que recebam de uma sociedade residente, a situação dos referidos contribuintes não residentes assemelha‑se à situação dos contribuintes residentes (Acórdãos de 17 de setembro de 2015,Miljoen e o., C‑10/14, C‑14/14 e C‑17/14, EU:C:2015:608, n.° 67, e de 13 de novembro de 2019,College Pension Plan of British Columbia, C‑641/17, EU:C:2019:960, n.° 66 e jurisprudência referida).
  3. Com efeito, é o mero exercício, por esse mesmo Estado‑Membro, da sua competência fiscal que, independentemente de qualquer tributação noutro Estado‑Membro, cria um risco de tributação em cadeia ou de dupla tributação económica. Nesses casos, para que os contribuintes beneficiários não residentes não sejam confrontados com uma restrição à livre circulação de capitais, proibida, em princípio, pelo artigo 63.°, n.° 1, TFUE, o Estado‑Membro de residência da sociedade distribuidora deve certificar‑se de que, em relação ao mecanismo previsto no seu direito nacional para evitar ou atenuar a tributação em cadeia ou a dupla tributação económica, os contribuintes não residentes sejam submetidos a um tratamento equivalente àquele de que beneficiam os contribuintes residentes (Acórdão de 17 de setembro de 2015, Miljoen e o., C‑10/14, C‑14/14 e C‑17/14, EU:C:2015:608, n.° 68 e jurisprudência referida).

Atendendo aos elementos precedentes, há que concluir que, no caso presente, a diferença de tratamento entre seguradoras residentes e não residentes sem estabelecimento estável em Portugal diz respeito a situações objetivamente comparáveis, verificando-se que a legislação nacional não oferece às seguradoras não residentes um tratamento equivalente ao conferido às seguradoras residentes para atenuar a tributação por retenção na fonte sobre os dividendos de títulos afetos a seguros unit linked.

Face à conclusão deste Tribunal Arbitral, de que a Requerente se encontra numa posição objetivamente comparável à das seguradoras residentes, resta examinar se a diferença de tratamento verificada é suscetível, ou não, de ser justificada por razões imperiosas de interesse geral.

Quanto à existência de uma razão imperiosa de interesse geral

Sobre esta questão, refere o TJUE:

  1. A título preliminar, importa salientar que essas razões não foram evocadas no pedido de decisão prejudicial nem pelo Governo Neerlandês. Nestas circunstâncias, compete ao órgão jurisdicional de reenvio, se for o caso, examinar uma eventual justificação à luz dos objetivos prosseguidos pela legislação nacional em causa no processo principal.
  2. No entanto, nas suas observações escritas, o Governo Alemão considera que, no caso em apreço, uma eventual restrição à livre circulação de capitais é justificada pela necessidade de preservar tanto a repartição dos poderes de tributação entre os Estados‑Membros como a coerência do sistema fiscal nacional. Para dar uma resposta útil que permita ao órgão jurisdicional de reenvio decidir o litígio que lhe foi submetido, importa examinar se essas razões imperiosas de interesse geral podem justificar tal restrição.
  3. O Governo Alemão sustenta, por um lado, que a não dedutibilidade dos encargos relativos ao aumento das obrigações de pagamento resultantes de contratos de investimento de cotações de seguro serviria para preservar a repartição dos poderes de tributação acordada entre os Estados, uma vez que se poderia pressupor que a XX pode deduzir, no seu Estado de residência, os encargos fiscais ligados ao aumento das obrigações para com os seus clientes em razão do nexo com a atividade de investimento de cotações de seguro por conta de entidades gestoras de seguros de pensões, e as remunerações que daí decorrem. Ora, uma dedução suplementar na tributação dos rendimentos de dividendos nos Países Baixos implicaria, por conseguinte, um duplo benefício fiscal, contrário à repartição dos poderes de tributação operada.
  4. Por outro lado, existe uma correlação entre o benefício fiscal em causa e a compensação desse benefício através de uma cobrança fiscal determinada, que permite aceitar a justificação baseada na necessidade de preservar a coerência do sistema fiscal do Estado‑Membro em questão. Com efeito, as despesas fiscais da XX resultantes, se for caso disso, do aumento das obrigações para com os clientes estão diretamente ligadas às remunerações que recebeu pelo investimento de cotações de seguro e que não estão sujeitas a tributação nos Países Baixos. A exclusão da dedutibilidade de eventuais despesas ligadas a um aumento das obrigações para com os clientes, no âmbito da tributação dos dividendos recebidos pela XX, segue assim uma lógica simétrica e constitui a contrapartida da não tributação das remunerações resultantes do investimento de cotações de seguro.
  5. Em primeiro lugar, resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que a preservação da repartição equilibrada do poder de tributação entre os Estados‑Membros é uma das razões imperiosas de interesse geral suscetíveis de justificar uma restrição à liberdade de circulação de capitais, como uma medida nacional que se destina a prevenir comportamentos suscetíveis de comprometer o direito de um Estado‑Membro exercer a sua competência fiscal em relação às atividades realizadas no seu território (Acórdão de 16 de junho de 2022, ACC Silicones, C‑572/20, EU:C:2022:469, n.° 53 e jurisprudência referida).
  6. No entanto, esse motivo não pode justificar a tributação de sociedades não residentes beneficiárias de dividendos por um Estado‑Membro que optou por não tributar as sociedades residentes relativamente a esse tipo de rendimentos (Acórdão de 16 de junho de 2022, ACC Silicones, C‑572/20, EU:C:2022:469,n.° 54 e jurisprudência referida).
  7. No caso em apreço, embora o Reino dos Países Baixos tenha optado por exercer a sua competência fiscal relativamente a todos os dividendos recebidos tanto pelas sociedades residentes como pelas não residentes, esse Estado‑Membro também decidiu, como resulta dos autos de que dispõe o Tribunal de Justiça, neutralizar integralmente o encargo da retenção na fonte que incide sobre esses dividendos quando estes são pagos a sociedades residentes. Nestas condições, a preservação da repartição equilibrada do poder de tributação entre os Estados‑Membros não pode justificar a tributação das sociedades sediadas noutros Estados‑Membros relativamente a este tipo de rendimentos (v., neste sentido, Acórdão de 16 de junho de 2022, ACC Silicones, C‑572/20, EU:C:2022:469, n.° 55).
  8. Em segundo lugar, dado que, no âmbito do argumento relativo à repartição dos poderes de tributação entre os Estados‑Membros, o Governo Alemão invoca, na realidade, a vontade de prevenir a dupla dedução dos encargos, importa salientar que um Estado‑Membro tem o direito de verificar se os encargos sobre os dividendos, cuja dedução é assim solicitada, não podem ser considerados, noutro Estado‑Membro, como afetando outros rendimentos, como os rendimentos decorrentes da remuneração paga pelos clientes da sociedade pelos investimentos efetuados, e não sejam, a esse título, deduzidos dos referidos rendimentos no outro Estado‑Membro.
  9. Todavia, ao limitar‑se a evocar, sem mais explicações, a eventual existência de um risco de que, numa situação como a que está em causa no processo principal, os encargos sobre os dividendos possam ser, deduzidos uma segunda vez no Estado de residência da sociedade que deles é beneficiária, sem demonstrar em que medida a aplicação do disposto na Diretiva 77/799/CEE do Conselho, de 19 de dezembro de 1977, relativa à assistência mútua das autoridades competentes dos Estados‑Membros no domínio dos impostos diretos e dos impostos sobre os prémios de seguro (JO 1977, L 336, p. 15;EE 09 F1 p. 94), conforme alterada pela Diretiva 2004/106/CE do Conselho, de 16 de novembro de 2004 (JO 2004, L 359, p. 30), em vigor no período em causa no processo principal, não teria permitido evitar esse risco, o Governo Alemão não dá ao Tribunal a possibilidade de apreciar o alcance deste argumento (v., neste sentido, Acórdãos de 24 de fevereiro de 2015, Grünewald, C‑559/13,EU:C:2015:109, n.° 52, e de 13 de julho de 2016, Brisal e KBC Finance Ireland, C‑18/15,EU:C:2016:549, n.° 38).
  10. Em terceiro lugar, no que se refere ao argumento relativo à necessidade de preservar a coerência do sistema fiscal do Reino dos Países Baixos, há que observar que este se baseia na premissa de que os encargos relativos ao aumento das obrigações para com os clientes não têm um nexo direto com atividade que gerou rendimentos tributáveis, sob a forma de dividendos, nesse Estado‑Membro, mas dizem respeito à remuneração recebida pela sociedade beneficiária dos dividendos, por parte dos seus clientes, pelos investimentos que efetuou para eles. Ora, no caso de uma sociedade não residente, como a XX, essa remuneração não é tributável nos Países Baixos.
  11. Todavia, como resulta do n.° 59 do presente acórdão, uma sociedade não residente só se encontra numa situação comparável à de uma sociedade residente quanto à tomada em consideração dos encargos relativos ao aumento das obrigações para com os clientes se o sistema fiscal do Estado‑Membro de residência da sociedade que distribui esses dividendos reconhecer um nexo direto entre os referidos dividendos e os referidos encargos. Ora, o Reino dos Países Baixos dispõe do poder de tributar os dividendos de origem neerlandesa distribuídos tanto às sociedades residentes como não residentes.
  12. A necessidade de preservar a repartição do poder de tributação entre os Estados‑Membros, de prevenir a dupla tomada em consideração dos encargos e de preservar a coerência do sistema fiscal nacional não pode, por conseguinte, ser invocada para justificar a restrição à livre circulação de capitais em causa no processo principal.

À luz destas considerações, temos ser de rejeitar que o tratamento discriminatório em análise se encontre justificado por razões imperiosas de interesse geral, como sejam, a salvaguarda da repartição do poder tributário entre os Estados-Membros, a prevenção da (dupla) não tributação, a eficácia da cobrança e, ainda, a salvaguarda da coerência do sistema fiscal português.

 

 

Quanto à questão da eventual neutralização

A Requerida alega que a Requerente nada diz sobre a possibilidade de os investidores terem direito a deduzir no Reino Unido o imposto retido em Portugal, nem sobre a aplicação de eventuais regimes de transparência fiscal (ou similar), naquele país que lhes possam permitir a dedução da retenção na fonte paga em Portugal ao imposto apurado sobre os seus ganhos. Note-se, a este propósito, que Requerente afirma, no PPA, o seguinte: “Ademais, as mencionadas retenções na fonte não geraram qualquer crédito de imposto na esfera dos tomadores dos seguros, inexistindo, aliás, qualquer mecanismo suscetível de transferir o encargo para estes últimos.”

A questão da neutralização do tratamento discriminatório no Estado da Fonte (in casu, Portugal) através da atribuição de uma vantagem no Estado da Residência (in casu, Reino Unido) levanta-se quando as partes discutem se as retenções na fonte relativas aos dividendos de fonte portuguesa percecionados pela Requerente deram lugar a um crédito de imposto, parcial ou total, no Estado de Residência (Reino Unido).

Esta questão tem sido discutida em vários Acórdãos do TJUE relativamente à tributação de dividendos pelo Estado da Fonte e, essencialmente, consiste em saber se o Estado da Fonte pode manter uma retenção na fonte sobre dividendos aparentemente discriminatória e não eliminar a dupla tributação económica nacional se a tributação do detentor das participações sociais pelo Estado de Residência for “neutralizada” através de um crédito de imposto atribuído por uma CEDT.

Note-se que o TJUE tem sido consistente em rejeitar a neutralização do tratamento discriminatório no Estado da Fonte através da atribuição unilateral de uma vantagem no Estado da Residência (i.e., uma vantagem conferida pela legislação nacional do Estado da Residência, por oposição a uma vantagem conferida ao abrigo de uma CEDT), rejeitando, assim, a noção de que o tratamento discriminatório no Estado da Fonte depende de uma análise integrada da situação global do contribuinte, ou seja, de uma análise que combine a tributação resultante da legislação nacional do Estado da Fonte e do Estado da Residência. Este entendimento radica no princípio de que os Estados-Membros não podem exercer a sua soberania fiscal de forma a introduzir uma discriminação contrária às regras do Direito da União Europeia.

Todavia, o TJUE tem vindo a reiterar que, para aferir o tratamento discriminatório no Estado da Fonte, é necessário analisar a situação do contribuinte à luz não só da legislação nacional do Estado da Fonte mas também da CEDT celebrada entre o Estado da Fonte e o Estado da Residência, dado que os preceitos da dita CEDT integram o sistema fiscal do Estado da Fonte, e devem ser considerados para determinar se o Estado da Fonte exerceu a sua soberania fiscal de forma conforme às regras do Direito da União Europeia.

Neste sentido, pode ler-se no Acórdão do TJUE de 7 de outubro de 2005, processo C-379/05 (Amurta v. Inspecteur van de Belastingdienst):

“78. Deste modo, o Reino dos Países Baixos não pode invocar a existência de um benefício concedido unilateralmente por outro Estado‑Membro, a fim de se eximir às obrigações que lhe incumbem por força do Tratado.

79. Em contrapartida, não se pode excluir que um Estado‑Membro consiga garantir o cumprimento das suas obrigações resultantes do Tratado, celebrando uma convenção destinada a evitar a dupla tributação com outro Estado‑Membro (v., neste sentido, acórdão Test Claimants in Class IV of the ACT Group Litigation, já referido, n.° 71).

80. Na medida em que o regime fiscal resultante de uma convenção destinada a evitar a dupla tributação faz parte do quadro jurídico aplicável ao processo principal e que foi apresentado como tal pelo órgão jurisdicional de reenvio, o Tribunal de Justiça deve tomá‑lo em consideração a fim de dar uma interpretação do direito comunitário que seja útil ao juiz nacional (v., neste sentido, acórdão de 19 de Janeiro de 2006, Bouanich, C‑265/04, Colect., p. I‑923, n.° 51; e acórdãos, já referidos, Test Claimants in Class IV of the ACT Group Litigation, n.° 71, Denkavit Internationaal e Denkavit France, n.° 45, assim como Test Claimants in the Thin Cap Group Litigation, n.° 54).

(…)

83. Assim, compete ao órgão jurisdicional nacional determinar se há que tomar em consideração a CDT no litígio no processo principal e, sendo caso disso, verificar se esta convenção permite neutralizar os efeitos da restrição à livre circulação de capitais salientada no n.° 28 do presente acórdão, no âmbito da resposta à primeira questão

84. Há assim que responder à segunda questão que um Estado‑Membro não pode invocar a existência de um crédito integral de imposto, concedido unilateralmente por outro Estado‑Membro a uma sociedade beneficiária estabelecida neste último Estado‑Membro, a fim de se eximir à obrigação de evitar a dupla tributação económica dos dividendos resultantes do exercício do seu poder de tributação, numa situação em que o primeiro Estado‑Membro evita a dupla tributação económica dos dividendos distribuídos às sociedades beneficiárias estabelecidas no seu território. Quando um Estado‑Membro invoca uma convenção celebrada com outro Estado‑Membro, destinada a evitar a dupla tributação, cabe ao órgão jurisdicional nacional determinar se há que tomar em consideração essa convenção no litígio no processo principal e, sendo caso disso, verificar se esta convenção permite neutralizar os efeitos da restrição à livre circulação de capitais”. (sublinhado nosso)

A questão da neutralização do tratamento discriminatório no Estado da Fonte através da atribuição de uma vantagem no Estado da Residência ao abrigo de uma CDT foi também especificamente discutida no Acórdão do TJUE de 14 de dezembro de 2006, processo C‑170/05 (Denkavit Internationaal BV v. Ministre de l’Économie):

“42     Com as suas segunda e terceira questões, que importa examinar conjuntamente, o órgão jurisdicional de reenvio pretende, no essencial, saber se a resposta à primeira questão pode ser diferente por, ao abrigo da convenção franco‑neerlandesa, a sociedade‑mãe residente nos Países Baixos poder, em princípio, imputar no imposto por si devido neste Estado o imposto cobrado em França e, portanto, a retenção na fonte provir simplesmente da repartição das competências fiscais entre os referidos Estados‑Membros, a qual não pode ser criticada à luz dos artigos 43.° CE e 48.° CE, mesmo que a sociedade‑mãe residente nos Países Baixos esteja impossibilitada de proceder à imputação prevista pela referida convenção.

43     A este respeito, há que começar por recordar que, na falta de medidas de harmonização comunitária ou de convenções celebradas entre todos os Estados‑Membros nos termos do artigo 293.°, segundo travessão, CE, os Estados‑Membros continuam a ser competentes para determinar os critérios de tributação dos rendimentos, com vista a eliminar, eventualmente por via convencional, a dupla tributação. Neste contexto, os Estados‑Membros são livres de fixar, no âmbito de convenções bilaterais celebradas para prevenir a dupla tributação, os factores de conexão para efeitos da repartição da competência fiscal (v., neste sentido, acórdãos Saint-Gobain ZN, já referido, n.° 57, e de 19 de Janeiro de 2006, Bouanich, C‑265/04, Colect., p. I‑923, n.° 49).

44     Porém, há também que referir que, no que toca ao exercício do poder tributário assim repartido, os Estados-Membros não podem eximir-se ao respeito das regras comunitárias, tendo em conta o princípio recordado no n.° 19 do presente acórdão (acórdão Saint-Gobain ZN, já referido, n.° 58). Mais especificamente, esta repartição da competência fiscal não permite que os Estados‑Membros introduzam uma discriminação contrária às regras comunitárias (acórdão Bouanich, já referido, n.° 50).

45     No caso em apreço, uma vez que o regime fiscal resultante da convenção franco‑neerlandesa faz parte do quadro jurídico aplicável ao processo principal e que foi apresentado como tal pelo órgão jurisdicional de reenvio, o Tribunal de Justiça deve tê‑lo em consideração, de modo a dar uma interpretação do direito comunitário que seja útil ao órgão jurisdicional nacional (v., neste sentido, acórdãos de 7 de Setembro de 2004, Manninen, C‑319/02, Colect., p. I‑7477, n.° 21, Bouanich, já referido, n.° 51, e Test Claimants in Class IV of the ACT Group Litigation, já referido, n.° 71).

46     No que respeita ao tratamento fiscal resultante da convenção franco‑neerlandesa, há que recordar que uma sociedade não residente, como a Denkavit Internationaal, está em princípio autorizada, ao abrigo desta convenção, a imputar no imposto por si devido nos Países Baixos a retenção na fonte de 5% cobrada sobre os dividendos de origem francesa. Esta imputação não pode, todavia, exceder o montante do imposto neerlandês normalmente devido sobre estes dividendos. Ora, é pacífico que as sociedades‑mãe neerlandesas estão isentas pelo Reino dos Países Baixos do imposto sobre os dividendos de origem estrangeira, e portanto de origem francesa, pelo que não é concedida qualquer redução pela retenção na fonte francesa.

47     Assim, há que concluir que a aplicação conjugada da convenção franco‑neerlandesa e da legislação neerlandesa pertinente não permite neutralizar os efeitos da restrição à liberdade de estabelecimento referida no quadro da resposta à primeira questão.

48     Com efeito, em aplicação da convenção franco-neerlandesa e da legislação neerlandesa pertinente, uma sociedade-mãe estabelecida nos Países Baixos, que recebe dividendos de uma filial estabelecida em França, está sujeita a tributação através de retenção na fonte, limitada, é certo, pela referida convenção, a 5% do montante dos dividendos em questão, ao passo que uma sociedade-mãe estabelecida em França, como foi referido no n.° 4 do presente acórdão, está quase totalmente isenta dessa tributação.

49     Seja qual for a sua amplitude, a diferença de tratamento fiscal que resulta da aplicação desta convenção e desta legislação constitui uma discriminação em detrimento das sociedades‑mãe, em razão da localização da respectiva sede, incompatível com a liberdade de estabelecimento garantida pelo Tratado.

50     Com efeito, mesmo uma restrição à liberdade de estabelecimento, com pequeno impacto ou de menor importância, é proibida pelo artigo 43.° CE (v., neste sentido, acórdãos Comissão/França, já referido, n.° 21; de 15 de Fevereiro de 2000, Comissão/França, C‑34/98, Colect., p. I‑995, n.° 49; e de 11 de Março de 2004, De Lasteyrie du Saillant, C‑9/02, Colect., p. I‑2409, n.° 43).

51     A este respeito, o Governo francês alega que, segundo os princípios consagrados pelo direito fiscal internacional e como também decorre da convenção franco‑neerlandesa, é ao Estado de residência do contribuinte, e não ao da fonte dos rendimentos tributados, que incumbe corrigir os efeitos de uma dupla tributação.

52     Esta argumentação não pode ser acolhida, dado que não é pertinente no presente contexto.

53     Com efeito, a República Francesa não pode invocar a convenção franco‑neerlandesa, a fim de escapar às obrigações que lhe incumbem por força do Tratado (v., neste sentido, acórdão de 28 de Janeiro de 1986, Comissão/França, já referido, n.° 26).

54     Ora, a aplicação conjugada da convenção franco-neerlandesa e da legislação neerlandesa pertinente não permite evitar a tributação em cadeia a que está sujeita, diversamente de uma sociedade‑mãe residente, uma sociedade‑mãe não residente, nem, portanto, neutralizar os efeitos da restrição à liberdade de estabelecimento salientada no quadro da resposta à primeira questão submetida, como se concluiu nos n.os  46 a 48 do presente acórdão.

55     Com efeito, enquanto as sociedades‑mãe residentes beneficiam de um regime fiscal que lhes permite evitar uma tributação em cadeia, como foi recordado no n.° 37 do presente acórdão, as sociedades‑mãe não residentes estão, pelo contrário, sujeitas a este tipo de tributação dos dividendos distribuídos pelas suas filiais estabelecidas em França.” (sublinhado nosso)

Não obstante alguma inconsistência na aplicação do conceito de neutralização que se discute,[3] vários Acórdãos demonstram que o TJUE tem decidido, de forma consistente, que as CEDTs devem ser consideradas para determinar a existência de um tratamento discriminatório: Acórdão do TJUE de 19 de novembro 2009, processo C-540/07 (Commission v. Italy), Acórdão do TJUE de 3 de junho 2010, processo C-487/08 (Commission v. Spain), Acórdão do TJUE de 17 de setembro de 2015, processos C-10/14, C-14/14 and C-17/14 (Miljoen).

Ora, no caso sub judice, é claro e evidente que a aplicação da CEDT entre Portugal e o Reino Unido, nos termos da qual parte dos dividendos auferidos pela Requerente foi sujeita a uma taxa de retenção na fonte reduzida, não resultou na neutralização da diferença de tratamento, resultante da legislação nacional portuguesa, entre os dividendos auferidos por seguradores com residência fiscal em Portugal e os dividendos auferidos pela Requerente.

Conclui-se, assim, que a legislação portuguesa infringe a liberdade de circulação de capitais consagrada no artigo 63.º do TFUE ao tributar, por retenção na fonte a título liberatório e pelo seu montante ilíquido, os dividendos distribuídos por uma sociedade residente para efeitos fiscais em território português a uma sociedade não residente nesse território, que investiu em ações da primeira sociedade para cobrir obrigações de pagamento no futuro a tomadores de seguros unit-linked, ao passo que as sociedades residentes em idêntica situação têm direito a deduzir os gastos originados pelo aumento das suas obrigações de pagamento no futuro aos tomadores desses seguros e a um crédito de imposto pelas retenções sofridas.

Por último, cumpre referir que, como salienta a Decisão proferida no processo arbitral n.º 131/2021-T, é corolário da obrigatoriedade de reenvio prejudicial prevista no artigo 267.º TFUE que a jurisprudência do Tribunal de Justiça “tem carácter vinculativo para os Tribunais nacionais, quando tem por objecto questões de Direito da União Europeia (neste sentido, podem ver-se os seguintes Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo: de 25-10-2000, processo n.º 25128, publicado em Apêndice ao Diário da República de 31-1-2003, p. 3757; de 7-11-2001, processo n.º 26432, publicado em Apêndice ao Diário da República de 13-10-2003, p. 2602; de 7-11- 2001, processo n.º 26404, publicado em Apêndice ao Diário da República de 13-10-2003, p. 2593). A supremacia do Direito da União sobre o Direito Nacional tem suporte no n.º 4 do artigo 8.º da CRP, em que se estabelece que «as disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respectivas competências, aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático.

Em face de todo o exposto, julga-se procedente o pedido de declaração de ilegalidade e anulação, por erro de direito, das liquidações de IRC por retenção na fonte impugnadas, com a consequente restituição do imposto retido (cf. artigo 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e artigo 100.º da LGT, este ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT). Julga-se também procedente o pedido de declaração de ilegalidade e anulação da decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa apresentado pela Requerente em 20 de dezembro de 2023.

 

 

DOS JUROS INDEMNIZATÓRIOS

O regime do direito a juros indemnizatórios é regulado no artigo 43.º da LGT, que estabelece o seguinte:

“Artigo 43.º

Pagamento indevido da prestação tributária

1 – São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.

2 – Considera-se também haver erro imputável aos serviços nos casos em que, apesar da liquidação ser efectuada com base na declaração do contribuinte, este ter seguido, no seu preenchimento, as orientações genéricas da administração tributária, devidamente publicadas.

3. São também devidos juros indemnizatórios nas seguintes circunstâncias:

a) Quando não seja cumprido o prazo legal de restituição oficiosa dos tributos;

b) Em caso de anulação do acto tributário por iniciativa da administração tributária, a partir do 30.º dia posterior à decisão, sem que tenha sido processada a nota de crédito;

c) Quando a revisão do acto tributário por iniciativa do contribuinte se efectuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à administração tributária.

d) Em caso de decisão judicial transitada em julgado que declare ou julgue a inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma legislativa ou regulamentar em que se fundou a liquidação da prestação tributária e que determine a respetiva devolução.

4. A taxa dos juros indemnizatórios é igual à taxa dos juros compensatórios.

5. No período que decorre entre a data do termo do prazo de execução espontânea de decisão judicial transitada em julgado e a data da emissão da nota de crédito, relativamente ao imposto que deveria ter sido restituído por decisão judicial transitada em julgado, são devidos juros de mora a uma taxa equivalente ao dobro da taxa dos juros de mora definida na lei geral para as dívidas ao Estado e outras entidades públicas”.

No caso em apreço, não tendo o pedido de revisão oficiosa sido apresentado no prazo da reclamação graciosa (2 anos a contar da data do pagamento, nos termos do n.º 3 do artigo 137.º do CIRC), não se está perante uma situação enquadrável na 1.ª parte do n.º 1 do artigo 78.º da LGT, em que o pedido de revisão oficiosa é equiparável à reclamação graciosa. Consequentemente, não há direito a juros indemnizatórios com base nos n.ºs 1 e 2 do artigo 43.º da LGT, que pressupõem a existência de reclamação graciosa ou impugnação judicial tempestiva.

Assim, a norma à face da qual tem de ser aferida a existência de direito a juros indemnizatórios é a alínea c) deste n.º 3 do artigo 43.º da LGT, que estabelece que eles são devidos “quando a revisão do ato tributário por iniciativa do contribuinte se efetuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à administração tributária”.

Nestes termos, a Requerente tem direito a juros indemnizatórios a partir de um ano a contar da data em que foi apresentado o pedido de revisão oficiosa, isto é, a partir de 21 de dezembro de 2024.

Os juros indemnizatórios são devidos, nos termos dos artigos 43.º, n.ºs 1 e 4, e 35.º, n.º 10, da LGT, 61.º, n.º 5, do CPPT, 559.º do Código Civil e Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril, à taxa legal supletiva, contados desde 21 de dezembro de 2024, até à data do processamento da respetiva nota de crédito. 

DECISÃO

De harmonia com o supra exposto, acordam os árbitros deste Tribunal Arbitral em julgar improcedentes as exceções suscitadas pela AT Requerida, e procedente o PPA e, em consequência:

  1. Declarar ilegais e anular as liquidações de IRC por retenção na fonte impugnadas, referentes ao período compreendido entre 9 de janeiro de 2020 e 16 de setembro de 2021, no valor de € 1.430.123,27, declarando-se ilegal e anulando-se também a decisão de indeferimento tácito do pedido de revisão apresentado pela Requerente em 20 de dezembro de 2023;
  2. Condenar a AT a restituir as importâncias indevidamente retidas na fonte a título de IRC, no montante total de € 1.430.123,27;
  3. Condenar a AT ao pagamento de juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.º, n.º 3, alínea c), da LGT;
  4. Condenar a AT nas custas do processo, em razão do decaimento.

 

VALOR DO PROCESSO

Fixa-se ao processo o valor de € 1.430.123,27, indicado pela Requerente, respeitante ao montante das retenções na fonte de IRC cuja anulação pretende (valor da utilidade económica do pedido), e não impugnado pela Requerida, de harmonia com o disposto nos artigos 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”), 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT, e 306.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, este último ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

CUSTAS

Custas no montante de € 19.278,00, a suportar integralmente pela Requerida, por decaimento, em conformidade com a Tabela I anexa ao RCPAT e com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT, e 4.º do RCPAT.

***

Notifiquem-se as partes e, bem assim, o Ministério Público para efeitos do disposto no artigo 280.º, n.º 3, da CRP, e no artigo 72.º, n.º 1, alínea a), e n.º 3 da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei Orgânica do Tribunal Constitucional).

 

 

 

CAAD, 10 de março de 2025

 

O Tribunal Arbitral,

 

 

Rita Correia da Cunha
(Árbitro Presidente)

 

 

José Manuel Parada Ramos
(Árbitro Adjunto e Relator)

 

 

Luís R.F. Sequeira

(Árbitro Adjunto)

 

 

 

 



[1] Cf. Acórdão do TCAS no processo n.º 09791/16, de 24-11-2016, disponível em: http://www.dgsi.pt/jtca.nsf/-/793B69217A0240DA80258075005C30D9.

 

[3] Veja-se a análise contida no artigo do Professor Georg Kofler, Tax Treaty “Neutralization” of Source State Discrimination under the EU Fundamental Freedoms?, Bulletin for International Taxation (December 2011), pp. 684 et seq.