Decisão Arbitral
Os árbitros Cons. Jorge Lopes de Sousa (árbitro-presidente), Dr. António Cipriano da Silva e Prof.ª Doutora Sónia Martins Reis (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 08-01-2025, acordam no seguinte:
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Relatório
A..., S.A., com sede em ..., n.º ..., ...-... Lisboa, titular do Número Único de Identificação de Pessoa Coletiva e de matrícula na Conservatória de Registo Comercial ... (doravante designada por “Requerente”), apresentou pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante “RJAT”), tendo em vista a anulação da autoliquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“IRC”) plasmada na declaração periódica de rendimentos Modelo 22 de IRC (“declaração Modelo 22”) n.º..., referente ao exercício de 2020, da qual resultou o montante total a pagar de 12.111.084,56 EUR, e, bem como a anulação da decisão final de indeferimento do pedido de revisão oficiosa n.º ...2024... que daquela autoliquidação apresentou.
A Requerente pede ainda reembolso do imposto que pagou, com juros indemnizatórios.
É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante também identificada por “AT” ou simplesmente “Administração Tributária”).
O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 04 de novembro de 2024.
Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral coletivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
Em 31-10-2024, foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral coletivo foi constituído em 08-01-2025.
A Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou resposta, em que defendeu a improcedência do pedido de pronúncia arbitral.
Por despacho deste Tribunal, de 13-02-2025, não tendo sido requerida produção de prova testemunhal, foi dispensada a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT. Acresce que estando as questões suficientemente debatidas nas peças processuais apresentadas pelas Partes, em sintonia com o previsto no artigo 113.º do CPPT, subsidiariamente aplicável, por força do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT, foram dispensadas as Partes de apresentarem alegações.
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Saneamento
O Tribunal foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a) e 11.º, n.º 1, todos do RJAT.
As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
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Fundamentação
1. Dos factos
Com relevo para a decisão, importa atender aos seguintes factos que se consideram provados:
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A Requerente é uma sociedade comercial anónima que exerce, a título principal, a atividade seguradora e resseguradora, de todos os ramos e operações, com exceção dos seguros de crédito com garantia do Estado, podendo ainda exercer atividades conexas ou complementares das de seguro ou resseguro.
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A Requerente prossegue a sua atividade comercial através de instalações físicas (estabelecimentos estáveis) localizadas por todo o território nacional (quer continental, quer insular), dispondo de uma «rede de distribuição (…) dividida em 21 zonas comerciais (19 no continente, Açores e Madeira), que são suportadas por escritórios locais e por um total de 688 pontos físicos de venda que se distribuem geograficamente por todo o território continental e regiões autónomas. Por tipologia, a rede física é composta por 13 lojas próprias (em Lisboa, Porto e 11 lojas nos Açores) e por 675 lojas de Parceiros com imagem da B... ou C... (nos Açores), dos quais 262 são exclusivos» – cfr. cópia do Relatório & Contas de 2020, junta como Documento n.º 3 (p. 39).
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Essas instalações físicas são comummente conhecidas pelas lojas sob o desígnio da marca B... .
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No exercício de 2020, em cumprimento das suas obrigações tributárias, a Requerente procedeu à entrega da sua declaração Modelo 22 – à qual foi atribuído o n.º ...-...-... –, tendo declarado, no campo 373 do quadro 10 daquela declaração, o montante de 2.965.480,10 EUR, a título de derrama estadual (cfr. Documento n.º 1).
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A 14 de julho de 2021, a Requerente procedeu ao pagamento da totalidade do imposto autoliquidado, no montante de 12.111.084,56 EUR (cfr. Documento n.º 4).
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A 3 de junho de 2024, a Requerente apresentou pedido de revisão oficiosa, em sede do qual peticionou a anulação (parcial) daquele ato tributário, na parte referente à derrama estadual (cfr. Documento n.º 5).
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A 28 de junho de 2024, a Requerente foi notificada do projeto de indeferimento do pedido de revisão oficiosa (cfr. Doc. n.º 6).
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Em sede do referido projeto, a Autoridade Tributária sustentou o seguinte:
«[A] questão que se coloca nos presentes autos é a seguinte: o sujeito passivo sedeado no Continente e titular de instalações nas Regiões Autónomas está sujeito a derrama regional referência à proporção do lucro tributável imputável a cada uma das referidas circunscrições territoriais?
Esta questão decorre do entendimento expresso pela Requerente no sentido de que a proporção do lucro tributável gerado por instalações de sociedades do grupo situados nas Regiões Autónomas deveria estar sujeita à Derrama Regional e não à Derrama Estadual. (…)
O poder de adaptação regional do sistema fiscal nacional tem, no entanto, limites, quer de ordem interna, atento o valor superior das normas fiscais nacionais, quer de ordem comunitária, designadamente o regime comunitário das ajudas de Estado.
Com efeito, as regiões não poderão exercer o seu direito tributário próprio legislando contra as leis gerais de tributação, seja revogando-as, seja introduzindo-lhes alterações, nos seus elementos essenciais.
(…)
Ora, no âmbito da possibilidade de adaptação dos impostos nacionais à condição especial das Regiões Autónomas, a RAM aprovou a denominada derrama regional através do Decreto Legislativo Regional n.º 14/2010/M, de 5 de agosto (…).
Por sua vez, o n.º 1 do artigo 2.º, do Decreto Legislativo Regional n.º 21/2016/A (…) define a incidência deste da derrama regional dos Açores (…).
Estamos, portanto, perante a referida adaptação do sistema fiscal nacional às especificidades regionais, que permite a residentes ou não residentes que possuam um estabelecimento estável nas Regiões Autónomas a aplicação de taxas de derrama reduzidas.
(…)
Como vimos, a Requerente defende que a proporção do lucro tributável gerado nas Regiões Autónomas deveria estar sujeita à Derrama Regional e não à Derrama Estadual.
É notório que na base deste entendimento reside uma clara confusão entre dois planos completamente distintos, o plano da incidência do imposto e o plano do apuramento das receitas fiscais pertencentes às Regiões Autónomas.
A incidência da derrama estadual encontra-se prevista no artigo 87.º-A do CIRC, sendo nesta norma que se encontram previstos os pressupostos de cuja conjugação resulta o nascimento da obrigação de imposto, assim como os elementos da mesma obrigação.
(…)
Já no que toca às derramas regionais, estas apenas se aplicam a:
a) Residentes nas Regiões Autónomas;
b) Não residentes com estabelecimento estável nas Regiões Autónomas.
Ora, conformese referiu anteriormente, a Requerente tem a sua sede e residência fiscal em Portugal Continental e exerce a sua atividade sujeita a tributação em IRC, de acordo com as regras de determinação do lucro tributável expressas nos artigos 17.º e seguintes do CIRC.
Verifica-se, deste modo, que o requisito de incidência subjetiva previsto n.º 1 do artigo 87.º-A, do CIRC, se encontra preenchido, estando a Requerente, obrigada a liquidar derrama estadual nos termos e às taxas ali previstas.
De maneira que, no caso dos autos, se a Requerente, no exercício de 2020, apurou lucro tributável superior a € 1.500.000,00, encontra-se sujeita a derrama estadual por aplicação das disposições constantes no artigo 87.º-A do Código do IRC, e não às taxas previstas pelos Decretos Legislativos Regionais que estabeleceram as derramas regionais.
(…)
Face ao exposto, não se pode concordar com a Requerente quando afirma ter liquidado derrama estadual sobre a totalidade do lucro tributável em face das limitações inerentes ao sistema informático da AT e ao próprio modelo oficial da declaração Modelo 22, daí resultando um valor de imposto excessivo por se encontrar influenciado por rendimentos obtidos nas Regiões Autónomas.
De facto, não há, pelas razões evidenciadas, qualquer erro praticado pela Requerentes na liquidação da derrama estadual, tendo-se limitado a seguir o regime legal que a molda e que se encontra explícito na arquitetura e nos conteúdos da declaração periódica de rendimentos, o que afasta o alegado pressuposto de erro imputável aos serviços.
(…)
Adicionalmente, a Requerente aponta alega ainda que o artigo 87.º-A, do CIRC é materialmente inconstitucional por violação da autonomia legislativa e financeiras das Regiões Autónomas previsto no artigo 227.º, n.º 1, alínea i), da CRP; que a não aplicação da derrama regional ao lucro tributável gerados nestas Regiões encerra uma violação do princípio constitucional da igualdade previsto no artigo 13.º; e uma violação da liberdade de estabelecimento prevista no artigo 49.º, do TFUE.
Cumpre desde logo salientar que a apreciação da constitucionalidade das normas, bem como a sua conformidade com o Direito Europeu, não faz parte do elenco de competências da Autoridade Tributária.
(…) Com efeito, a subordinação da AT à CRP significa, desde logo, o dever geral de conformação da atividade administrativa, quer tenha ou não conteúdo normativo, pelas normas constitucionais, procurando conferir a máxima efetividade possível aos direitos fundamentais, significando isto, assim, em especial, nomeadamente, que são nulos e não anuláveis todos os atos administrativos ofensivos do conteúdo essencial dos direitos, liberdades e garantias.
(…)
Face ao exposto, não se apontando qualquer erro ou ilegalidade ao apuramento da derrama estadual, deve a autoliquidação processada pela Requerente para o período de tributação de 2020 ser mantida na ordem jurídica, improcedendo o pedido de revisão oficiosa (…)».
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Partindo destas premissas, a Autoridade Tributária concluiu:
«Em conformidade com o anteriormente exposto, somos de propor que o pedido formulado nos presentes autos seja indeferido (…), com todas as consequências legais».
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A 1 de agosto de 2024, a Requerente foi notificada da decisão final de indeferimento do pedido de revisão oficiosa, tendo a Autoridade Tributária convertido em definitivo o entendimento anteriormente projetado (cfr. Documento n.º 2).
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No dia 31-10-2024 deu entrada no CAAD ppa apresentado pelo Requerente - cf. registo de entrada no SGP do CAAD e pedido de pronúncia arbitral (“ppa”).
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No dia 04-11-2024, a Requerida foi notificada da apresentação do pedido de pronúncia arbitral – cf. registo de entrada no SGP do CAAD.
2. Factos Não Provados
Não existem outros factos com relevo para a decisão da causa que não se tenham provado.
Os factos foram dados como provados com base nos documentos juntos com o pedido de pronúncia arbitral e os que constam do processo administrativo.
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Motivação da Decisão da Matéria de Facto
Quanto aos factos essenciais a matéria assente encontra-se conformada de forma idêntica por ambas as partes e a convicção do Tribunal formou-se com base nos elementos documentais juntos ao processo e acima discriminados cuja autenticidade e veracidade não foi questionada por nenhuma das partes.
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Matéria de direito
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Questão que é objeto do processo e posição das partes
A Requerente é uma sociedade que prossegue a sua atividade comercial através de instalações físicas (estabelecimentos estáveis) localizadas por todo o território nacional (quer continental, quer insular), dispondo de uma «rede de distribuição (…) dividida em 21 zonas comerciais (19 no continente, Açores e Madeira), que são suportadas por escritórios locais e por um total de 688 pontos físicos de venda que se distribuem geograficamente por todo o território continental e regiões autónomas.
No exercício de 2020, em cumprimento das suas obrigações tributárias, a Requerente autoliquidou o montante de 2.965.480,10 EUR em sede da Declaração Modelo 22, a título de derrama estadual. Em 3 de junho de 2024, a Requerente apresentou um pedido de revisão oficiosa, em sede do qual peticionou a anulação (parcial) daquele ato tributário, na parte referente à derrama estadual.
A Requerente considera que enferma o regime da derrama estadual previsto no artigo 87.º A do Código do IRC de inconstitucionalidade material, com base nos seguintes fundamentos:
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Na errónea aplicação do artigo 87.º-A do CIRC, em dissonância com os artigos 4.º, n.º 1, do Decreto Legislativo Regional n.º 14/2010/M, de 5 de agosto, 26.º da Lei das Finanças das Regiões Autónomas, e 2.º, n.º 1, do Decreto Legislativo Regional n.º 21/2016/A, de 17 de outubro;
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Na violação da autonomia legislativa e financeira das Regiões Autónomas prevista nos artigos 227.º, n.º 1, alíneas i) e j), da Constituição da República Portuguesa (“CRP”) e, bem assim, dos Estatutos Político-Administrativos das Regiões Autónomas da Madeira e dos Açores;
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Na violação do artigo 26.º da Lei das Finanças das Regiões Autónomas, enquanto lei de valor reforçado, nos termos do artigo 112.º, n.º 3, da CRP;
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Na preterição do princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º da CRP; e
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Na preterição da liberdade de estabelecimento prevista no artigo 49.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (“TFUE”).
A Autoridade Tributária e Aduaneira, na decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa e no presente processo, defende, em suma, o seguinte:
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A questão decidenda prende-se com a aplicação do artigo 87.º-A do CIRC ao lucro tributável da Requerente uma vez que a Requerente entende que parte do seu lucro tributável é imputável às regiões autónomas dos Açores e da Madeira e, por conseguinte, não estará sujeito a derrama estadual, mas antes a derrama regional.
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As disposições legais aplicáveis quer à Região Autónoma da Madeira (RAM) quer à Região Autónoma dos Açores (RAA) relativamente às pessoas coletivas com sede em Portugal no território continental determinam que apenas beneficiam da redução da taxa de IRC, aquelas que possuam uma “representação permanente sem personalidade jurídica próprias” em mais de uma circunscrição, ou seja, em território da região autónoma e desde que, não integrem um Grupo de sociedades, tributado, por opção, pelo RETGS previsto no art.º 69.º do CIRC.
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Quanto à Derrama Regional na RAM, dispõe o n.º 1 e n.º 2 do artigo 4.º do DLR n.º 14/2010/M, de 5 de agosto, na redação dada pelo Decreto Legislativo Regional n.º 18/2020/M, de 31 de dezembro), que esta apenas se aplica aos sujeitos passivos residentes na RAM, bem como aos não residentes com estabelecimento estável na RAM;
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Do mesmo modo, n.º 1 do artigo 2.º do DLR n.º 21/2016/A, de 17 de outubro, estabelece que a Derrama Regional na RAA incide unicamente sobre os sujeitos passivos residentes na RAA, bem como aos não residentes com estabelecimento estável na RAA;
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Pelo que, não sendo a Requerente uma sociedade residente nas regiões autónomas, nem sendo uma sociedade não residente com estabelecimento estável em qualquer das regiões autónomas não lhe é aplicável a derrama regional.
Pelo que, a questão essencial a apreciar é a de saber se, em lugar das taxas de derrama estadual previstas no artigo 87.º A do Código do IRC, se deve proceder ao invés à aplicação das taxas reduzidas de derramas regionais aos rendimentos dos sujeitos passivos com sede no Continente, mas obtidos em estabelecimentos estáveis situados nas Regiões Autónomas de Açores e da Madeira.
O CAAD já se pronunciou sobre a matéria de direito do presente dissídio, nomeadamente nas decisões arbitrais de 8 de maio de 2024, processo n.º 1056/2023 e de 11 de março de 2024, processo n.º 805/2023. Assim, remetendo para a jurisprudência do CAAD a este respeito, é entendimento deste Tribunal que:
“Como decorre do artigo 227.º, n.º 1, alínea i), da CRP, as Regiões Autónomas podem «exercer poder tributário próprio, nos termos da lei, bem como adaptar o sistema fiscal nacional às especificidades regionais, nos termos de lei quadro da Assembleia da República».
O regime do exercício desse poder tributário próprio, inclusivamente a «adaptação do sistema fiscal nacional», consta da Lei das Finanças das Regiões Autónomas (LFRA), em que se estabelecem os princípios que devem ser observados (artigo 55.º), e se estabelece que «as Assembleias Legislativas das regiões autónomas podem ainda, nos termos da lei e tendo em conta a situação financeira e orçamental da região autónoma, diminuir as taxas nacionais do IRS, do IRC e do IVA, até ao limite de 30 % e dos impostos especiais de consumo, de acordo com a legislação em vigor».
No caso em apreço, o Decreto Legislativo Regional n.º 14/2010/M, de 5 de Agosto, e o n.º 21/2026-/A, de 17 de Outubro, são diplomas que, como neles expressamente se refere, fizeram a adaptação do regime da derrama estadual, previsto no artigo 87.º-A do CIRC, às especificidades regionais, traduzindo-se essencialmente em reduções de taxas aplicáveis a residentes ou não residentes titulares de estabelecimentos estáveis nas respectivas regiões autónomas. (…)
É inquestionável que as situações das Requerentes se enquadram no artigo 87.º-A do CIRC, que prevê o regime geral da derrama estadual, mas, obviamente, quando estão preenchidos os pressupostos da aplicação de regimes especiais, é afastada a aplicação do regime geral, o que é corolário da regra básica, que aflora no artigo 7.º, n.º 3, do Código Civil, de que os regimes especiais, nos seus específicos domínios de aplicação, prevalecem sobre os regimes gerais (lex specialis derogat legi general). A lei especial é a que se aplica a situações de facto abrangidas, todas elas, pela lei geral (sendo que esta abrange um leque mais amplo de situações de facto), consagrando um regime distinto
Está ínsito nesta possibilidade de adaptação do sistema fiscal nacional às especificidades regionais que, na medida em que for aplicado o regime específico adaptado, deixa de ser aplicado o regime previsto no sistema fiscal nacional, como, aliás, consta expressamente do artigo 5.º do Decreto Legislativo Regional n.º 21/2016/A.”
Do exposto resulta que a manutenção da aplicação do artigo 87.º A do Código do IRC à Requerente deve ser afastado quando sejam simultaneamente aplicáveis disposições especiais, o que só poderia ocorrer se a Requerente não pudesse beneficiar da regime da derrama regional na RAA e na RAM se aí não desenvolvesse a sua atividade através de estabelecimentos estáveis, o que manifestamente ocorre no caso em apreço, desenvolvendo a sua atividade em instalações que são enquadráveis no conceito de estabelecimento estável que se encontra previsto no artigo 5.º do Código do IRC.
Acresce que no que diz respeito à aplicação da derrama regional dos Açores e da Madeira, este Tribunal segue novamente a jurisprudência plasmada da decisão arbitral de 11 de março de 2024, processo n.º 805/2023-T, nos termos da qual “Relativamente à derrama regional da Madeira, incide sobre a parte do lucro tributável superior a (euro) 1 500 000 sujeito e não isento de imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas apurado por sujeitos passivos enquadrados no n.º 1 do artigo 26.º da Lei Orgânica n.º 2/2013, de 2 de Setembro, que exerçam, a título principal, uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola. O artigo 26.º, n.º 1, da referida Lei Orgânica n.º 2/2013 (Lei das Finanças das Regiões Autónomas – LFRA) refere na sua alínea b) as «pessoas coletivas ou equiparadas que tenham sede ou direção efetiva em território português e possuam sucursais, delegações, agências escritórios, instalações ou quaisquer formas de representação permanente sem personalidade jurídica própria em mais de uma circunscrição». «Circunscrição», é o território do continente ou de uma região autónoma, consoante o caso, como se refere na alínea b) do artigo 23.º da LFRA. (…)
No que concerne à derrama regional dos Açores, aplica-se, nos termos do artigo 2.º do Decreto Legislativo Regional n.º 21/2016/A, aos sujeitos passivos residentes na Região Autónoma dos Açores, bem como por sujeitos passivos não residentes com estabelecimento estável na Região Autónoma dos Açores, que exerçam, a título principal, uma actividade de natureza comercial, industrial ou agrícola.
As 2.ª e 3.ª Requerentes não eram residentes na Região Autónoma dos Açores, mas tinham nela instalações enquadráveis no conceito de estabelecimento estável, definido no artigo 5.º do CIRC.
Assim, a questão que se pode levantar, com pertinência, é a de saber se a referência a «sujeitos passivos não residentes» se reporta a não residentes em território nacional ou a não residentes no território da Região Autónoma dos Açores.
Como há muito vem decidindo o Supremo Tribunal Administrativo, a propósito da questão paralela que se coloca a nível das reduções de taxas de IRC nas regiões autónomas, a referência a «não residentes» reporta-se todos os sujeitos passivos que não residem na região autónoma, quer residam no estrangeiro quer em outra parte do território nacional: «o conceito de estabelecimento estável para efeito dessa redução de taxa abrange instalações, onde seja exercida efectiva actividade económica, dos sujeitos passivos residentes ou não no território nacional, sob pena de violação do princípio da igualdade (artigo 13.º da CRP)». ( 2 )
Neste artigo 13.º da CRP estabelece-se o princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei.
Este princípio, como limite à discricionariedade legislativa, não exige o tratamento igual de todas as situações, mas, antes, implica que sejam tratados igualmente os que se encontram em situações iguais e tratados desigualmente os que se encontram em situações desiguais, de maneira a não serem criadas discriminações arbitrárias e irrazoáveis, porque carecidas de fundamento material bastante. O princípio da igualdade não proíbe se estabeleçam distinções, mas sim, distinções desprovidas de justificação objectiva e racional. ( 3 )
No caso em apreço, não se vislumbra qualquer razão que possa levar a que empresas com sede e direcção efectiva fora da Região Autónoma dos Açores que nela tenham instalações idênticas qualificáveis como «estabelecimento estável», à face do art. 5.º do CIRC, e que desenvolvam a mesma actividade, possam beneficiar de taxas de IRC e derrama diferentes pelo facto de a sede ou direcção efectiva, fora da área daquela Região, se situar no território nacional ou no estrangeiro.
Na verdade, para além da identidade material da situação real a nível da Região Autónoma dos Açores, as razões que justificou a criação de taxas reduzidas de IRC e de derrama para entidades não residentes, que são melhorar «a competitividade e criação de emprego das empresas com actividade no arquipélago, que suportam os custos incontornáveis da insularidade» (Preâmbulo do determinação do lucro tributável 2/99/A, de 6 de Março) e a «promoção da economia e reforço dos meios dos agentes económicos na concretização de investimento e criação de emprego, em benefício do desenvolvimento sustentável da Região Autónoma dos Açores» (Preâmbulo do Decreto Legislativo Regional n.º 21/2016/A) valem igualmente tanto para o investimento por empresas estrangeiras como para o investimento por empresas nacionais.
Assim, é de concluir que a interpretação do artigo 2.º, n.º 1, do Decreto Legislativo Regional n.º 21/2016/A no sentido da aplicação da taxa reduzida de derrama a todas as entidades que não tenham sede ou direcção efectiva na Região Autónoma da Madeira que nela tenham instalações qualificáveis como «estabelecimento estável», à face do artigo 5.º do CIRC, é a única que se sintoniza com o princípio constitucional da igualdade.
Por isso, há que adoptar esta interpretação conforme à Constituição.
De resto, é também esta a interpretação que permite melhor satisfazer o primacial interesse visado com a redução de IRC, que é incentivar ao investimento na Região Autónoma dos Açores, pelo que é de presumir ter sido a solução adoptada na lei, por ser a mais acertada (art. 9.º, n.º 3, do CC). E é também esta a interpretação que se melhor se compagina com a imputação das receitas de IRC às regiões autónomas que se faz no artigo 26.º, n.ºs 1, alínea b), e 2, da LFRA, em que se incluem as devidas por pessoas colectivas com sede ou direcção efectiva em território português que tenham na região um estabelecimento estável, sendo as receitas de cada circunscrição são determinadas pela proporção entre o volume anual de negócios do exercício correspondente às instalações situadas em cada região autónoma e o volume anual total de negócios do exercício.
Na verdade, nestas normas do artigo 26.º da LFRA explicitamente se dá relevância a instalações de pessoas colectivas residentes em território português qualificáveis como estabelecimentos estáveis, o que confirma o entendimento que vem sendo adoptado pelo Supremo Tribunal Administrativo, que se referiu. Pelo exposto, também em relação à actividade das Requerentes nos Açores, era aplicável às Requerentes a respectiva derrama regional e não a derrama nacional.”
Ora, nesta sede resulta claro que a Requerente apesar de ter a sua sede em território português, mais especificamente no continente, possuía estabelecimentos estáveis por via dos quais desenvolvia a sua atividade e obtinha rendimentos na RAA e na RAM. Pelo que, deve à Requerente ser aplicável a derrama regional da Madeira e dos Açores no que concerne aos rendimentos obtidos nestas regiões autónomas.
Por fim e quanto à harmonização da derrama estadual com as derramas regionais, atendendo a que a Requerente desenvolve a sua atividade em território continental, mas também nas regiões autónomas por via de instalações que devem ser qualificadas como «estabelecimentos estáveis», deve pugnar-se pela harmonização da aplicação destas derramas. Assim e seguindo o disposto no acórdão arbitral de 21-08-2023, proferido no processo n.º 792/2022-T, «quanto a este ponto, haverá que recorrer ao critério de imputação previsto no artigo 26.º, n.º 2, da Lei das Finanças Regionais, que fixa uma repartição do imposto a suportar pelo sujeito passivo em cada circunscrição com base na proporção do volume de negócios apurado por referência à actividade efectivamente desenvolvida em cada região». Tal significa que aquando do cálculo do quantum que é devido em sede da derrama estadual não deve ser considerada a proporção do lucro tributável imputável aos estabelecimentos estáveis localizados na RAA e na RAM, que está sujeito às derramas regionais previstas em sede de legislação da RAA e da RAM.
Do exposto, conclui-se que a autoliquidação e a decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa enfermam de vício de violação de lei por erro de interpretação do artigo 87.º-A do CIRC e dos artigos 2.º do Decreto Legislativo Regional n.º 21/2016/A, de 17 de Outubro, e 4.º do Decreto Legislativo Regional n.º 14/2010/M de 5 de agosto, nas redacções do Decreto Legislativo Regional n.º 5-A/2014/M, de 23 de Julho, e 18/2020/M, de 31 de Dezembro.
Estes vícios justificam a anulação parcial da autoliquidação e da decisão de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa.
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Do direito do Requerente ao Reembolso e ao pagamento de juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.º da LGT
A Requerente para além da anulação do ato de autoliquidação de IRC relativo ao ano de 2020, e ao consequente reembolso do imposto indevidamente pago em Portugal no montante total de € 217.203,08, vem ainda requerer o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos do disposto no artigo 43.º da LGT.
No que concerne ao reembolso do imposto pago indevidamente, na sequência da anulação parcial da autoliquidação, a Requerentes tem direito a ser reembolsada da quantia que tiver pagado a mais, o que é consequência da anulação, nomeadamente tendo-se provado que houve lugar ao pagamento do imposto autoliquidado (cfr. Documento n.º 4).
Já no que concerne aos juros indemnizatórios e de acordo com o artigo 43.º, n.º 1 da LGT há lugar ao pagamento de juros indemnizatórios quando “(…) se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.”
O artigo 43.º, n.º 3, alínea c) da LGT determina que são devidos juros indemnizatórios quando “(…) a revisão do acto tributário por iniciativa do contribuinte se efectuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à administração tributária”.
Acresce que o artigo 24.º, n.º 5 do RJAT determina que o direito a juros indemnizatórios pode ser reconhecido no processo arbitral. Como tal, o Tribunal Arbitral tem competência para conhecer do pedido de juros indemnizatórios submetido pelo Requerente.
Para que haja direito a juros indemnizatórios, o imposto deve ser indevido ou deve ter sido pago imposto em montante superior ao devido e tal deve derivar de erro, de facto ou de direito, imputável aos serviços da AT.
Em relação aos juros indemnizatórios a liquidar em relação ao ano de 2020, considerando que o pedido de revisão oficiosa foi apresentado fora do prazo da reclamação graciosa, só há direito a juros indemnizatórios decorrido um ano após o pedido de promoção da revisão oficiosa, nos termos do disposto no artigo 43.º, n.º 3, alínea c) da LGT.
Neste sentido, há que ter em conta a jurisprudência firmada no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo n.º 4/2023, proferido no processo n.º 40/19.6BALSB, de 30.09.2020, que veio estabelecer que “(…) só são devidos juros indemnizatórios decorrido um ano após o pedido de promoção da revisão oficiosa e até à data da emissão das respetivas notas de crédito a favor da Recorrida”.
Deste modo, deve a Requerente ser reembolsada do imposto indevidamente pago, acrescido do pagamento de juros indemnizatórios, contados apenas a partir do decurso de um ano após a apresentação do pedido de revisão oficiosa.
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Decisão
De harmonia com o exposto, acordam neste Tribunal Arbitral em:
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Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral;
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Anular parcialmente a autoliquidação de IRC plasmada na declaração periódica de rendimentos Modelo 22 de IRC n.º ...-... -..., referente ao exercício de 2020, na parte respeitante à derrama estadual e na medida em que no seu cálculo foi considerado o lucro tributável obtido com a actividade desenvolvida através das instalações situadas nas regiões autónoma;
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Anular o indeferimento do pedido de revisão oficiosa;
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Julgar procedente o pedido de reembolso e condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira a pagar à Requerente a quantia que for apurada em sede em execução decisão arbitral;
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Julgar procedente o pedido de juros indemnizatórios e condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira a pagar à Requerente a quantia que for apurada em execução desta decisão arbitral.
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Valor do processo
De harmonia com o disposto nos artigos 296.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 217.203,08, indicado pela Requerente sem oposição da Autoridade Tributária e Aduaneira.
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Custas
Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 4.284,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.
Lisboa, 07-03-2025
Os Árbitros
(Jorge Lopes de Sousa)
(António Cipriano da Silva)
(Sónia Martins Reis)