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SUMÁRIO:
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«O artigo 110.º do TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional que não tem em conta, para efeitos do cálculo do montante de um imposto sobre veículos, quando é aplicado a um veículo usado proveniente de outro Estado‑membro, a desvalorização da componente ambiental deste imposto na mesma proporção e nos mesmos termos em que o faz em relação à componente cilindrada do referido imposto se, e na medida em que, o montante do imposto cobrado sobre o referido veículo importado exceder o montante do valor residual do imposto incorporado no valor dos veículos nacionais similares presentes no mercado nacional de veículos usados» – cfr. Despacho do Tribunal de Justiça da União Europeia de 6 de fevereiro de 2024, proferido no âmbito do processo n.º C-399/23 (Caso Osóquim).
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«[A] resposta dada à questão prejudicial […] será sempre de matriz relativa e não absoluta, dependendo da avaliação que se faça entre o valor de ISV cobrado (e contestado […]) e o valor de imposto implícito em veículos usados nacionais equivalentes» – cfr. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo n.º 25/23.8BALSB, de 22 de novembro de 2023.
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«O […] conceito [de erro imputável aos serviços] compreende não só o lapso, o erro material ou o erro de facto, como também o erro de direito, e […] essa imputabilidade é independente da demonstração da culpa dos funcionários envolvidos na liquidação afetada pelo erro» – cfr. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo n.º 01019/14, de 8 de março de 2017.
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«Para a questão se subsumir no artigo 78.º, n.º 1, da LGT importa, desde logo, que o contribuinte não tenha contribuído, por qualquer forma, para a emissão do ato de liquidação, ou seja, não pode existir uma conduta, seja ela ativa ou omissiva, que tenha determinado a emissão do ato de liquidação, nos moldes em que o foi» – cfr. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo n.º 328/05.3BEALM, de 5 de novembro de 2020.
DECISÃO ARBITRAL
Requerente: A..., portador do número de identificação fiscal (“NIF”) português..., com domicílio na Rua ..., n.º ..., ...-... Maia
Entidade Requerida: Autoridade Tributária e Aduaneira
A Árbitra Sónia Fernandes Martins, designada pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formar o Tribunal Arbitral Singular constituído a 26 de novembro de 2024, decidiu o seguinte:
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Relatório
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A..., portador do NIF português..., com domicílio na Rua ..., n.º ..., ...-... Maia (“Requerente”), apresentou perante o CAAD, dirigido ao seu Ex.mo Presidente, pedido de pronúncia arbitral a 19 de setembro de 2024, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, alínea a), do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAMT”).
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No pedido de pronúncia arbitral, o Requerente solicitou ao Tribunal Arbitral a declaração de ilegalidade e concomitante anulação parcial, no montante de 13.469,63 EUR, da liquidação de Imposto sobre Veículos (“ISV”) n.º 2021/..., de 20 de dezembro de 2021, da autoria da Chefe da Delegação Aduaneira da Figueira da Foz, no montante global de 41.793,90 EUR. Peticionou, de igual modo, a restituição do imposto (13.469,63 EUR) e o pagamento de juros indemnizatórios.
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A propositura da ação arbitral ocorreu após a apresentação, perante a Delegação Aduaneira da Figueira da Foz, de pedido de revisão oficiosa daquele ato tributário a 22 de fevereiro de 2024, o qual não obteve resposta.
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Em sede do pedido de pronúncia arbitral, o Requerente pugnou pela preterição do artigo 110.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (“TFUE”), perante as distintas percentagens de redução, resultantes do artigo 11.º do Código do Imposto sobre Veículos (“CISV”), aplicáveis às componentes cilindrada (52%) e ambiental (28%), e concomitante tributação diferenciada (mais gravosa) das viaturas usadas “admitidas” em território nacional face às viaturas usadas “originárias” de Portugal. Por outro lado, sustentou o incorreto registo do dióxido de carbono (“CO2”) emitido – 380 g/km (ao invés de 360 g/km) – na Declaração Aduaneira do Veículo (“DAV”) n.º 2021/...e, desse modo, o erróneo apuramento do imposto.
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É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (“Entidade Requerida”).
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O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Ex.mo Senhor Presidente do CAAD a 20 de setembro de 2024, tendo sido notificado à Entidade Requerida a 23 de setembro de 2024.
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A Árbitra Signatária foi designada pelo Ex.mo Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD para constituir o presente Tribunal Arbitral singular, tendo aceitado a designação a 14 de outubro de 2024.
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No dia 6 de novembro de 2024, as partes foram notificadas de tal designação, não tendo manifestado vontade de a recusar.
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O Tribunal Arbitral foi constituído a 26 de novembro de 2024.
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No dia 16 de janeiro de 2025, a Entidade Requerida apresentou a sua resposta e juntou o processo administrativo.
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Na sua resposta, a Entidade Requerida sustentou estar vinculada à aplicação do artigo 11.º do CISV, na redação do artigo 391.º da Lei n.º 75-B/2020, de 31 de dezembro, não podendo desaplicá-lo por força de uma alegada violação do Direito da União Europeia (in casu, do artigo 110.º do TFUE). Não obstante, entende que tal desconformidade não se verifica, alicerçando a sua posição na jurisprudência europeia [designadamente, no Despacho do Tribunal de Justiça da União Europeia de 6 de fevereiro de 2024, proferido no âmbito do processo n.º C-399/23 (Caso Osóquim)] e nacional (designadamente, no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo n.º 25/23.8BALSB, de 22 de novembro de 2023) e, bem assim, na ausência probatória perpetrada pelo Requerente.
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Por despacho de 20 de janeiro de 2025, o Tribunal Arbitral dispensou a realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAMT e notificou as partes para apresentação de alegações escritas simultâneas e, bem assim, para pagamento da taxa de arbitragem subsequente.
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No dia 12 de fevereiro de 2025, quer o Requerente quer a Entidade Requerida apresentaram as suas alegações escritas, em sede das quais corroboraram as posições anteriormente assumidas.
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Saneamento
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O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.os 1, parte inicial, e 2, 6.º, n.os 1, 3 e 4, e 11.º do RJAMT.
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As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão devidamente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAMT e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.
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Não se verificam nulidades, nem foi invocada matéria de exceção pela Entidade Requerida, impondo-se a apreciação imediata do mérito da causa pelo Tribunal Arbitral.
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Objeto da Pronúncia Arbitral
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O thema decidendum objeto da presente ação arbitral consiste em aferir da conformidade do artigo 11.º do CISV, na redação vigente à data da exigibilidade do imposto (i.e., na redação introduzida pelo artigo 391.º da Lei n.º 75-B/2020, de 31 de dezembro), ao artigo 110.º do TFUE, face às distintas percentagens de redução aplicáveis às componentes cilindrada e ambiental, em sede de tributação em ISV, de viaturas ligeiras de passageiros usadas, oriundas de outro Estado-membro da União Europeia, e, concomitantemente, em indagar se essa disparidade redunda numa tributação discriminatória (mais gravosa) das viaturas usadas “admitidas” em Portugal – vis-à-vis a tributação das viaturas usadas “originárias” do território nacional –, conducente à anulação parcial, no montante de 9.740,24 EUR, da liquidação de ISV n.º 2021/..., de 20 de dezembro de 2021.
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Por outro lado, importa perscrutar se o alegado erro no preenchimento da DAV, no que respeita à emissão de CO2, é suscetível de relevar nos presentes autos – atento o disposto no artigo 78.º, n.º 1, in fine, da Lei Geral Tributária (“LGT”) – e, desse modo, despoletar a anulação parcial, no montante de 3.729,49 EUR, da liquidação de ISV n.º 2021/..., de 20 de dezembro de 2021.
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Por último, cumpre indagar do direito do Requerente à restituição do imposto, no montante global de 13.469,63 EUR (9.740,23 EUR + 3.729,40 EUR), nos termos do artigo 100.º da LGT, e, bem assim, do seu direito à perceção de juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.º da LGT.
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Matéria de Facto
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Relativamente à matéria de facto, não impende sobre o Tribunal Arbitral o ónus de pronúncia sobre todos os factos alegados pelas partes, cabendo-lhe o dever de selecionar os que importam à boa decisão da causa e de discriminar a matéria provada da não provada [cfr. artigos 123.º, n.º 2, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”) e 607.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAMT].
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Deste modo, os factos pertinentes ao julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual foi estabelecida em função das várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de direito (cfr. artigo 596.º do CPC, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAMT).
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Factos provados e respetiva motivação
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O Tribunal Arbitral considera assente a factualidade infra. Formou a sua convicção mediante a análise e ponderação do acervo documental carreado para os autos pelo Requerente e, bem assim, através da resposta da Entidade Requerida, em sede da qual é refutado o argumentário jurídico (matéria de direito) exposto pelo Requerente.
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No dia 16 de novembro de 2021, o Requerente adquiriu uma viatura ligeira de passageiros usada, proveniente da Alemanha, pelo preço de 86.555 EUR [cfr. documento n.º 1 junto ao pedido de revisão oficiosa];
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A viatura em referência deu entrada no território nacional a 29 de novembro de 2021 [cfr. documento n.º 1 junto ao pedido de revisão oficiosa];
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A viatura em apreço possuía as seguintes caraterísticas técnicas:
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Marca: Ferrari [cfr. documentos n.os 1 juntos ao pedido de revisão oficiosa e ao pedido de pronúncia arbitral];
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Modelo: F151 [cfr. documentos n.os 1 juntos ao pedido de revisão oficiosa e ao pedido de pronúncia arbitral];
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Cor: vermelho [cfr. documento n.º 1 junto ao pedido de revisão oficiosa];
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Peso bruto: 2.320 kg [cfr. documentos n.os 1 juntos ao pedido de revisão oficiosa e ao pedido de pronúncia arbitral];
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Tara: 1.955 kg [cfr. documentos n.os 1 juntos ao pedido de revisão oficiosa e ao pedido de pronúncia arbitral];
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Número de lugares: 4 lugares [cfr. documento n.º 1 junto ao pedido de revisão oficiosa];
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Número de eixos motores: 1 eixo motor [cfr. documento n.º 1 junto ao pedido de revisão oficiosa];
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Código de homologação: 2021... [cfr. documento n.º 1 junto ao pedido de revisão oficiosa];
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Versão: E [cfr. documentos n.os 1 juntos ao pedido de revisão oficiosa e ao pedido de pronúncia arbitral];
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Variante: AL [cfr. documentos n.os 1 juntos ao pedido de revisão oficiosa e ao pedido de pronúncia arbitral];
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Designação comercial: FF [cfr. documentos n.os 1 juntos ao pedido de revisão oficiosa e ao pedido de pronúncia arbitral];
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Combustível: gasolina [cfr. documento n.º 1 junto ao pedido de revisão oficiosa];
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Tipo de caixa: fechada [cfr. documento n.º 1 junto ao pedido de revisão oficiosa];
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Número do motor: ... [cfr. documento n.º 1 junto ao pedido de revisão oficiosa];
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Número de quadro: ... [cfr. documentos n.os 1 juntos ao pedido de revisão oficiosa e ao pedido de pronúncia arbitral];
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Cilindrada: 6.262 cm3 [cfr. documentos n.os 1 juntos ao pedido de revisão oficiosa e ao pedido de pronúncia arbitral];
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Quilómetros (“km”) percorridos: 17.155 km [cfr. documento n.º 1 junto ao pedido de revisão oficiosa];
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Emissão de partículas [em gramas (“g”) por km]: 0,0008 g/km [cfr. documento n.º 1 junto ao pedido de revisão oficiosa];
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Emissão de CO2 (em g por km): 360 g/km [cfr. documento n.º 1 junto ao pedido de pronúncia arbitral];
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Tipo de testes CO2: CO2 combinado, ciclo New European Driving Cycle (“NEDC”) [cfr. documento n.º 1 junto ao pedido de revisão oficiosa];
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Sistema: “Start and stop” [cfr. documento n.º 1 junto ao pedido de pronúncia arbitral];
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Data da atribuição da primeira matrícula: 5 de julho de 2016 [cfr. documentos n.os 1 juntos ao pedido de revisão oficiosa e ao pedido de pronúncia arbitral];
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Data da atribuição da matrícula portuguesa: 23 de maio de 2022 [cfr. documento n.º 1 junto ao pedido de revisão oficiosa];
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Número da matrícula portuguesa: ... [cfr. documento n.º 1 junto ao pedido de revisão oficiosa];
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A correspondente DAV – DAV n.º 2021/... – foi apresentada pelo representante do Requerente (B..., portador do NIF português...) perante a Delegação Aduaneira da Figueira da Foz [cfr. documento n.º 1 junto ao pedido de revisão oficiosa];
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Nessa sequência, a Delegação Aduaneira da Figueira da Foz emitiu a liquidação de ISV n.º 2021/..., de 20 de dezembro de 2021, no montante global de 41.793,90 EUR [cfr. documento n.º 1 junto ao pedido de revisão oficiosa];
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O Requerente procedeu ao pagamento do ISV no referido montante;
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Por e-mail de 22 de fevereiro de 2024, o Requerente apresentou perante a Delegação Aduaneira da Figueira da Foz pedido de revisão oficiosa da referida liquidação de ISV [cfr. documento n.º 2 junto ao pedido de pronúncia arbitral];
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Em sede do pedido de revisão oficiosa, o Requerente peticionou a anulação parcial, no montante global de 13.469,63 EUR (9.740,23 EUR + 3.729,40 EUR), da mencionada liquidação de imposto com fundamento:
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Na preterição do artigo 110.º do TFUE, face às distintas percentagens de redução, resultantes do artigo 11.º do CISV, aplicáveis às componentes cilindrada (52%) e ambiental (28%) (no que respeita ao ISV no montante de 9.740,23 EUR);
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No incorreto registo na DAV n.º 2021/... do CO2 emitido – 380 g/km ao invés das efetivas 360 g/km (no que respeita ao ISV no montante de 3.729,40 EUR) [cfr. documento n.º 2 junto ao pedido de pronúncia arbitral];
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A título adicional, o Requerente solicitou a restituição do ISV, no montante global de 13.469,63 EUR, e a condenação da Entidade Requerida no pagamento de juros indemnizatórios (computados entre 28 de dezembro de 2021 e o reembolso do imposto) [cfr. documento n.º 2 junto ao pedido de pronúncia arbitral];
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No dia 19 de setembro de 2024, face à ausência de decisão por parte da Entidade Requerida no âmbito do procedimento de revisão oficiosa, a Requerente apresentou junto do CAAD (Arbitragem Tributária) o pedido de pronúncia arbitral na origem dos presentes autos;
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Em sede do pedido de pronúncia arbitral, o Requerente peticionou a declaração de ilegalidade (e consequente anulação) da liquidação de ISV, no montante global de 13.469,63 EUR (9.740,23 EUR + 3.729,40 EUR), bem como o reembolso de tal quantitativo acrescido de juros indemnizatórios (computados entre 28 de dezembro de 2021 e a restituição do imposto);
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Em concreto, o Requerente sustentou:
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Relativamente ao ISV no montante de 9.740,23 EUR: a violação do artigo 110.º do TFUE, face às distintas percentagens de redução, resultantes do artigo 11.º do CISV, aplicáveis às componentes cilindrada (52%) e ambiental (28%), e concomitante discriminação resultante da tributação diferenciada (mais gravosa), em sede de ISV, das viaturas usadas “admitidas” em território nacional face às viaturas usadas “originárias” de Portugal;
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Relativamente ao ISV no montante de 3.729,40 EUR: a errónea inscrição na DAV n.º 2021/... do CO2 emitido (380 g/km ao invés das efetivas 360 g/km);
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No dia 16 de janeiro de 2025, a Entidade Requerida apresentou a sua resposta e o processo administrativo;
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Na sua resposta, a Entidade Requerida pugnou pela conformidade à lei da liquidação de ISV e, por via disso, pela improcedência do pedido de pronúncia arbitral.
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Factos não provados e respetiva motivação
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Dos factos com interesse para a boa decisão da causa não foram alegados (nem provados) os que abaixo se elencam. O pedido de pronúncia arbitral nada refere a seu respeito.
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O preço de venda praticado no mercado nacional relativo a viaturas usadas “originárias” de Portugal detentoras de caraterísticas idênticas ou semelhantes às da viatura do Requerente;
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O ISV residual implícito, parte compósita do preço de venda supra;
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O nexo causal entre tal preço de venda e as diferentes percentagens de redução aplicadas às componentes cilindrada (52%) e ambiental (28%) da viatura do Requerente.
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Não foi igualmente provada a seguinte factualidade:
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Os níveis de emissão de CO2 registados no certificado de conformidade da viatura do Requerente. Se iguais, se dissonantes dos refletidos no certificado de matrícula estrangeiro – i.e., no documento de origem – (360 g/km).
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Apesar de ter alegado em sede de resposta que o certificado de conformidade da viatura do Requerente regista 380 g/km a título de emissão de CO2 (cfr. artigos 70.º a 74.º da resposta), a Entidade Requerida não o demonstrou, não tendo procedido à sua junção no âmbito dos presentes autos, não obstante, dada a alusão que fez ao artigo 20.º, n.º 2, do CISV, parecer estar na posse de uma sua cópia. Atente-se, neste contexto, ao n.º 4 do referido preceito legal («Os documentos previstos no n.º 2 podem ser apresentados por transmissão eletrónica de dados, devendo os originais ser conservados pelo prazo de quatro anos, ficando sujeitos à apresentação dos originais a qualquer momento nos serviços competentes, para efeitos de fiscalização e controlo»).
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Matéria de Direito
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Sem prejuízo de o Requerente não o ter expressamente referido, depreende-se do respetivo introito que o pedido de revisão oficiosa na origem dos presentes autos foi apresentado a coberto do regime ínsito no artigo 78.º, n.º 1, in fine, da LGT – i.e., «no prazo de quatro anos após a liquidação […] com fundamento em erro imputável aos serviços» da Entidade Requerida.
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No que à tempestividade do pedido de revisão oficiosa respeita, o Tribunal Arbitral nada tem a “apontar”. Com efeito, tendo o pedido sido apresentado a 22 de fevereiro de 2024 (cfr. documento n.º 2 junto ao pedido de pronúncia arbitral) e tendo a liquidação de imposto sido emitida a 20 de dezembro de 2021 (cfr. documento n.º 1 junto ao pedido de revisão oficiosa), o prazo de 4 (quatro) anos destinado à apresentação do aludido pedido foi indubitavelmente respeitado pelo Requerente.
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No que à comissão de «erro imputável aos serviços» concerne, importa primeiramente atentar na jurisprudência dos tribunais superiores densificadora do conceito:
«O […] conceito [de erro imputável aos serviços] compreende não só o lapso, o erro material ou o erro de facto, como também o erro de direito, e […] essa imputabilidade é independente da demonstração da culpa dos funcionários envolvidos na liquidação afetada pelo erro» [sublinhado nosso] – cfr., a título exemplificativo, Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo n.º 01019/14, de 8 de março de 2017.
«[E]mbora o conceito de “erro imputável aos serviços” aludido na 2.ª parte do n.º 1 do 78.º da LGT não compreenda todo e qualquer “vício” (designadamente vícios de forma ou procedimentais) mas tão só “erros”, estes abrangem o erro nos pressupostos de facto e de direito, sendo essa imputabilidade aos serviços independente da demonstração da culpa dos funcionários envolvidos na emissão do ato afetada pelo erro» [sublinhado nosso] – cfr., a título exemplificativo, Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo n.º 0407/15, de 5 de maio de 2016.
«Para a questão se subsumir no artigo 78.º, n.º 1, da LGT importa, desde logo, que o contribuinte não tenha contribuído, por qualquer forma, para a emissão do ato de liquidação, ou seja, não pode existir uma conduta, seja ela ativa ou omissiva, que tenha determinado a emissão do ato de liquidação, nos moldes em que o foi» [sublinhado nosso] – cfr., a título exemplificativo, Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo n.º 328/05.3BEALM, de 5 de novembro de 2020.
«Existindo um erro de direito numa liquidação efetuada pelos serviços da Administração Tributária, e não decorrendo essa errada aplicação da lei de qualquer informação ou declaração do contribuinte, o erro em questão é imputável aos serviços. Com efeito, existe uma obrigação genérica de a Administração Tributária atuar em plena conformidade com a lei, legalmente preceituada, desde logo, no artigo 266.º, n.º 2, da CRP e bem assim no artigo 55.º da LGT, razão por que qualquer ilegalidade não resultante de uma atuação do sujeito passivo será imputável à própria Administração» [sublinhado nosso] – cfr., a título exemplificativo, Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo n.º 01007/11, de 14 de março de 2012.
«[H]avendo erro de direito na liquidação, por aplicação de normas nacionais que violem o direito comunitário e sendo ela efetuada pelos serviços, é à administração tributária que é imputável esse erro, sempre que a errada aplicação da lei não tenha por base qualquer informação do contribuinte. Por outro lado, esta imputabilidade aos serviços é independente da culpa de qualquer dos seus funcionários ao efetuar a liquidação afetada por erro" já que "a administração tributária está genericamente obrigada a atuar em conformidade com a lei (artigos 266.º, n.º l, da CRP e 55.º da LGT), pelo que, independentemente da prova da culpa de qualquer das pessoas ou entidades que a integram, qualquer ilegalidade não resultante de uma atuação do sujeito passivo será imputável a culpa dos próprios serviços» [sublinhado nosso] – cfr., a título exemplificativo, Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo n.º 026690, de 6 de fevereiro de 2002.
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E, de igual modo, na doutrina portuguesa sobre a matéria:
«[A] Administração Tributária poderá proceder à revisão oficiosa dos atos tributários no prazo de 4 (quatro) anos após a liquidação […] quando se verificar um erro imputável aos serviços, ou seja, um lapso, um erro material ou de facto, bem como um erro de direito, não se exigindo a demonstração da culpa dos funcionários» – cfr., a título exemplificativo, NETO, Serena Cabrita e TRINDADE, Carla Castelo, Contencioso Tributário, Volume I (Procedimento, Princípios e Garantias), 2017, Almedina, p. 599.
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Perante o exposto, quanto ao imposto liquidado no montante de 9.740,23 EUR, cumpre indagar (e analisar) se a violação do Direito da União Europeia sustentada pelo Requerente efetivamente se verifica.
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Se tal suceder, na esteira das mencionadas jurisprudência e doutrina, terá ocorrido um erro de direito – assente na preterição do Direito da União Europeia, in casu do artigo 110.º do TFUE – imputável, a título objetivo (porquanto carente do requisito atinente à culpa), aos serviços da Entidade Requerida nos termos do artigo 78.º, n.º 1, in fine, da LGT.
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Se tal não acontecer, o referido erro de direito não se verificará, pelo que o requisito atinente à sua imputabilidade aos serviços não estará preenchido, o que conduzirá à improcedência do pedido de revisão oficiosa (e, por inerência, do pedido de pronúncia arbitral) e, em consequência, à manutenção na ordem jurídica da liquidação de imposto no montante de 9.740 EUR.
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Relativamente ao contexto que subjaz à redação do artigo 11.º do CISV conferida pelo artigo 391.º da Lei n.º 75-B/2020, de 31 de dezembro, o Tribunal Arbitral realça os pontos 6.10 a 6.25 e 6.33 a 6.40 da Decisão Arbitral de 16 de dezembro de 2024, proferida no âmbito do processo n.º 846/2024-T, os quais, com o intuito de se evitar desnecessária prolixidade, não se transcrevem, mas consideram-se reproduzidos na presente sede.
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Aqui chegados, com o fito de aferir o pretenso erro de direito invocado pelo Requerente – consubstanciado na violação do artigo 110.º do TFUE pelo artigo 11.º do CISV – cumpre atentar na recente jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia, a qual, por referência a situação idêntica à dos presentes autos (que no caso em apreço conduz à “dispensa” por parte do Tribunal Arbitral da obrigação de reenvio prejudicial prevista no artigo 267.º, 3.º parágrafo, do TJUE[1]), preconiza:
«[O] artigo 110.º TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional que não tem em conta, para efeitos do cálculo do montante de um imposto sobre veículos, quando é aplicado a um veículo proveniente de outro Estado-membro, a desvalorização da componente ambiental deste imposto na mesma proporção e nos mesmos termos em que o faz em relação à componente cilindrada do referido imposto se, e na medida em que, o montante do imposto cobrado sobre o referido veículo importado exceder o montante do valor residual do imposto incorporado no valor dos veículos nacionais similares presentes no mercado nacional de veículos usados» [sublinhado nosso] – cfr. Despacho do Tribunal de Justiça da União Europeia de 6 de fevereiro de 2024, proferido no âmbito do processo n.º C-399/23 (Caso Osóquim).
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E, bem assim, na jurisprudência nacional, a qual visa “acomodar” o sentido decisório perfilhado pelo Tribunal de Justiça da União Europeia no âmbito do referido processo de reenvio prejudicial (Caso Osóquim):
«[A] resposta dada à questão prejudicial […] será sempre de matriz relativa e não absoluta, dependendo da avaliação que se faça entre o valor de ISV cobrado (e contestado […]) e o valor de imposto implícito em veículos usados nacionais equivalentes – ou, nas palavras daquele Tribunal [Tribunal de Justiça da União Europeia], o “valor residual do imposto incorporado no valor dos veículos nacionais similares presentes no mercado nacional de veículos usados”. Assim sendo, a determinação da conformidade ou não da legislação aqui em causa com os postulados do Direito Europeu passa […] por “determinar se a aplicação de uma percentagem de redução da componente ambiental do ISV diferente da aplicada à componente cilindrada deste imposto conduz a favorecer a venda dos veículos usados nacionais”» – cfr., a título exemplificativo, Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo n.os 25/23.8BALSB, de 22 de novembro de 2023; 0191/23.2BALSB, de 23 de maio de 2023; e 013/24.7BALSB, de 27 de novembro de 2024.
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Na esteira desta jurisprudência constata-se que as distintas percentagens de redução, decorrentes do artigo 11.º do CISV, aplicáveis às componentes ambiental (in casu, 28%) e cilindrada (in casu, 52%), per se, não violam o artigo 110.º do TFUE. Tal só sucederá se a aludida disparidade percentual estiver na origem de uma diferenciada prática de preços no mercado nacional de viaturas usadas, sendo as “admitidas” em Portugal mais dispendiosas do que as “originárias” equivalentes.
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Constata-se, pois, que a discriminação em referência está prima facie arraigada à demonstração do preço de venda das viaturas usadas equivalentes – em concreto, à prova do montante (inferior) do imposto residual implícito refletido no seu preço [vis-à-vis o montante (superior) do imposto suportado pelo Requerente].
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Porém, o Requerente não alega (nem demonstra) qualquer factualidade refletora de tal discriminação, designadamente o preço de venda praticado no mercado nacional relativamente a viaturas usadas equivalentes e respetivos elementos compósitos (nomeadamente, o ISV residual nele incorporado), não constando dos autos qualquer informação a seu respeito.
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Cabendo ao Requerente os respetivos ónus de alegação e prova na aceção do artigo 74.º, n.º 1, da LGT, o incumprimento por si perpetrado terá necessariamente de ser valorado em seu desfavor.
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Em conformidade, ainda que por referência ao artigo 342.º do Código Civil, importa atentar no seguinte:
«O significado essencial do ónus da prova não está tanto em saber a quem incumbe fazer a prova do facto [ónus subjetivo ou formal] como em determinar o sentido em que deve o tribunal decidir no caso de se não fazer essa prova [ónus objetivo ou material]» – cfr. DE LIMA, Pires António e VARELA, João Antunes, Código Civil Anotado, Volume I, 4.ª Edição Revista e Atualizada, p. 306.
«O ónus da prova não consiste no encargo lançado sobre a parte de alegar o facto e de carrear, por si mesma, para o processo todos os elementos capazes de convencer o juiz da realidade desse facto, sob pena de ter como assente o facto oposto. Significa a situação da parte contra quem o tribunal dará como assente [ou como não assente] um facto sempre que o juiz se não convença da realidade dele (Ac. RE, de 29.4.1986: BMJ, 358.º - 626)» – cfr. NETO, Abílio, Código de Processo Civil Anotado, 18.ª Edição Atualizada, setembro de 2004, p. 871.
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Deste modo, o erro de direito – preterição do Direito da União Europeia, in casu do regime previsto no artigo 110.º do TFUE – invocado pelo Requerente (enformador da causa de pedir na génese do pedido de declaração de ilegalidade da liquidação de imposto no montante de 9,740 EUR) não se afigura atendível. A priori, a matéria de facto alicerçante daquele pretenso erro não foi alegada nem demonstrada.
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Assim sendo, o Tribunal Arbitral considera não preenchido o requisito do pedido de revisão oficiosa previsto no artigo 78.º, n.º 1, in fine, da LGT, referente à comissão de um «erro», julgando concomitantemente improcedente o pedido de pronúncia arbitral na origem dos presentes autos quanto à declaração de ilegalidade (e consequente anulação) da liquidação de imposto no montante de 9.740 EUR, mantendo, por via disso, este ato tributário na ordem jurídica.
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Em consequência, o Requerente não tem direito nem à restituição do imposto, no montante de 9.740 EUR, nem à perceção de juros indemnizatórios nos termos do artigo 43.º, n.º 3, alínea c), da LGT.
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Quanto ao imposto liquidado no montante de 3.729,40 EUR, a pretensão do Requerente também não merece acolhimento, uma vez que o erro de facto refletido na liquidação de ISV n.º 2021/..., referente à emissão de CO2, resultou do incorreto preenchimento da DAV n.º 2021/... – em dissonância com a informação constante do documento de origem da viatura (cfr. documento n.º 1 junto ao pedido de pronúncia arbitral) – pelo seu representante (B...), na qualidade de declarante (cfr. documento n.º 1 do pedido de revisão oficiosa).
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Deste modo, tal erro é exclusivamente imputável ao Requerente, não podendo ser assacado a qualquer conduta da Entidade Requerida.
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Não obstante a liquidação de imposto [objeto (mediato) dos presentes autos] ser uma heteroliquidação (in casu, emitida pela Entidade Requerida), subjazeu à sua prolação a informação facultada pelo Requerente na DAV n.º 2021/..., tendo essa informação servido de elemento/parâmetro para o apuramento do imposto contestado.
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Assim sendo, na esteira da aludida jurisprudência (cfr. ponto 28. supra), o Tribunal Arbitral considera claudicar o requisito relativo ao «erro imputável aos serviços» previsto no artigo 78.º, n.º 1, in fine, da LGT.
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Pelo que, o pedido de revisão oficiosa – e, concomitantemente, o pedido de pronúncia arbitral – carecem de substrato legal relativamente à matéria sub judice, sendo por isso improcedentes quanto à declaração de ilegalidade (e consequente anulação) da liquidação de imposto no montante de 3.729,40 EUR.
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Em consequência, o Requerente não tem direito nem à restituição do imposto, no montante de 3.729,40 EUR, nem à perceção de juros indemnizatórios nos termos do artigo 43.º, n.º 3, alínea c), da LGT.
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Decisão
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Por tudo quanto se expôs, julga-se totalmente improcedente o pedido de pronúncia arbitral apresentado pelo Requerente, sendo de manter na ordem jurídica a liquidação de ISV n.º 2021/..., de 20 de dezembro de 2021, no montante global de 41.793,90 EUR (quarenta e um mil, setecentos e noventa e três euros e noventa cêntimos) [cujo montante contestado ascende a 13.469,63 EUR (treze mil, quatrocentos e sessenta e nove euros e sessenta e três cêntimos)].
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Valor da causa
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Nos termos dos artigos 306.º, n.os 1 e 2, do CPC (ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAMT), 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT, e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“Regulamento de Custas”), fixa-se o valor do processo (da causa) em 13.469,63 EUR (treze mil, quatrocentos e sessenta e nove euros e sessenta e três cêntimos).
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Custas arbitrais
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Condena-se o Requerente nas custas do processo, as quais perfazem 918 EUR (novecentos e dezoito euros), em consonância com os artigos 527.º, n.º 1, do CPC (ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAMT) e 22.º, n.º 4, do RJAMT e, bem assim, com a Tabela I anexa ao Regulamento de Custas.
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Lisboa, 28 de fevereiro de 2025
A Árbitra
Sónia Fernandes Martins
[1] «[A] força da interpretação dada pelo Tribunal de Justiça ao abrigo do artigo 267.º do TFUE pode privar de causa a obrigação prevista no artigo 267.º, terceiro parágrafo, do TFUE e esvaziá-la assim de conteúdo, designadamente quando a questão suscitada seja materialmente idêntica a outra questão suscitada em processo análogo e já decidida a título prejudicial» [sublinhado nosso] – cfr., a título exemplificativo, Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia de 6 de outubro de 2021, proferido no âmbito do processo n.º C-561/19 (Caso Consorzio Italian Management). Em sentido similar, Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia de 6 de outubro de 1982, proferido em sede do processo n.º 283/81 (Caso Cilfit).
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