Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 892/2024-T
Data da decisão: 2025-03-03  Selo  
Valor do pedido: € 120.000,00
Tema: Imposto do Selo; artigo 7.º, n.º 1, alínea d), do CIS; verba 10 TGIS; constituição de garantias; Diretiva 2008/7/CE; artigo 63.º TFUE
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Sumário:

1.A proibição de impostos indiretos, prevista no artigo 5.º, n.º2, alínea b), da Diretiva 2008/7/CE, que incide sobre as reuniões de capitais aplica-se igualmente às operações que não estão expressamente referidas nesta proibição, quando essa imposição equivaler, na prática, a tributar uma operação que faça parte integrante de uma operação global relevante do ponto de vista da reunião de capitais, não sendo necessário que essa integração resulte de uma exigência legal.

2.A separação entre o contrato principal de emissão de obrigações e o contrato acessório de constituição de garantias seria uma operação conceitual de natureza artificial, indiferente à estreita ligação económica e funcional que se estabelece entre ambos no quadro de uma operação global de reunião de capitais. 

3. Uma interpretação em conformidade com o direito da União Europeia da isenção de IS constante do artigo 7.º, n.º 1, alínea d), do CIS, obriga a alargar o seu âmbito à constituição de garantias acessória de um contrato de emissão de obrigações.

 

DECISÃO ARBITRAL

  1. Relatório

A..., S.A., pessoa coletiva número..., matriculada na Conservatória do Registo Comercial sob o mesmo número, com o capital social de € 50.000,00 (cinquenta mil euros) e com sede na Rua..., n.º ..., ..., ...-..., Lisboa (“Requerente”), notificada da decisão de indeferimento proferida no âmbito do procedimento de reclamação graciosa n.º ...2024..., na qual se discutiu a legalidade por erro na autoliquidação de Imposto do Selo relativo à constituição de garantias ao abrigo do contrato de constituição de garantias “Security Agreement”, celebrado a 25.01.2024, associado ao contrato de emissão obrigacionista celebrado nesse mesmo dia, veio, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), requerer a constituição de tribunal arbitral em matéria tributária e pedir a pronúncia arbitral de declaração de ilegalidade e consequente anulação da mencionada decisão de indeferimento proferida pela Senhora Chefe de Divisão da Direção de Finanças de Lisboa e, bem assim, do referido ato de autoliquidação de Imposto do Selo (IS) relativo ao ano de 2024.

2. É demandada a Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT” ou “Requerida”).

  1. Constituição do Tribunal Arbitral

3. O pedido de constituição do tribunal arbitral coletivo foi aceite pelo Senhor Presidente do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”).

4. Pelo Presidente do Conselho Deontológico do CAAD foi comunicada a constituição do presente tribunal arbitral coletivo em 01.10.2024, nos termos da alínea c) do número 1, do artigo 11.º do RJAT.

  1. História Processual

5. No pedido de pronúncia arbitral a Requerente pede, em síntese, a anulação do ato tributário acima identificado, bem como da decisão de indeferimento da reclamação graciosa n.º ...2024..., com as demais consequências legais, designadamente o reembolso do IS indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios, nos termos previstos no artigo 43.º da Lei Geral Tributária (“LGT”).

6. Como fundamento da sua pretensão, a Requerente alega, em suma, que o artigo 7.º, n.º 1, alínea d), do CIS, tem de ser interpretado no sentido de isentar de IS a constituição de quaisquer garantias associadas à emissão de obrigações, ainda que não seja legalmente obrigatória. Caso se entenda o contrário por este Tribunal Arbitral, a Requerente alega que então terá de se concluir que o regime de tributação de IS português, consubstanciado, inter alia, nos artigos 1.º e 7.º do Código do Imposto do Selo e na verba 10 da Tabela Geral do Imposto do Selo (“TGIS”), é contrário ao direito da União Europeia (“UE”), tendo especialmente em conta a liberdade de circulação de capitais, nos termos dos artigos 63.º a 66.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (“TFUE”) e do artigo 5.º, n.º 2, alínea b), da Diretiva 2008/7/CE do Conselho, de 12 de fevereiro de 2008. A Requerente juntou procuração, substabelecimento, comprovativo de pagamento de taxa de arbitragem inicial e 5 documentos.

7. Foi proferido despacho arbitral, tendo em vista a notificação do dirigente máximo do serviço da administração tributária para, no prazo de 30 dias, apresentar resposta e solicitar a produção de prova adicional.

8. A Requerida apresentou a sua resposta, tendo aí alegado, em suma, que as garantias em causa foram prestadas facultativamente pela entidade emitente, pelo que não são inerentes a qualquer operação sobre valores mobiliários e de emissão de valores mobiliários, e que a prestação de garantia é inerente apenas às operações sobre instrumentos financeiros derivados e não sobre valores mobiliários em geral.

9. Ademais, faz notar a Requerida que o significado da palavra «inerente» que é o de «intimamente unido», «intrínseco» ou «inseparável», «que é próprio de algo», «que é atributo ou propriedade de algo», pelo que o uso daquela palavra não tem o alcance de expressar a mera «acessoriedade», que é referida na verba 10 da TGIS, apontando, antes, para situações em que é legalmente obrigatória da prestação de garantia para a prática de operações dos tipos referidos na alínea d) do n.º 1 do artigo 7.º do CIS. Conclui a Requerida que, no caso em apreço, não há elementos que apontem no sentido de a expressão «garantias inerentes» ter sido incorretamente utilizada para aludir também a garantias prestadas facultativamente que podem ou não acompanhar operações que tenham por objeto valores mobiliários.

10. Por seu turno, relativamente à violação da alínea b), do n.º 2, do artigo 5.º, da Diretiva 2008/7/CE, entende a Requerida que na emissão obrigacionista subjacente ao SECAG, não está presente o requisito fundamental da reunião de capitais previsto na Diretiva 2008/7/CE e que esses capitais sejam obtidos/reunidos junto do público em geral em consequência da emissão de novos títulos negociáveis de dívida para a sua disseminação em mercado.

11. Por outro lado, é referido na resposta da Requerida que, face à finalidade da prestação destas garantias que, na verdade, nada têm a ver com uma operação de colocação e dispersão em mercado, isto é, junto do público investidor em geral, de novos títulos negociáveis, na medida em que se tratou de uma oferta particular absorvida na sua totalidade por uma entidade, devem os atos tributários de liquidação de IS relativos àquelas ser, de acordo com a jurisprudência que decorre do Despacho C-335/22, considerados compatíveis com a alínea b), do n.º 2, do artigo 5.º, da Diretiva 2008/7/CE.

12. Acrescenta a Requerida que a expressão “formalidades conexas”, constante da alínea b), do n.º 2, do artigo 5.º, da Diretiva 2008/7/CE, deve ser interpretada como abrangendo apenas e só quaisquer atos legalmente necessários para que a reunião de capitais se possa concretizar. Segundo defende a Requerida, a tributação das garantias prestadas em sede de IS não é passível de dar origem a discriminações, duplas tributações e disparidades que dificultem a livre circulação de capitais, não se justificando, assim, que se convoque a proibição imposta pela alínea b), do n.º 2, do artigo 5.º da Diretiva 2008/7/CE, quando a própria Diretiva 2008/8/CE na alínea d), do n.º 1, do artigo 6.º prevê expressamente a sua tributação.

13. Concluiu a Requerida dever improceder a pretensão da Requerente, não padecendo a autoliquidação de IS contestada de qualquer ilegalidade, e, em consequência, dever ser julgado improcedente o presente pedido de pronúncia arbitral por não provado, e, consequentemente, absolvida a Requerida de todos os pedidos, tudo com as devidas e legais consequências.

  1. Saneamento

14. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 4.º e 5.º, todos do RJAT.

15. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão regularmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, ambos do RJAT, e dos artigos 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.

  1. Matéria de facto
  1.  Matéria de Facto Provada

16. Com relevo para a apreciação e decisão das questões suscitadas, dão-se como assentes e provados os seguintes factos:

  1. Em 25.01.2024, a Requerente celebrou, no cartório notarial de Lisboa, nas instalações do Cartório B... Unipessoal, Lda., um contrato de prestação de garantias;
  2. Para a concretização do contrato referido no ponto anterior, a Requerente autoliquidou e pagou IS, ao abrigo da verba 10.2 da TGIS, no montante de € 120.000,00 (cento e vinte mil euros);
  3. Em 05.02.2024, a Requerente apresentou reclamação graciosa, à qual foi atribuída o n.º ...2024..., e na qual se discutiu a legalidade por erro na autoliquidação de IS relativo à constituição de garantias ao abrigo do contrato de constituição de garantias “Security Agreement”, associado ao contrato de emissão obrigacionista celebrado nesse mesmo dia, e onde se pedia a devolução do IS pago no valor de € 120.000,00 (cento e vinte mil euros);
  4. A Requerente foi notificada da decisão de indeferimento proferida no âmbito do procedimento de reclamação graciosa n.º ...2024... .
  1. Matéria de Facto Não Provada

17. Não existe factualidade relevante para a decisão da causa dada como não provada.

  1. Motivação da Decisão da Matéria de Facto

18. Conforme resulta da aplicação conjugada do artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e do artigo 607.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis por força do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT, ao Tribunal Arbitral incumbe o dever de selecionar os factos que interessam à decisão e discriminar a matéria que julga provada e declarar a que considera não provada, não tendo de se pronunciar sobre todos os elementos da matéria de facto alegados pelas partes.

19. Desta forma, os factos pertinentes para o julgamento da causa foram selecionados e conformados em função da sua relevância jurídica, a qual é determinada tendo em conta as várias soluções plausíveis das questões de direito para o objeto do litígio, tal como decorre do artigo 596.º, n.º 1, do CPC, aplicável por força do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

20. Nestes termos, tendo em conta as posições assumidas pelas partes e a prova documental junta aos autos, consideraram-se provados e não provados, com relevo para a decisão, os factos anteriormente elencados.

  1. Matéria de direito

21. A questão de fundo no caso em apreço consiste em saber se o artigo 7.º, n.º 1, alínea d), do CIS, deve ser interpretado no sentido de isentar de IS a constituição de quaisquer garantias associadas à emissão de obrigações, ainda que não seja legalmente obrigatória[1], tendo especialmente em conta a liberdade de circulação de capitais, nos termos dos artigos 63.º a 66.º do TFUE e do artigo 5.º, n.º 2, alínea b), da Diretiva 2008/7/CE do Conselho, de 12 de fevereiro de 2008.

22. No presente caso estão em causa operações financeiras realizadas a 25.01.2024. As mesmas têm por base um contrato de emissão obrigacionista (Senior Bond Facility Agreement, 26.01.2024), que consistiu na emissão de obrigações no valor de 20 000 000€, mais concretamente de 200 obrigações, cada uma de 100 000€ a liquidar em 28.07.2025. A operação foi registada na G...[2]. Paralelamente, foi celebrado um contrato de garantia (Security Agreement) gerador de diversas pretensões sobre determinados elementos do património do devedor tendo como objetivo a garantia dessas obrigações, compreendendo, genericamente, penhores de ações e penhores de créditos, garantindo de 24 milhões de euros, relativamente ao qual foi cobrado e pago, em 29.01.2024, IS no montante de 120 000€ à taxa de 0.5%, de acordo com a TGIS, verba 10.2.

23. A amplitude das garantias prestadas deve-se ao montante do crédito concedido. Uma das maiores preocupações de qualquer credor após a concessão de um empréstimo consiste, precisamente, no risco de fissura e vazamento do sistema de garantias — i.e. quando um ativo escapa à sua disponibilidade — num cenário de incumprimento ou inadimplência. Entre outras coisas, o Security Agreement visa reduzir os riscos incorridos pelo credor, viabilizando a obtenção de crédito.

  1. O Security Agreement foi celebrado entre dois mandatários, um dos quais representando os garantes (security providers) A..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., e o outro em representação do detentor das obrigações. C...) e das instituições D... (Arranger, Original Hedge Counterparty), E... (Bondholder agent) e F... (Security Agent). É prática comum a nomeação pelos credores bancários de um único Security Agent (ou administrador de garantias) para manter o package de garantias em segurança para o benefício de todos os credores garantidos, independentemente da respetiva graduação, sendo que isso depende sempre de cada operação em concreto[3].

 

  1. Um Security Agreement tem sempre por base uma transação (i.e. concessão de crédito), de que depende para a sua existência e concreta conformação. Materialmente, ele constitui um elemento acessório e contemporâneo da transação de base, sendo executado em conjunto com ela. Formalmente, os instrumentos do Security Agreement são parte do acervo dos “documentos do empréstimo” (loan documents). 

 

  1. A despeito da sua acessoriedade, o Security Agreement estabelece com o contrato de concessão de crédito (v.g. mútuo; emissão de obrigações) uma relação interna de condicionamento recíproco. O montante do crédito concedido dependerá das garantias constituídas; o montante das garantias constituídas dependerá do crédito que se pretende obter dos financiadores. Neste tipo de operações, sem prejuízo de disposição em contrário, é comum que o contrato de crédito só comece a ser executado, com a disponibilização do montante emprestado, depois de o Security Agreement estar na posse do Security Agent[4].

 

  1. Em termos sucintos, o contrato de garantia (Security Agreement) no caso presente tinha como objeto as garantias prestadas de vária natureza, a saber, ações e dividendos, constantes de uma lista (schedule 5), créditos (penhor de créditos), igualmente listados (schedules 6 e 9), títulos derivados (schedule 8) e contas bancárias (schedule 7). A CGD e o Banco Invest são notificados da constituição das garantias (são referidos no n.º 1 os signatários do Security Agreement).

 

  1. As obrigações garantidas são definidas em sentido muito amplo, remetendo para os Debt Documents da transação de base que por sua vez remetem para um Intercreditor Agreement. Um acordo entre credores visa definir o relacionamento entre uma série de credores que forneçam financiamento ao mesmo tomador e regular a execução das garantias[5]. Se os credores cederem ou graduarem entre si os seus créditos sobre o devedor o acordo entre credores define se e em que termos os mesmos também estão garantidos pelo Security Agreement. Também aqui é decisiva a análise dos documentos do empréstimo em concreto. No caso, a AT em momento algum pôs em causa que se trata de uma garantia das obrigações emitidas pelo Requerente.

 

  1. No entanto, apesar de se tratar de uma operação registada, a AT entende que a isenção do artigo 7.º, n.º 1, alínea d), do CIS[6], se aplica só a operações do mercado secundário, considerando tratar-se aqui de uma emissão de obrigações particular, não aberta ao público em geral. Do mesmo modo, alguma jurisprudência colocou a questão de saber se a mesma deve incidir apenas sobre garantias legalmente impostas, interpretando desse modo a expressão “garantias inerentes a operações realizadas”[7]. Importa, portanto, aprofundar a discussão do tema. 

 

  1. Do direito da União Europeia resulta que os impostos indiretos que incidem sobre as reuniões de capitais, podem facilmente dar origem a discriminações, duplas tributações e disparidades que dificultam a livre circulação de capitais. Por isso, existe uma forte restrição à criação e aplicação de impostos indiretos às mais variadas operações financeiras que estejam relacionadas com essas reuniões de capitais. Assim se compreende, dada a facilidade com que os ordenamentos jurídicos nacionais podem fazer uma utilização protecionista do sistema fiscal, colocando os interesses nacionais acima do interesse público europeu de dinamização de um mercado interno assente nas várias liberdades fundamentais, entre as quais a liberdade de circulação de capitais.

 

  1. A livre circulação de capitais é um dos quatro pilares do TFUE, juntamente com a livre circulação de bens, de serviços e de trabalhadores, sendo estes indissociáveis dos princípios da igualdade e não discriminação em função da nacionalidade. O Artigo 63.º do TFUE proíbe limitações à livre circulação de capital entre Estados-Membros e entre estes e países terceiros, ao passo que o Artigo 65.º permite algumas exceções.

 

  1. A doutrina da livre circulação de capital supõe não apenas que a moeda possa circular livremente no mercado interno da União Europeia, como também se aplica a domínios como a compra de imóveis, o investimento em títulos de participação ou a tributação de indivíduos e sociedades pelos Estados-Membros. A não conformidade com o TFUE por parte dos Estados-Membros na criação e aplicação da lei fiscal nacional constitui a principal ameaça à livre circulação de capitais. Tem sido responsabilidade do TJUE interpretar os artigos 63.º e 65.º de modo a prevenir e reprimir as violações dessa liberdade fundamental, devendo os tribunais nacionais desaplicar normas e atos que lhe sejam contrários.

 

  1. A Diretiva 69/335/EC e a Diretiva 2008/7/CE, que a revogou e substituiu, procederam a uma harmonização exaustiva dos casos em que os Estados‑Membros podem sujeitar as reuniões de capitais a impostos indiretos, aplicando um quadro normativo bastante restritivo desses impostos.[8] Da letra da Diretiva 2008/7/CE não resulta que a reunião de capitais (v.g. emissão de obrigações) deva necessariamente envolver um número mínimo de investidores para ser abrangida pelo seu âmbito e programa normativo. Já da sua teleologia parece resultar que o número de investidores (v.g. adquirentes de títulos) numa operação desse tipo é economicamente indiferente, visto que se pretende, em última análise, é viabilizar a reunião de capitais.

 

  1. O artigo 5.º, n.º 2, alínea b), da Diretiva 2008/7/EC – que reproduz o artigo 11.º, n. º 2, da Diretiva 69/335/EC – dispõe que os Estados-Membros não devem sujeitar a qualquer forma de imposto indireto  “[o]s empréstimos, incluindo os estatais, contraídos sob a forma de emissão de obrigações ou outros títulos negociáveis, independentemente de quem os emitiu, e todas as formalidades conexas, bem como a criação, emissão, admissão à cotação em bolsa, colocação em circulação ou negociação dessas obrigações ou de outros títulos negociáveis”. Porém, a proibição da cobrança de impostos indiretos sobre as operações de reunião de capitais na Diretiva 2008/7/CE não é absoluta, como se vê no artigo 6.º[9].

 

  1. Porém, nada, no artigo 6.º da Diretiva 2008/7/EC, permite sustentar a tributação indireta da prestação de garantias. Com efeito, as derrogações deste artigo à proibição de impostos indiretos do artigo 5.º apenas abrangem a)  impostos sobre a transmissão de valores mobiliários, cobrados forfetariamente ou não; b) direitos de transmissão, incluindo os encargos de registo de propriedade que incidem sobre a entrada, numa sociedade de capitais, de bens imóveis ou de estabelecimentos comerciais sitos no respetivo território; c) direitos de transmissão sobre ativos de qualquer natureza que constituam entradas de capital numa sociedade de capitais, na medida em que a transmissão dos referidos ativos não seja remunerada através de partes sociais; d) direitos que onerem a constituição, inscrição ou extinção de privilégios e hipotecas; e) direitos com carácter remuneratório; e f) imposto sobre o valor acrescentado. O Security Agreement não permite concluir que se esteja diante da constituição de privilégios ou hipotecas para que se permita a previsão legal de direitos que os onerem.

 

  1. Da jurisprudência do TJUE resulta que, tendo em conta os objetivos prosseguidos, os vários artigos da Diretiva 69/335/CE e o artigo 5.º da Diretiva 2008/7/CE devem ser objeto de uma interpretação latu sensu, para evitar que as proibições previstas nestas disposições sejam privadas de efeito útil[10]. O tribunal do Luxemburgo privilegiou claramente uma interpretação teleológica do direito primário e secundário relevante, orientada para a criação das condições jurídicas e económicas necessárias à reunião de grandes quantidades de capital e ao aumento do investimento no seio do mercado interno.

 

  1. Neste sentido, o TJUE declarou que, em conformidade com os objetivos do artigo 11.º da Diretiva 69/335/CE e do artigo 5.º, n.º 2, da  Diretiva 2008/7/CE, a proibição da tributação indireta das operações de reunião de capitais se aplica igualmente às operações que não estão expressamente referidas nesta proibição, quando essa imposição equivaler, na prática, a tributar uma operação que faça parte integrante de uma operação global relevante do ponto de vista da reunião de capitais, não sendo necessário que essa integração resulte de uma exigência legal[11].

 

  1. Do mesmo modo, o TJUE já esclareceu que o artigo 11.°, alínea b), da Diretiva 69/335, disposição cuja redação era idêntica à do artigo 5.°, n.° 2, alínea b), da Diretiva 2008/7/CE, que revogou a Diretiva 69/335/CE, devia ser interpretado no sentido de que a proibição de sujeitar um empréstimo obrigacionista ao imposto se opõe igualmente à tributação de todas as formalidades conexas, incluindo o ato notarial obrigatório para registar o reembolso desse empréstimo.[12] O número de investidores/credores envolvido não foi considerado relevante.  A orientação do TJUE atribuiu relevância decisiva à substância económica das operações. 

 

  1. Do princípio do primado do direito da União Europeia deduz-se o dever de interpretação do direito nacional em conformidade o mesmo e, o que é o mesmo, com a leitura que dele é feita, de maneira autorizada, pelo TJUE.  Pelo que o sentido interpretativo acima exposto não pode ser preterido quanto se analisa a tributação indireta de uma constituição de garantias económica e funcionalmente acessória de uma emissão de obrigações. A mesma afigura-se necessária e indispensável à viabilização da própria emissão de obrigações e da correlativa obtenção de crédito. De acordo com a jurisprudência do TJUE, o critério decisivo obriga a indagar se a constituição de garantias efetuada pelo Security Agreement deve ser considerada uma operação acessória integrada na operação de emissão das obrigações em presença, estabelecendo com ela uma estreita relação e integrando ambas uma operação global de reunião de capitais[13].

 

  1. Dificilmente será viável a concessão de crédito e a reunião de grandes quantidades de capital sem a existência acessória de sistemas eficazes de redução do risco de crédito, como é o caso da constituição de garantias. Trata-se de operações de tal forma estreitamente ligadas que formam, objetivamente, uma única realidade económica indissociável, cujos elementos se apresentam, não apenas inseparáveis, mas também  colocados no mesmo plano, do ponto de vista da substância económica, visto que ambos são indispensáveis à realização do objetivo de reunião de capitais ínsito na edificação do mercado interno da União Europeia e subjacente ao artigo 63.º do TFUE.

 

  1. Em abstrato, a constituição de garantias é economicamente indissociável das operações como o mútuo ou a emissão de obrigações. Em concreto, o Security Agreement em presença é económica e juridicamente indissociável do contrato obrigacionista (senior bond agreement). Proibir a tributação indireta de uma emissão de obrigações e permitir essa mesma tributação na prestação de garantias seria o mesmo que deixar entrar pela janela o que primeiro se fez sair pela porta.

 

  1. O contrato de garantia (Security Agreement), longe de constituir um fim em si mesmo, representa um elemento materialmente acessório de um contrato principal de concessão de crédito (i.e. emissão obrigacionista), sendo concebido como um meio para a sua viabilização. A separação entre o contrato principal de emissão de obrigações e o contrato acessório de constituição de garantias seria uma operação meramente conceitual, de natureza artificial, indiferente à estreita ligação substantiva – económica e funcional – que se estabelece entre ambos. 

 

  1. O Security Agreement não tem uma finalidade autónoma que o justifique, a não ser a de tornar possível a realização da operação principal de financiamento (v.g. emissão obrigacionista), sendo de constituição simultânea e materialmente acessória da mesma. Daí que se deva alargar ao contrato acessório o tratamento fiscal concedido ao contrato principal, de acordo com uma lógica que o TJUE tem adotado, por exemplo, em matéria de IVA. Uma interpretação da isenção de IS do artigo 7.º, n.º 1, alínea d), do CIS, em conformidade com o direito da União Europeia reconduz à mesma a prestação de garantias constante do Security Agreement em presença[14].

 

  1. A proibição de tributação indireta das operações de emissões de obrigação e de todas as formalidades conexas, deve incluir a constituição de garantias, sob pena de, doutro modo,  se privar as disposições do artigo 5.º da Diretiva 2008/7/CE – e o próprio artigo 63.º do TFUE que lhe serve de suporte – de qualquer efeito útil. Aplica-se aqui o raciocínio, seguido pelo TJUE, segundo o qual operações estreitamente relacionadas com uma operação isenta devem beneficiar da sua isenção, a fim de permitir que essa isenção goze de plena eficácia[15].
  2. De acordo com o n.º 1 do artigo 43.º da LGT, “[s]ão devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.”
  3. Considerando a decisão de indeferimento proferida no âmbito do procedimento de reclamação graciosa n.º ...2024..., no qual se discutiu a legalidade por erro na autoliquidação de IS relativo à constituição de garantias ao abrigo do contrato de constituição de garantias “Security Agreement”, celebrado a 25.01.2024, nos termos supra descritos, e não havendo dúvida de que, in casu, ocorreu um imputável aos serviços, e que desse erro resultou o pagamento de uma dívida tributária em montante superior ao legalmente devido, cumpre reconhecer à Requerente o direito a juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.º, n.º 1, da LGT, sobre o montante a restituir à Requerente em virtude da referida anulação parcial das liquidações impugnadas.

 

 

  1. Decisão

Nestes termos, e com os fundamentos expostos, decide o presente Tribunal Arbitral:

  1. Anular o Ato Tributário acima identificado; 

 

  1. Anular a decisão de indeferimento proferida no âmbito do procedimento de reclamação graciosa n.º ...2024...;

 

  1. Condenar a AT ao reembolso do IS pago, acrescido de juros indemnizatórios nos termos previstos no artigo 43.º da LGT.

 

  1. Valor do processo

Fixa-se ao processo o valor de € 120.000,00, em conformidade com o disposto no artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT, aplicável por remissão do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”).

  1. Custas arbitrais

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante de custas arbitrais em € 3.060,00, de acordo com a Tabela I anexa ao RCPAT, a cargo da Requerida.

Notifique-se.

 

 

Lisboa, 3 de março de 2025

 

O Tribunal Arbitral,

 

Rui Duarte Morais

 

 

Jónatas Machado

 

 

 

 

Sérgio Santos Pereira

 

 



[1] Cfr., porém, Acórdão do CAAD no Processo n.º 80/2021-T, de 03.08.2021.

[2] Cfr, Diário da República n.º 145/2000, 1º Suplemento, Série III de 26.06.2000. Trata-se de uma sociedade que adotou a denominação de G..., S. A., e rege-se pelos presentes estatutos, pelo Decreto-Lei n.º 394/99, de 13 de Outubro, pelo Código dos Valores Mobiliários e pelo Código das Sociedades Comerciais.

[3] Richard Hooley, “Release provisions in intercreditor agreements”, 3, Journal o Business Law, 2012, 213 ss. 

[4] Marc D. Wassermann, “United States - lender liability: agent bank obligations”, Journal of International Banking Law, (6) 1994, 134 ss.

[5] Hooley, Release provisions in intercreditor agreements…, cit, 213 ss. 

[6] Artigo 7.º, n.º1 do CIS: “São também isentos do imposto: d) As garantias inerentes a operações realizadas, registadas, liquidadas ou compensadas através de entidade gestora de mercados regulamentados ou através de entidade por esta indicada ou sancionada no exercício de poder legal ou regulamentar, ou ainda por entidade gestora de mercados organizados registados na CMVM, que tenham por objeto, direta ou indiretamente, valores mobiliários, de natureza real ou teórica, direitos a eles equiparados, contratos de futuros, taxas de juro, divisas ou índices sobre valores mobiliários, taxas de juro ou divisas;”

[7] Cfr. Acórdão do CAAD no Processo n.º 80/2021-T, de 03.08.2021

[8] C‑178/05, Comissão/Grécia,07.06.2007.

[9] Cfr., Acórdão do CAAD no Processo n.º 636/2022-T, de 10.03.2022.

[10] C‑335/22, A. S.A, v. Autoridade Tributária e Aduaneira, de 19.07.2023 § 22; C‑656/21, IM Gestão de Ativos, de 22.12.2022; C‑415/02, Comissão/Bélgica, de 15.07.2004; C‑466/03, Albert Reiss Beteiligungsgesellschaft, de 28.06.2007; C‑569/07, HSBC Holdings e Vidacos Nominees, de 01.10.2009.

[11] C‑299/13, Gielen, de 09.0.2014

[12] C‑31/97 e C‑32/97, FECSA e ACESA, de 27.10.1998.

[13] C‑335/22, A. S.A, v. Autoridade Tributária e Aduaneira, de 19.07.2023, §§ 23-29.

[14]  Cfr. Opinião do Advogado Geral Priit Pikamäe e Decisão no caso C‑231/19, Blackrock Investment Management (UK), respetivamente de 11.03.2020 e 02.07.2020.

[15] Nestes precisos termos, C‑231/19, Blackrock Investment Management (UK), 02.07.2020, § 43.