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Sumário:
A restituição ou reembolso parcial, seja em numerário, seja em espécie, de créditos detidos numa sociedade a título de suprimentos e outros créditos, não integra a previsão normativa de incidência constante do n.º 1 do artigo 5.º do Código do IRS porque, não obstante a sua amplitude, não contempla, em nenhuma circunstância, o recebimento do capital.
DECISÃO ARBITRAL
Acordam em tribunal arbitral
I – Relatório
1. A..., contribuinte fiscal n°..., residente na Rua ..., n° ..., na da ..., no município de ... (doravante "Requerente"), vem requerer a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (RJAT), para apreciar a legalidade do indeferimento tácito, ocorrido no dia 29 de Abril de 2024, da reclamação graciosa apresentada contra a liquidação adicional de IRS 2023 ... e da Demonstração de Acerto de Contas n.º 2023... e respetiva Demonstração de Liquidação de Juros Compensatórios, das quais resulta IRS a pagar no montante total de € 147.183,39 referente ao ano de 2019, pedindo a sua anulação e consequente anulação do imposto liquidado, requerendo ainda a condenação da Autoridade Tributária no reembolso do imposto indevidamente pago e no pagamento de juros indemnizatórios.
Fundamenta o pedido, em síntese, nos seguintes termos:
A Requerente, em 10 de Dezembro de 2019, adquiriu à sociedade B..., Lda. (B...), na qual é titular de um crédito no valor de € 1.908.993,67, uma fração autónoma destinada à habitação, a fração designada pelas letras "AD" do prédio sito na Rua ..., no lugar da ..., na freguesia da ..., no município de Ílhavo, inscrito na matriz predial sob o artigo ... da dita freguesia, pelo preço de € 200.000,00 (duzentos mil euros), integralmente pago pela Requerente àquela sociedade mediante compensação com o crédito por si nela detido, pelo que não houve qualquer transferência de património imobiliário.
Também foram efetuados reembolsos de capital, correspondentes a pagamentos efetuados pela B... à Requerente, por conta do crédito de suprimentos de que esta era titular naquela sociedade e cuja titularidade teve por base a cedência de créditos efetuada em 31.12.2015 pela anterior titular (C...) à ora Requerente, entre eles, os reembolsos de 220.000,00€ e de 250.000,00€, que somam o valor de 470.000,00€ que a Inspeção Tributária adicionou à matéria coletável em sede de IRS de 2019 e que deu origem à liquidação cuja declaração de ilegalidade e consequente anulação aqui se peticiona;
A Requerente discorda desta correção e do fundamento jurídico em que no Relatório da Inspeção Tributária ela se sustenta, e, consequentemente, do indeferimento tácito da reclamação graciosa tempestivamente apresentada e da manutenção dos efeitos jurídicos da liquidação de IRS efetuada.
2. O pedido de constituição do Tribunal foi submetido em 16 de julho de 2024, sendo Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT).
O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD em 18 de julho de 2024 e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira nos termos regulamentares.
Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral coletivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
As partes foram oportuna e devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral coletivo foi constituído em 24 de setembro de 2024.
Por despacho da mesma data, foi a Requerida notificada para apresentar Resposta no prazo de 30 dias e juntar o Processo Administrativo (PA),
A AT apresentou a Resposta e o Processo Administrativo em 29-10-2024, defendendo-se por impugnação, remetendo para o Relatório da Inspeção Tributária (RIT), não aceitando que a questão dos mútuos que teriam ocorrido entre 2000 e 2006 fosse dissociada da questão da cessão de créditos e pugnando pela manutenção do ato tributário impugnado.
Por despacho de 31 de outubro de 2024, o Tribunal, marcou a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT, tendo em vista a inquirição das testemunhas e da parte, apresentadas pelas partes e outras matérias suscetíveis de ali serem tratadas.
Em 12 de dezembro de 2024, pelas 10 horas, realizou-se, por meios telemáticos e também presencialmente, a reunião anteriormente referida. Logo que tomou a palavra o Ilustre Mandatário da Requerente declarou prescindir das declarações de A... e da Testemunha B... . Passou-se então à inquirição da testemunha D... . Terminada a inquirição, também a Ilustre Representante da Requerida declarou prescindir, embora estivessem presentes nas instalações do CAAD em Lisboa, das testemunhas por si arroladas, E... e F..., inspetores tributários. Foram, então, a Requerente e a Requerida, notificadas para, por esta ordem, apresentarem alegações escritas no prazo de 10 dias, sendo que o prazo para a Requerida começaria a contar com a notificação da junção das alegações da Requerente ou do termo do prazo a esta concedido. Integraram o processo a Ata da inquirição, bem como a gravação integral da sessão de julgamento.
A Requerente apresentou as suas alegações em 7 de janeiro de 2025, concluindo-as nos termos seguintes:
Nestes termos e nos melhores de Direito, deve ser dado provimento impugnação efetuada, declarando-se ilegal e, consequentemente, devendo ser anulada a liquidação adicional, face à factualidade acima referida, concluindo-se, no mais, como no requerimento de pedido de pronuncia arbitral.
A Requerida não apresentou alegações.
II - Saneamento
3. O tribunal arbitral foi regularmente constituído.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
O processo não enferma de nulidades e não foram invocadas exceções.
Cabe apreciar e decidir.
III - Fundamentação
Matéria de facto
4. Os factos relevantes para a decisão da causa tidos como assentes são os seguintes:
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A Requerente é acionista maioritária, embora se desconheça desde que data, e administradora única da sociedade G..., SGPS, SA, NIPC..., que, por sua vez, detêm participações maioritárias nas sociedades B..., Imobiliária, Lda. (B...), NIPC..., H..., Imobiliária, Lda., (H...) e I..., SA (I...), NIPC (cf. RIT, III.3, Outras situações);
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A Requerente foi alvo da ação de inspeção interna credenciada pela Ordem de Serviço nº OI2023... da DF de Aveiro, de âmbito parcial (IRS), ao ano de 2019, tendo como fins, procedimento de comprovação e verificação, visando a confirmação do cumprimento das obrigações dos sujeitos passivos e demais obrigados tributários (Cf. Doc. 3 e RIT, II.1 Credencial, motivo, âmbito e incidência temporal);
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A ação de inspeção à Requerente foi determinada por informações e elementos que foram recolhidos e analisados no âmbito das ações inspetivas realizadas à sociedade B..., Lda., visando os anos de 2018 e 2019, credenciadas pelos Despachos Inspetivos DI2021... DI2021..., assim descritos no RIT (Cf. RIT, IV. Descrição da análise efetuada):
Assim, no decorrer da ação inspetiva ao ano de 2019, quando se analisaram os rendimentos declarados nesse ano pela B..., Lda, constatou-se que uma das vendas de imóveis realizada nesse ano tinha sido efetuada à Sra A..., trabalhadora dependente da sociedade até julho desse ano (consta das DMR entregues para a B... para os meses de janeiro a julho de 2019), não constando como gerente de direito da B... sendo, no entanto, administradora única da G...– SGPS, SA, NIF..., sociedade que detém a maioria das quotas da B..., Lda.
Da análise à referida operação, também se constatou que o pagamento do preço pelo qual foi escriturada a venda do dito imóvel foi efetuado por compensação de um crédito que aquela alegadamente detinha sobre a B..., registado por esta na conta do SNC “278210010 -A...”, conta esta constituída nesse ano de 2019, com um saldo credor de montante elevado, ou seja, 1.980.993,67€.
O documento que suporta o lançamento do referido saldo na conta do SNC “278210010 -A...” consiste num “Contrato de dação em cumprimento mediante cedência de créditos”, datado de 31-12-2015. Ou seja, a abertura da referida conta e o reconhecimento do dito saldo credor teve por base um contrato lavrado em 2015 e que apenas foi lançamento em 2019 (4 anos depois!) na contabilidade da B..., Lda.
Da análise ao referido contrato, apurou-se que a cedência de créditos sobre a B..., Lda, bem como de outros créditos sobre outras sociedades, foi efetuada pela Sra A..., NIF ..., habitualmente residente em França, para pagamento de mútuos que lhe teriam sido concedidos pela Sra A... entre 2000 e 2006, de montante “superior a três milhões e oitocentos mil euros”.
Assim, atendendo aos elevados montantes envolvidos e ao dilatado hiato de tempo entre a data em que foi lavrado o contrato de dação em pagamento e o seu registo na contabilidade da B..., Lda, bem como, atendendo ao facto de se ter verificado que havia uma enormíssima desproporção entre os rendimentos declarados em sede de IRS pela Sra A... para o período em que terá concedido os referidos mútuos (entre 2000 e 2006), na informação encerramento de ação inspetiva à sociedade (já anteriormente identificadas) foi proposta a abertura de ação inspetiva à Sra A..., para que, no âmbito da referida ação, esta pudesse comprovar que efetivamente realizou os mútuos referidos no contrato de dação em cumprimento assinado em 31-12-2015.
Adicionalmente, também foi proposta a abertura de despachos inspetivos em nome das restantes sociedades identificadas no contrato de dação em pagamento, a fim de se aferir se este também tinha sido reconhecido nas ditas sociedades e se, após isso, teriam existido saídas de fluxos financeiros dessas sociedades tendo como beneficiária a Sra A..., e, a existirem, que título teriam sido feitos.
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No ano de em 2019 foi criada na contabilidade da sociedade B..., Ldª a conta do SNC “278210010 -A...”, com um saldo credor inicial no montante de € 1.980.993,67 (Cf. RIT, IV. Descrição da análise efetuada);
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Na base dos movimentos contabilísticos efetuados nas sociedades identificadas encontra-se um denominado "Contrato de Dação em cumprimento mediante cedência de créditos" (doravante, CONTRATO), datado de 31-12-2015 (CF. RIT, Anexo I);
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Através do CONTRATO, C... (cedente), NIF..., confessa e declara-se devedora à Requerente (cessionária), por mútuos que esta lhe efetuou no período de 2000 a 2006, de montante superior a € 3.800.000,00 (Cf. Considerando IV do CONTRATO);
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Em dação em cumprimento, a cedente transmite à cessionária diversos créditos que detém nas sociedades já identificadas (CF. Considerando IV - sic, mas subsequente ao Considerando IV, certamente por lapso - devendo ter-se como Considerando V do CONTRATO), assim quantificados:
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€ 1.577.301,95, crédito na G..., constituído por suprimentos e pelo remanescente de um crédito que adquirido por cessão de créditos em 2011, pelo preço de € 1.419.571,76 (Cf. CONTRATO, Cláusula Primeira);
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€ 121.716,54, crédito na H..., constituído por suprimentos adquiridos por cessão de créditos em 2014 e pelo remanescente de um crédito que adquirido por cessão de créditos em 2011, pelo preço de € 121.716,54 (Cf. CONTRATO, Cláusula Segunda);
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€ 207.472,85, crédito na I..., constituído por suprimentos e adquirido por cessão de créditos em 2014, pelo preço de € 207.472,85 (Cf. CONTRATO, Cláusula Terceira);
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€ 1.980.993,67, crédito na B..., constituído por suprimentos e adquirido por cessão de créditos em 2014, pelo preço de € 1.980.993,67 (Cf. CONTRATO, Cláusula Quarta),
somando estes créditos a quantia global nominal de € 3.887.485,01 e tendo sido transmitidos pelo preço global de €3.729.754,82;
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Na contabilidade da B... , no final de 2018 a conta do SNC “278210009 C...” tinha um saldo credor de € 1.980.993,67, o qual deixou de existir no final de 2019, uma vez que a referida conta ficou saldada no final desse ano (sem qualquer valor em saldo devedor ou saldo credor) e que em 2019 o saldo credor da referida conta transitou para a conta “278210010 -A...”, uma conta criada nesse ano (cf. Anexos 5 e 6 ao RIT);
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A conta "278210010 – A..." na contabilidade da B..., apresentava, em 31-12-2019, um débito de € 220.000,00 e, em consequência um saldo de € 1.760.993,67 (Cf. RIT, IV - Descrição da análise efetuada);
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A Requerente adquiriu à B..., em 10-12-2019, a fração autónoma identificada pelas letras "AD" do prédio urbano inscrito na matriz predial da freguesia ..., pelo valor de € 200.000,00, tendo o preço sido pago por débito da conta antes identificada pelo valor de € 220.000,00 (Cf. RIT, IV - Descrição da análise efetuada);
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E ainda durante o ano de 2019 a Requerente foi reembolsada pela B... de mais € 250.000,00, embora o lançamento correspondente à respetiva transferência efetuada em 16-12-2019 para a G..., só tenha sido regularizado já em 2020, considerando a Requerente como destinatária (facto consensual e RIT, Doc. 2);
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A Requerente não apresentou prova de que, efetivamente, concedeu os mútuos referidos no “Contrato de dação em cumprimento mediante cedência de créditos” assinado em 31-12-2015 (Cf. RIT, IV - Descrição da análise efetuada e Petição Inicial, facto admitido, v. g., artigos 51.º e seguintes);
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A Requerente não é sócia da B... (Prova testemunhal);
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Durante os anos de 2000 a 2006, o agregado familiar em que a Requerente, enquanto sujeito passivo B, se integrava, declarou os seguintes rendimentos para efeitos de tributação em IRS (Cf. RIT, IV - Descrição da análise efetuada):
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A Requerente deduziu reclamação graciosa contra a liquidação de IRS que lhe foi efetuada em 28 de dezembro de 2023 (Cf. PI, art. 3.º, PA-RG e facto não contestado);
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Não foi notificada à Requerente, até ao termo do prazo de 4 meses após a apresentação, a decisão sobre a reclamação graciosa, tendo-se, assim, constituído a presunção de indeferimento tácito em 28 de abril de 2024 (Cf. PA-RG);
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A Requerente apresentou pedido de pronúncia arbitral em 17 de julho de 2024.
Factos não provados
5. Com relevância para a decisão não se consideram provados os empréstimos que possam ter sido feitos pela Requerente a C..., no período compreendido entre 2000 e 2006, de valor superior a três mil e oitocentos milhões de euros.
Motivação da matéria de facto
6. O Tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada com base nos documentos juntos à petição, no processo administrativo junto pela Autoridade Tributária com a Resposta e na prova testemunhal.
Matéria de direito
7. A Requerente deduziu pedido de pronúncia arbitral contra o ato de liquidação adicional de IRS relativo ao ano de 2019, praticado na sequência de um processo de inspeção interna determinado pelos elementos colhidos em sociedades com as quais se encontra relacionada, invocando errónea qualificação e quantificação da matéria tributável e erro nos pressupostos de facto e de direito do facto tributário.
Justifica a sua posição estribada num documento particular denominado CONTRATO DE DAÇÃO EM CUMPRIMENTO MEDIANTE CEDÊNCIA DE CRÉDITOS celebrado em 31 de dezembro de 2015 e assinado pela cedente e pela cessionária, com assinaturas não reconhecidas presencialmente ou por semelhança, em cujos termos, no Considerando IV que antecede o clausulado, a cedente se confessa devedora à Requerente de importância superior a três milhões e oitocentos mil euros em razão de empréstimos que, no período compreendido entre 2000 e 2006 e, para integral pagamento da sua dívida, cede créditos, consistentes em suprimentos e créditos de outra natureza, que detém, registados em seu nome, em quatro sociedades, no valor nominal total de € 3.887.485,01 e que lhe foram transmitidos pelo preço global de € 3.729.754,82.
Contesta a qualificação de rendimentos de capitais atribuída no Relatório da Inspeção Tributária à importância de € 470.000,00 que, em 2019, recebeu, em numerário e em espécie por débito da conta por si titulada na B... em resultado da mencionada dação em cumprimento mediante cessão de créditos e que foi debitada em igual importância. Contrapõe que as importâncias recebidas constituem reembolso parcial do capital constitutivo dos referidos créditos e que, consequentemente, não existe no Código do IRS nenhuma norma que as qualifique, em qualquer das categorias de rendimentos, como rendimento tributável. Embora a não tenha invocado, retira-se dos factos invocados que a Requerente entende inexistir facto tributário.
Por outro lado, refuta qualquer ligação entre os empréstimos que teria efetuado à cedente e os créditos que passou a deter nas quatro sociedades, invocando a natureza jurídica distinta dos mútuos civis e dos mútuos comerciais.
A Requerida impugna a posição da Requerente, colocando em primeiro lugar a sua oposição à inexistência de nexo entre os mútuos que a Requerente terá concedido à cedente dos créditos, porquanto a cedência de créditos por dação em cumprimento não teria qualquer conteúdo útil se não existisse um vínculo jurídico em que a cedente ocupava a posição passiva, devendo cumprir a restituição dos mútuos que lhe haviam sido efetuados.
E defende a manutenção da qualificação de rendimentos de capitais que no RIT foi atribuída à importância de € 470.000,00 e, consequentemente, a sua sujeição a tributação em IRS na categoria E, por outra não existir que contemple a situação de facto subjacente, uma vez que, embora instada para o efeito, a Requerente não comprovou que tivesse, efetivamente, mutuado quaisquer capitais à cedente.
Cumpre ao Tribunal conhecer de mérito e decidir.
Os mútuos enquanto possível relação fundamental do contrato de dação em cumprimento mediante cedência de créditos de suprimentos e de outros créditos detidos sobre sociedades
São cinco os conceitos que, integrando a delimitação objetiva da causa de pedir e sendo imprescindíveis à sua interpretação, devem ser explicitados na sua dimensão jurídica. São eles o "mútuo", a "dação em cumprimento" e a "cedência ou cessão de créditos", os "suprimentos" e "outros créditos".
Sobre o mútuo (civil) dispõe o artigo 1142.º do Código Civil (CC), ao qual se recorre nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 11.º da Lei Geral Tributária (LGT), que é o contrato pelo qual uma das partes empresta à outra dinheiro ou outra coisa fungível, ficando a segunda obrigada a restituir tanto do mesmo género e qualidade. E é também apropriado, atento o contexto, chamar à colação o disposto o n.º 1 do artigo 1145.º[1] que, sob a epígrafe (Gratuitidade ou onerosidade do mútuo), prescreve que as partes podem convencionar o pagamento de juros como retribuição do mútuo; este presume-se oneroso em caso de dúvida.
A dação em cumprimento, enquanto modalidade de satisfação do direito do credor e de produção da extinção do direito do credor, nos termos do artigo 523.º do CC, vem regulada mais adiante, nos artigos 837.º e seguintes. Ela é admitida, nos termos do artigo 837.º, se a prestação de coisa diversa da que for devida, embora de valor superior, só exonera o devedor se o credor der o seu assentimento. Considerando, no entanto, que a lei consagra a dação em cumprimento em duas diferentes figuras - a dação em cumprimento, acordo de atribuição de valor liberatório a prestação diferente da devida (artigos 837.º a 839.º) e a dação pro solvendo (artigo 840.º) em que se transmite ou entrega certo bem, não para imediata extinção da dívida, mas para ser alienado ou exercido pelo credor (mandato para alienação)[2] e afigurando-se ter interesse para a decisão, importa deixar expressa a sua noção legal: 1. Se o devedor efetuar uma prestação diferente da devida, para que o credor obtenha mais facilmente, pela realização do valor dela, a satisfação do seu crédito, este só se extingue quando for satisfeito, e na medida respetiva. 2. Se a dação tiver por objeto a cessão de um crédito ou a assunção de uma dívida, presume-se feita nos termos do número anterior.
A cessão de créditos, tem o seu regime jurídico consagrado no CC, na Secção I do Capítulo IV do Livro II - Título I, Das obrigações em geral, artigos 577.º a 588.º. De acordo com o n.º 1 do artigo 577.º, o credor pode ceder a terceiro uma parte ou a totalidade do seu crédito, independentemente do consentimento do devedor, contanto que a cessão não seja interdita por determinação da lei ou convenção das partes e o crédito não esteja, pela própria natureza da prestação, ligado à pessoa do credor. Deve ter-se em conta que, conforme se dispõe no n.º 1 do artigo 578.º, os requisitos e efeitos da cessão entre as partes definem-se em função do tipo de negócio que lhe serve de base. E, bem assim, o disposto no n.º 1 do artigo 582.º: Na falta de convenção em contrário, a cessão do crédito importa a transmissão, para o cessionário, das garantias e outros acessórios do direito transmitido, que não sejam inseparáveis da pessoa do cedente. Por último, conforme se prescreve no artigo 583.º: 1. A cessão produz efeitos em relação ao devedor desde que lhe seja notificada, ainda que extrajudicialmente, ou desde que ele a aceite. 2. Se, porém, antes da notificação ou aceitação, o devedor pagar ao cedente ou celebrar com ele algum negócio jurídico relativo ao crédito, nem o pagamento nem o negócio é oponível ao cessionário, se este provar que o devedor tinha conhecimento da cessão.
Os créditos cedidos, nos termos contratuais, respeitavam a "suprimentos" e a "outros créditos obtidos por cessão de créditos". Nos termos do artigo 243.º, n.º 1, do Código das Sociedades Comerciais (CSC), «Considera-se contrato de suprimento o contrato pelo qual o sócio empresta à sociedade dinheiro ou outra coisa fungível, ficando aquela obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade, ou pelo qual o sócio convenciona com a sociedade o diferimento do vencimento de créditos seus sobre ela, desde que, em qualquer dos casos, o crédito fique tendo caráter de permanência». No que diz respeito aos "outros créditos" cedidos apenas se pode concluir que são dívidas das sociedades para com não sócios, ou seja, para com terceiros.
Da natureza jurídica dos "considerandos" num contrato
Deve tomar-se uma posição sobre a natureza jurídica dos "considerandos" que antecedem as cláusulas regulatórias do contrato, estas, em princípio, com natureza vinculativa para entre as partes, mesmo que numa das cláusulas contratuais se escreva que "o referido nos Considerandos do presente contrato é sua parte integrante e constitui seu elemento interpretativo". De facto, os considerandos integram o contrato, mas, no plano jurídico, mais não são que elemento auxiliar da sua interpretação. É que, o Considerando IV do Contrato aqui em análise, poderia, numa aproximação preliminar, configurar-se como uma "confissão de dívida" extrajudicial, negócio jurídico unilateral regulado nos artigos 352.º a 361.º do CC.
Os “considerandos” de um instrumento legislativo (p. ex., uma Diretiva Europeia), bem como o Preâmbulo de uma lei ou decreto-lei portugueses não são lei, mas reconhece-se-lhes uma dimensão jurídica no plano da sua interpretação e aplicação.
Assim, no primeiro caso, a sua falta pode mesmo ser pressuposto de invalidade do ato legislativo europeu, conforme defende Afonso Patrão[3]:
No direito da União Europeia - os actos jurídicos emanados pelos respectivos órgãos e instituições - a parte dispositiva é precedida por considerandos. Cuja existência é necessária por força do disposto no segundo parágrafo do artigo 296.º do Tratado Sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE): aí se impõe que todos os actos jurídicos europeus sejam "fundamentados" e "façam referência às propostas, iniciativas, recomendações, pedidos ou pareceres previstos pelos Tratados". Ora, sabendo-se que o dever de fundamentação implica não só a indicação da base jurídica que autoriza a actuação da União, como também a explicitação das razões que determinaram a actuação europeia, são os considerandos que asseguram o cumprimento daquela condição de validade dos actos europeus. Nessa medida, quando não especificam as razões fundamentais da intervenção comunitária determina-se a anulação do acto europeu
No segundo caso, a Resolução do Conselho de Ministros n.º 65/2024, de 24 de Abril, que aprova o Regimento do Conselho de Ministros do XXIV Governo Constitucional, integra, no artigo 3.º do seu Anexo II, o seguinte preceito:
Artigo 3.º
Preâmbulo e exposição de motivos
1 - Os atos normativos do Governo devem conter um preâmbulo, com o objetivo de os destinatários desses atos ficarem a conhecer, de forma simples e concisa, as linhas orientadoras do diploma e a sua motivação, formando um corpo único com o respetivo articulado.
2 - As propostas de lei devem ser acompanhadas da respetiva exposição de motivos, redigida de forma a fornecer os dados necessários para uma tomada de decisão objetiva e fundamentada pela Assembleia da República.
3 - O preâmbulo ou a exposição de motivos não contêm exposições doutrinárias, nem se pronunciam sobre matéria omissa no respetivo diploma.
4 - Na parte final do preâmbulo ou da exposição de motivos deve referir-se, quando for caso disso, a realização de consultas a cidadãos eleitores e a negociação, participação ou audição de entidades, procedendo-se à identificação das entidades envolvidas e do seu caráter obrigatório ou facultativo.
As cláusulas contratuais estipulam o objeto contratado, valores, prazos, garantias, formas de resolução, juros e multas, penhoras, modo do pagamento, etc. É a não observância das cláusulas contratuais, ou a sua violação, que geram um estado de incumprimento. O mesmo não pode afirmar-se em relação aos “considerandos”, cuja função é o de contextualizar o contrato dentro de um universo fático-jurídico. Tal como se escreveu no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa tirado no Processo 1181/19.1T8SNT-B.L1-8, e a seguir se transcreve:
Segundo Paulo do Amaral Rocha, "os considerandos de um acordo servem para mostrar o que efectivamente uniu as partes e o que as levou a se obrigarem especificamente, quais foram os reais interesses para a formação daquele determinado vínculo contratual" ("Considerandos", sua importância nos contratos civis brasileiros", RKLAdvocacia, 14.02.17, internet, consultado a 19.10.2020).
Este autor sublinha que os considerandos revelam o espírito da contratação: “ao estabelecerem os considerandos de um contrato as partes têm a oportunidade de delimitar/demonstrar qual foi o real envolvimento que elas tiveram , quais as suas reais intenções, aonde querem chegar com esta contratação, e, o mais importante de tudo, qual a affectio que levou as partes a contratarem, ou seja, qual foi a real declaração de vontade expressa e manifestada livremente por quem quer contratar e o que, finalmente os uniu’’.
O autor acrescenta com pertinência que os considerandos sozinhos não têm força obrigacional/legal, pois se um contrato tivesse apenas os “considerandos’’ sem cláusulas obrigacionais não seria mais do que um pré-contrato. No caso sujeito, note-se desde já, os considerandos foram incorporados na parte dispositiva do contrato pelo que este problema não se coloca. Prossigamos pois.
Alfredo Rovira sustenta que os “os considerandos adquirem relevância porquanto constituem o lugar e o meio idóneo para cada uma das partes explicitar não só a finalidade imediata, mas também os móbiles que levaram cada uma das partes (ou ambas) a contratar, sendo englobados na noção de causa que deve permanecer durante toda a contratação até à sua conclusão’’ (“La causa, los considerandos y la fuerza vinculante del contrato’’, Revista del Notariado, Buenos Aires, 933 (jul-set, 2018), internet consultado a 19.10.20202).
Neste quadro, o já referido Considerando IV consiste, apenas, numa informação, numa justificação, integrada no Contrato de Dação em Cumprimento, que tenta contextualizar a dação em cumprimento que as cláusulas contratuais regulam. Contribui, pois, esgotando-se nele a sua relevância jurídica, para o que Ana Filipa Morais Antunes, no estudo "A interpretação do contrato", in Revista de Direito Comercial 2024, consultável na internet em www.revistadedireitocomercial.com, denomina o subsídio histórico de interpretação do contrato: Os considerandos do contrato podem desempenhar um papel importante se enunciarem o contexto da celebração do contrato e explicitarem o processo negocial ou outros antecedentes.
Da força probatória do Contrato
Está em causa, apenas, a força probatória do CONTRATO DE DAÇÃO EM CUMPRIMENTO MEDIANTE CEDÊNCIA DE CRÉDITOS junto aos autos como documento particular não autenticado. O contrato de dação em cumprimento bem como o contrato de cessão de créditos, ainda que estes sejam, total ou parcialmente, suprimentos, não exigem forma especial. Assim, o documento particular não autenticado, forma sob a qual o contrato se apresenta, tem a força probatória que lhe for conferida por lei.
A Requerida não impugnou as assinaturas constantes do documento, pelo que, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 374.º do CC, consideram-se verdadeiras. Porque a Requerida também nada disse sobre o estado civil das outorgantes e sobre se, sendo casadas, o documento devia ter sido ou não assinado pelos seus cônjuges, bem como não arguiu a sua falsidade, o Tribunal está vinculado a considerar que o documento particular em causa faz prova plena quanto às declarações atribuídas aos seus autores na parte dispositiva.
Porém, o Tribunal aprecia livremente a pretensa confissão de dívida constante do Considerando IV do Contrato, uma vez que não reúne as formalidades que a lei exige para este negócio jurídico unilateral. Por outro lado, mesmo que se admitisse a legalidade formal da confissão, a mesma não seria admissível, nos termos da alínea c) do artigo 354.º do CC, porque o facto confessado é notoriamente inexistente, segundo a convicção do Tribunal. Vejamos.
De harmonia com a declaração constante do Considerando IV, a Requerente, segunda outorgante, teria efetuado durante o período de 2000 a 2006 à primeira outorgante diversos mútuos em "quantia superior a três milhões e oitocentos mil euros". A Requerente invoca, sem fazer prova ou indicar normas legais que a dispensem, que não está obrigada a comprovar os mútuos que efetuou, quer em razão do tempo decorrido (entre 17 e 23 anos), da não obrigatoriedade de guardar os documentos comprovativos durante aquele período e do facto de os bancos não guardarem documentos com tanta antiguidade (p.i., artigos 50.º e seguintes).
Ora, considerando o montante pretensamente mutuado, de harmonia com as regras da experiência, não é normal que se emprestem quantias tão elevadas, independentemente do fim a que se destinem, sem um documento escrito, sem garantias e sem a fixação de uma remuneração, isto é, de juros. Não pode considerar-se normal que se emprestem mais de três milhões e oitocentos mil euros, aparentemente sem prazo de restituição, sem garantias e a título gratuito.
De resto, e já no plano fiscal, a AT comprovou que a Requerente durante, pelo menos, o período em causa, não declarou quaisquer juros. Por outro lado, a Requerente nem sequer indiciou que teria elidido por algum dos meios legalmente previstos no n.º 5 do artigo 6.º do Código do IRS (CIRS) a presunção constante do seu n.º dois: "2 - Presume-se que os mútuos e as aberturas de crédito referidos na alínea a) do n.º 2 do artigo anterior são remunerados, entendendo-se que o juro começa a vencer-se nos mútuos a partir da data do contrato e nas aberturas de crédito desde a data da sua utilização". Pelo que, atenta também a presunção estabelecida no n.º 1 do artigo 40.º do CIRS - "1 - Presume-se que os mútuos e aberturas de crédito referidos no n.º 2 do artigo 6.º são remunerados à taxa de juro legal, se outra mais elevada não constar do título constitutivo ou não houver sido declarada" - e considerando que a taxa de juro legal é a estabelecida nos termos do artigo 559.º do CC e, para o período em causa, foi de 7% até 30 de abril de 2003 (Portaria n.º 263/99, de 12 de abril) e de 4% a partir de 1 de maio de 2003 (Portaria n.º 291/2003, de 8 de abril), se não tiver sido elidida, determinaria a declaração para efeitos de tributação de somas também muito significativas.
Tem, ainda, de se levantar a questão da forma, uma vez que, para o mútuo, nos termos do disposto no artigo 1143.º do CC é exigida forma específica: escritura pública para mútuos superiores a € 25.000,00 e documento escrito para mútuos de valor superior a € 2.500,00. A mutuária não declara quantos mútuos lhe foram efetuados pela mutuante, o que, no quadro dos valores em causa, também não é normal. Se se assumir que foram seis empréstimos (um por ano), o valor médio de cada um teria sido de € 633.333,33; que foram sessenta (dez por ano), o valor médio de cada um teria sido de 63.333,33; que foram seiscentos (cem por ano), o valor médio de cada um teria sido de € 6.333,33. Ou seja, nos dois primeiros casos com exigência de escritura pública e, no último, por documento assinado pelo mutuário. E se houvesse sido celebrada escritura pública, não poderia ser alegado que se não estava obrigado a guardar o documento: este manter-se-ia nos livros próprios do Notário em cujo cartório a escritura tivesse sido celebrada.
Por último, não pode igualmente deixar de sublinhar-se que o nível de rendimentos declarados entre 2000 e 2006 e o facto de, à data da celebração do contrato de dação em cumprimento, a Requerente ser empregada de uma das sociedades com um modesto salário, de modo algum se podem considerar reunidos quaisquer indícios para que o empréstimo possa ter sido efetuado pela Requerente.
Releve-se também que da prova testemunhal produzida não resultou qualquer elemento de que possa resultar a efetiva realização do empréstimo.
Em conclusão, tendo em conta as alegações das partes e apreciando livremente a prova apresentada sobre a concessão de empréstimo(s) pela Requerente, o Tribunal não considera provada a existência do empréstimo ou empréstimos invocados. O que significa que se considera não existir relação fundamental que justifique a dação em cumprimento.
Sobre a (i)legalidade da liquidação impugnada
A relação jurídica tributária constitui-se com o facto tributário, de harmonia com o disposto no n.º 1 do artigo 36.º da LGT. Deste modo, o facto tributário é o pressuposto de facto cuja realização verifica origina o nascimento da obrigação tributária.
Acresce ainda que o facto tributário se articula, necessariamente, com a tipicidade. Escreve, a este propósito, João Sérgio Ribeiro, em Tributação Presuntiva do Rendimento, Almedina, Coimbra, 2010, pp. 104: "Ora é precisamente este conceito de tipicidade que domina normalmente no direito fiscal, sendo a identificação da vertente material do princípio da legalidade com o princípio da tipicidade disso evidência. Essa vertente do princípio da legalidade implica uma formulação precisa dos pressupostos da obrigação tributária que se traduz, justamente, numa técnica de concretização de uma série de conceitos, empreendida por parte do legislador através de tipos tributários".
É neste quadro que se afirma a centralidade do facto tributário em relação ao ato tributário, "uma vez que, enquanto o facto tributário tem a ver com a constituição da relação de imposto protagonizada pelos contribuintes, o acto tributário reporta-se à da Administração Tributária. O que não surpreende uma vez que, enquanto o facto tributário releva essencialmente do direito constitucional, o acto tributário tem por suporte basicamente o direito administrativo" - José Casalta Nabais, A Centralidade do Facto Tributário in Estudos de Direito Fiscal, Volume VI, Almedina, Coimbra, 2022, pp. 160. Isto é: existe, em regra, a precedência do facto tributário em relação ao ato tributário e este, sem aquele, pode mesmo não apenas considerar-se como ilegal, mas como inexistente.
Estando, como se está, no domínio do IRS, o facto tributário tem, na sua génese, obrigatoriamente, rendimento, na conceção, ainda que mitigada, de rendimento-acréscimo[4] obtido por pessoas singulares. Os rendimentos tributáveis em IRS estão tipificados nas seis categorias que constam do artigo 1.º, não podendo incidir tributação, a título de IRS, sobre rendimentos que nelas não estejam expressamente previstos ou que possam densificar-se no quadro da interpretação extensiva, uma vez que as normas relativas à incidência, objetiva ou subjetiva, e aos aspetos em que são suscetíveis de desdobrar-se, porque incluídas na reserva de lei da Assembleia da República em conformidade com o disposto no artigo 165.º, n.º 1 alínea i) da Constituição da República Portuguesa, não podem ser interpretadas por analogia, como prescreve o n.º 4 do artigo 11.º da LGT.
A administração fiscal qualifica como rendimentos de capitais, integráveis na categoria E, as restituições de capital que, no caso sob decisão, foram feitas à Requerente, independentemente do modo como o foram, capital de que era credora enquanto titular dos créditos que, desde 2019, as sociedades lhe reconheceram. Matéria que o RIT não desenvolve, deixando por esclarecer quando é que, de facto, os créditos em causa viram a posição subjetiva credora modificada por efeito da cessão de créditos realizada a favor da Requerente. O que, relativamente ao aspeto temporal do pressuposto objetivo do imposto, isto é, relativamente à questão de saber quando é que o facto tributário se teria dado por verificado, não obstante constar do contrato que as sociedades devedoras dos créditos cedidos deveriam ser notificadas da cessão no prazo de 10 dias após a sua celebração, uma vez que, de harmonia com o disposto no n.º 1 do artigo 583.º do CC, A cessão produz efeitos em relação ao devedor desde que lhe seja notificada, ainda que extrajudicialmente, ou desde que ele a aceite. Isto é, se não pode deixar de se considerar que a transmissão dos créditos cedidos ocorreu com a celebração do contrato de dação em cumprimento, melhor, de dação pro solvendo uma vez que a Requerente não ficou com a garantia de ver paga integralmente a dívida que a cedente teria para com ela, a suscetibilidade de fruição desses créditos (o IRS incide sobre rendimentos disponíveis, sobre rendimentos em relação aos quais se tenha adquirido o direito de fruição e não apenas de propriedade, sempre que no Código não se disponha de outro modo - é o típico pagamento ou colocação à disposição) apenas se verificou, objetivamente, com a modificação, nas sociedades, da titularidade dos créditos por força do contrato que os cedeu. De notar, igualmente, que não resulta do RIT que a Inspeção Tributária tenha posto em causa a veracidade das contabilidades das empresas devedoras que, assim, gozam de presunção de verdade nos termos do n.º 1 do artigo 75.º da LGT, ou seja, atestam a veracidade e a existência dos créditos cedidos.
A base jurídica invocada no RIT para a qualificação como rendimentos de capitais da mera restituição de créditos que a Requerente detinha na sociedade assentou na "exclusão de partes". Considerando que aquelas restituições, pecuniárias ou em espécie, feitas à Requerente, não se integrando nas categorias B, G e H, então tinham de integrar-se na categoria E, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 5.º do CIRS que dispõe: 1 - Consideram-se rendimentos de capitais os frutos e demais vantagens económicas, qualquer que seja a sua natureza ou denominação, sejam pecuniários ou em espécie, procedentes, direta ou indiretamente, de elementos patrimoniais, bens, direitos ou situações jurídicas, de natureza mobiliária, bem como da respetiva modificação, transmissão ou cessação, com exceção dos ganhos e outros rendimentos tributados noutras categorias.
A atual redação do n.º 1 do artigo 5.º do CIRS, remontando à Lei n.º 30-G/2000, de 29 de dezembro, teve como causa próxima a Recomendação 18, feita no Relatório da Comissão para o Desenvolvimento da Reforma Fiscal, apresentado em 30 de abril de 1996 e publicado pelo Ministério das Finanças (ISBN: 972-9244-38-3), a pp. 597/598: "Na impossibilidade prática de o legislador acompanhar em tempo útil os desenvolvimentos referidos, a reposição da equidade nesta matéria exige, na opinião da Comissão, que a técnica legislativa seja alterada, à semelhança de outros países. Assim, propõe-se a que a definição de rendimentos de capitais parta de um conceito geral de aplicação e de rendimento mais abrangente, sendo ao mesmo tempo enumerados, com carácter exemplificativo, os tipos de rendimentos já identificados pelo legislador, sem prejuízo da constante atualização da lei relativamente à tipificação destes rendimentos".
Intentando prosseguir este desiderato, o legislador de 2000, ao consagrar a "nova" definição, não de "capitais", mas de "rendimentos de capitais", poupou na sua criatividade e "apropriou-se" de parte da justificação que no texto que antecedia a Recomendação constava para esta Recomendação (pp. 596): "Nessa medida, deverá ser ponderada a adopção de regras semelhantes às vigentes em outros países. em que os rendimentos de capitais são definidos de forma abrangente, qualquer que seja a sua denominação ou natureza, da colocação ou cedência a terceiros de capitais, bens ou direitos de que o sujeito passivo seja titular, sempre que não especificamente abrangidos noutras categorias de rendimentos. Incluir-se-iam assim os chamados rendimentos implícitos, o que integraria a diferença entre o montante mutuado, depositado ou aplicado e o obtido através da alienação, amortização ou reembolso, relativamente a capitais mutuados, depositados ou aplicados em obrigações, títulos de participação e outros valores mobiliários similares, em que o rendimento está, total ou parcialmente, implícito naquela diferença".
Generalizou-se, na doutrina e na jurisprudência, a ideia, nem sempre adequadamente fundamentada, de que a categoria E se tinha tornado uma categoria residual e nela poderia incluir-se, para tributação em IRS, tudo o que não estivesse contemplado noutras categorias. Nem acentuado sequer que esse "tudo", subjacente a bens, direitos ou situações jurídicas, de natureza mobiliária, nunca poderia abranger, pelo menos como regra geral, o próprio capital. Na verdade, continuam a ser rendimentos de capitais "os frutos ou vantagens económicas" o que aponta para a conceção civilística de frutos, constante do artigo 212.º, n.ºs 1 e 2, do CC: "1 - Diz-se fruto de uma coisa tudo o que ela produz periodicamente, sem prejuízo da sua substância. 2 - ... dizem-se civis as rendas ou interesses que a coisa produza em função de uma relação jurídica".
Pode-se, ainda assim, afirmar, com Paula Rosado Pereira, Manual de IRS, 5.ª edição, Almedina, Coimbra, 2023, a pp. 149/150:
A incidência que decorre do artigo 5.º, n.ºs 1 e 2 do CIRS é suficientemente ampla para abarcar qualquer situação de rendimentos derivados de bens ou direitos mobiliários, desde que não sejam tributados noutra categoria.
Em suma, o modo de tipificação dos rendimentos de capitais seguido no CIRS procura face a uma realidade em que os contratos subjacentes à obtenção dos rendimentos em causa são múltiplos, extremamente variados, em muitos casos atípicos, por vezes de extrema complexidade e em contínua evolução. Todos os dias surgem novos "produtos financeiros", frequentemente bastante sofisticados.
O legislador fiscal procurou salvaguardar a tributação dos rendimentos em apreço mediante uma tipificação tão ampla quanto possível. Para tal, conjugou uma definição geral de rendimentos de capitais com uma enumeração exemplificativa dos mesmos, tentando alcançar o equilíbrio viável entre o combate à elisão fiscal, por um lado, e à previsibilidade por parte dos contribuintes relativamente aos rendimentos neste campo, por outro.
Também merecedora de atenção é a caracterização dos rendimentos de capitais como "frutos" e "vantagens económicas". Esta caracterização encontra-se bem patente na letra dos n.ºs 1 e 2 do artigo 5.º do CIRS. Os rendimentos assentam, portanto, na figura dos "frutos civis".
Desta forma, o rendimento de capitais corresponde a um rendimento periódico, cujo recebimento não prejudica a substância do bem, direito ou situação jurídica de natureza mobiliária, que está na origem do rendimento.
Segundo Rui Duarte Morais (Sobre o IRS, 3.ª ed., Almedina, Coimbra, 2014, reimpressão em 2016, pp. 96) "há rendimentos de capitais [...] quando uma coisa deva ser havida por capital (Património, bens, direitos ou situações jurídicas de natureza mobiliária) e produza vantagens económicas sem que tal implique para o respetivo titular a perda dessa fonte. Havendo alienação da fonte, o ganho obtido constituirá, em princípio, uma mais-valia.
Deste modo, a obtenção de rendimentos de capitais não pressupõe a renúncia a ganhos futuros, dado não implicar a alienação da fonte produtora dos rendimentos.
E na jurisprudência pode citar-se o que se escreveu no Acórdão do TCAS proferido em 20-12-2012, no Processo 03410/09:
A definição de “rendimentos de capitais” implantada no art. 5.º n.º 1 CIRS traduz e incorpora uma regra de incidência tão ampla, distendida, que é capaz de englobar qualquer situação, envolvente de valores mobiliários, que não seja tributada noutra das categorias, em que opera o IRS. Por outras palavras, este normativo traduz a preocupação do legislador em satisfazer a necessidade de estabelecer a incidência real da forma mais abrangente possível, objetivando prevenir a endémica evasão fiscal e assegurar o pagamento de imposto, quanto a todo o tipo de rendimentos, surgidos da operação dos mais diversos instrumentos financeiros, com a condição de não ser inquestionável a sua sujeição no âmbito de outra típica categoria de ganhos. Assim, além de outros, são susceptíveis de integrar a versada previsão legal, “vantagens económicas”, independentemente da natureza ou denominação, pecuniárias ou em espécie, provenientes, direta ou indiretamente, de elementos patrimoniais, bens, direitos ou situações jurídicas, bem como, da respectiva modificação, transmissão ou cessação; atente-se que nas diversas alíneas do seu n.º 2 são fornecidos exemplos das “vantagens económicas” mais frequentes, comuns.
Ou seja, distinguir entre "rendimentos de capitais" enquanto frutos ou vantagens económicas e “capital”, isto é, a fonte de natureza patrimonial mobiliária, é hermenêuticamente indissociável para uma adequada interpretação e aplicação do n.º 1 do artigo 5.º do CIRS. Foi o que não se fez na fundamentação expressa pelo RIT, e reiterada pela Resposta da Requerida. A qualificação ali efetuada está, pois, votada ao insucesso, por erro nos pressupostos de facto e de direito do facto tributário.
E não podia ser de outro modo porque, no entendimento do Tribunal, o facto tributário que permitiria a tributação da totalidade do capital em que consiste a cessão de créditos em dação em cumprimento, a montante do reembolso parcial de um dos créditos verifica-se, na situação fática exposta, mas não aprofundada, no RIT, como acréscimo patrimonial não justificado, previsto na alínea d) do n.º 1 do artigo 9.º do CIRS. Com efeito, considerando-se que não existe uma relação fundamental que possa justificar a dação em cumprimento, o facto tributário seria revelado pelo método da avaliação indireta, ao abrigo da alínea f) do n.º 1 do artigo 87.º da LGT, tendo-se em conta o disposto no n.º 5 e suas alíneas do artigo 89.º-A da mesma Lei. Não tendo prosseguido esse caminho, a administração tributária inviabilizou, no entender do Tribunal, qualquer possibilidade de tributação dos montantes recebidos pela Requerente.
Procede, assim, o pedido, com todas as suas consequências, nomeadamente a anulação do ato tributário praticado e o consequente reembolso das importâncias indevidamente pagas.
Reembolso do imposto indevidamente pago e juros indemnizatórios
8. A Requerente pede ainda a condenação da Autoridade Tributária no pagamento de juros indemnizatórios, à taxa legal, calculados sobre o imposto, até ao reembolso integral da quantia devida.
De harmonia com o disposto na alínea b) do artigo 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a Administração Tributária, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo, cabendo-lhe “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”. O que está em sintonia com o preceituado no artigo 100.º da LGT, aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT.
Ainda nos termos do n.º 5 do artigo 24.º do RJAT “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”, o que remete para o disposto nos artigos 43.º, n.º 1, e 61.º, n.º 5, de um e outro desses diplomas, implicando o pagamento de juros indemnizatórios desde a data do pagamento indevido do imposto até à data do processamento da respetiva nota de crédito.
Há assim lugar, na sequência de declaração de ilegalidade dos atos tributários de retenção na fonte ao pagamento de juros indemnizatórios, nos termos das citadas disposições dos artigos 43.º, n.º 1, da LGT e 61.º, n.º 5, do CPPT, desde a data do seu pagamento, calculados sobre a quantia que a Requerente pagou indevidamente, à taxa dos juros legais (artigos 35.º, n.º 10, e 43.º, n.º 4, da LGT).
IV - Decisão
Termos em que se decide:
a) Julgar procedente o pedido arbitral e anular a liquidação de IRS impugnada, referente ao ano de 2019, no montante global de € 147,183,39, bem como a decisão de indeferimento tácito da reclamação graciosa contra ele deduzida;
b) Condenar a Administração Tributária no reembolso do imposto indevidamente pago e pagamento de juros indemnizatórios desde a data do pagamento até à data do processamento da respetiva nota de crédito.
Valor da causa
A Requerente indicou como valor da causa o montante de € 147.183,39, que não foi contestado pela Requerida e corresponde ao valor da liquidação a que se pretendia obstar, pelo que se fixa nesse montante o valor da causa.
Custas
Nos termos dos artigos 12.º, n.º 3, do RJAT, e 5.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e Tabela II anexa a esse Regulamento, fixa-se o montante das custas em € 3.060,00, que fica a cargo da Requerida.
Notifique.
Lisboa, 3 de março de 2025,
O Presidente do Tribunal Arbitral
Carlos Fernandes Cadilha
O Árbitro Vogal
Francisco Melo
O Árbitro Vogal
Manuel Faustino
(Relator)
[1] Os artigos mencionados sem indicação específica devem ter-se como referidos ao Código Civil.
[2] Ana Prata, Coordenadora, Código Civil Anotado, Vol I, Amedina, Coimbra, 2021, pp. 1090.
[3][3][3] Afonso Patrão, O Valor Jurídico dos Considerandos no Direito da União Europeia: Reflexões a Propósito da Alegada Imposição de Acesso a Mensagens de Correio Eletrónico Pela Autoridade da Concorrência, Boletim de Ciências Económicas da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Homenagem ao Prof. Doutor Manuel Carlos Lopes Porto, Volume LXVI, Tomo III, 2023, pp. 2477/2478
[4] Sobre o conceito de rendimento-acréscimo, por todos, FREITAS PEREIRA, Manuel Henrique de, A periodização do lucro tributável, Lisboa, Centro de Estudos Fiscais, 1988. Ver ainda o n.º 5 do Preâmbulo do Código do IRS.