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SUMÁRIO:
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A desconsideração de faturas contabilizadas e pagas ao abrigo do n.º 1 do artigo 23.º do CIRC exige particular cuidado e prova por parte da AT no caso de facturas alegadamente falsas.
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Compete à AT fazer a prova de que estão verificados os pressupostos legais que legitimam a sua actuação correctiva e, só caso o faça, passa a recair sobre o contribuinte o ónus da prova da existência e dimensão dos factos tributários que alegou como fundamento do seu direito à dedução do imposto.
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O fornecedor do sujeito passivo Requerente ser suspeito de realizar actos de emissão de facturas sem materialidade (não entrega da mercadoria referida nas facturas) a entidades identificadas que, pelo seu volume, contexto e importância são «suspeitas», não significa que todas as vendas efetuadas por esse fornecedor sejam falsas ou fraudulentas.
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A AT pode lançar mão de elementos obtidos através de fiscalização cruzada, junto de outros contribuintes, porém, não se pode bastar com esses elementos (indícios externos), tem necessariamente de obter alguns indícios junto do contribuinte (indícios internos) que, ainda que conjugado com aqueles outros, conduzam à elevada probabilidade de que as facturas não correspondem a operações efectivas (facturas falsas);
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Não provada a falsidade das faturas pela AT no caso em análise, carece de legitimidade legal a correção inspetiva realizada com invocação do artigo 23.º n.º 1 do CIRC em erro sobre os pressupostos de facto e de direito.
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Pelo que a AT cujo fundamento de correcção assente na utilização pelo sujeito passivo de facturas relativamente às quais não se encontra subjacente qualquer prestação de serviço real por parte do emitente, e que invoca como indícios credível a falta de credibilidade do emitente de determinadas facturas, não logra o ónus da prova que lhe competia
DECISÃO ARBITRAL
O Árbitro João Santos Pinto, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (adiante designado apenas por CAAD) para formar o Tribunal Arbitral Singular, constituído em 05 de Julho de 2024, decide no seguinte:
I. RELATÓRIO
A..., S.A., doravante designada “Requerente”, NIPC.., com sede na Rua ..., n.º..., ..., veio, em 30/04/2024, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e dos nos 1 e 2 do artigo 10.º, ambos, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), requerer a constituição de Tribunal Arbitral Coletivo e apresentar pedido de pronúncia arbitral (“PPA”), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante designada “Requerida” ou “AT”), com vista à declaração de ilegalidade e anulação da liquidação adicional de IRC n.º 2023... de 06/12/2023, na parte correspondente à desconsideração como custo fiscal do valor das faturas emitidas pela B..., Unipessoal, Lda (“B...”) e ordenando-se ainda a condenação da AT ao reembolso do imposto pago em excesso e no pagamento de juros.
O pedido de constituição do Tribunal Arbitral Singular foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 30/04/2024.
Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do Tribunal Arbitral Singular o aqui signatário, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.
Em 17/06/2024 foram as Partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Tribunal Arbitral Singular foi constituído em 05/07/2024.
Em suporte das suas pretensões alega a Requerente, em síntese, que as facturas em causa titulam transacções comerciais efectivas e reais. Concretamente, alega a Requerente o seguinte:
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A documentação junta descreve ao mais ínfimo pormenor todo o histórico da relação comercial desenvolvida entre as duas empresas no ano de 2019;
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Tal documentação segue todos os caminhos percorridos pelo calçado, em todas as operações a que foi sujeito, quer da responsabilidade da B..., quer de terceiros envolvidos na sua confecção;
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Se não existiram relações comerciais entre o ora Requerente e a B..., vários controladores ao serviço dos seus clientes deslocaram-se repetidamente às instalações fabris onde as prestações de serviços contratadas com a B... eram executadas, na Rua ... n.º ..., freguesia de..., Concelho de ..., a fim de aí proceder ao controlo de qualidade do calçado;
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A Requerente procedeu ao pagamento de todas as facturas emtidas pela B...;
Notificada para o efeito, a AT apresentou Resposta em 19/09/2024, tendo protestado juntar o processo administrativo.
Em 23/09/2024 foi proferido o seguinte despacho:
“Para a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT, também destinada a produção de prova testemunhal, designo o dia 24 de Outubro de 2024, às 9h45. Notifique-se a Requerente para informar o CAAD se as testemunhas irão estar presentes nas instalações do CAAD de Lisboa ou do Porto e ambas as partes para informar se os mandatários participam na diligência presencialmente nas instalações do CAAD de Lisboa ou do Porto ou on-line via WEBEX.
Mais se notifica a AT para proceder à junção do PA, conforme protestado juntar.”
Em 17/06/2024 a AT juntou o processo administrativo.
Em 26/09/2024 a AT apresentou requerimento informando os autos que pretendia participar na reunião prevista no art.º 18.º do RJAT e para prestação de declarações de parte, via plataforma WEBEX.
Em 04/10/2024 a mandatária da Requerente veio requerer a designação de nova data em virtude de impedimento relativo a uma audiência de discussão e julgamento noutro processo.
Em 22/10/2024 foi proferido despacho a reagendar a inquirição de testemunhas para o dia 31/10/2024 pelas 9h45 e notificar a AT para confirmar a disponibilidade para a nova data.
Em 25/10/2024 a Requerida confirmou disponibilidade para a nova data designada e que pretendia participar na diligência online via WEBEX.
A inquirição teve lugar no dia 31/10/2024, na delegação do Porto do CAAD e via CISCO WEBEX MEETINGS.
No final da inquirição o Tribunal notificou a Requerente e a Requerida para, de modo sucessivo, apresentarem alegações escritas no prazo de 15 dias.
A audiência foi gravada e dela foi lavrada acta junta aos autos.
As partes apresentaram alegações. A Requerente, em 18/11/2024, reiterou o posicionamento manifestado no PPA, tendo na mesma data procedido à junção do comprovativo do pagamento da taxa de justiça subsequente. A Requerida, em 25/11/2024, onde assume o mesmo posicionamento manifestado na Resposta.
Em 03/01/2025, o Tribunal Arbitral proferiu Despacho Arbitral a prorrogar o prazo de arbitragem nos termos do n.º 2 do artigo 21.º do RJAT.
II. SANEAMENTO
O Tribunal Arbitral Singular é competente e foi regularmente constituído.
As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão devidamente representadas (cf. artigo 4.º e n.º 2 do artigo 10.º, ambos do RJAT, e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
O processo não enferma de nulidades.
III. QUESTÃO DECIDENDA
Face ao exposto nos números anteriores, relativamente à exposição das partes e aos argumentos apresentados, a principal questão a decidir prende-se com o facto de saber se existem indícios sérios da inexistência das operações que titulam os gastos titulados por faturas, e se por essa via devem os mesmos serem desconsiderados.
IV. DA MATÉRIA DE FACTO
FACTOS PROVADOS
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A Requerente é uma sociedade comercial que se dedica ao fabrico e comercialização de calçado com sede e instalações industriais na Rua ..., n.º..., na União de Freguesias de ..., ..., ..., ..., concelho de ..., distrito do Porto.
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O pagamento das faturas foi efectuado por transferências bancárias e pela emissão de cheque bancário de contas tituladas pela Requerente a favor da B... .
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A Requerente subcontratou serviços de corte, costura, montagem, acabamento, e embalamento de calçado à B..., os quais foram prestados.
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Em 13/04/2023 foi iniciada acção inspectiva credenciada com a Ordem de Serviço n.º OI2022..., com âmbito parcial, em sede de IRC e IVA relativamente ao exercício de 2019.
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A acção inspectiva teve origem no facto de a Requerente constar como cliente da sociedade B..., sociedade que foi objecto de procedimento inspectivo do qual resultaram evidências de que as facturas por elas emitidas não consubstanciavam operações reais.
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Em resultado da acção inspectiva à Requerente foram desconsideradas todas as faturas e notas de crédito emitidas por aquela sociedade e incluídas na contabilidade da Requerente, no montante total de € 79.135,85 acrescido de IVA no valor de € 18.201,25.
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E, nessa sequência, foi corrigido o resultado tributável em sede de IRC em € 223.748,46, passando o rendimento tributável declarado de € 301.829,47 para € 525.577,93.
FACTOS NÃO PROVADOS
Com relevo para a decisão, não existem outros factos alegados que devam considerar-se não provados.
FUNDAMENTAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO DADA COMO PROVADA E NÃO PROVADA
Relativamente à matéria de facto, o Tribunal não tem de se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe sim o dever de selecionar os factos que importa, para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.
Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. artigo 596.º do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
Da extensão documentação junta aos autos (393 documentos juntos pela Requerente) foi possível verificar o histórico do percurso cronológico das encomendas subjacentes, desde as notas de encomenda, guias de transporte, planos de fabrico, guias de remessa e declarações de expedição internacional.
Foram ouvidos na qualidade de testemunhas C..., D..., E..., F... e G... .
Das testemunhas inquiridas merece especial destaque as testemunhas C... e D... . Estas testemunhas fizeram o controlo de qualidade para sociedades terceiras que adquiriram calçado à A..., S.A., não tendo qualquer vínculo para com a Requerente. Estas testemunhas em momentos distintos deslocaram-se por diversas vezes às instalações que identificaram como pertencente da B... e que tinham conhecimento que era a empresa subcontratada pela Requerente. As mesmas testemunhas confirmaram não só que nas referidas instalações existiam maquinarias e meios humanos necessários à produção do calçado, como também o nome dos responsáveis presentes que foi coincidente.
As mesmas testemunhas foram confrontadas com faturas, planos de fabrico e guias de transporte, tendo confirmado que foram esses os produtos inspecionados nas visitas à fábrica B... e que os mesmos correspondiam às encomendas das sociedades que lhes solicitaram para efectuar o respectivo controlo de qualidade.
A testemunha E..., operário de armazém da Requerente atestou que a B... era uma empresa subcontratada pela Requerente e que foi o mesmo quem preparou a palete referente à matéria-prima (solas e palmilhas) que foi posteriormente recolhida pela mesma subcontratada.
Já a testemunha F..., controlador calçado de qualidade da Requerente, confirmou igualmente que relativamente ao calçado a que se referem as faturas em discussão nos autos a Requerente subcontratou a B... . No âmbito das suas funções deslocou-se às fábricas das subcontratadas para efectuar o controle de qualidade, entre as quais à fabrica da B... . Nesse âmbito visitou a B... por diversas vezes, na companhia dos controladores das marcas e outras sozinho. Na mesma linha do depoimento das testemunhas C... e D..., controladores de qualidade, não só descreveu com exactidão o local, tendo precisado que se tratava apenas de uma fábrica de montagem. Identificou com precisão o número de trabalhadores, como os equipamentos nele existentes especificando que tinham a parte de montagem e uma pequena parte onde faziam os cortes. No âmbito das suas funções procedeu à verificação nas instalações da B... do produto que estava na linha de produção e verificava se estava a ser produzido conforme o plano de fabrico.
Por último, a testemunha G..., sócio de uma empresa de consultoria que presta serviços à Requerente, deu acompanhamento na fase de inspeção tributária, pelo que o seu depoimento não merece particular relevo dado não ter conhecimento directo dos factos controvertidos.
Todas as testemunhas demonstraram estar recordadas dos factos e prestaram depoimento de forma clara, precisa e isenta.
Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes à luz do artigo 110.º, n.º 7, do CPPT, a prova documental, a prova testemunhal, bem como o processo administrativo junto aos autos, consideram-se provados, com relevo para a decisão, os factos supra elencados.
V. MATÉRIA DE DIREITO
Com vista a aquilatar dos indícios sérios da inexistência das operações que titulam os gastos titulados por faturas vejamos, antes de mais, os fundamentos vertidos no RIT n.º 012022..., datado de 29/11/2023, constantes na secção V.1.2 Conclusões do procedimento inspetivo à B...:
“No âmbito dos procedimentos inspetivos ao sujeito passivo B..., foi identificado um modus operandi, do qual resultou a conclusão de que as faturas emitidas pela B..., respeitantes a subcontratação de serviços relacionados com a produção de calçado, não titulam operações reais, não existindo subjacente às mesmas, quaisquer serviços prestados pela B... .
De facto, na ação de inspeção à empresa B...”, ao ano de 2019, bem como nas efetuadas a anos anteriores, é possível concluir que esta entidade não tem capacidade produtiva própria para produzir aquilo que fatura aos clientes, pois:
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Não tem instalações onde possa exercer a atividade, destacando-se que a morada indicada nas faturas emitidas para a “A...” corresponde ao domicílio fiscal de J..., gerente da “B...” até 2020/06/16 e de H... (sócia-gerente da “I...”), sendo uma morada destinada à habitação;
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Não tem meios humanos, pois nos anos em análise só tinha uma funcionária, além de J..., e não tem equipamentos que permitam prestar os serviços que constam nas faturas emitidas.
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Recorre a faturas emitidas por outras entidades (K..., Lda., I..., Unipessoal, Lda., e L..., Unipessoal, Lda.), que também não possuíam estrutura empresarial para o exercício de qualquer atividade.
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A K..., Lda. e a L... Unipessoal, Lda. foram objeto de ações de inspeção efetuadas pela Direção de Finanças de Braga onde se concluiu que também elas não possuíam estrutura empresarial para o exercício de qualquer atividade e que as operações constantes das faturas não se consubstanciam em qualquer atividade e operações efetivas.
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A entidade K..., Lda. emitiu faturas para a B... nos meses de janeiro e fevereiro de 2019, e da inspeção realizada a esta entidade concluiu-se que nunca possuiu estrutura empresarial para o exercício de qualquer atividade e que as operações constantes das faturas não se consubstanciam em qualquer atividade e operações efetivas.
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A entidade L... Unipessoal, Lda. emitiu faturas para a B... nos meses de março a dezembro de 2019, e da inspeção realizadas a esta entidade concluiu-se que é uma sociedade meramente instrumental, que faz parte de um esquema de fraude fiscal e que tem por objetivo a obtenção de vantagens fiscais indevidas, defraudando os cofres do Estado, não lhe sendo conhecidas instalações, nem funcionários, e tendo como única “subcontratada” a entidade K..., Lda.
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Relativamente à I..., Unipessoal, Lda. foi apurado que até outubro de 2019 não tinha qualquer atividade efetiva, limitando-se a ser uma empresa veículo, e a partir de outubro passou a exercer uma atividade efetiva de comércio a retalho, incompatível com as faturas emitidas de prestação de serviços.
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No sentido de conferir autenticidade às faturas emitidas e às guias de transporte comunicadas, a “B...” e as entidades a montante apresentam uma regularidade contabilística e fiscal, através de um circuito documental e financeiro aparentemente real. A regularidade documental evidenciada pela B... existe para credibilizar as operações, pois recorre à utilização de faturas emitidas por sociedades meramente instrumentais, referentes a parte ou à totalidade dos serviços faturados, através de sociedades controladas diretamente ou indiretamente e em conluio, pela família “M...”.
Conclui-se assim que, as prestações de serviços faturadas por outras entidades a montante, para a “B...” e desta para os seus “clientes” não consubstanciam verdadeiras operações.
A “B...” e as entidades que considerou como seus subcontratados, não tem estrutura empresarial para prestar os serviços faturados e, consequentemente, as prestações de serviços faturadas pela “B...” para os seus “clientes” não consubstanciam verdadeiras operações.
V.1.3 – Faturas
Analisadas as faturas emitidas pela B..., verifica-se que:
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Consta como morada da sede da B...–..., ..., ...– ..., sendo que, de acordo com o procedimento inspetivo realizado, não existem evidências de ter sido exercida qualquer atividade nessa morada;
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Contêm no descritivo “Prestação de serviços: Corte, Costura, Montagem, Acabamento e Embalamento”, bem como as respetivas quantidades, unidades e preço unitário dos serviços realizados;
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Contêm a menção; “Este documento não constitui documento de transporte, nos termos do Decreto-lei n.º 147/2003” e um apontamento que os serviços prestados são referentes aos documentos de transporte indicados na fatura;
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A matrícula ... que consta em todas as faturas emitidas pela B... é de sua propriedade, desde 2010/08/25 e que se trata de um veículo ligeiro de mercadorias de marca Renault modelo Master. Contudo, conforme à frente se refere, foi esclarecido pelo SP que “no caso em apreço o subcontratado tanto entregou com fatura dele, como com guia transporte dele o calçado pronto, como não poucas vezes nós recolhemos com o nosso transporte nas instalações dele…”
As 19 faturas e 1 nota de crédito, emitidas pela B... e registadas na contabilidade da A..., fazem referência a serviços de “corte, costura, montagem e acabamento”, com os descritivos explicitados no quadro abaixo:
V.1.4 – Meios de pagamento
De acordo com os registos contabilísticos e extratos bancários, o pagamento das faturas, foi efetuado por transferências bancárias e pela emissão de cheque bancário, de contas tituladas pelo s.p., a favor da B...:
No entanto, conforme consta nas conclusões aos procedimentos inspetivos realizados à B... e às entidades que esta subcontratou, constata-se que a maioria dos valores movimentados ou depositados, são levantados em dinheiro por estas sociedades instrumentais, desconhecendo-se o seu destino e perdendo-se assim o rasto dos verdadeiros beneficiários.
V.1.5 – Notificação
O s.p. foi, no âmbito dos princípios da cooperação e da colaboração com a AT, notificado pessoalmente em 2023/07/19, para apresentar os seguintes elementos/esclarecimentos, relativos às faturas emitidas pela B...:
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Descrição pormenorizada dos serviços /bens subcontratados/adquiridos à sociedade B..., S.A., NIPC ... (doravante designada por B...), que foram faturados através das faturas constantes na contabilidade;
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Identificação das pessoas que representavam a B... e local ou instalações onde a mesma desenvolve a sua atividade;
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Troca de correspondência entre as referidas entidades (s.p. e B...), bem como e-mails e notas de encomenda, que evidenciem os contactos prévios tendo em vista as operações realizadas;
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Documentos de transporte que suportaram as operações realizadas com a sociedade B..., nomeadamente os que se referem aos movimentos entre as instalações do s.p. e da B...;
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Identificação de outros fornecedores que prestaram/venderam serviços/bens idênticos aos mencionados nas faturas emitidas pela B..., bem como os montantes respetivamente faturados.
Em resposta à notificação, o sujeito passivo prestou por escrito os seguintes esclarecimentos que transcrevemos (nosso sublinhado):
“Reportando-nos à ação inspetiva a que alude a Ordem de Serviço OI2022... e tendo sido esta empresa notificada para prestar esclarecimentos por escrito sobre as relações comerciais que manteve com a firma B..., Unipessoal, Lda. no decurso do ano de 2019, cumpre-nos dizer o seguinte:
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No decurso da ação inspetiva em referência, foram por demais evidentes os sinais de que era e é intenção da Autoridade Tributária desconsiderar as faturas incluídas na contabilidade da empresa e emitidas pela aludida B... por considerar que as mesmas não titulam relações comerciais entre as duas empresas, ou seja, considerando-as como falsas, fossem quais fossem os meios de prova que fossem apresentados;
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Ora, porque toda a documentação apresentada e analisada no decurso de tal inspeção contraria frontalmente tal conclusão;
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Porque a empresa estava e está em condições de demonstrar que tais faturas titulam relações comerciais, tendo inclusive manifestado disponibilidade para indicar o local onde foram executados os serviços a que aludem tais faturas;
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Tendo ainda a empresa sugerido ao Sr. Inspetor que ouvisse os controladores dos clientes que por várias vezes se deslocaram ao local para controlo da qualidade dos serviços executados pela B..., todas essas diligências foram omitidas porque, independentemente dos resultados, era ponto previamente assente que todas as faturas da B... seriam para desconsiderar;
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Nesse contexto, que nos abstemos de qualificar, informamos que toda a documentação e todos os meios de prova serão apresentados pela empresa em devido tempo e no local próprio.
Análise:
Assim, não obstante, a A... ter sido notificada para apresentar os documentos solicitados na supramencionada Notificação, de forma abstrata foi mencionado que “todos os meios de defesa serão apresentados pela empresa em devido tempo e no local próprio”.
Ora, relativamente ao ponto 1 da Notificação, a A... não identifica as pessoas que representavam a B... e local ou instalações onde a mesma desenvolve a sua atividade, apenas mencionando a disponibilidade para indicar o local onde foram executados os serviços a que aludem tais faturas, no entanto, na resposta o s.p. não apresenta a morada do local de tais instalações e nem identifica as pessoas que representavam a B... ou seus trabalhadores.
Quanto ao ponto 2 da Notificação, não foram anexados quaisquer documentos, relativos a troca de correspondência entre a B... e a A..., tais como e-mails, notas de encomenda, orçamentos, etc. que evidenciem os contactos prévios tendo em vista as operações realizadas.
E por fim, também não foram apresentados os documentos de transporte, solicitados no ponto 3 da Notificação, que suportaram as operações realizadas com a sociedade B..., relativas às entregas de materiais, por parte deste à B..., para confeção dos serviços.
V.1.6 – Análise das guias de transporte
V.1.6 – Guias de transporte
Face à falta de apresentação dos documentos de transporte, foi consultada a informação no sistema da AT, obtendo-se as guias de transporte relativas às entregas de materiais, por parte da A... à B..., para confeção dos serviços.
De acordo com o teor das guias, todos os transportes tiveram partidas das instalações da A..., sitas na Rua ..., n.º ..., ... e foram descarregados:
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Na Rua ..., ..., ..., ...;
Morada, onde como atrás já se referiu, não há indícios de alguma vez ter sido exercida atividade pela B... . E o mesmo acontece com o local e carga indicado nas guias de transporte emitidas pela B... com destino à A..., que também indica a morada da sede como local de carga.
Da consulta à base de dados da AT, verifica-se que:
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A A... fez a comunicação, nos termos do DL n.º 198/2012, durante o ano de 2019, de guias de transporte para a B... e,
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A B... fez a comunicação, nos termos do DL 198/2012, durante o ano de 2019, de guias de transporte para a A... .
Ora, estatui o n.º 4 do artigo 4º do Decreto-Lei n.º 147/2003, de 11/7 que as faturas, guias de remessa ou documentos equivalentes devem ainda indicar os locais de carga e descarga, referidos como tais, não bastando referir que foi no local da sede.
Pelo que, atendendo que as guias de transporte têm um campo específico para colocar a morada da sede e um campo específico para colocar a morada de carra e descarga constatamos que a A... não identificou corretamente a morada de descarga, nem a B... identificou corretamente a morada de carga.
V.1.6.2 – Controlos efetuados
Atendendo ao teor das faturas da B... (descriminado no ponto V.1.3), a A... subcontratou a B... para a execução de serviços de corte, costura, montagem, acabamento e embalamento, ou seja, na maioria dos casos, conforme já referido, foi subcontratada a produção total do calçado, desde o corte ao embalamento, constatando-se que, nas faturas emitidas pela B..., encontram-se discriminadas as referências dos artigos, nos quais foram supostamente incorporados os serviços em causa.
Com base nos dados constantes no sistema da AT – Guias de transporte, procedeu-se ao cruzamento das referências mencionadas nas guias de transporte emitidas pela A..., com as guias de transporte emitidas pela B... para os seus subcontratados, e as faturas da B... para a A..., identificando-se as entidades subcontratadas pela B...: L..., Unipessoal, Lda. e M..., Lda.
Observa-se que, no mesmo dia, ou nos dias muito próximos, em que é emitida uma guia de transporte pela A... para a B..., é emitida por esta uma guia de transporte para aqueles subcontratos cuja descrição dos materiais enviados é igual, conforme exposto no quadro seguinte:
De referir ainda que, além da entidade subcontratada já antes identificada e analisada, (L... Unipessoal, Lda.), sobre a qual se concluiu que não possuía estrutura empresarial para o exercício de qualquer atividade e que as operações constantes das faturas emitidas para a B..., não se consubstanciam em qualquer atividade e operações efetivas, na GT 19/600, também é identificada a sociedade M..., Lda. (doravante designada M...), relativamente à qual, conforme procedimento inspetivo efetuado, concluiu-se o seguinte:
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A M... apenas emitia faturas para a B..., tinha funcionários e equipamento que a permitia prestar serviços de corte e montagem. A partir de março de 2020, o nº de funcionários diminuiu drasticamente, mudou de gerente, e “substitui” a B..., passando a emitir faturas para as mesmas entidades que esta emitia, e “subcontratando” os serviços faturados à mesma entidade que esta “subcontratava” (L...);
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Estas sociedades têm vindo a faturar prestação de serviços de corte, costura, montagem, acabamento e embalamento de calçado, sem ter capacidade produtiva para os prestar nas instalações referidas (nomeadamente os serviços de costura);
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No sentido de conferir autenticidade às faturas emitidas, estas sociedades apresentam uma regularidade contabilística e fiscal, através de um circuito documental e financeiro aparentemente real. No entanto, após uma análise mais cuidada, verifica-se que essa regularidade é não existente, pois recorrem à utilização de faturas emitidas por sociedades meramente instrumentais, referentes a parte ou à totalidade dos serviços faturados, através de sociedades controladas pela família ... .
Concluindo-se que:
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No ano de 2019, a M...“adquiriu” os serviços que faturou, tendo registado na sua contabilidade, na conta de subcontratos, apenas faturas emitidas pela entidade I..., que não tem capacidade para os prestar, nem os subcontratou a outros e,
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As faturas emitidas em 2019 pela M..., que incorporem serviços de costura não correspondem a verdadeiras operações económicas;
Assim, o facto de as faturas, emitidas à B... pelas entidades subcontratadas, subjacentes aos mesmos negócios que motivaram, posteriormente, a emissão à A... de faturas pela B..., terem sido consideradas “falsas”, constitui, por si só, um indício sério e credível de que os negócios subjacentes a essas faturas são simulados.
Confirmam-se, portanto, as conclusões retiradas dos procedimentos inspetivos realizadas à B..., de que a B... não tem capacidade produtiva para os executar, “validando-os” com recurso a subcontratados que também não tinham capacidade para os executar.
V.1.7 – Correções
Os factos recolhidos e conclusões emanadas pela Administração Tributária, no âmbito dos procedimentos inspetivos, realizados aos sujeitos passivos B..., K..., L..., I... e M..., constituem indícios sérios, objetivos e seguros de que as operações tituladas pelas faturas emitidas pela B... para a A... não são efetivas operações económicas realizadas entre elas.
Apesar dos documentos de suporte registados na contabilidade da A... estarem formalmente corretos, a falta de apresentação dos elementos solicitados pela AT e análise destas operações, não podem nem devem ser ignoradas as conclusões emanadas das inspeções tributárias realizadas a todos os intervenientes no circuito documental identificado.
Com efeito, os alegados prestadores de serviços são empresas sem estrutura (ao nível dos recursos humanos, materiais, contabilísticos e financeiros) capaz de levar a cabo os trabalhos de corte, costura, montagem e acabamento descritos nas faturas.
Assim, considerando os factos e fundamentos descritos, conclui-se que as faturas emitidas pela sociedade B..., não titularam transações económicas efetivamente realizadas, reunindo assim as características de negócio simulado, propondo-se
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A correção, nos termos do art.º 23º do CIRC, do valor correspondente ao gasto do período que concorreu indevidamente para a determinação do lucro tributável declarado em sede de IRC, do período de 2019:
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A correção, nos termos do nº 3 do artigo 19º do CIVA, do IVA indevidamente deduzido nos períodos de 2019, no campo 24 das respetivas DP´s de IVA:t
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correção, a favor do s.p., do IVA indevidamente regularizado, no período de 201904, no campo 41, da respetiva DP de IVA:”
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Tal como resulta do RIT a AT entendeu que as operações tituladas pelas faturas em crise não consubstanciavam operações reais, tendo suportado as suas conclusões na acção inspectiva ao exercío de 2019 à empresa B... .
Uma vez analisada a fundamentação da AT constante no relatório de inspecção, centremo-nos agora nas regras do ónus da prova, decisivas como no caso dos autos em que as facturas são emitidas na forma legal, mas que, no entender da AT, não correspondem a qualquer realidade, porque as operações que era suposto reflectirem não tiveram lugar.
Vejamos:
Nos termos do n.º 1 do artigo 74.º da LGT o ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque.
Deste modo, cabe assim à AT a recolha de indícios sólidos para afastar a verdade da escrita e legitimar a sua atuação correctiva.
Neste sentido, acompanhamos aqui o entendimento do STA no acórdão datado de 17/04/2024 proferido no recurso n.º 26635 que se pronunciaram sobre a mesma temática do ónus da prova (embora quanto a caso não inteiramente idêntico ao do presente processo):
“Da conjugação das normas dos art.ºs 82º n.º 1 e 19º do CIVA resulta, assim, que não caberá à administração o ónus de prova da inexistência dos factos tributários cujo imposto considerou fundamentadamente deduzido ilegalmente por parte do contribuinte, mas que caberá ao próprio contribuinte o ónus de prova da existência dos factos tributários em que fundou a dedução que declarou. Digamos, retornando ao sentido do discurso feito atrás, que à administração cabe o ónus de prova da verificação dos requisitos estabelecidos no art.º 82º n.º 1 do CIVA para que possa liquidar adicionalmente o IVA respeitante a deduções indevidas, mas já não a existência dos factos contra ela afirmados pelo contribuinte, traduzidos na existência dos factos tributários e sua expressão quantitativa. Os requisitos legalmente estabelecidos para que seja permitida a dedução do imposto pago a montante não constituem, nesta óptica, também requisitos que estejam legalmente previstos enquanto requisitos de legitimação da actuação da administração. Relativamente a esta matéria, a lei basta-se com um juízo administrativo de adequação entre os factos e valorações em que a administração diz, formalmente, suportar a sua decisão e o resultado desse juízo no sentido de se lhe afigurar ter sido declarado uma dedução superior à devida, e com a prova perante o tribunal da pertinência desse juízo ou seja, com aprova, perante o tribunal, da existência dos elementos que tornam possível ter como adequada a consideração por si feita de que o fosse feita a prova que dela constavam. contribuinte declarou uma dedução superior à permitida pela lei. É nesta perspectiva que se poderá, de algum modo, falar que a administração apenas terá de fazer a prova, em tribunal, do bem fundado da formação das suas presunções de inexistência dos factos tributários e que, na falta dessa prova, essa questão – ou seja a questão relativa à legalidade do seu agir praticando o acto tributário – terá de ser resolvida contra ela. Um tal entendimento é, aliás, aquele que se afigura mais razoável e mais consentâneo com as próprias regras gerais estabelecidas nos art.ºs 342º e 343º do C. Civil sobre o ónus de prova, na medida em que assim se afasta a exigência da denominada prova diabólica, porque relativa à verificação dos factos em cuja afirmação de existência a recorrente fundamenta o seu direito, a que conduziria a posição contrária, numa solução que assim se ajusta perfeitamente à que o último preceito consagra de que “nas acções de simples apreciação ou de declaração negativa, compete ao réu a prova dos factos constitutivos do direito que se arroga”. E é um resultado que está, também, em perfeita sintonia como princípio de presunção de veracidade que está assumido no art.º 78º do CPT. Na verdade, a única veracidade que, numa tal circunstância, este preceito impõe que se presuma é a de que a recorrente deduziu um montante de imposto de valor equivalente ao que consta das facturas em causa, e que o fez com base na existência e registo destas na sua contabilidade, e não já que os factos constantes dessas facturas (os factos tributários) se hajam de presumir por verídicos, pois estes seriam já dados cuja veracidade apenas poderia ser presumida à face da escrita do contribuinte que as emitiu e da qual constituiriam uma decorrência lógico-legal, dado tratar-se de um acto praticado por este e não pela recorrente (contribuinte que apenas deduziu o imposto), se porventura, fosse feita a prova que dela constavam. (negrito nosso)”
Deste modo, estando em causa “faturação falsa”, caberá, num primeiro momento à AT reunir indícios sérios de que as transações tituladas pelas faturas não tiveram efectividade, revelando tais indícios que há uma probabilidade séria de não terem sido feitas as prestações de serviço descritas nas faturas.
Por seu turno, cumprido esse ónus da prova, é depois o sujeito passivo que tem de provar a materialidade das operações/transações, ou seja, a sua efectiva ocorrência.
Vejamos o caso dos autos.
Tal como resulta da matéria dada como provada e do RIT a AT deu essencialmente como provada determinada factualidade baseada na inspecção à B..., entidade subcontratada pela Requerente.
Concluiu a AT que a B...:
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não tem instalações onde possa exercer a actividade;
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não tem meios humanos;
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recorre a faturas emitidas a outras entidades;
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não possui estrutura empresarial.
Salienta a AT que, quanto às faturas consta a morada da sede, não existindo evidências de ter sido exercida qualquer actividade nessa morada;
Acrescenta ainda que, quanto às guias de transporte, as mesmas têm um campo específico para colocar a morada da sede e um campo específico para colocar a morada de carga e descarga, e a Requerente não identificou correctamente a morada de descarga, nem a B... identificou correctamente a morada de carga.
Por outro lado, tal como consta do mesmo RIT, é reconhecido pela própria AT que os documentos de suporte registados na contabilidade da Requerente estão correctos.
Tal como resulta da matéria dada como provada e conforme resulta igualmente do RIT, de acordo com os registos contabilísticos e extratos bancários o pagamento das faturas foi efectuado por transferências bancárias e pela emissão de cheque bancário de contas tituladas pela Requerente a favor da B... .
Contudo, ainda quanto aos meios de pagamento, assinala a AT no RIT referente à inspecção à Requerente que consta nas conclusões aos procedimentos inspectivos realizados à B... e às entidades que esta subcontratou, que a maioria dos valores movimentados ou depositados, são levantados em dinheiro por estas sociedades instrumentais, desconhecendo-se o seu destino e perdendo-se assim o rasto dos verdadeiros beneficiários.
Deste modo, questiona-se se a AT logrou demonstrar a existência de indícios fundados de que as operações desconsideradas não correspondem à realidade.
Analise-se:
É certo que, se corresponder à verdade que a B... não tem instalações fabris, nem meios humanos, seria um claro indício da inexistência das operações e consequentemente as faturas subjacentes seriam “faturas falsas”.
Também por outro lado, em abono da tese da AT, o facto dos documentos de suporte registados na contabilidade da Requerente estarem correctos, não constitui prova suficiente da veracidade das operações. Inclusivamente ainda nos casos em que haja movimentos financeiros. Na verdade, nas situações de “faturas falsas” as partes envolvidas tentam dar a aparência de realidade.
Contudo, quanto aos meios de pagamento, refira-se desde já que ainda que ocorra a circunstância da outra parte envolvida proceder a levantamentos em numerário, por não se tratar de parte relacionada, tal circunstância não deve ser relevada. A não ser que a AT neste específico ponto prove o conluio, o que não sucedeu.
Em qualquer dos casos, tal como tem vindo a ser entendido pela jurisprudência, toda a factualidade tem que ser apreciada no seu conjunto e não de forma isolada[1]. Dito de outro modo, ainda que possa existir um determinado indício, o mesmo tem que ser apreciado em linha com as demais circunstâncias do caso em concrecto.
Voltando ao caso dos autos.
Admite-se que as guias de transporte não indicaram correctamente o local de carga e descarga, contudo entende-se que a mesma não é suficiente para abalar a veracidade das operações, face à factualidade subjacente.
Em abono da verdade, os indícios mais fortes que a AT apresenta (falta de meios humanos e falta de instalações) baseiam-se em correcções efectuadas à Requerente em acção inspectiva efectuada à entidade subcontratada, pretendendo extrapolar as conclusões que chegou nessa mesma acção inspectiva às facturas adquiridas pelo Requerente, sem que tenha recolhido um indício concrecto e credível relacionado com esta, limitando-se a tecer ilacções da extrapolação de juízos retirados de uma análise crítica efectuada à contabilidade.
Ou seja, a AT pode lançar mão de elementos obtidos através de fiscalização cruzada, junto de outros contribuintes, porém, não se pode bastar com esses elementos (indícios externos), tem necessariamente de obter alguns indícios junto do contribuinte (indícios internos) que, ainda que conjugado com aqueles outros, conduzam à elevada probabilidade de que as facturas não correspondem a operações efectivas (facturas falsas).
Em todo o caso, ainda que no limite se entenda que a AT tivesse apresentado indícios suficientes para abalar a veracidade das facturas, entende este Tribunal o Requerente logrou provar que as tituladas pelas facturas ocorreram na sua materialidade, correspondendo a operações verdadeiras.
Vejamos porquê.
Como ponto de partida as facturas estão registadas correctamente na contabilidade da Requerente[2] e ocorreram os respectivos movimentos financeiros relativos à liquidação da mesmas facturas.
Acresce que, in casu, a Requerente, tendo a sua escrita organizada conforme as exigências legais, tal como se viu, não necessita provar que são verdadeiros os dados que dela decorrem, a menos que se verifiquem erros, inexatidões ou outros indícios fundados de que ela não reflete a matéria tributável efetiva, o que não ocorreu.
Acresce ainda que, para além das faturas, foram não só emitidas guias de transporte, como também planos de fabrico os quais evidenciam com detalhe os tamanhos, as quantidades, os cortes, costuras, montagem e acabamento. E não menos importante constam as guias de remessa e declaração de expedição internacional dos mesmos produtos para os clientes da Requerente. Ou seja, no caso dos autos, dúvidas não restam que as facturas respeitam a transacções efectivamente realizadas e, portanto, correspondendo a operações económicas efectivas.
E tal como resulta da matéria dada como provada, em virtude da subcontratação subjacente, os controladores de qualidade deslocaram-se às instalações da B... onde puderam verificar in loco o fabrico do calçado encomendado e os meios materiais e humanos necessários.
Destarte, dos factos provados e da apreciação feita resulta que, a correção feita à determinação do lucro tributável com invocação do n.º 1 do artigo 23.º do CIRC e consequente desconsideração dos custos das faturas em causa, das quais resulta a liquidação adicional de IRC n.º 2023... de 06/12/2023 com base na falsidade das faturas não resultou provada pela Requerida, pelo que a impugnação deve ser anulada por erro sobre os pressupostos de facto e de direito.
Improcede assim, de Facto e de Direito, a posição da AT.
- Dos juros indemnizatórios
Por último, a Requerente pede, ainda, o pagamento de juros. De harmonia com o disposto na alínea b) do art. 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação, vincula a AT a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”.
Embora o art. 2.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT utilize a expressão “declaração de ilegalidade” para definir a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, não fazendo referência a decisões condenatórias, deverá entender-se que se compreendem nas suas competências os poderes que, em processo de impugnação judicial, são atribuídos aos tribunais tributários, sendo essa a interpretação que se sintoniza com o sentido da autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, em que se proclama, como primeira diretriz, que “o processo arbitral tributário deve constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à ação para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária” (CAAD, proc. nº 277/2020-T; CAAD, proc. nº 220/2020-T).
O processo de impugnação judicial, apesar de ser essencialmente um processo de anulação de atos tributários, admite a condenação da Administração Tributária no pagamento de juros indemnizatórios, como se depreende do n.º 1 do art. 43.ºda LGT, em que se estabelece que “são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido» e do art. 61.º, n.º 4 do CPPT, que dispõe que “se a decisão que reconheceu o direito a juros indemnizatórios for judicial, o prazo de pagamento conta-se a partir do início do prazo da sua execução espontânea”( CAAD, proc. nº 277/2020-T; CAAD, proc. nº 220/2020-T).
O n.º 5 do art. 24.º do RJAT, ao dizer que “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário», deve ser entendido como permitindo o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios no processo arbitral” (CAAD, proc. nº 277/2020-T; CAAD, proc. nº 220/2020-T).
Na sequência da anulação do acto impugnado, a Requerente terá direito a ser reembolsada do imposto indevidamente pago, o que é efeito da própria anulação, por força dos artigos 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e 100.º da LGT.
Quanto ao direito a juros indemnizatórios, dispõe o art.º 43º nº 3 LGT que “são também devidos juros indemnizatórios (...) d) em caso de decisão judicial transitada em julgado que declare ou julgue a inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma legislativa ou regulamentar em que se fundou a liquidação da prestação tributária e que determine a respetiva devolução”.
É o caso nos presentes autos, na medida em que a Requerente efetuou o pagamento do imposto liquidado pela AT, pelo que deverá ser ressarcida do montante indevidamente pago em sede de IRC, acrescido dos respetivos juros indemnizatórios à luz do preceituado nos artigos 43.º da LGT e 61.º do CPPT.
Pelo que há que concluir que, transitada a presente decisão arbitral em julgado, a Requerente terá direito a ser ressarcida nos termos da alínea d) do n.º 3 do art. 43.º da LGT, através do pagamento de juros indemnizatórios.
VI. DECISÃO
Termos em que, com os fundamentos de facto e de direito que supra ficaram expostos, decide o Tribunal Arbitral Singular julgar totalmente procedente o pedido de pronúncia arbitral e, em consequência, condenar a Requerida do pedido, e, em consequência:
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anular a liquidação adicional de IRC n.º 2023... de 06/12/2023, na parte correspondente à desconsideração como custo fiscal do valor das facturas emitidas pela B..., Unipessoal, Lda;
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Reconhecer o direito a juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.º, n.º 3, alínea d) da LGT;
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Condenar a Requerida no pagamento das custas processuais.
VII. VALOR DO PROCESSO
Fixa-se ao processo o valor de € 57.081,38 (cinquenta e sete mil e oitenta e um euros, trinta e oito cêntimos), nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 3 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
VIII. CUSTAS
Custas no montante de € 2.142,00 (dois mil cento e quarenta e dois euros), a cargo da Requerida[3], em razão do decaimento, em conformidade com a Tabela I anexa ao RCPAT e com os artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT, 4.º, n.º 5, do RCPAT, e 527.º do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.
Notifique-se.
CAAD, 05 de Fevereiro de 2025
O Árbitro,
João Santos Pinto
[1] Inter alia veja-se o acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 10/05/2018, processo n.º 01980/08.3BEPRT
[2] Decorrendo do anunciado artigo 75.º da LGT, o princípio da verdade das declarações dos sujeitos passivos, de modo a abalar as declarações dos contribuintes, in casu da recorrida, a factualidade carreada pela AT para o procedimento inspetivo tem de ser capaz de abalar a presunção de veracidade das operações constantes na escrita daquele sujeito passivo de imposto. Desde logo porque, quem tem a seu favor uma presunção legal está dispensado da prova do facto presumido, conforme prescrevem os artigos 349.º e 350.º nº 1 do CC.
[3] De acordo com o Despacho Arbitral de 2025-03-10