Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 788/2024-T
Data da decisão: 2025-02-24  Selo  
Valor do pedido: € 240.000,00
Tema: IS – Garantia – Fiança – Princípio da Territorialidade – artigo 4.º, n.º 1, n.º 2, alíneas a) e b), do CIS.
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SUMÁRIO:

 

I – No caso dos autos não se verifica uma conexão (principal) com o território nacional, porquanto, o contrato de garantia foi celebrado e assinado no estrangeiro, não relevando, assim, para efeitos do n.º 1, do artigo 4.º, do CIS, o facto do domicílio do garante ser em território nacional.

 

II – O facto de a sociedade domiciliada em território nacional prestar uma fiança em garantia da relação de crédito estabelecida fora de Portugal e entre entidades estrangeiras, também, não se enquadra na alínea b), do n.º 2, do artigo 4.º, do CIS, salvo se a fiança for apresentada em Portugal para quaisquer efeitos legais (alínea a), do n.º 2, do artigo 4.º, do CIS).

 

III – A operação aqui em crise não obedece a nenhum dos três critérios de incidência territorial do IS (Cfr. artigo 4.º, n.º 1, n.º 2, alínea a) e b), do CIS), que justifique a tributação.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

Os árbitros, Victor Calvete, Alexandra Gonçalves Marques e Susana Cristina Nascimento das Mercês de Carvalho, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formar o presente Tribunal Arbitral Coletivo, constituído a 28.08.2024, decidem o seguinte:

 

  1. RELATÓRIO
  1. A..., S.A., anteriormente denominada B..., S.A., NIPC..., com sede social na Rua..., ..., ...-... ..., (“a Requerente”), veio, em 21.06.2024, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 10.º, n.ºs 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), requerer a constituição do Tribunal Arbitral e apresentar pedido de pronúncia arbitral (“PPA”), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT” ou “Requerida”), com vista (1) à declaração de ilegalidade e anulação do ato tributário de autoliquidação do Imposto do Selo (“IS”), plasmado na guia n.º..., referente ao período de março de 2008, no valor total de €240.000,00 (duzentos e quarenta mil euros), bem como da decisão final de indeferimento do pedido de restituição do IS, efetuado ao abrigo do artigo 50.º, do Código do Imposto do Selo (“CIS”), autuado com o n.º O2024..., de 15.03.2024, e (2) à restituição do imposto indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios.
  2. A Requerente juntou 6 (seis) documentos. 
  3. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite a 24.06.2024 pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Requerida.
  4. A Requerente não exerceu o direito à designação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a), e do artigo 11.º, n.º 1, alínea a), ambos do RJAT, o Exmo. Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os ora signatários como árbitros do Tribunal Arbitral Coletivo, que comunicaram a aceitação do cargo no prazo aplicável.
  5. A 09.08.2024 as partes foram notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º, do Código Deontológico do CAAD.
  6. Em conformidade com o preceituado no artigo 11.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, o Tribunal Arbitral Coletivo foi constituído a 28.08.2024.
  7. Por despacho proferido pelo Tribunal Arbitral a 02.09.2024 foi a Requerida notificada para, no prazo de 30 (trinta) dias, apresentar resposta, juntar cópia do processo administrativo (“PA”) e, querendo, requerer a produção de prova adicional. 
  8. No dia 07.10.2024, a Requerida apresentou a sua resposta, na qual invocou exceções – a saber, incompetência material do tribunal arbitral e inimpugnabilidade da autoliquidação –, defendeu-se por impugnação e, juntou aos autos o PA.
  9. Por despacho de 14.01.2024, o Tribunal Arbitral notificou a Requerente para, querendo, responder, no prazo de 15 (quinze) dias, às exceções suscitadas pela Requerida (e dispensou a reunião a que alude o artigo 18.º, do RJAT), o que aquela fez, em 03.02.2025, pugnando pela improcedência das mesmas.

I.1. ARGUMENTOS DAS PARTES

  1. A fundamentar o seu pedido de pronúncia arbitral, com vista à declaração de ilegalidade e consequente anulação do ato de autoliquidação de IS aqui em crise, invoca a Requerente, em síntese, o seguinte:
  1. A verba 10 da Tabela Geral do Imposto do Selo (“TGIS”) consagra como requisito essencial para o funcionamento da exclusão tributária das garantias, em sede de IS, a verificação de uma acessoriedade em sentido material das mesmas, ou seja, a existência de uma efetiva ligação entre obrigação garantida e a garantia prestada;
  2. É precisamente o que sucede no caso em análise: a garantia prestada está intrinsecamente ligada ao contrato de financiamento, nasceu com este e por causa deste, e nada levaria à sua existência não fosse o contrato de financiamento em causa;
  3. A não tributação das garantias materialmente acessórias justifica-se, tanto mais, quando a própria emissão de garantias é uma exigência do comércio jurídico-económico, com vista à tutela dos credores. Na realidade, não seria aceitável que as operações que conferem uma tutela específica aos respetivos intervenientes sofressem uma tributação agravada face aqueloutras que não são objeto de qualquer garantia específica;
  4. Entende-se que, ao excluir de tributação as garantias materialmente acessórias, o legislador quis salvaguardar uma excessivamente onerosa tributação das operações abrangidas pela incidência de IS que sejam objeto de garantia face às demais;
  5. De facto, integrando-se a garantia, sem autonomia, numa operação que está, ela própria, sujeita a IS, não seria razoável que aquela fosse objeto de tributação autónoma. No fundo, sendo acessória de um contrato especialmente tributado, a garantia não é mais do que uma cláusula de salvaguarda do contrato principal;
  6. Tal assim é que a única forma aceitável de interpretar a expressão “salvo quando materialmente acessórias de contratos especialmente tributados na presenta Tabela”, presente na verba 10 da TGIS, seria substituí-la pela expressão “contratos especialmente tributáveis”;
  7. Não parece lógico que uma operação de crédito, tributável em sede de IS de acordo com os critérios de incidência objetiva, e que efetivamente não o seja por beneficiar de uma exceção pelos critérios de incidência territorial prevista no próprio Código de IS, abra portas dessa forma à tributação da garantia que a acompanha;
  8. Neste contexto, tendo o legislador optado por não tributar as garantias que tutelam contratos que sejam objeto de tributação autónoma em IS, com base num argumento de igualdade de razão, dever-se-á entender que a tributação das garantias não deverá ocorrer quando a obrigação principal (sujeita às regras de incidência objetiva e estando prevista na TGIS), aproveite, ela própria, de uma isenção ou exclusão de tributação;
  9.  Com efeito, sendo a garantia um elemento acessório de tais contratos, não revestindo qualquer autonomia, não se poderá pretender que a mesma seja objeto de tributação, sob pena de se desvirtuar o princípio acessoriam principale sequitur – que determina que quando existe uma relação de dependência entre duas relações, o destino da acessória ou dependente acompanha o da principal ou autónoma;
  10. Em suma, se tal dependência ou acessoriedade justifica a não tributação quando a operação principal é, ela própria, tributada, por igualdade de razões, dever-se-á entender que a tributação da garantia não opera quando a operação garantida seja excluída de tributação pelas regras de incidência territorial;
  11. Por outro lado, e no que concerne à incidência territorial do IS, podem identificar-se três critérios: a) A ocorrência em território nacional dos factos elencados no artigo 1.º do Código do IS (Cfr. artigo 4.º, n.º 1, do Código do IS); b) apresentação em Portugal, para quaisquer efeitos legais, de documentos, atos ou contratos celebrados fora do território nacional (Cfr. artigo 4.º, n.º 2, alínea a), do Código do IS); e c) a prestação de garantias por parte de entidades não residentes quando os beneficiários das garantias sejam entidades domiciliadas em Portugal (Cfr. artigo 4.º, n.º 2, alínea b), do Código do IS);
  12. Neste sentido, seguindo-se os ensinamentos de António Lima Guerreiro[1], de Francisco Matos e Rita Abreu[2] e, de Jorge Laires e Rui Martins[3], entende-se que num caso como o presente, em que não só o devedor como o credor da obrigação principal se encontram domiciliados no estrangeiro e em que não existem garantias reais sobre bens localizados em Portugal, não poderá ser sujeita a tributação em IS, a garantia prestada por uma empresa portuguesa; 
  13.  Desta feita, verificando-se que: a) o credor (sindicato bancário) e o devedor (C....) têm ambos domicílio fora do território nacional; e b) a garantia prestada pela ora Requerente não incidiu sobre qualquer bem localizado em Portugal ou sujeito a registo em Portugal, não restam dúvidas de que não se encontram preenchidos os requisitos de incidência territorial, que justifiquem a tributação, em sede de IS da garantia pessoal prestada no âmbito da operação de financiamento em análise.
  1. Por sua vez, a AT contra-argumenta com base nos seguintes fundamentos:
  1. A verba 10 da TGIS estabelece três requisitos cumulativos para que as garantias não sejam tributadas em sede de IS: a) a existência de acessoriedade material entre a garantia e o contrato garantido; b) que o contrato garantido seja especialmente tributado pela TGIS e; c) haja simultaneidade entre o nascimento da obrigação garantida e a constituição da respetiva garantia, ainda que formalizadas de instrumento ou título diferente;
  2. O concreto alcance da exclusão da tributação, destinada a evitar algumas situações de dupla tributação, pressupõe o cumprimento dos requisitos cumulativos indicados na norma de incidência (parte negativa), cuja verificação é sempre feita caso a caso, estando dependente de uma análise minuciosa da relação jurídica que resulta dos contratos que a titulam;
  3. Para que haja exclusão do imposto previsto na verba 10 da TGIS, é necessário que se cumpra o requisito da acessoriedade material, mas também que o contrato subjacente, isto é, o contrato garantido, esteja sujeito, por si mesmo, a IS;
  4. Assim, para haver exclusão da sujeição da garantia é indispensável que o contrato do qual emerge a obrigação principal seja especialmente tributado em sede de IS, não bastando a sua mera sujeição;
  5. De facto, a lei estabelece como pressuposto da exclusão que o contrato seja “especialmente tributado”, e essa exigência é mais intensa do que a simples previsão da sua sujeição;
  6. Por essa razão, é necessário que, além da previsão legal da sujeição desse contrato a imposto, ele seja objeto de tributação, ou seja, é necessário que a sujeição se consume numa obrigação tributária real e efetiva, o que deixa de fora as situações de isenção ou de não sujeição do contrato que se garante;
  7. Acontece que, como se viu, o contrato de financiamento, cuja garantia prestada pela Requerente visa garantir, não foi objeto de qualquer tributação em território português;
  8. Corolário lógico desta constatação é que a garantia prestada pela Requerente não cumpre os requisitos cumulativos estabelecidos na lei para que possa beneficiar da exclusão da tributação, na medida em que, como demonstrado, não é materialmente acessória de um contrato (de concessão de crédito) especialmente tributado, nos termos da verba 17.1, na presente tabela;
  9. Por conseguinte, determinando a lei que a exclusão de tributação só opera se a acessoriedade material da garantia se reportar a um contrato especialmente tributado pela TGIS, é de concluir que a garantia sob apreço está sujeita a IS, na medida em que a mesma está conexa com um contrato de financiamento que, como se viu, não esteve sujeito à incidência deste imposto;
  10. Por outro lado, e contrariamente ao entendimento defendido pelo Sujeito Passivo, à AT não se levantam quaisquer dúvidas que na garantia prestada pela Requerente o facto tributário gerador da obrigação de imposto ocorreu em território nacional, pelo simples, mas determinante facto, de a garantia ter sido prestada por entidade portuguesa, no caso a ora Requerente;
  11. Nestas situações, a residência da entidade garante, reforçada pelo facto de ser o sujeito passivo do imposto nesta operação, conforme determina a alínea b), do n.º 1, do artigo 2.º do CIS – no caso, a Requerente – representa o elo de conexão económica com o território nacional que justifica e legitima a sua tributação, independentemente de se tratar de uma garantia real ou pessoal;
  12. Não faz sentido defender que só as garantias reais, como por exemplo uma hipoteca que onera um bem individualizado, imóvel ou móvel registado em Portugal, está sujeita a IS, e uma garantia pessoal como a fiança que é constituída pela globalidade do património do garante, isto é, que engloba aquela espécie de bens, mas a ela não está limitada, já não.
  13. Dito isto, conclui-se pela incidência territorial da garantia prestada pela Requerente, nos termos do n.º 1 do artigo 4.º, do Código do IS, ficando, por esse motivo, a mesma sujeita a IS, sobre o respetivo valor, em função do prazo, conforme determina a verba 10 da TGIS.        
  1. SANEAMENTO
  1. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído.
  2. As partes gozam de personalidade, capacidade judiciária, legitimidade processual e encontram-se regularmente representadas (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
  3. O processo não enferma de nulidades.
  4. As exceções suscitadas pela Requerida serão apreciadas após determinada a matéria de facto.

III. MATÉRIA DE FACTO

III.1. FACTOS PROVADOS

  1. Com relevo para a apreciação e decisão da causa, consideram-se provados os seguintes factos:
  1. A Requerente faz parte de um grupo multinacional de empresas ligado ao sector industrial da produção de componentes para o sector automóvel e é especialista na produção de peças de segurança crítica, baseada em padrões de qualidade elevados.
  2. Em março de 2008, uma das sociedades do grupo, sedeada na Holanda –C... B.V. –, celebrou um contrato de financiamento, no valor de €40.000.000,00 (quarenta milhões de euros), com um sindicato bancário – Bank of India, Barclays Capital, Canara Bank (London branch), Indian Overseas Bank (Hong Kong branch), State Bank of India e Barclays Bank PLC (Hong Kong branch) – (Cfr. Documento n.º 3 junto ao PPA).
  3. Nos termos do contrato mencionado em B., cinco empresas do grupo –D... Limited e E... Limited, sedeadas na India, F... GmbH e G... GmbH, ambas sedeadas na Alemanha, e a Requerente (anteriormente, denominada B... S.A.) – foram constituídas como garantes do valor mutuado à sociedade Holandesa (Cfr. Documento n.º 3 junto ao PPA, designadamente, a sua cláusula 15.1, p. 34 e o seu Anexo 1 (Schedule 1), p. 86).
  4. A cláusula 15.1 do aludido contrato de financiamento dispõe: Cada garante/fiador[4], conjunta e solidariamente, de forma irrevogável e incondicional: a) garante a cada parte financeira o cumprimento pontual pela Sociedade[5] de todas as suas obrigações ao abrigo dos documentos financeiros; b) obriga-se perante cada parte financeira, sempre que a Sociedade não efetuar qualquer pagamento quando devido ou em conexão com qualquer documento financeiro a, de imediato, sob demanda do Facility Agent, pagar essa quantia como se fosse o principal obrigado quanto a essa quantia; c) acorda com cada parte financeira que, se por qualquer motivo, qualquer montante reclamado por uma parte financeira ao abrigo desta cláusula não for recuperável do garante/fiador com base na garantia, então o garante/fiador será responsável como devedor principal e obrigado primário a indemnizar essa parte financeira de imediato, sob demanda, por qualquer custo, perda ou responsabilidade que esta incorra ou possa vir a incorrer ou sofrer em resultado da Sociedade não pagar qualquer montante expresso como sendo devido por ela ao abrigo de um Documento Financeiro na data em que deveria ter sido pago. O montante a ser pago pelo garante/fiador ao abrigo desta indemnização não excederá o montante que teria de pagar ao abrigo desta cláusula, caso o montante reclamado fosse recuperável com base numa garantia (Cfr. Documento n.º 3 junto ao PPA, designadamente, a sua cláusula 15.1, p. 34).
  5. No âmbito da garantia prestada não resultou a oneração de qualquer bem localizado ou sujeito a registo em Portugal (Cfr. Documento n.º 6 junto ao PPA).   
  6. Em virtude da prestação da garantia referida, a Requerente procedeu à autoliquidação de IS (realizada, em 20.05.2008, através da submissão da guia de Retenção na Fonte de IRS/IRC e Imposto do Selo n.º...), e respetivo pagamento, na importância de €240.000,00 (duzentos e quarenta mil euros), tendo este montante sido apurado pela aplicação da taxa de 0,6%, fixada na verba 10, da TGIS, sobre o valor da garantia (Cfr. Documento n.º 2 junto ao PPA).
  7. O IS autoliquidado foi entregue nos cofres do Estado, em 20.05.2008 (Cfr. Documento n.º 2 junto ao PPA).
  8. Mais tarde, apercebeu-se a Requerente que havia autoliquidado IS que, no seu entender, não era devido, tendo, por isso, apresentado, em 30.12.2011, pedido de restituição do imposto, ao abrigo do disposto no artigo 50.º[6], do CIS (Cfr. Documento n.º 4 junto ao PPA).
  9. Através do Ofício n.º O2022..., de 30 de novembro de 2022, foi a Requerente notificada do projeto de indeferimento do pedido de restituição do imposto, bem como do prazo para o exercício do direito de audição prévia (Cfr. Documento n.º 5 junto ao PPA).
  10. A Requerente não exerceu o direito de audição prévia, tendo sido notificada, mediante o Ofício n.º O2024..., datado de 15 de março de 2024, da decisão final de indeferimento do aludido pedido, constante do despacho n.º 54/2024/MF, de 07 de março de 2024, do Exmo. Senhor Ministro das Finanças (Cfr. Documento n.º 1 junto ao PPA).
  11. A Requerente apresentou o PPA que deu origem ao presente processo arbitral, em 21.06.2024 (Cfr. Sistema informático do CAAD).

III.2. FACTOS NÃO PROVADOS

  1. Os factos dados como provados são aqueles que o Tribunal considera relevantes, não se considerando factualidade dada como não provada que tenha interesse para a decisão.

 

III.3. FUNDAMENTAÇÃO DA FIXAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO

  1. Ao Tribunal incumbe o dever de selecionar os factos que interessam à decisão, discriminar a matéria que julga provada e declarar, se for o caso, a que considera não provada, não tendo de se pronunciar sobre todos os elementos da matéria de facto alegados pelas partes, tal como decorre dos termos conjugados do artigo 123.º, n.º 2, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”) e do artigo 607.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.
  2. Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram assim selecionados e conformados em função da sua relevância jurídica, a qual é definida tendo em conta as várias soluções plausíveis das questões de direito para o objeto do litígio, tal como resulta do artigo 596.º, n.º 1, do CPC, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.
  3. Segundo o princípio da livre apreciação dos factos, o Tribunal baseia a sua decisão, em relação aos factos alegados pelas partes, na sua íntima e prudente convicção, formada a partir do exame e avaliação dos meios de prova trazidos ao processo, e de acordo com as regras da experiência (cf. artigo 16.º, alínea e), do RJAT, e artigo 607.º, n.º 4, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

 

  1. Somente relativamente a factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, a factos que só possam ser provados por documentos, a factos que estejam plenamente provados por documentos, acordo ou confissão, ou quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (e.g., força probatória plena dos documentos autênticos, cfr. artigo 371.º do Código Civil), é que não domina, na apreciação das provas produzidas, o referido princípio da livre apreciação (cf. artigo 607.º, n.º 5, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

 

  1.  O Tribunal arbitral considera provados, com relevo para a decisão da causa, os factos acima elencados e dados como assentes, tendo por base a análise crítica e conjugada dos documentos juntos aos autos, dos factos alegados pelas partes que não foram impugnados e a adequada ponderação dos mesmos à luz das regras da racionalidade, da lógica e da experiência comum, e segundo juízos de normalidade e razoabilidade.

 

  1. Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja validade terá de ser aferida em relação à concreta matéria de facto consolidada.

 

IV. MATÉRIA DE DIREITO

IV.1 DA INCOMPETÊNCIA MATERIAL DO TRIBUNAL ARBITRAL

 

  1. A competência material dos tribunais é de ordem pública, o seu conhecimento procede o de qualquer outra matéria e constitui uma exceção dilatória de conhecimento oficioso, tudo conforme resulta dos artigos 16.º do CPPT e 13.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (“CPTA”), aplicável ex vi alíneas a) e c), do n.º 1, do artigo 29.º, do RJAT.
  2. Invoca a Requerida que o tribunal arbitral não é materialmente competente para apreciar a questão suscitada pela Requerente, uma vez que, a seu ver, está em causa um tipo de litígio que foi expressamente afastado pela Portaria de vinculação à jurisdição arbitral.
  3. Nesta senda, argumenta a Requerida, sumariamente, que a autoliquidação aqui sindicada não foi objeto de reclamação graciosa dirigida ao dirigente do órgão periférico regional da administração tributária, no prazo de 2 anos após a apresentação da declaração, nem está em causa autoliquidação efetuada de acordo com orientações genéricas emitidas pela administração tributária,
  4. pelo que, tendo o Sujeito Passivo utilizado o procedimento de “Restituição do imposto”, previsto no artigo 50.º, do CIS, apenas em 30.11.2011, ou seja, mais de dois anos depois da submissão da respetiva guia que deu origem à liquidação, esta subsume-se na alínea a), do artigo 2.º da citada Portaria (n.º 112-A/2011, de 22/03), o que a coloca fora do âmbito de vinculação da administração tributária à jurisdição arbitral.
  5. Por fim, acrescenta, ainda, a Requerida que tal procedimento (o consagrado no artigo 50.º, do CIS), não tem, neste caso, qualquer aptidão para suprir a falta de reclamação necessária, designadamente, equiparando-o, para efeitos do artigo 131.º do CPPT, a uma reclamação graciosa, por duas ordens de razão, a saber:
  1. O próprio regime daquele artigo 50.º assume-se como um procedimento de “restituição de imposto”, o que o distingue da natureza da reclamação graciosa e, porque, nessa medida, estabelece-se como um procedimento distinto e subsidiário relativamente “aos meios próprios previstos no CPPT”;
  2. Uma eventual equiparação daquele procedimento a uma reclamação graciosa, para efeitos do artigo 131.º do CPPT, resultaria numa ampliação de prazo da reclamação graciosa necessária.
  1. Replicou a Requerente, sustentado a propriedade do meio de defesa de que se socorreu, porquanto, considera que a AT está a efetuar uma interpretação errada do disposto na alínea a) do artigo 2.º da Portaria de Vinculação, ao ater-se, exclusivamente ao elemento literal (“que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos do artigo 131.º”) e ao desconsiderar a ratio legis subjacente à regra da “reclamação graciosa prévia necessária” consagrada no n.º 1 do artigo 131.º do CPPT.
  2. Na verdade, cremos que assiste razão à Requerente.

Vejamos,

  1. Nos termos da alínea a), do artigo 2.º, da Portaria n.º 112-A/2011, excluem-se do âmbito da vinculação da Administração Tributária à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD as “pretensões relativas à declaração de ilegalidade de atos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário”.
  2. O artigo 131.º, n.º 1, do CPPT, dispõe que “em caso de erro na autoliquidação, a impugnação será obrigatoriamente precedida de reclamação graciosa dirigida ao dirigente do órgão periférico regional da administração tributária, no prazo de 2 anos após a apresentação da declaração”.
  3. Ora, conforme consabido, a exigência de reclamação prévia, necessária para abrir a via contenciosa de impugnação de atos de autoliquidação, consagrada no n.º 1, do citado artigo (131.º, do CPPT), tem como única justificação o facto de relativamente a esse tipo de atos não existir uma tomada de posição da Administração Tributária sobre a legalidade da situação jurídica criada com o ato.
  4. Seguindo de perto o entendimento preconizado no Acórdão do CAAD, proferido no âmbito do processo n.º 448/2021-T, de 10.01.2022:

(...) Na verdade, além de não se vislumbrar qualquer outra justificação para essa exigência, o facto de estar prevista idêntica reclamação graciosa necessária para impugnação contenciosa de actos de retenção na fonte e de pagamento por conta (nos artigos 132.º, n.º 3, e 133.º, n.º 2, do CPPT), que têm de comum com os actos de autoliquidação a circunstância de também não existir uma tomada de posição da Administração Tributária sobre a legalidade dos actos, confirma que é essa a razão de ser daquela reclamação graciosa.

Uma outra confirmação inequívoca de que é essa a razão de ser da exigência de reclamação graciosa necessária encontra-se no n.º 3, do artigo 131.º do CPPT, ao estabelecer que “sem prejuízo do disposto nos números anteriores, quando o seu fundamento for exclusivamente matéria de direito e a autoliquidação tiver sido efectuada de acordo com orientações genéricas emitidas pela administração tributária, o prazo para a impugnação não depende de reclamação prévia, devendo a impugnação ser apresentada no prazo do n.º 1 do artigo 102.º”.

  1. E, neste sentido, não nos parece ser de aceitar a interpretação, unicamente assente no teor literal das normas  , defendida pela Requerida.
  2. Aliás, “(...) na interpretação das normas fiscais são observadas as regras e princípios gerais de interpretação e aplicação das leis (artigo 11.º, n.º 1, da LGT) e o artigo 9.º, n.º 1, proíbe expressamente as interpretações exclusivamente baseadas no teor literal das normas ao estatuir que “a interpretação não deve cingir-se à letra da lei”, devendo, antes, “reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada”.

Quanto à correspondência entre a interpretação e a letra da lei, basta “um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso” (artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil), o que só impedirá que se adoptem interpretações que não possam em absoluto compaginar-se com a letra da lei, mesmo reconhecendo nela imperfeição na expressão da intenção legislativa.

Por isso, a letra da lei não é obstáculo a que se faça interpretação declarativa, que explicite o alcance do teor literal, nem mesmo interpretação extensiva, quando se possa concluir que o legislador disso menos do que o que, em coerência, pretenderia dizer. Na interpretação extensiva “é a própria valoração da norma (“o seu espírito”) que leva a descobrir a necessidade de estender o texto desta à hipótese que ela não abrange”, “a força expansiva da própria valoração legal é capaz de levar o dispositivo da norma a cobrir hipóteses do mesmo tipo não cobertas pelo texto”.

A interpretação extensiva, assim, é imposta pela coerência valorativa e axiológica do sistema jurídico, erigida pelo artigo 9.º, n.º 1, do Código Civil em critério interpretativo primordial pela via da imposição da observância do princípio da unidade do sistema jurídico”.[7]

  1. Ora, dito isto, consideramos que a referência ao artigo 131.º, do CPPT, que se faz no artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, não pode ter o alcance decisivo de afastar a possibilidade de apreciação de pedidos de ilegalidade de atos de indeferimento de pedidos de restituição do imposto (Cfr. artigo 50.º, do CIS, em vigor à data dos factos), pois, nos casos em que era formulado tal pedido era proporcionado à Administração Tributária, com este pedido, uma oportunidade de se pronunciar sobre o mérito da pretensão do contribuinte antes de este recorrer à via jurisdicional.
  2. Tal como aconteceu no caso em apreço.
  3. O artigo 50.º, do CIS[8] (entretanto revogado pela Lei n.º 64-B/2021, de 30 de dezembro, que aprovou o Orçamento de Estado para 2012), previa um procedimento excecional de restituição de um imposto a utilizar quando o sujeito passivo não havia recorrido em prazo, aos meios que a lei legalmente punha à sua disposição para questionar a legalidade da liquidação.
  4. A restituição do imposto à luz do mecanismo aí previsto estava dependente do imposto cuja restituição era peticionada ser relativo aos últimos 4 (quatro) anos; o pedido ser apresentado com documentos comprovativos de liquidação e pagamento do imposto e não ter o interessado usado em tempo oportuno os meios próprios consagrados no CPPT. 
  5. Preenchidos os mencionados pressupostos (como é o caso dos autos), o Ministro tinha o poder de ordenar essa restituição, poder que, num Estado de Direito, só pode ser entendido como um poder-dever e sujeito a ser sindicado em Tribunal.
  6. Com efeito, admitindo a lei, à data, que os sujeitos passivos lançassem mão deste procedimento, não se vê qual a razão que possa explicar a impossibilidade de os mesmos acederem à via arbitral quando tenham utilizado aquele meio, uma vez que lhes era permitido fazê-lo, caso não tivessem recorrido, em prazo, aos meios que a lei legalmente punha à sua disposição.
  7. E, neste contexto, entendemos que tal mecanismo pode, efetivamente, ser equiparável à reclamação graciosa necessária, na medida em que tal como esta, o pedido de restituição do imposto, consagrado no artigo 50.º do CIS, permitia à Autoridade Tributária apreciar a pretensão do sujeito passivo antes do acesso à via judicial.  
  8. Neste sentido, entende o Tribunal Arbitral que assegurando o pedido de restituição do imposto, previsto no citado artigo, a possibilidade de apreciação da pretensão do contribuinte antes do acesso à via contenciosa que se pretende alcançar com a impugnação administrativa necessária, a solução mais acertada, por ser a que melhor defende o desígnio legislativo de “reforçar a tutela eficaz dos direitos e interesses legalmente protegidos dos contribuintes”, é a admissibilidade da via arbitral para apreciar a legalidade dos atos de liquidação previamente apreciada naquele procedimento.
  9. Face ao exposto, improcede, assim, a exceção de incompetência material do Tribunal Arbitral suscitada pela Requerida.

IV.2 DA INIMPUGNABILIDADE DA AUTOLIQUIDAÇÃO

  1. Sustenta, agora, a Requerida a inimpugnabilidade da autoliquidação aqui em crise com recurso a argumentos em tudo idênticos aos já alegados acima:
  1. Não se mostra cumprida a condição de reclamação prévia necessária da autoliquidação ora impugnada;
  2. Tendo sido apresentado, no caso vertente, um pedido de restituição de IS, e ainda que se atribua ao pedido de restituição o mesmo efeito jurídico da reclamação graciosa, essa equivalência apenas pode ser  reconhecida quando o pedido de revisão oficiosa tenha sido apresentado dentro do prazo previsto para aquela forma de impugnação administrativa, isto é, dentro do prazo de dois anos;
  3. Numa interpretação conforme a unidade do sistema jurídico, a possibilidade de restituição do IS num prazo de 4 anos não pode inutilizar a exigência legal de impugnação administrativa necessária que consta do artigo 131.º, n.º 1, do CPPT, dentro do prazo aí previsto, e que constitui um requisito de impugnabilidade dos atos de autoliquidação.
  1.   O Tribunal Arbitral não vai, naturalmente, repetir os fundamentos já supra expendidos.
  2. Contudo, e sem prejuízo de exaustividade, repita-se que as reclamações graciosas necessárias, consagradas nos artigos 131.º a 133.º, do CPPT, têm como única razão de ser a necessidade de uma filtragem administrativa prévia à via contenciosa. 
  3. E, como já foi bom de ver, o pedido de restituição do imposto aqui em crise serve esse mesmo propósito.
  4. Aliás, excluir a jurisdição arbitral somente porque o meio utilizado não foi uma reclamação graciosa seria violar, como já se disse, o princípio da tutela jurisdicional efetiva (Cfr. artigo 20.º, da CRP).
  5. Já no que respeita à questão do prazo, considera o Tribunal Arbitral que não há qualquer ampliação do mesmo, porquanto, era o próprio artigo 50.º, do CIS, que consagrava um prazo superior (de 4 anos), em virtude de tal mecanismo só ser utilizado no caso de o interessado não ter usado em tempo oportuno dos meios próprios previstos no CPPT.
  6. Não se trata aqui dos prazos estabelecidos para a revisão oficiosa, mas, sim, do prazo estatuído expressamente na lei para lançar mão do pedido de restituição do imposto (Cfr. artigo 50.º, do CIS).
  7. A seguir-se o entendimento da Requerida, nunca os Sujeitos Passivos que utilizassem tal mecanismo poderiam recorrer à via contenciosa, o que, resultaria, novamente, na violação do apontado princípio constitucional da tutela jurisdicional efetiva (Cfr. artigo 20.º, da CRP).
  8. Aqui chegados, subscrevemos a conclusão do sujeito passivo de que “a redação da alínea a) do artigo 2.º da Portaria de Vinculação deve ser lida de acordo com a ratio que lhe subjaz (i.e., permitir a prévia apreciação pela AT do peticionado e eventualmente satisfazer a pretensão do interessado, antes de a questão ter de ser dirimida por um tribunal) e, consequentemente, outros procedimentos de contencioso administrativo, para além da reclamação graciosa prevista no artigo 68.º do CPPT, merecem enquadramento nessa alínea a), desde que correspondam a procedimentos consagrados na lei e que sejam atempadamente exercidos”. (negrito nosso)
  9. Face ao exposto, improcede, assim, a exceção de inimpugnabilidade da autoliquidação aduzida pela Requerida.

 

IV.3 DA QUESTÃO DE FUNDO

 

  1. Considerando a factualidade exposta, bem como as pretensões e posições das Partes constantes das suas peças processuais, a questão que cumpre apreciar no presente processo prende-se em saber se a autoliquidação de IS que incidiu sobre a garantia prestada pela Requerente (conjuntamente com outras quatro empresas do Grupo automóvel de que faz parte), em favor de um sindicato bancário – composto pelo Bank of India, Barclays Capital, Canara Bank (London branch), Indian Overseas Bank (Hong Kong branch), State Bank of India e Barclays Bank PLC (Hong Kong branch) –, que celebrou em março de 2008, com uma sociedade do mesmo grupo sedeada na Holanda – C... B.V. –, um contrato de financiamento, no valor de €40.000.000,00 (quarenta milhões de euros), está (ou não) sujeita a IS, a uma taxa de 0,6%, nos termos da Verba 10.3 da TGIS

 

IV.3.1 APRECIAÇÃO

 

  1. Dispõe o artigo 1.º, n.º 1, do CIS, que “o imposto do selo incide sobre todos os atos, contratos, documentos, títulos, papéis e outros factos ou situações jurídicas previstos na Tabela Geral, incluindo as transmissões gratuitas de bens”.

 

  1. Por força da verba 10, da TGIS, em conjugação com o estabelecido no citado artigo (1.º, n.º 1, do CIS), ficam sujeitas a imposto do selo as “Garantias das obrigações, qualquer que seja a sua natureza ou forma, designadamente o aval, a caução, a garantia bancária autónoma, a fiança, a hipoteca, o penhor e o seguro-caução, salvo quando materialmente acessórias de contratos especialmente tributados na presente Tabela e sejam constituídas simultaneamente com a obrigação garantida, ainda que em instrumento ou título diferente sobre o respectivo valor, em função do prazo, considerando-se sempre como nova operação a prorrogação do prazo do contrato:”, às taxas aí previstas, em função do prazo da garantia.

 

  1. Não obstante, diz-nos o artigo 4.º, do CIS, referente à incidência territorial do imposto, nomeadamente, o seu n.º 1, que “Sem prejuízo das disposições do presente Código e da Tabela Geral em sentido diferente, o imposto do selo incide sobre todos os factos referidos no artigo 1.º (todos os atos, contratos, documentos, títulos, papéis e outros factos ou situações jurídicas previstas na Tabela Geral, incluindo as transmissões gratuitas de bens) ocorridos em território nacional”. (negrito e sublinhado nosso)

 

  1. Tal artigo é complementado pelas várias alíneas do n.º 2, as quais identificam outras situações que, apesar de não se considerarem ocorridas em território nacional, ao abrigo do disposto no n.º 1, do artigo 4.º, do CIS são, ainda assim, sujeitas a tributação, nos termos previstos no n.º 2 desse mesmo artigo, designadamente, por relevarem para o caso dos autos, as suas alíneas a) e b).

 

  1. A alínea a), do n.º 2, do artigo 4.º, do CIS, consagra que são, ainda, sujeitos a imposto “Os documentos, actos ou contratos emitidos ou celebrados fora do território nacional, nos mesmos termos em que o seriam se neste território fossem emitidos ou celebrados, caso aqui sejam apresentados para quaisquer efeitos legais”. (negrito nosso)

 

  1. Por sua vez, a alínea b), do n.º 2, do artigo 4.º, do CIS, prevê que são, ainda, sujeitos a imposto “As operações de crédito realizadas e as garantias prestadas por instituições de crédito, por sociedades financeiras ou por quaisquer outras entidades, independentemente da sua natureza, sediadas no estrangeiro, por filiais ou sucursais no estrangeiro de instituições de crédito, de sociedades financeiras, ou quaisquer outras entidades, sediadas em território nacional, a quaisquer entidades, independentemente da sua natureza, domiciliadas neste território, considerando-se domicílio a sede, filial, sucursal ou estabelecimento estável” (negrito e sublinhado nosso).

 

  1. Ou seja, a alínea b), do n.º 2, do artigo 4.º, do CIS, abrange no seu âmbito de incidência territorial do imposto do selo as situações em que o garante esteja domiciliado no estrangeiro, mas o beneficiário da garantia esteja domiciliado em território nacional.

 

  1. Aqui chegados, conclui-se, como refere, e bem, a Requerente, que são três os critérios de incidência territorial do aludido imposto: a) A ocorrência em território nacional dos factos elencados no artigo 1.º, do CIS; b) A apresentação em Portugal, para quaisquer efeitos legais, de documentos, atos ou contratos celebrados fora do território nacional; e c) A prestação de garantias por parte de entidades não residentes quando os beneficiários das garantias sejam entidades domiciliadas em Portugal.

 

  1. No que respeita ao critério indicado em primeiro lugar, o artigo 4.º, n.º 1, do CIS, não clarifica o que entende como facto ocorrido em território nacional, pelo que, há que lançar mão do princípio geral da territorialidade consagrado no artigo 13.º, da LGT, que dispõe o seguinte: “(...) as normas tributárias aplicam-se aos factos que ocorram no território nacional”.

 

  1. Assim, entendemos que o citado artigo (em função do que refere o artigo 13.º, da LGT), tem como base a verificação territorial dos factos tributários que se pretende tributar - os atos, contratos, documentos, títulos, papéis e outros factos ou situações jurídicas previstos na TGIS.

 

  1. Ou seja, “à luz do princípio da territorialidade em sentido positivo é necessário um elemento de conexão com a ordem jurídico-tributária portuguesa para o Estado proceder à tributação. O próprio facto tributário e não qualquer outro elemento acessório da relação jurídico-tributária deveria localizar-se em Portugal, se se atender à letra do número 1 do presente artigo (“as normas tributárias aplicam-se aos factos que ocorram em território nacional”)[9]

 

  1. Neste sentido, consideramos que o CIS, conjugado com o artigo 13.º, da LGT, determina que em matéria fiscal a territorialidade seja apurada por referência ao próprio facto tributário – que serão os atos, contratos, documentos, títulos, papéis e outros factos ou situações jurídicas previstos na TGIS – e não a qualquer outro elemento acessório, como sejam as circunstâncias em que se encontram os sujeitos passivos do imposto.

 

  1. Seguindo o entendimento preconizado por Francisco Matos e Rita Abreu[10]:

 

A introdução de um elemento subjetivoo domicílio do beneficiário da garantia ou do garantena interpretação do artigo 4.º, n.º 1 do Código do Imposto do Selo, não nos parece, assim, encontrar suporte na letra do referido preceito, nem nos princípios interpretativos atendíveis.

Por outras palavras, no caso da constituição de garantias, somos da opinião que, para efeitos do artigo 4.º, n.º 1 do Código do Imposto do Selo, a residência da entidade obrigada a apresentar garantia, ou do garante, somente terá relevância para reforçar a conexão (principal) com o território nacional de contratos de garantias que sejam assinados em território nacional. Será este o conteúdo da conexão económica (adicional) (...), na ausência da qual se poderá sustentar que as garantias não estão abrangidas pelo âmbito de incidência territorial do imposto do selo, (...).

Em conformidade, a formulação do n.º 2 do artigo 4.º do Código do Imposto do Selo (“São, ainda, sujeitos a imposto”) reforça o entendimento ora proposto, de acordo com o qual os critérios de conexão previstos nas alíneas do n.º 2 acrescem ao critério previsto no n.º 1 do mesmo artigo e visam incluir, na incidência territorial do imposto, realidades que, de contrário – entenda-se, ao abrigo exclusivamente do disposto no n.º 1 do artigo 4.º - não estariam sujeitas a imposto. Em suma reconhecemos a relevância do domicílio do beneficiário da garantia, mas somente nos casos que se subsumam à alínea b) do n.º 2 do artigo 4.º do Código do Imposto do Selo – (...)” (negrito nosso)

 

  1. Ora, é manifesto que no caso dos autos não se verifica a tal conexão (principal) com o território nacional, porquanto, o contrato de garantia foi celebrado e assinado no estrangeiro, não relevando, assim, para efeitos do n.º 1, do artigo 4.º, do CIS, o facto do domicílio do garante ser em território nacional.

 

  1. Já quanto às alíneas a) e b), do n.º 2, do artigo 4.º, do CIS, não serão necessárias grandes considerações, sendo por demais evidente que o enquadramento factual descrito nos autos não se encontra abrangido por nenhuma daquelas, porquanto,

 

  1. não resulta dos autos que o contrato de garantia tenha sido apresentado em Portugal para quaisquer efeitos legais (alínea a), do n.º 2, do artigo 4.º, do CIS), nem tampouco estamos perante uma situação em que o garante esteja domiciliado no estrangeiro e o beneficiário da garantia esteja domiciliado em Portugal (alínea b), do n.º 2, do artigo 4.º, do CIS), – antes pelo contrário –.

 

  1. Aliás, a própria AT, como foi bom de ver, também não enquadrou o caso dos autos em qualquer das aludidas alíneas.

 

  1. Assim, “O mero facto de a sociedade domiciliada em Portugal prestar uma fiança em garantia da relação de crédito estabelecida fora de Portugal e entre entidades não  residentes, não se enquadra na alínea b) do n.º 2 do artigo 4.º do Código do Imposto do Selo. Neste sentido, e salvo no caso de tal fiança ser apresentada em Portugal para quaisquer efeitos legais, deverá entender-se que tal garantia não tem cabimento nas normas de incidência territorial e não poderá, por conseguinte, ficar sujeita a imposto do selo em Portugal[11].

 

  1. Dito tudo isto, e verificando-se que: a) O credor (sindicato bancário) e o devedor (C...B.V.) têm ambos domicílio fora do território nacional; e, ainda, que b) O contrato de garantia foi celebrado e outorgado fora do território nacional,

 

  1. conclui-se, sem margem para dúvidas, que a operação aqui em crise não obedece a nenhum dos três critérios de incidência territorial do IS (Cfr. artigo 4.º, n.º 1, n.º 2, alínea a) e b), do CIS), que justifique a tributação.

 

  1. Nesta conformidade, o ato de autoliquidação de IS aqui sindicado, enferma de vício de violação de lei, por erro nos pressupostos de facto e de direito, o que implica a sua declaração de ilegalidade e consequente anulação,

 

  1. ficando, além disso, prejudicado o conhecimento das restantes questões submetidas à apreciação deste Tribunal, ao abrigo da proibição da prática de atos no processo inúteis e desnecessários, prevista no artigo 130.º, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.

 

IV.4 DO DIREITO AO REEMBOLSO DO IMPOSTO PAGO E A JUROS INDEMNIZATÓRIOS

  1. Peticiona, ainda, a Requerente que lhe seja reconhecido o direito ao reembolso do imposto indevidamente pago e a juros indemnizatórios.
  2. Determina a alínea b), do n.º 1, do artigo 24.º, do RJAT, que “a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos precisos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários”, “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”, o que inclui “o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário” (Cfr. n.º 5, do artigo 24.º, do RJAT).
  3. De igual modo, o n.º 1, do artigo 100.º, da LGT, aplicável ao processo arbitral tributário, por força do disposto na alínea a), do n.º 1, do artigo 29.º, do RJAT, estabelece que “A administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei”.
  4. O restabelecimento da situação, que existiria se o ato tributário objeto do pedido de pronúncia arbitral não enfermasse de ilegalidade, obriga, por um lado, à restituição do imposto pago indevidamente pela Requerente, no valor total de €240.000,00 (duzentos e quarenta mil euros), e, por outro lado, ao pagamento de juros indemnizatórios.
  5. O regime dos juros indemnizatórios consta do artigo 43.º, da LGT, cujo n.º 1 estabelece que “São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.
  6. No caso em apreço, encontram-se preenchidos os pressupostos constantes do citado artigo (artigo 43.º, n.º 1, da LGT), uma vez que, no procedimento administrativo de restituição de IS (previsto, à data, no artigo 50.º, do CIS), a AT teve a oportunidade de proceder à análise e avaliação da matéria controvertida e podia ter efetuado o correto enquadramento jurídico-tributário dos factos e, consequentemente, ter efetuado a plena reconstituição da legalidade dos atos ou da situação objeto do litígio. Não o tendo feito, os serviços da AT cometeram um erro que lhes é imputável, do qual resultou a manutenção de um imposto por montante superior ao devido.
  7. Face ao exposto, deverá proceder o pedido da Requerente, i.e., ser-lhe reconhecido o direito a juros indemnizatórios e condenar a AT ao reembolso do imposto indevidamente pago, nos termos dos artigos 43.º e 100.º, da LGT e artigo 61.º, do CPPT.

V. DECISÃO

 Termos em que, de harmonia com o exposto, decide-se neste Tribunal Arbitral julgar integralmente procedente o pedido de pronúncia arbitral e, consequentemente:

  1. Declarar ilegal e anular o ato de autoliquidação de IS plasmado na guia n.º..., referente ao período de março de 2008, no montante global de €240.000,00 (duzentos e quarenta mil euros);
  2. Declarar ilegal e anular a decisão final de indeferimento do pedido de restituição do imposto autuado com o n.º O2024...;
  3. Condenar a AT a reembolsar aos Requerentes o montante de €240.000,00 (duzentos e quarenta mil euros) e ao pagamento de juros indemnizatórios sobre esse valor, a contar do dia seguinte à data em que a Requerente foi notificada da decisão final de indeferimento do pedido de restituição do imposto até à data do processamento do reembolso (Cfr. artigo 43.º, n.º 1, da LGT e 61.º, n.º 5, do CPPT).

VI. VALOR DA CAUSA

Fixa-se ao processo o valor de €240.000,00 (duzentos e quarenta mil euros), nos termos do artigo 97.º-A do CPPT, aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).

VII. CUSTAS

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em €4.284,00 (quatro mil duzentos e oitenta e quatro euros), nos termos da tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerida.

 

[Texto elaborado em computador, nos termos do artigo 29.º, n.º 1, al. e), do RJAT.]

Lisboa, 24 de fevereiro de 2025

 

O Tribunal Arbitral Coletivo,

 

Victor Calvete 

 

(Presidente)

 

 

 

 

Alexandra Gonçalves Marques

 

(Árbitra Adjunta)

 

 

 

 

 

Susana Cristina Nascimento das Mercês de Carvalho

 

(Árbitra Adjunta e Relatora)

 



[1] In “Lei Geral Tributária Anotada”, Editora Rei dos Livros, 2001, p. 95.

[2] In “O Imposto do Selo na vida de um pacote de garantias: constituição, reforço, substituição e extensão”, Revista Eletrónica de Fiscalidade da AFP, ano IV, n.º 1 (2022), pp. 10, 11, 12, 13.

[3] In “Imposto do Selo – Operações Financeiras e de Garantia”, 2020, Almedina, pp. 163-171.

[4] Entre os quais a Requerente.

[5] C... B.V.

[6] Em vigor à data dos factos.

[7] Acórdão do CAAD, proferido no âmbito do processo n.º 448/2021-T, de 10.01.2022.

[8] Artigo 50.º

Restituição do imposto

1 - Sem prejuízo do disposto nos artigos anteriores, o Ministro das Finanças pode ordenar o reembolso do imposto pago nos últimos quatro anos quando o considere indevidamente cobrado.

2 - Para efeitos do disposto no número anterior, os interessados apresentam, juntamente com o pedido, os documentos comprovativos da liquidação e pagamento do imposto.

3 - O disposto no n.º 1 só é aplicável se não tiverem sido utilizados, em tempo oportuno, os meios próprios previstos no CPPT.

 

[9] António Lima Guerreiro, Lei Geral Tributária Anotada, Editora Rei dos Livros, 2001, pág. 95.

[10] “O Imposto do Selo na vida de um pacote de garantias: constituição, reforço, substituição e extensão”, Revista Eletrónica de Fiscalidade da AFP, Ano IV, n.º 1 (2022), pp. 10 e 11.

[11] O Imposto do Selo na vida de um pacote de garantias: constituição, reforço, substituição e extensão”, Revista Eletrónica de Fiscalidade da AFP, Ano IV, n.º 1 (2022), p. 12.