DECISÃO ARBITRAL
A árbitra Dra. Catarina Belim, designada pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formar Tribunal Arbitral, constituído em 23.07.2024, decide o seguinte:
1. Relatório
A... S.A , sociedade comercial por quotas com sede em ..., ...-..., ..., Aveiro, com o NIPC ..., (doravante “Requerente”), veio, ao abrigo do disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (adiante, abreviadamente designado por RJAT) e nos artigos 1.º, alínea b) e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, apresentar pedido de pronúncia arbitral pedindo declaração de ilegalidade do indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa e anulação dos atos de liquidação de IEC na parte relativa a CSR relativos aos períodos entre 10/2019 e 10/2021, liquidadas pela B... e períodos entre 11/2021 e 05/2023 liquidadas pela C... Lda.
A Requerente pede ainda reembolso das quantias indevidamente pagas pela aqui requerente, no valor global de € 44.990,74, com juros indemnizatórios.
O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 20.05.2024.
Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Conselho Deontológico designou como árbitra do Tribunal Arbitral singular a signatária desta decisão, que comunicou a sua aceitação no prazo legal.
Em 04.07.2024, as partes foram notificadas dessa designação e não manifestaram vontade de recusar a designação, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação dada pela Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral foi constituído no dia 23.07.2024.
A Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT”) apresentou resposta, em que suscitou exceções e defendeu a improcedência do pedido de pronúncia arbitral.
A Requerente respondeu às exceções em 10.07.2024, tendo solicitado que fossem chamadas aos autos as entidades identificadas como tendo repercutido o imposto tendo em vista demonstrarem a sua repercussão.
O Tribunal notificou a Requerente no dia 27.11.2024 solicitando que para efeitos de notificação das entidades fornecedoras de combustíveis em sede do âmbito da prova da repercussão da CSR, a Requerente indicasse aos autos a identificação completa das fornecedoras, morada e representante legal a notificar e listagem das faturas (n.º fatura, data, valor) em causa.
Na sequência de resposta da Requerente, o Tribunal determinou, a 19.12.2024 a notificação das empresas indicadas pela Requerente como sendo fornecedoras de combustível (B... e C... Lda) para enviarem, no prazo de 10 dias: (i) declarações sobre se são ou não sujeito passivo de ISP/CSR com junção, em caso positivo, de cópias das declarações de introdução no consumo e as respetivas liquidações de ISP e CSR e (ii) declaração sobre se repercutiram ou não à Requerente o valor da CSR (períodos entre 10/2019 e 10/2021, para B... e períodos entre 11/2021 e 05/2023 para C... Lda).
A C... Lda. respondeu que é revendedora dos produtos petrolíferos, os quais adquire à D... S.A., entidade responsável pela declaração de introdução no consumo dos produtos petrolíferos. Declarou ainda que na aquisição dos combustíveis, o referido fornecedor/vendedor repercute na C... Lda. a CSR a qual por sua vez é repercutida pela C... Lda. no preço de venda praticado aos seus clientes consumidores finais. A B... respondeu que não é sujeito passivo de ISP/CSR e que na faturação efetuada apenas identifica o tipo de combustível, não fazendo a discriminação do ISP e CSR.
Tendo em conta que foi dada a oportunidade de contraditório à Requerente e consideradas as posições das partes indicadas nos articulados e a prova produzida, o Tribunal dispensou a apresentação de alegações finais ao abrigo do artigo 16 a) c) e e) do RJAT.
O tribunal arbitral foi regularmente constituído, ex vi o disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do RJAT.
As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão devidamente representadas, como determinado pelos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, não enfermando o processo de quaisquer nulidades.
2. Matéria de facto
2.1. Factos Provados
Com interesse para a decisão, consideram-se provados os seguintes factos:
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A Requerente é uma sociedade comercial do setor agro-alimentar;
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No período compreendido entre 10/2019 e 10/2021, adquiriu combustíveis à empresa B... e, no período compreendido entre 11/2021 e 05/2023 adquiriu combustíveis à empresa C... Lda. (faturas juntas como documentos n.ºs 5 do PPA, cujos teores se dão como reproduzidos);
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Em 12.10.2023, a Requerente apresentou ao Sub-Director Geral da AT pedido de revisão dos atos tributários de liquidação que englobam o ISP relativos aos períodos entre 10/2019 e 10/2021 (liquidações B...) e períodos entre 11/2021 e 05/2023 (liquidações C... Lda.), unicamente na parte respeitante à liquidação em CSR (aos montantes liquidados a título de CSR) (documento n.º 3 PPA);
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O pedido de revisão oficiosa não foi decidido até 13.05. 2024, data em que a Requerente apresentou o pedido de constituição do tribunal arbitral que deu origem ao presente processo.
2.2. Factos não provados e fundamentação da fixação da matéria de facto:
2.2.1. Não se provou a repercussão e pagamento de CSR no valor de € 44.990,74 nas vendas de combustível efetuadas pelas fornecedoras B... e C... Lda.
Nesta sede, este Tribunal entende que existem incongruências nos elementos apresentados aos autos – se por um lado o PPA (artigo 9.º) refere especificamente que as fornecedoras B... e C... Lda. são sujeitos passivos de imposto, as declarações destas fornecedoras testemunham o contrário – que as mesmas são revendedoras de combustíveis e não quem introduziu no consumo estes bens, o que significa, consequentemente, que não procederam a qualquer liquidação de ISP/CSR (ao contrário do alegado no PPA).
A fornecedora B... indica que a faturação efetuada à Requerente apenas identifica o tipo de combustível, não fazendo a discriminação do ISP e CSR.
As declarações apresentadas pelas fornecedoras de combustível não permitem, de forma contundente, atestar, o montante relativo à CRS que alegadamente foi pago pela e repercutido à Requerente e sempre teriam de ser complementadas, aquando da existência de fornecedores intermediários revendedores como neste caso, por declarações dos sujeitos passivos de ISP, ou seja, os fornecedores “iniciais”, a atestar a repercussão “em cadeia” de CSR (dos fornecedores que introduzem no consumo para os revendedores e dos revendedores para a Requerente) tanto quanto aos períodos alegados quanto como aos combustíveis e quantidades em causa, o que nem sequer foi alegado, nem apresentado, posteriormente, em sede das declarações pelas fornecedoras de combustível.
Assim, entende este Tribunal que a Requerente não logrou cumprir o ónus da prova, nos termos do artigo 74.º n.º 1 da LGT, que lhe compete quanto à repercussão de CSR na Requerente no valor de € 44.990,74.
2.2.2. A decisão sobre os factos provados e não provados baseia-se nos documentos apresentados com o pedido de pronúncia arbitral e no processo administrativo.
3. Exceções invocadas
3. Exceções invocadas
3.1. Questões de incompetência em razão da matéria
Na sua Resposta, a Requerida suscita a incompetência material do Tribunal Arbitral com base em três fundamentos: por falta de vinculação da AT, ao abrigo do disposto no artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, por falta de competência do Tribunal Arbitral para fiscalizar a legalidade de normas em abstrato e por falta de competência a apreciar a legalidade de atos de repercussão da CSR.
3.1.1. Questão da incompetência por falta de vinculação
Na sua Resposta, a Requerida começa por suscitar a exceção da incompetência relativa do Tribunal Arbitral em razão da matéria, estribando-se no entendimento de que a CSR é uma contribuição financeira e não um imposto, encontrando-se, assim, excluída da arbitragem tributária, por força do disposto nos artigos 2.º e 3.º do RJAT e do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.
A Requerente entende que o Tribunal Arbitral tem competência para apreciar a presente ação, porquanto está em causa uma pretensão relativa a impostos.
Ora nesta parte este Tribunal considera que a CSR não se traduz numa verdadeira contribuição financeira, sendo outrossim um imposto, não sendo determinante para tal qualificação o nomen iuris de batismo do legislador.
Acompanha-se, aqui, a posição deixada, entre outros, nos Processos n.ºs 294/2023-T e 410/2023-T, transcrevendo-se a fundamentação vertida neste último aresto onde se deixou consignado:
“(...)
Com efeito, a competência contenciosa dos Tribunais Arbitrais em matéria de arbitragem tributária, tal como resulta do artigo 2º do RJAT, compreende a apreciação de pretensões que visem a “declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta” e a “declaração de ilegalidade de atos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de atos de determinação da matéria coletável e de atos de fixação de valores patrimoniais”.
O artigo 4º, nº 1, do RJAT faz ainda depender a vinculação da Administração Tributária à jurisdição dos Tribunais Arbitrais de portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça, que deverá estabelecer, designadamente, o tipo e o valor máximo dos litígios abrangidos.
E o diploma que, em execução desse preceito, define o âmbito e os termos da vinculação da Autoridade Tributária à jurisdição dos Tribunais Arbitrais que funcionam no CAAD é a Portaria nº 112-A/2011, de 22 de março, que no seu n.º 2, sob a epígrafe “Objeto de vinculação”, e com a alteração resultante da Portaria nº 287/2019, de 3 de setembro, dispõe o seguinte:
“Os serviços e organismos referidos no artigo anterior vinculam-se à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD que tenham por objeto a apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida referidas no n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, com excepção das seguintes:
a) Pretensões relativas à declaração de ilegalidade de atos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário;
b) Pretensões relativas a atos de determinação da matéria coletável e atos de determinação da matéria tributável, ambos por métodos indiretos, incluindo a decisão do procedimento de revisão;
c) Pretensões relativas a direitos aduaneiros sobre a importação e demais impostos indiretos que incidam sobre mercadorias sujeitas a direitos de importação;
d) Pretensões relativas à classificação pautal, origem e valor aduaneiro das mercadorias e a contingentes pautais, ou cuja resolução dependa de análise laboratorial ou de diligências a efetuar por outro Estado membro no âmbito da cooperação administrativa em matéria aduaneira;
e) Pretensões relativas à declaração de ilegalidade da liquidação de tributos com base na disposição antiabuso referida no n.º 1 do artigo 63.º do CPPT, que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos do n.º 11 do mesmo artigo”.
A referência a serviços e organismos que se vinculavam à jurisdição arbitral era feita para a Direcção-Geral dos Impostos e a Direcção-Geral das Alfândegas e dos Impostos Especiais sobre o Consumo, que foram, entretanto, extintas, tendo-lhes sucedido a Autoridade Tributária e Aduaneira (aqui designada por Requerida).
A Portaria n.º 112-A/2011, também chamada Portaria de vinculação, fixa um segundo nível de delimitação das pretensões que poderão ser sujeitas à jurisdição arbitral, mas, tratando-se de um mero regulamento de execução, a Portaria não poderia ir além do estabelecido na lei quanto ao âmbito de competência material dos Tribunais Arbitrais, podendo estabelecer restrições quanto ao âmbito da vinculação à arbitragem tributária, mormente por referência ao tipo de litígios e ao valor do processo.
A este propósito, o acórdão proferido no Processo n.º 48/2012-T, de 06-07-2012, depois seguido por diversos outros arestos, consignou o seguinte:
“A competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD é, em primeiro lugar, limitada às matérias indicadas no artigo 2.º, n.º 1, do [RJAT].
Numa segunda linha, a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD é também limitada pelos termos em que Administração Tributária se vinculou àquela jurisdição, concretizados na Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, pois o artigo 4.º do RJAT estabelece que «a vinculação da administração tributária à jurisdição dos tribunais constituídos nos termos da presente lei depende de portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça, que estabelece, designadamente, o tipo e o valor máximo dos litígios abrangidos.
Em face desta segunda limitação da competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, a resolução da questão da competência depende essencialmente dos termos desta vinculação, pois, mesmo que se esteja perante uma situação enquadrável naquele artigo 2.º do RJAT, se ela não estiver abrangida pela vinculação estará afastada a possibilidade de o litígio ser jurisdicionalmente decidido por este tribunal arbitral”.
Assim, a Portaria de vinculação, aparentemente, estabelece duas limitações: (i) refere-se a pretensões “relativas a impostos”, de entre aquelas que se enquadram na competência genérica dos Tribunais Arbitrais e (ii) a impostos cuja administração esteja cometida à Autoridade Tributária.
Nestes termos, terá assim de se concluir que a vinculação se reporta a qualquer das pretensões mencionadas no artigo 2.º, n.º 1, do RJAT que respeitem a impostos (com a exclusão de outros tributos) e a impostos que sejam geridos pela Autoridade Tributária.
A constitucionalização das contribuições financeiras resultou da alteração introduzida no artigo 165.º, n.º 1, alínea i), da Lei Fundamental, pela revisão constitucional de 1997, que autonomizou as contribuições financeiras a favor das entidades públicas como uma terceira categoria de tributos.
Por outro lado, a LGT passou a incluir, entre os diversos tipos de tributos, os impostos e outras espécies criadas por lei, designadamente as taxas e as contribuições financeiras a favor das entidades públicas, definindo, em geral, os pressupostos desses diversos tipos de tributos no subsequente artigo 4.º.
Neste âmbito, a doutrina tem caracterizado as contribuições financeiras como um tertium genus de receitas fiscais, que poderão ser qualificadas como taxas colectivas, na medida em que visam retribuir os serviços prestados por uma entidade púbica a um certo conjunto ou categoria de pessoas.
A este respeito, como referem Gomes Canotilho/Vital Moreira, “a diferença essencial entre os impostos e estas contribuições bilaterais é que aqueles visam financiar as despesas públicas em geral, não podendo, em princípio, ser consignados a certos serviços públicos ou a certas despesas, enquanto que as segundas, tal como as taxas em sentido estrito, visam financiar certos serviços públicos e certas despesas públicas (responsáveis pelas prestações públicas de que as contribuições são contrapartida), aos quais ficam consignadas, não podendo, portanto, ser desviadas para outros serviços ou despesas”.
Neste sentido, as contribuições são tributos (com uma estrutura paracomutativa), dirigidos à compensação de prestações presumivelmente provocadas ou aproveitadas pelos contribuintes, distinguindo-se das taxas que são tributos rigorosamente comutativos e que se dirigem à compensação de prestações efetivas.
Por outro lado, o Tribunal Constitucional tem também reconhecido a existência dessas diferentes categorias jurídico-tributárias (designadamente para efeito de extrair consequências quanto à competência legislativa), admitindo que as taxas e outras contribuições de carácter bilateral só estão sujeitas a reserva parlamentar quanto ao seu regime geral, mas não quanto à sua criação individual e quanto ao regime concreto, podendo portanto ser criadas por diploma legislativo governamental e reguladas por via regulamentar desde que observada a lei-quadro.
Ou seja, não há dúvida que as contribuições financeiras se distinguem dos impostos.
Analisando a contribuição em apreço (Contribuição de Serviço Rodoviário - CSR), criada pela Lei n.º 55/2007, de 31 de Agosto, a mesma visa financiar a rede rodoviária nacional [a cargo da EP - Estradas de Portugal, E. P. E. (artigo 1.º), que, entretanto, passou a denominar-se Infraestruturas de Portugal, S.A. (IP)], sendo que o financiamento da rede rodoviária nacional a cargo desta entidade é assegurado pelos respetivos utilizadores e, subsidiariamente, pelo Estado, nos termos da lei e do contrato de concessão aplicável (artigo 2.º).
A referida contribuição corresponde à contrapartida pela utilização da rede rodoviária nacional, tal como esta é verificada pelo consumo dos combustíveis, e constitui uma fonte de financiamento da rede rodoviária nacional a cargo da IP no que respeita à respetiva conceção, projeto, construção, conservação, exploração, requalificação e alargamento, ainda que a exigência da contribuição não prejudique a eventual aplicação de portagens em vias específicas ou o recurso da entidade concessionária a outras formas de financiamento (artigo 3.º).
Esta contribuição incide sobre a gasolina e o gasóleo rodoviário sujeitos ao imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos e dele não isentos (artigo 4.º, n.º 1) e é devida pelos sujeitos passivos do imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos, sendo aplicável à sua liquidação, cobrança e pagamento o disposto no Código dos Impostos Especiais de Consumo (artigo 5.º, n.º 1).
O produto da CSR constitui receita própria da actualmente denominada IP (artigo 6.º).
A actividade de conceção, projecto, construção, conservação, exploração, requalificação e alargamento da rede rodoviária nacional, que é objecto de financiamento através da CSR foi atribuída, em regime de concessão, à EP - Estradas de Portugal, E. P. (agora denominada IP) e, pelo Decreto-Lei n.º 380/2007, de 13 de novembro, que aprovou as bases da concessão e nas quais se prevê que, entre outros rendimentos, essa contribuição constitui receita própria dessa entidade (Base 3, alínea b)).
Por outro lado, naquelas bases da concessão é estabelecido, como uma das obrigações da concessionária, a prossecução dos “objetivos de redução da sinistralidade e de sustentabilidade ambiental” (Base 2, n.º 4, alínea b)).
Assim, à luz do regime jurídico sucintamente descrito, dificilmente se poderia concluir que a CSR constitui uma contribuição financeira.
Como se refere no Acórdão proferido no âmbito do Processo n.º 304/2022-T, de 05-01-2023, a CSR não tem como pressuposto uma prestação, a favor de um grupo de sujeitos passivos, por parte de uma pessoa coletiva.
A contribuição é estabelecida a favor da EP - Estradas de Portugal, E. P. E. (artigo 3.º, n.º 2), agora denomina IP, sendo essa mesma entidade a titular da receita correspondente (artigo 6.º).
No entanto, os sujeitos passivos da contribuição (as empresas comercializadoras de produtos combustíveis rodoviários) não são os destinatários da atividade desenvolvida por aquela entidade, a qual consiste na “conceção, projeto, construção, conservação, exploração, requalificação e alargamento” da rede de estradas (artigo 3.º, n.º 2).
Por outro lado, nada permite afirmar que a responsabilidade pelo financiamento da atividade administrativa que se encontra atribuída à IP é imputável aos sujeitos passivos da contribuição, que são as empresas comercializadoras de combustíveis rodoviários.
Quando é certo que o artigo 2.º da Lei n.º 55/2007 declara expressamente que o “financiamento da rede rodoviária nacional a cargo da EP - Estradas de Portugal, E.P. E. (...) é assegurado pelos respetivos utilizadores e, subsidiariamente, pelo Estado, nos termos da lei e do contrato de concessão aplicável.”
Nestes termos, o financiamento da rede rodoviária nacional é assegurado pelos respectivos utilizadores, que são os beneficiários da actividade pública desenvolvida pela EP - Estradas de Portugal, E. P. E. (agora IP), verificando-se, no entanto, que a contribuição de serviço rodoviário é devida pelos sujeitos passivos do imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos, que, nos termos do artigo 4.º, n.º 1, alínea a), do CIEC, são os “depositários autorizados” e os “destinatários registados”.
Não existindo, deste modo, qualquer nexo específico entre o benefício emanado da actividade da entidade pública titular da contribuição e o grupo dos sujeitos passivos.
Adicionalmente, refira-se ainda que o regime jurídico da CSR não é equiparável ao previsto para a Contribuição Extraordinária sobre o Sector Energético (CESE).
Com efeito, a CESE, criada pela Lei do Orçamento do Estado para 2014, é considerada como uma contribuição extraordinária que tem “por objetivo financiar mecanismos que promovam a sustentabilidade sistémica do sector energético, através da constituição de um fundo que visa contribuir para a redução da dívida tarifária e para o financiamento de políticas sociais e ambientais do sector energético”, incidindo sobre as pessoas singulares ou coletivas que integram o sector energético nacional.
A receita obtida é consignada ao Fundo para a Sustentabilidade Sistémica do Sector Energético (FSSSE), criado pelo Decreto-Lei n.º 55/2014, de 9 de Abril, com o objectivo de estabelecer mecanismos que contribuam para a sustentabilidade sistémica do sector energético, designadamente através da contribuição para a redução da dívida e ou pressão tarifárias e do financiamento de políticas do sector energético de cariz social e ambiental, de medidas relacionadas com a eficiência energética, de medidas de apoio às empresas e da minimização dos encargos financeiros para o Sistema Elétrico Nacional (artigo 11.º).
Assim sendo, a CESE tem por base uma contraprestação de natureza grupal, na medida em que constitui um preço público a pagar pelo conjunto de pessoas singulares ou colectivas que integram o sector energético nacional à entidade à qual são consignadas as receitas.
Não se reconduz à taxa stricto sensu, visto que não incide sobre uma prestação concreta e individualizada que a Administração dirija aos respectivos sujeitos passivos, nem preenche o requisito de unilateralidade que caracteriza o imposto, uma vez que não tem como finalidade exclusiva a angariação de receita, nem se destina à satisfação das necessidades financeiras do Estado, antes se pretendendo que o sector energético contribua para a cobertura do risco sistémico que é inerente à sua actividade.
Nestes termos, a CESE trata-se de um tributo de carácter comutativo, embora baseado numa relação de bilateralidade genérica ou difusa que, interessando a um grupo homogéneo de destinatários e visando prevenir riscos a este grupo associados, se efectiva na compensação de eventual intervenção pública na resolução de dificuldades desse sector, assumindo assim a natureza jurídica de contribuição financeira.
E, tendo em consideração o acima exposto, essa caracterização não é extensiva à CSR, pelo que não é aplicável, ao caso em análise, a jurisprudência arbitral que veio declarar a incompetência do Tribunal Arbitral ratione materiae para a apreciação de litígios que tinham como objeto a CESE (como é o caso do Acórdão proferido no âmbito do Processo n.º 714/2020-T, de 12-07-2021).
A este acervo de argumentos acresce ainda um outro.
Segundo a jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, a qualificação de uma tributação, um imposto, uma taxa ou um direito, à luz do Direito da União Europeia, compete ao Tribunal de Justiça, em função das caraterísticas objetivas de imposição, independentemente da qualificação que lhe é dada pelo direito nacional (cf. Istituto di Ricovero e Cura a Carattere Scientifico (IRCCS) — Fondazione Santa Lucia, processo C-189/15, acórdão de 18 de janeiro de 2017, §29; e Test Claimants in the FII Group Litigation, processo C-446/04, acórdão de 12 de dezembro de 2016, §107, entre outros).
É certo que, no processo arbitral que motivou o pedido de reenvio prejudicial ao Tribunal de Justiça (Processo n.º 564/2020-T), o Tribunal qualificou a CSR como um imposto, formulando as questões prejudiciais com base nesse pressuposto. Parece-nos, todavia, que na decisão em que culminou esse pedido de reenvio – o Despacho do Tribunal de Justiça de 07 de fevereiro de 2022 Vapo Atlantic, processo C-460/21, – o Tribunal de Justiça, para além de não colocar em causa essa qualificação, assume, para efeitos do artigo 1 da Diretiva 2008/118, um conceito funcional ou autónomo de imposto indireto. Tal conceito abrange quaisquer “imposições” indiretas que, pelas suas caraterísticas estruturais e teleológicas, não tenham um “motivo específico” na aceção da diretiva e possam, por conseguinte, privar o imposto especial de consumo harmonizado (no caso português, o ISP) de “todo o efeito útil” (par. 26 do Despacho Vapo Atlantic, já mencionado).
Dito de outro modo, para o Tribunal de Justiça, o tributo instituído pela lei portuguesa – e que este designou por “contribuição” – constitui um imposto porquanto, em virtude do desenho escolhido pelo legislador português, representa uma imposição indireta sem motivo específico e como tal suscetível de frustrar os desideratos de harmonização positiva subjacentes à Diretiva 2008/118. Foi o legislador português que, não obstante classificar o tributo como “contribuição”, definiu a respetiva incidência subjetiva em termos análogos à do ISP (artigo 5 da Lei n.º 55/2017, de 31 de agosto), colocando-se assim, independentemente da qualificação para que eventualmente apontasse a (inconstante) jurisprudência constitucional nacional, no âmbito de aplicação do artigo 1, n.º 2 da Diretiva 2008/118.
Portanto, mesmo que, à luz da jurisprudência do Tribunal Constitucional português, a CSR houvesse de ser qualificada como uma contribuição financeira (inconstitucional, desde já se avança), nem por isso ela – tal como está desenhada – deixaria de ser um imposto indireto na aceção da Diretiva. Isto sob pena de os Estados-membros poderem, em função da maior ou menor criatividade constitucional em termos de tributos públicos, frustrar os propósitos de harmonização e de neutralidade no plano dos impostos indiretos sobre o consumo.
Destarte, atentos os princípios da interpretação conforme e do primado do Direito da União Europeia (consagrado no artigo 8, n.º 4 da CRP, tal como interpretado pelo Tribunal Constitucional, no acórdão n.º 422/2020), há que considerar que os dispositivos legais que regulam a CSR devem ser interpretados no sentido de que consagram um imposto indireto sobre o consumo de produtos petrolíferos.
(...)”.
Reiterando-se aqui tal fundamentação, considera-se improceder a alegada excepção da incompetência relativa do Tribunal Arbitral em razão da matéria suscitada pela Requerida.
3.1.2. Questão da incompetência para fiscalizar a legalidade de normas em abstrato
Alega a Requerida, em suma, que as Requerentes suscitam junto desta instância arbitral a questão é a legalidade do regime da CSR, no seu todo, que esta instância arbitral constitui um contencioso de mera anulação, pelo que não tem competência arbitral para fiscalização da legalidade de normas em abstrato, sem enquadramento processual impugnatório de ato concreto de liquidação.
A Requerida parte aqui de um pressuposto errado, que é o de que esteja em causa uma fiscalização da legalidade de normas em abstrato.
Com efeito, é manifesto que a Requerente impugna os atos de liquidação de CSR repercutidos sobre si nas faturas referentes ao combustível adquirido, invocando como causa de pedir, a desconformidade do regime da CSR com o previsto na Diretiva 2008/118, do Conselho, de 16 de Dezembro de 2008.
Assim, não está em causa a fiscalização abstrata da legalidade das normas que criaram e regularam a CSR, mas sim a fiscalização da legalidade concreta de atos que as aplicaram, o que se insere na competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, definida no artigo 2.º do RJAT.
De resto, mesmo que estivesse em causa inconstitucionalidade das normas que criarem a CSR, nada obstava a que o Tribunal Arbitral se pronunciasse sobre a questão de constitucionalidade no âmbito do controlo difuso que o artigo 204.° da Constituição impõe a todos os tribunais, ao estabelecer que «nos feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados».
Neste caso, estando em causa a desconformidade do regime da CSR com o regime previsto na Diretiva 2008/118, do Conselho, de 16 de Dezembro de 2008, não pode deixar de concluir-se, do mesmo modo, pela competência contenciosa do Tribunal Arbitral para a apreciação do litígio.
Com efeito, as normas de direito europeu derivado, como normas de direito internacional convencional, vigoram diretamente na ordem jurídica interna com a mesma relevância das normas de direito interno, vinculando imediatamente o Estado e os cidadãos (artigo 8.º da Constituição).
A impugnação judicial de um ato de liquidação pode ser deduzida com fundamento em qualquer ilegalidade (artigo 99.º do CPPT), que pode resultar de normas de direito interno ou de direito internacional convencional.
Assim, não existe qualquer obstáculo a que o Tribunal Arbitral se pronuncie sobre o fundamento de ilegalidade dos atos de liquidação baseado em desconformidade do regime da CSR com o previsto na Diretiva Europeia acima referida.
Improcede, consequentemente, a exceção invocada.
3.1.3. Questão da incompetência o Tribunal Arbitral para apreciar a legalidade de atos de repercussão de CSR subsequentes a atos de liquidação
A Autoridade Tributária e Aduaneira defende, em suma, que nunca poderia o tribunal arbitral pronunciar-se sobre atos de repercussão da CSR, subsequentes e autónomos dos atos de liquidação de ISP/CSR, que não são atos de tributários e que, para mais, não correspondem a uma repercussão legal, mas a uma repercussão meramente económica ou de facto.
A repercussão da CSR nos consumidores de combustíveis é pretendida por lei, pois é a única forma de assegurar que «para financiamento da rede rodoviária nacional» seja «assegurado pelos respectivos utilizadores» e que a CSR seja a «contrapartida pela utilização da rede rodoviária nacional, tal como esta é verificada pelo consumo dos combustíveis» (artigos 2.º e 3.º, n.º 1, da Lei n.º 55/2007 de 31 de Agosto, na redação anterior à Lei n.º 24-E/2022, de 30 de Dezembro).
Por isso, está-se perante repercussão legal, prevista na lei e por ela pretendida, e não perante repercussão económica.
As dúvidas que pudessem subsistir sobre natureza de repercussão legal foram dissipadas pelo artigo 2.º do CIEC, na redação da Lei n.º 24-E/2022, de 30 de Dezembro, que confirma a obrigatoriedade de repercussão em matéria de impostos especiais de consumo, ao dizer que "os impostos especiais de consumo obedecem ao princípio da equivalência, procurando onerar os contribuintes na medida dos custos que estes provocam, designadamente nos domínios do ambiente e da saúde pública, sendo repercutidos nos mesmos, em concretização de uma regra geral de igualdade tributária".
O artigo 6.º da mesma Lei atribui natureza interpretativa à nova redação, pelo que se impõe a conclusão de que a repercussão é imposta por lei, quanto a todos os impostos especiais de consumo, inclusivamente a CSR, como já resultava anteriormente, quanto a esta dos artigos 2.º e 3.º da Lei n.º 55/2007, de 31 de Agosto.
No entanto, a Requerente, além de pedir a anulação das liquidações de CSR, pede também a dos atos de repercussão, e este tipo de atos, não está expressamente previsto no artigo 2.º do RJAT, que define a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD.
Por isso, este Tribunal Arbitral é materialmente incompetente para apreciar a legalidade dos atos de repercussão, o que não prejudica a sua competência para apreciar a legalidade dos atos de liquidação de CSR que lhe estão subjacentes.
Procede, assim, esta exceção, limitada à declaração ilegalidade dos atos de repercussão.
3.2. Questão da ilegitimidade da Requerente
A Requerida coloca esta questão considerando que apenas os sujeitos passivos que tenham procedido à introdução no consumo dos produtos em território nacional e provem o pagamento dos respetivos ISP/CSR possuem legitimidade para solicitar o reembolso do valor pago.
No seu entendimento, em suma,
– no âmbito dos IEC, de acordo com o estatuído nos artigos 15.º e 16.º do CIEC, os múltiplos adquirentes dos produtos não têm legitimidade para efeitos de solicitação da revisão do ato tributário e consequente pedido de reembolso do imposto; e
– não existe no âmbito da CSR um ato tributário de repercussão legal, subsequente e autónomo do(s) ato(s) de liquidação de ISP/CSR, sendo que as faturas não corporizam atos de repercussão de CSR, apenas titulando operações de compra e venda de combustíveis, e que o valor pago a título de CSR pelo sujeito passivo de ISP/CSR, pode, ou não, ter sido repercutido, no preço pago pelos adquirentes dos combustíveis.
3.2.1. Legitimidade decorrente da qualidade de repercutido
O regime da CSR, na versão anterior à Lei n.º 24-E/2022, de 30 de Dezembro, foi criado tendo em vista a repercussão nos consumidores das quantias cobradas a esse título pelos sujeitos passivos do imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos.
Com efeito, da exposição de motivos constante da Proposta de Lei n.º 153/X, constam as seguintes indicações: “[c]om a presente proposta de lei procede-se à criação de uma Contribuição de Serviço Rodoviário que visa remunerar a EP – Estradas de Portugal, E.P.E., pela utilização que é feita da rede rodoviária nacional, tal como ela é verificada pelo consumo da gasolina e do gasóleo como combustíveis rodoviários. Por meio da Contribuição de Serviço Rodoviário pretende-se, portanto, repercutir nos respetivos utilizadores os custos inerentes à gestão da rede rodoviária nacional, tendo em conta o percurso que estes realizam consumindo uma unidade de medida de combustível”.
No parecer da Comissão de Orçamento e Finanças sobre tal Proposta de Lei, concretizou-se que «“a Contribuição de Serviço Rodoviário constitui a contrapartida pela utilização da rede rodoviária nacional, tal como esta é verificada pelo consumo de combustíveis”, que será liquidada e cobrada nos termos aplicáveis ao ISP, o que significa que será paga no momento do abastecimento de combustível» [DAR II série A, n.º 106, 2007.07.07, da 2.ª SL da X Leg (pág. 15-18)] e nas conclusões da Comissão de Obras Públicas, Transportes e Comunicações, refere-se que a Proposta de Lei n.º 153/X propõe a criação da contribuição de serviço rodoviário com o objetivo de «remunerar a EP – Estradas de Portugal, EPE, pela utilização que é feita da rede rodoviária nacional, tal como ela é verificada pelo consumo da gasolina e do gasóleo como combustíveis rodoviários», fazendo desta forma «repercutir nos respetivos utilizadores os custos inerentes à gestão da rede rodoviária nacional, tendo em atenção o percurso que estes realizam consumindo uma unidade de medida de combustível» [DAR II série A, n.º 105, 2007.07.05, da 2.ª SL da X Leg (pág. 50-52)].
Este desígnio legislativo de que exista repercussão da CSR é patente no artigo 2.º da Lei n.º 55/2007, de 31 de Agosto (na redacção da Lei n.º 67-A/2007, de 31 de Dezembro, vigente no momento a que se reportam os factos tributários) ao estabelecer que «o financiamento da rede rodoviária nacional a cargo da IP, S. A., tendo em conta o disposto no Plano Rodoviário Nacional, é assegurado pelos respetivos utilizadores e, subsidiariamente, pelo Estado, nos termos da lei e do contrato de concessão aplicável» e no n.º 3 do mesmo artigo (na redacção inicial), que «a contribuição de serviço rodoviário constitui a contrapartida pela utilização da rede rodoviária nacional, tal como esta é verificada pelo consumo dos combustíveis».
Resulta destas normas que, na perspectiva legislativa, o destinatário do encargo económico resultante da imposição da CSR é o consumidor de combustíveis, sendo as empresas comercializadoras, que devem efectuar o seu pagamento ao Estado, meras substitutas tributárias. Neste contexto, a repercussão da CSR nos consumidores de combustíveis é uma repercussão legal, já que é pretendida por lei e é indispensável para que seja atingido o objectivo visado com a criação deste tributo.
A imposição constitucional do reconhecimento do direito de impugnação a quem for lesado por qualquer acto de natureza administrativa, que resulta do artigo 268.º, n.º 4, da CRP, leva a concluir que, tendo havido repercussão do tributo, é o repercutido o único lesado pela liquidação do tributo, quem tem legitimidade para impugnar os actos que afectaram a sua esfera jurídica, no exercício do direito de impugnação de todos os actos lesivos que lhe é constitucionalmente garantido.
Essa legitimidade do substituído para impugnação contenciosa é assegurada pelo artigo 18.º, n.º 4, alínea a), da LGT e pelos n.ºs 1 e 4 do artigo 9.º do CPPT, aplicáveis aos processos arbitrais tributários por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, na medida em que reconhecem legitimidade procedimental e processual aos contribuintes e a todos que forem obrigados tributários e mesmo a quem for titular de um interesse legalmente protegido.
Na pena de CASALTA NABAIS,
«Tanto é contribuinte o contribuinte directo, em relação ao qual o referido desfalque patrimonial ocorre directamente na sua esfera seja ele ou não o devedor do imposto, como o contribuinte indirecto, em relação ao qual o mencionado desfalque patrimonial ocorre na sua esfera através do fenómeno económico da repercussão do imposto».
A este respeito, costumam alguns autores distinguir entre contribuinte de direito e contribuinte de facto, sendo o primeiro a pessoa em relação à qual se verifica o pressuposto de facto do imposto, e o segundo o que, em virtude da repercussão, suporta economicamente o imposto. Todavia, o conceito de contribuinte é um conceito jurídico e a repercussão, quando legalmente prevista como é a regra dos impostos sobre o consumo, convoca o suportador do imposto não apenas em termos económicos, mas também em termos jurídicos, uma vez que, para além de uma obrigação jurídica de repercussão formal, temos uma de obrigação natural de repercussão material.
Por isso mesmo, não admira que a al. a) do n.º 4 do art. 18º da LGT fale de repercussão legal e reconheça legitimidade processual activa ao consumidor final ou adquirente de serviços para impugnar, administrativa ou judicialmente, o correspondente acto tributário. Um reconhecimento que a nossa jurisprudência já vinha aceitando e que, a nosso ver, é mesmo exigido pelo respeito do princípio da capacidade contributiva, uma vez que a capacidade contributiva, que em tais impostos se visa atingir, é efectivamente a do consumidor final ou do adquirente de serviços e não a do sujeito passivo do IVA» ( [1] )
De resto, uma interpretação do artigo 9.º, n.ºs 1 e 4, do CPPT no sentido da ilegitimidade do substituído para impugnar actos de liquidação que lesem a sua esfera jurídica, será materialmente inconstitucional, por incompatibilidade com aquele n.º 4 do artigo 268.º da CRP.
À luz das referidas disposições legais, torna-se incontornável concluir que o nosso sistema jurídico, como também sucede com o espanhol, e ao contrário do italiano, atribui expressamente legitimidade processual ativa aos repercutidos, mas mesmo que «“assim não sucedesse, já idêntica solução se podia, porventura, retirar das regras gerais de aferição da legitimidade, vertidas quer no artigo 9.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (doravante, CPPT), quer no artigo 30.º do Código do Processo Civil (doravante, CPC), aplicável em sede processual tributária ex vi artigo 2.º, alínea e) do CPPT: e assim é, uma vez que nos parece indiscutível a conclusão de que aquele que suporta o ónus financeiro do tributo terá sempre algum “interesse legítimo” em contestar o decréscimo patrimonial ilegal (ao menos, potencialmente ilegal, algo que não se logra conhecer) em que incorre enquanto repercutido do mesmo.» - cf. Declaração de voto de Gustavo Lopes Courinha no Acórdão do STA de 14 de outubro de 2020, proc. n.º 0506/17.2BEALM.
Na mesma linha e com amplitude geral o artigo 95.º da LGT estabelece que «o interessado tem o direito de impugnar ou recorrer de todo o acto lesivo dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, segundo as formas de processo prescritas na lei», pelo que esses direitos não podem deixar de ser reconhecidos a quem possa ter interesse na anulação desses actos, designadamente pela vantagem que lhes possa advir da «plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade» que é consequência da anulação (artigos 100.º da LGT e 24.º, n.º 1, do RJAT).
3.2.2. Legitimidade reconhecida pelo TJUE
O direito de reembolso do substituído a quem foi repercutido imposto liquidado com violação do Direito da União Europeia, é também assegurado, na interpretação que dele fez o TJUE no despacho do TJUE de 07-02-2022, processo n.º C-460/21:
«39 A obrigação de reembolsar os impostos cobrados num Estado-Membro em violação das disposições da União conhece apenas uma exceção. Com efeito, sob pena de conduzir a um enriquecimento sem causa dos titulares do direito, a proteção dos direitos garantidos na matéria pela ordem jurídica da União exclui, em princípio, o reembolso dos impostos, direitos e taxas cobrados em violação do direito da União quando seja provado que o sujeito passivo responsável pelo pagamento desses direitos os repercutiu efetivamente noutras pessoas».
«42 Por conseguinte, um Estado-Membro só se pode opor ao reembolso de um imposto indevidamente cobrado à luz do direito da União quando as autoridades nacionais provarem que o imposto foi suportado na íntegra por uma pessoa diferente do sujeito passivo e quando o reembolso do imposto conduzisse, para este sujeito passivo, a um enriquecimento sem causa. Daqui resulta que, se só tiver sido repercutida uma parte do imposto, as autoridades nacionais só estão obrigadas a reembolsar o montante não repercutido».
43 «... a questão da repercussão ou da não repercussão em cada caso de um imposto indireto constitui uma questão de facto que é da competência do órgão jurisdicional nacional, cabendo a este último apreciar livremente os elementos de prova que lhe tenham sido submetidos».
Como decorre desta jurisprudência, há uma obrigação de a Administração Tributária reembolsar os tributos cobrados em violação do Direito de União a quem efetivamente os suportou, pelo que no caso de tributos suscetíveis de repercussão, a titularidade do direito ao reembolso dependerá de ela ter sido ou não concretizada.
É corolário desta jurisprudência do TJUE que, no caso de ter havido repercussão, apenas o repercutido tem legitimidade para impugnar os atos que a concretizem ou os que a antecedam, pois apenas o repercutido é afetado na sua esfera jurídica pelo ato lesivo e o substituto só terá legitimidade na medida em que não tenha repercutido integralmente o tributo que suportou nessa qualidade.
3.2.3. Conclusão sobre a questão da legitimidade
Assim, é o repercutido quem tem legitimidade para impugnar os atos que afetaram a sua esfera jurídica, no exercício do direito de impugnação de todos os atos lesivos que lhe é constitucionalmente garantido (artigos 20.º e 268.º, n.º 4, da CRP).
Por isso, não se coloca a questão da plúrima possibilidade de reembolso pela Autoridade Tributária e Aduaneira, pois, no caso de ter havido repercussão, apenas o repercutido tem direito ao reembolso. De qualquer modo, é manifesto que não há qualquer fundamento legal nem lógico para os direitos económicos e processuais do repercutido, que pagou o tributo indevido, serem prejudicados pelo facto de poder também ser efetuado indevido reembolso do tributo às entidades que o repercutiram.
Essa legitimidade é assegurada pelos artigos 65.º e 95.º da LGT, conjugado com os n.ºs 1 e 4 do artigo 9.º do CPPT, aplicáveis aos processos arbitrais tributários por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, na medida em que reconhecem legitimidade procedimental e processual a quem for obrigado tributário e a quem for titular de um interesse legalmente protegido, e ainda pelo artigo 132.º do CPPT que reconhece tal legitimidade aos substituídos.
Por fim, resta referir que as menções anteriores não são postas em causa pela consideração de que o CIEC estabelece um regime especial de revisão, à luz do qual a Requerente não teria legitimidade para despoletar. De facto, tal argumentação parte do princípio de que, entre outras, a disposição do artigo 15.º do CIEC é aplicável à CSR, mas tal pressuposto jurídico não se verifica, dado que o tributo é objeto de uma regulamentação própria, constante de um diploma autónomo, e a remissão para o CIEC (a par da LGT e do CPPT) refere-se apenas “à sua liquidação, cobrança e pagamento”, não já ao “reembolso” ou sequer às garantias aplicáveis. É certo que o Capítulo II do CIEC abarca as regras de “liquidação, pagamento e reembolso do imposto”. Porém, não existe nenhuma remissão em bloco para o regime legal previsto nesse capítulo; como também não existe qualquer remissão para o regime de reembolso constante dos artigos 15.º a 20.º dos CIEC, sendo que o próprio CIEC na epígrafe do capítulo e no regime distingue tais matérias.
Pelo exposto, improcede a exceção da ilegitimidade substantiva e processual.
3.3. Questão da ineptidão da petição inicial
No essencial, quanto a esta exceção, a AT defende a que o pedido de pronúncia arbitral é inepto por a Requerente não identificar os atos que são objeto do pedido arbitral, como exige a alínea b) o n.º 2 do artigo 10.º do RJAT e que não lhe é possível identificar factos essenciais omitidos pela Requerente, desde logo, o estabelecimento de qualquer correlação/correspondência entre os atos de liquidação praticados pelos sujeitos passivos de ISP/CSR e o alegado pela Requerente no pedido arbitral.
O artigo 98.º, n.º 1, alínea a), do CPPT, subsidiariamente aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, indica como uma das nulidades insanáveis em processo judicial tributário, a ineptidão da petição inicial.
Não indicando o CPPT as situações em que se deve entender que ocorre ineptidão da petição inicial, há que fazer apelo ao CPC, que é de aplicação subsidiária, nos termos do artigo 2.º, alínea e), daquele Código, e também o é no âmbito do processo arbitral tributário, por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.
No artigo 186.º, n.º 1, do CPC, indicam-se as seguintes situações de ineptidão da petição inicial:
a) Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir;
b) Quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir;
c) Quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis.
O n.º 3 do mesmo artigo estabelece que «se o réu contestar, apesar de arguir a ineptidão com fundamento na alínea a) do número anterior, a arguição não é julgada procedente quando, ouvido o autor, se verificar que o réu interpretou convenientemente a petição inicial».
No caso em apreço é manifesto que a ineptidão arguida pela AT não se enquadra nas referidas alíneas b) e c), pelo que só se pode aventar o seu enquadramento na alínea a).
No que concerne à alínea a), não se estando perante uma situação de falta do pedido ou de causa de pedir, apenas se poderá enquadrar a arguição no conceito de inteligibilidade.
No entanto, percebe-se o que pretende a Requerente com os pedidos que formula:
– anulação dos atos tributários de liquidação respeitantes à Contribuição de Serviço Rodoviário (“CSR”), cujo encargo tributário foi repercutido na esfera jurídica da Requerente;
– restituição do montante indevidamente suportado, acrescido dos respetivos juros indemnizatórios calculados nos termos do artigo 43.º, n.º 1 e 100.º n.º 1 da LGT.
No pressuposto, invocado pela Requerente, de as empresas fornecedoras terem apresentado declarações de introdução no consumo de combustíveis e feito o pagamento das respetivas liquidações e terem repercutido o valor da CSR seria apuráveis os montantes cuja anulação a Requerente pretende, subjacentes às faturas.
Pelo exposto, improcede a exceção da ineptidão do pedido de pronúncia arbitral.
3.4. Questão da caducidade do direito de ação tempestividade do pedido de revisão oficiosa e do pedido de constituição do tribunal arbitral
3.4.1. Tempestividade do pedido de constituição do tribunal arbitral
O pedido de revisão oficiosa foi apresentado em 12-10-2023 e não foi proferida decisão sobre ele até 13-05-2024, data em que a Requerente apresentou o pedido de constituição do tribunal arbitral.
O indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa formou-se em 12-02-2024, quatro meses após a entrada da petição do contribuinte no serviço competente da administração tributária, nos termos dos n.ºs 1 e 5 do artigo 57.º da LGT.
Nos termos do artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, o prazo para apresentação do pedido de constituição do tribunal arbitral é de 90 dias, contado a partir dos factos previstos nos n.ºs 1 e 2 do artigo 102.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, quanto aos atos suscetíveis de impugnação autónoma.
Tendo-se formado o indeferimento tácito em 12-02-2024, o prazo de 90 dias para apresentação de pedido de constituição do tribunal arbitral terminou em 12-05-2024, domingo transferindo-se para o 1º dia útil, dia 13-05-2024 nos termos do artigo 20.º CPPT, aplicável ex-vis artigo 29.º do RJAT.
O pedido de constituição do tribunal arbitral foi apresentado em 13-05-2024, pelo que a apresentação foi efetuada dentro do prazo de 90 dias previso no RJAT.
Assim, desta perspetiva, o pedido de pronúncia arbitral não é intempestivo.
3.4.2. Tempestividade do pedido de revisão oficiosa
O prazo para apresentação do pedido de revisão oficiosa era o de quatro anos, com fundamento em erro imputável aos serviços, previsto na parte final do n.º 1 do artigo 78.º da LGT.
Na verdade, como há muito vem entendendo uniformemente o Supremo Tribunal Administrativo, constitui erro imputável aos serviços qualquer ilegalidade não imputável ao contribuinte, isto é, qualquer ilegalidade para a qual não tenha contribuído, por qualquer forma, o contribuinte através de uma conduta ativa ou omissiva, determinante da liquidação, nos moldes em que foi efetuada. ( [2] )
No caso em apreço, é manifesto que os erros de que enfermam os atos de liquidação de CSR impugnados, derivados de ilegalidade das normas aplicada, não são imputáveis à Requerente, pois não teve qualquer intervenção no procedimento de liquidação, sendo imputáveis à Autoridade Tributária e Aduaneira, que os emitiu.
A Requerente pediu a revisão oficiosa de atos de liquidação de CSR que foram repercutidos em faturas emitidas entre outubro de 2019 e maio de 2023.
Sendo de 4 anos, a contar da liquidação, o prazo de revisão oficiosa, por erro imputável aos serviços, previsto na parte final do n.º 1 do artigo 78.º da LGT, e tendo sido apresentado o pedido de revisão em 12.10.2023, é tempestivo o pedido (tanto para mais se contarmos com a suspensão dos prazos introduzida pela Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março que alargou o prazo de quatro anos de caducidade do direito de pedir a revisão oficiosa por 162 dias (87+75).
Nestes termos, o pedido de revisão é o meio processual adequado para suscitar a apreciação do vício de violação do direito europeu por parte de norma da legislação nacional, por ser imputável aos serviços, tem cabimento no disposto no artigo 78.º, n.º 1, II parte da LGT, aplicando-se o prazo de quatro anos aí previsto e não o prazo de reclamação graciosa, de 120 dias (Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 8 de fevereiro de 2017, processo n.º 0678/16) nem o prazo de 3 anos previsto no artigo 15.º do CIEC, invocados pela AT.
Improcede assim a invocada caducidade do direito de ação.
4. Mérito da causa
Como resulta da matéria de facto não se provou a repercussão e pagamento da CSR alegada, no valor de € 44.990,74, nas vendas de combustível efetuadas pelas fornecedoras B... e C... Lda.
É que no entender deste Tribunal não basta a prova da aquisição de combustível para demonstrar ou fazer inferir a repercussão integral de CSR, tanto para mais quando os sujeitos passivos de imposto podem solicitar reembolso sobre a mesma CSR na qualidade de sujeitos passivos, pelo que existe o risco de duplo reembolso de imposto quando não se realize a prova do montante de imposto efetivamente repercutido e pago.
Assim, improcede necessariamente o pedido de pronúncia arbitral, pois todos os direitos substantivos da Requerente, tanto os de anulação como os de reembolso e juros indemnizatórios, dependiam do pagamento da CSR, como repercutida.
Consequentemente, fica prejudicado, por ser inútil (artigos 130.º e 608.º, n.º 2, do CPC) o conhecimento das restantes questões colocadas.
5. Decisão
Nestes termos acordam neste Tribunal Arbitral em julgar improcedente o pedido de pronúncia arbitral e absolver a Autoridade Tributária e Aduaneira de todos os pedidos.
6. Valor do processo
De harmonia com o disposto nos artigos 296.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 44.990,74, indicado pelas Requerentes sem oposição da Autoridade Tributária e Aduaneira.
7. Custas
Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 2.142,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerente.
Lisboa, 21-02-2025
(Catarina Belim
Árbitra Singular)
[1] CASALTA NABAIS, Direito Fiscal, 7.ª edição, páginas 243-244.
[2] Essencialmente neste sentido, podem ver-se os seguintes acórdãos: de 12-12-2001, processo n.º 026.233; de 06-02-2002, processo n.º 026.690; de 13-03-2002, processo n.º 026765; de 17-04-2002, processo n.º 023719; de 08-05-2002, processo n.º 0115/02; e 22-05-2002, processo n.º 0457/02; de 05-06-2002, processo n.º 0392/02; de 11-05-2005, processo n.º 0319/05; de 29-06-2005, processo n.º 9321/05; de 17-05-2006, processo n.º 016/06; e 26-04-2007, processo n.º 039/07; de 21-01-2009, processo n.º 771/08; de 22-03-2011, processo n.º 01009/10; de 14-03-2012, processo n.º 01007/11; de 05-11-2014, processo n.º 01474/12; de 09-11-2022, processo n.º 087/22.5BEAVR; de 12-04-2023, processo n.º 03428/15.8BEBRG.