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Sumário
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A Requerente não é o sujeito passivo da CSR, nem repercutido legal deste imposto. Assim, a sua legitimidade é aferida pela qualidade de mera repercutida de facto, circunstância em que sobre si recai o ónus de demonstrar um interesse legalmente protegido, como se extrai do cotejo dos artigos 9.º, n.º 1 do CPPT, 18.º, n.º 4, alínea a) e 65.º da LGT.
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Esse interesse há de corresponder à circunstância de ter suportado, do ponto de vista económico, o imposto [CSR] liquidado ao sujeito passivo fornecedor dos combustíveis. O que implica duas condições: a primeira é que o fornecedor de combustíveis tenha repercutido, de facto, à Requerente, a CSR; e a segunda é que o fenómeno da repercussão “voluntária” tenha ficado por aí, sem que a Requerente tenha, de igual modo, repercutido aos seus clientes o “peso” económico da CSR.
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Não tendo ficado provado que a Requerente suportou (e em que medida), a final, o encargo económico do imposto, falece-lhe legitimidade para pedir a anulação das respetivas liquidações e o reembolso do imposto.
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A solução preconizada enquadra-se numa interpretação conforme à Constituição (v. artigo 268.º, n.º 4), porquanto o direito à impugnação dos atos lesivos não pode deixar de reportar-se aos sujeitos cuja esfera jurídico-patrimonial sofreu a lesão (os lesados) e não a outros.
DECISÃO ARBITRAL
A árbitra designada para formar o Tribunal Arbitral, constituído em 26 de junho de 2024, Marisa Almeida Araújo, decide,
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Relatório
A..., S.A., NIPC..., com sede ..., Rua..., ..., ..., ...- ... Leiria, adiante “Requerente”, apresentou, em 10 de abril de 2024, pedido de constituição de Tribunal Arbitral e de pronúncia arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 10.º e seguintes do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), na redação vigente.
É demandada a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante identificada por “AT” ou Requerida.
A Requerente pretende a declaração de ilegalidade dos atos de liquidação respeitantes à Contribuição de Serviço Rodoviário (“CSR”), cujo encargo tributário foi repercutido na esfera jurídica da Requerente pelos fornecedores B..., UNIPESSOAL LDA., C..., S.A., na sequência da aquisição de 341.159,98 (trezentos e quarenta e um mil cento e cinquenta e nove vírgula noventa e oito) litros de gasóleo e, em face da qual suportou 37.868,76 Euros (trinta e sete mil oitocentos e sessenta e oito euros e setenta e seis cêntimos) de CSR e 25 (vinte e cinco) litros de gasolina e, em face da qual suportou 2,18 Euros (dois euros e dezoito cêntimos) de CSR àquela entidade
O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”), em 12 de abril de 2024 e, em seguida, notificado à AT.
Após nomeação da árbitra, a mesma comunicou, em tempo, a aceitação do encargo.
O Exmo. Presidente do CAAD informou as Partes, por notificação eletrónica registada no sistema de gestão processual em 5 de junho de 2024, não tendo sido manifestada oposição.
O Tribunal Arbitral ficou constituído em 26 de junho de 2024.
Em 1 de julho de 2024, a Requerida apresentou a sua Resposta, com defesa por exceção e por impugnação, e juntou o processo administrativo (“PA”).
Notificada para o efeito, a Requerente respondeu à matéria de exceção por requerimento junto aos autos em 20 de setembro de 2024.
Tendo sido dispensada a reunião a que alude o art.º 18 do RJAT, Requerida e Requerente apresentaram alegações, em 17 e 19 de outubro de 2024, respetivamente.
Posição da Requerente
A Requerente argumenta sumariamente que,
O pedido é tempestivo, porquanto, por força do imperativo constitucional plasmado no artigo 8.º, n.º 4, da CRP e refletido no artigo 1.º, n.º 1, da LGT, o disposto na Diretiva IEC prevalece sobre quaisquer normas de Direito interno ordinário conflituantes – designadamente, as contidas na Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto – que ponham em causa a sua plena aplicação no seio da União. Pelo que, entende a Requerente estar a Autoridade Tributária obrigada a não aplicar normas de Direito interno ordinário – in casu, as disposições da Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto – em prol da salvaguarda do disposto na Diretiva IEC, sendo essa obrigação decorrente do princípio do primado do Direito europeu previsto nos artigos 8.º, n.º 4, da CRP e 1.º, n.º 1, da LGT, do princípio da colaboração leal e, bem assim, da cláusula geral de empenhamento na construção da União Europeia prevista no artigo 7.º, n.os 5 e 6, da CRP.
Estando a Autoridade Tributária obrigada à não aplicação das normas internas violadoras do Direito europeu, necessariamente se conclui, segundo a Requerente, que a omissão deste dever constitui erro imputável aos serviços, suscetível de justificar a aplicação do prazo alargado de quatro anos estabelecido no artigo 78.º, n.º 1, da LGT.
Entende a Requerente que tem a legitimidade e o direito de requerer a restituição da CSR que lhe foi indevidamente cobrada – na sua perspetiva -, por erro imputável aos serviços, no prazo alargado de quatro anos estabelecido no artigo 78.º, n.º 1, da LGT.
Por outro lado, entende a Requerente que, nos termos do supra citado artigo 78.º, n.º 4, da LGT, o fundamento da revisão oficiosa reside na injustiça grave ou notória da liquidação. Ao que acresce que, segundo a Requerente, tendo esta suportado o encargo tributário em referência em virtude da respetiva repercussão na sua esfera jurídica, é evidente a ausência de negligência sua impeditiva da aplicação do disposto no artigo 78.º, n.º 4, da LGT, porquanto a Requerente esteve necessariamente ausente do procedimento tendente à liquidação do tributo.
A Requerente apresentou pedido de revisão oficiosa em 12/09/2023 e a AT não se pronunciou, consubstanciando um indeferimento tácito, o que a Requerente não se conforma.
A Requerente é uma sociedade anónima que se dedica à exploração e venda de argilas e de produtos minerais não metálicos destinados à indústria cerâmica.
No período compreendido entre setembro de 2019 e dezembro de 2022, a Requerente adquiriu, no âmbito da sua atividade comercial, 341.159,98 (trezentos e quarenta e um mil cento e cinquenta e nove vírgula noventa e oito) litros de gasóleo e 25 (vinte e cinco) litros de gasolina às sociedades B..., UNIPESSOAL LDA., C..., S.A. (doravante também designadas “Gasolineiras”).
O preço por si pago por força da compra do combustível compreendeu, segundo a Requerente, por força da repercussão efetuada pelas referidas Gasolineiras, os montantes suportados por esta entidade a título de CSR aquando da introdução dos combustíveis no consumo, ascendendo o encargo tributário repercutido sobre a Requerente a 37.870,94 Euros (trinta e sete mil oitocentos e setenta euros e noventa e quatro cêntimos).
Segundo a posição da Requerente, a repercussão da CSR é um verdadeiro imposto. Não se identifica qualquer contraprestação destinada – ainda que de forma indireta e presumida – aos sujeitos passivos da CSR que permita configurar este tributo como uma contribuição financeira, nem tão-pouco se verifica qualquer motivação extrafiscal que justifique a incidência da CSR. Pelo que a Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto, limita-se a consignar genericamente a receita decorrente da CSR à INFRAESTRUTURAS DE PORTUGAL, S.A., não estabelecendo qualquer contrapartida indireta ou presumivelmente aproveitada pelos sujeitos passivos da CSR nem tão-pouco evidenciando qualquer objetivo extrafiscal de modelação de comportamentos desses mesmos sujeitos passivos.
Resulta de imposição legal, nos termos do disposto no artigo 2.º do Código dos Impostos Especiais de Consumo (“IEC”), aplicável à CSR por remissão do artigo 5.º da Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto, não subsistindo dúvidas de que ao repercutido assiste o direito de obter a restituição do imposto ilegalmente liquidado, pois é aquele que sofre na sua esfera o impacto patrimonial negativo do imposto. Que a mesma reflete uma injustiça e que o TJUE considera o CRS ilegal.
Assim, conclui a Requerente que o tribunal competente para decidir esta questão, em virtude de estarmos perante a discussão de um verdadeiro imposto – o CSR.
Quanto à legitimidade da Requerente,
De acordo com a LGT como com o CPPT, têm legitimidade para intervir no procedimento e no processo tributário todos aqueles que demonstrem ter um interesse legalmente protegido cuja tutela dependa desse procedimento ou processo, ainda que não sejam legalmente responsáveis pelo cumprimento de quaisquer obrigações tributárias. A legitimidade no procedimento e processo tributário não se confunde com a qualidade de sujeito passivo, sendo certo que, como os n.os 3 e 4 do artigo 18.º da LGT indiciam, é atribuída legitimidade procedimental e processual a entidades que não se qualificam como sujeitos passivos, designadamente em situações de repercussão do pagamento do imposto.
A legitimidade atribuída ao repercutido justifica-se com o facto de recair sobre si o encargo patrimonial inerente ao pagamento da prestação tributária, circunstância que o torna naturalmente lesado caso o montante liquidado não se mostre legalmente devido. Em qualquer situação de repercussão do pagamento do imposto – independentemente de se tratar de repercussão legal ou voluntária –, verifica-se uma diminuição do património pessoal do repercutido, o qual suporta um encargo tributário sem ter qualquer participação no procedimento de liquidação. Neste contexto, segundo a Requerente, não se descortina qualquer razão que justifique distinguir a repercussão legal de outras situações de repercussão de facto para efeitos de aferição da legitimidade procedimental ou processual do repercutido, contanto que a transmissão do encargo do imposto seja provado, como é o presente caso.
Desta forma, conclui a Requerente que o repercutido será, independentemente da modalidade de repercussão, titular de um interesse legalmente protegido justificativo da atribuição de legitimidade procedimental e processual para discussão da legalidade da dívida tributária, tudo nos termos dos artigos 9.º, n.os 1 e 2, e 65.º da LGT, e 9.º, n.º 1, do CPPT.
Por outro lado,
Sustenta a Requerente a incompatibilidade da CSR com a Diretiva 2008/118/CE, de 16 de dezembro de 2008, que fixa o regime geral dos impostos especiais de consumo (“IEC”), pois a criação de IEC não harmonizados, como a CSR.
Em consequência, e conforme a jurisprudência assente do Tribunal de Justiça, os Estados-Membros são obrigados a reembolsar os montantes de imposto indevidamente cobrados em violação do direito da União Europeia.
Entende ainda a Requerente que se verifica inconstitucionalidade por violação do princípio da igualdade, no sentido da aplicação do princípio da capacidade contributiva, segundo o qual cada sujeito passivo deverá contribuir para o financiamento das funções gerais do Estado na medida da respetiva força económica. O princípio da igualdade fiscal, previsto no artigo 13.º da CRP, impõe que os impostos sejam pagos por todos os contribuintes na medida da respetiva capacidade contributiva, uma vez que as utilidades financiadas com as receitas deles provenientes são igualmente aproveitáveis por todos.
Sustenta ainda serem devidos juros indemnizatórios, ao abrigo do disposto no artigo 43.º, n.º 3, al. c) da LGT, dada a ilegalidade das liquidações de CSR efetuadas por erro imputável aos serviços, a serem contados desde a data do pagamento do imposto até ao seu integral reembolso.
Posição da Requerida
Como ponto prévio a Requerida sustenta que,
A Requerente sustenta o seu pedido em faturas quando, para os efeitos do caso, o que releva é o Documento de Introdução ao Consumo (DIC), que contem todos os elementos que permitem o cálculo e a liquidação do tributo aplicável, ou seja, é o documento que suporta as quantidades de produtos declaradas para consumo bem como a liquidação do imposto correspondente, o qual a Requerente pretende a sua anulação.
Por outro lado, apenas a C..., S.A. (...) é titular de estatuto fiscal, habilitado a introduzir no consumo gasolina e gasóleo, podendo, enquanto tal, ter sido sujeito passivo de ISP/CSR; quanto a B..., Unipessoal Lda. (...), identificada no PPA, não é (nem era à data dos factos) titular de estatuto fiscal no âmbito do ISP e como tal não poderia ter sido responsável pela introdução dos produtos no consumo nem pelo pagamento da CSR correspondente, esta operadora económica configura, quanto muito, mero intermediário na cadeia de distribuição de combustíveis.
Por outro lado, entende a AT que se verifica uma confusão de conceitos e que, no tocante à questão da repercussão, este é, antes de mais, um conceito económico e contabilístico e traduzem efeito económico da tributação em geral, e não apenas da tributação sobre o consumo. Sendo que, o legislador, nos casos em que pretendeu atribuir relevância jurídico-tributária ao fenómeno da repercussão, criou a figura da repercussão legal que, in casu, não existe.
Por exceção, a Requerida alega sumariamente que o Tribunal Arbitral é incompetente em razão da matéria, qualificando a CSR como uma contribuição financeira, enquadrável como uma das “demais contribuições financeiras a favor das entidades públicas” a que aludem o artigo 165.º, n.º 1, alínea i) da Constituição e 3.º, n.º 2 da LGT, e não como um imposto.
Suscita também a incompetência material deste Tribunal, por entender que a Requerente pretende a apreciação da legalidade de todo o regime da CSR, pela sua natureza e conformidade jurídico-constitucional.
Argumenta ainda que, a apreciação da legalidade de atos de repercussão de CSR extravasa o âmbito material da arbitragem tributária. Assim, nunca poderia o Tribunal Arbitral pronunciar-se sobre atos de repercussão, por não serem atos tributários.
De onde conclui que se verifica a exceção dilatória de incompetência do tribunal em razão da matéria, que prejudica o conhecimento do mérito, nos termos vertidos nos artigos 576.º, n.ºs 1 e 2 e 577.º, alínea a) do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicável por via do artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.
A Requerida invoca a ilegitimidade processual (ativa) da Requerente, salientando que, ao abrigo do disposto no artigo 15.º, n.º 2 do Código dos IEC, aplicável por remissão do artigo 5.º, n.º 1 da Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto, que criou a CSR, tal pressuposto apenas assiste aos sujeitos passivos que tenham procedido à introdução no consumo dos produtos em território nacional e provem o pagamento do imposto.
A Requerente carece igualmente de legitimidade por se encontrar fora do âmbito de aplicação do artigo 18.º, n.º 4, alínea a) da LGT, que prevê que os repercutidos legais, embora não sejam sujeitos passivos, têm legitimidade para reclamar, recorrer, impugnar e formular pedido arbitral. É que o diploma que institui a CSR não contempla qualquer mecanismo de repercussão legal, pelo que, no caso concreto, está em causa uma eventual repercussão de natureza meramente económica ou de facto, que não se pode presumir.
Desta forma, conclui que a Requerente carece de legitimidade processual, o que consubstancia uma exceção dilatória, nos termos dos artigos 576.º, n.ºs 1 e 2, 577.º, alínea e) e 578.º, todos do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT, que prejudica o conhecimento do mérito da causa e implica a absolvição da Requerida da instância. Ou, se assim não se entender, deve considerar-se que a Requerente carece de legitimidade substantiva, o que consubstancia uma exceção perentória, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 576.º, n.ºs 1 e 3 e 579.º do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT, devendo a Requerida ser absolvida do pedido.
A Requerida argui ainda a ineptidão da petição inicial, alegando a falta de objeto, em virtude de não terem sido identificados pela Requerente os atos tributários praticados pela AT.
Pelas razões expostas, considera verificada a exceção de ineptidão do pedido arbitral, por falta de identificação do ato tributário, exigida pelo artigo 10.º, n.º 2, alínea b) do RJAT, e por contradição entre o pedido e a causa de pedir, o que determina a nulidade de todo o processo e consequente absolvição da Requerida da instância, conforme disposto nos artigos 186.º, n.ºs 1 e 2, 576.º, n.ºs 1 e 2, 577.º, alínea b) e 278.º, n.º 1, alínea b), todos do CPC, aplicáveis por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.
Suscita ainda a Requerida a ininteligibilidade do pedido e a contradição entre este e a causa de pedir já que, sumariamente, apresentando como causa de pedir, para efeitos de reembolso do que foi pago, a repercussão de um tributo alegadamente inválido por desconformidade desse tributo com o Direito da União e formula um pedido de anulação de liquidações que não identifica através da mera impugnação de alegadas repercussões, sem sequer identificar o nexo entre estas e aquelas, (que não existe), fá-lo, com assento na ideia errada de que vigora para a CSR um regime de repercussão legal e de que, a referida repercussão (que como já se viu é meramente económica) possa ser presumida.
Por fim, a Requerida invoca a impossibilidade de se aferir em pleno da tempestividade dos pedidos, concluindo que os pedidos arbitrais são intempestivos, suscitando a exceção de caducidade do direito de ação.
Por outro lado, entende que a Requerente também não pode fazer-se valer do prazo de 4 anos previsto na segunda parte do artigo 78.º, n.º 1 da LGT, por não se verificar o requisito de erro imputável aos serviços, uma vez que as liquidações de CSR foram efetuadas de acordo com a disciplina legal aplicável e não enfermam de qualquer vício.
Por impugnação, a Requerida invoca que a Requerente não provou a alegação de que pagou e suportou integralmente o encargo da CSR por repercussão, ónus que sobre si impendia (v. artigo 74.º da LGT).
Acrescenta que, admitir-se a condenação da AT à restituição dos montantes que a Requerente alegadamente suportou, a título de CSR, sem a exata identificação dos atos tributários em causa, poderia conduzir ao absurdo de a AT vir a ser, sucessivamente, condenada a pagar os mesmos montantes de CSR, a todos os intervenientes no circuito económico de comercialização de combustíveis rodoviários, que se veriam indevidamente enriquecidos em claro prejuízo do erário público, o que configuraria um atentado à segurança jurídica.
Em relação ao Despacho do Tribunal de Justiça no processo C-460/21, a Requerida sustenta que em momento algum este considera ilegal a CSR.
Afirma que existe um vínculo intrínseco entre o destino da CSR e o motivo específico que levou à sua criação, que se prende com a redução da sinistralidade rodoviária e a sustentabilidade ambiental, ambos distintos de uma finalidade orçamental. Deste modo, a CSR é conforme ao direito da União Europeia, não se constatando erro imputável aos serviços.
Por outro lado, ainda que a repercussão económica viesse a ser provada, de acordo com o Tribunal de Justiça, um Estado-Membro pode opor-se a um pedido de reembolso de um imposto indevido, apresentado pelo comprador sobre quem esse imposto tenha sido repercutido, com o fundamento de não ter sido esse comprador que o pagou às autoridades fiscais, desde que, nos termos do direito interno, esse comprador possa exercer uma ação civil de repetição do indevido.
Em relação ao pedido de reembolso de todos os impostos suportados pela Requerente incidentes sobre o valor da CSR, tais como o IVA e a tributação autónoma, a Requerida alega que não foi por aquela invocada qualquer causa de pedir para o mesmo, de onde decorre que esta pretensão tem por pressuposto a viabilidade do pedido principal, que é improcedente.
À cautela, salienta que, não havendo prova de que os encargos da Requerente com combustíveis incorporam ou não CSR, quer na sua totalidade ou apenas em parte, nem de que a Requerente, ela própria, não fez repercutir os alegados valores de CSR no preço final dos serviços/bens/mercadorias por si comercializadas, não é possível afirmar (ou sequer inferir) que a taxa de Tributação Autónoma referente a encargos efetuados ou suportados pela Requerente enquanto sujeito passivo de IRC com viaturas ligeiras de passageiros, motos e motociclos incidiu sobre aqueles valores de CSR. E o mesmo se diga quanto ao IVA. Pelo que, em ambos os casos, o pedido deve improceder.
Por fim, em relação ao pedido dos juros indemnizatórios, tendo sido apresentado pedido de revisão da liquidação, caso a ação fosse procedente, estes só seriam devidos depois de decorrido um ano após a apresentação do pedido de revisão oficiosa, em conformidade com o disposto no artigo 43.º, n.ºs 1 e 3, alínea c) da LGT.
Conclui pela extinção e absolvição da instância por incompetência do Tribunal Arbitral, e/ou ilegitimidade processual e/ou ineptidão do pedido arbitral, ou, se assim não se entender, pela absolvição do pedido, por verificação da exceção de caducidade do direito de ação, e/ou da exceção de falta de legitimidade substantiva; ou, por fim, caso assim não se entenda, pela improcedência total do pedido, por infundado e não provado.
Tendo em conta a matéria de exceção, a Requerente exerceu o contraditório e, sumariamente, tomou a seguinte posição,
Quanto à competência do tribunal, a Requerente, reitera o que já havia assumido em sede de PPA.
No que tange à competência no sentido de a Requerida alegar ainda que a Requerente suscita a legalidade do regime jurídico da CSR no seu todo, esta considera que a Requerente pretende com a presente ação é a declaração de ilegalidade dos atos tributários em causa e a consequente anulação, tendo por base a ilegalidade do regime jurídico da CSR.
Quanto à invocação que os tribunais arbitrais não têm competência para apreciar atos de repercussão, o que a Requerente pretende é a apreciação da legalidade dos atos de liquidação de CSR, cujo encargo tributário suportou por repercussão, e não a apreciação da legalidade dos atos de repercussão.
Quanto à alegada ilegitimidade,
A Requerente entende que a legitimidade ativa dos repercutidos é reconhecida pelo artigo 18.º, n.º 4, alínea a) da LGT, ao dispor que, embora não sejam sujeitos passivos, os repercutidos legais mantêm o direito de reclamação, recurso, impugnação ou de pedido de pronúncia arbitral. Esta legitimidade é ainda confirmada pelos artigos 54.º, n.º 2, 65.º e 95.º da LGT e pelos n.º 1 e 4 do artigo 9.º do CPPT. Todos aplicáveis ao processo arbitral por força do artigo 29.º do RJAT.
Quanto à repercussão de facto, a Requerente entende que qualquer situação de repercussão, legal ou económica, verifica-se uma diminuição do património pessoal do repercutido, que suporta o encargo tributário ainda que sem participar no procedimento de liquidação. Pelo que, não se descortina, segundo a Requerente, razão alguma que justifique distinguir a repercussão legal da repercussão de facto para efeitos de aferição da legitimidade procedimental ou processual do repercutido, desde que se verifique a transmissão do encargo do imposto.
Por outro lado, a CSR visa onerar os consumidores de combustíveis, enquanto presumidos utilizadores da rede rodoviária nacional. Se a entrega do tributo cabe ao sujeito passivo, mas o financiamento é assegurado pelos utilizadores, é inquestionável que estes preceitos implicam que se verifique uma transferência do encargo do imposto para os consumidores, segundo posição da Requerente.
Assim, a Requerente juntou todas as faturas de que dispunha, nas quais é discriminado o tipo de combustível, os litros adquiridos, as datas e a identificação das fornecedoras. Ficou demonstrado que a Requerente suportou 37.868,76 € de CSR na aquisição de 341.159,98 litros de gasóleo e 2,18 € de CSR na aquisição de 25 litros de gasolina. A prova da repercussão reside nestas faturas, ainda que não existisse uma obrigação de incluir na fatura o montante de CSR repercutido. Sendo que, de qualquer forma, a Requerente solicitou que se oficiassem as entidades B..., UNIPESSOAL LDA. e C..., S.A., para que estas pudessem vir confirmar a repercussão.
Por outro lado,
Alega a AT que a Requerente terá repassado, no preço dos seus serviços e produtos, o encargo suportado com a CSR para os seus clientes e que, por isso, poderão ser esses os lesados com o encargo. No entanto, tal como já afirmado, a CSR foi criada para ser suportada pelos consumidores finais de combustível, que é o caso da Requerente.
Quanto à ineptidão da petição inicial,
A Requerente juntou ao pedido de revisão oficiosa e ao pedido de pronúncia arbitral todas as faturas de aquisição de combustível, contendo todos os elementos essenciais deste tipo de documento, incluindo a identificação dos fornecedores. Exigir mais que isto à Requerente é manifestamente insustentável, segundo a sua posição.
Aão pode a Requerente ser penalizada com a exigência de uma prova documental especifica cujo acesso lhe é impossível, quando essa prova, com todos os dados facultados pela Requerente nas faturas apresentadas, teria sido de fácil acesso à Requerida, pois que foi a esta que as emitiu e com os seus poderes facilmente as pode solicitar aos sujeitos passivos. Exigência essa que conflituaria com o direito fundamental de acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva, plasmado nos artigos 20.º e 268.º, n.º 4 da CRP.
Quanto à ininteligibilidade do pedido e contradição entre pedido e causa de pedir,
Não pode ser exigida à Requerente a identificação das liquidações pois estas não lhe são emitidas. Por sua vez, o acesso a essas informações é impossível para a Requerente e tal exigência configuraria uma preclusão ao seu direito de acesso a uma tutela jurisdicional efetiva, consagrado no artigo 18.º n.º 4 alínea a) da LGT, pelo que não pode obstar à procedência da ação.
Acrescenta que, a Requerente pede a anulação das liquidações de CSR que lhe foram repercutidas e com isso o reembolso da quantia indevidamente prestada porque a CSR consiste num imposto contrário ao Direito da União Europeia e à Constituição da República Portuguesa.
Quanto à alegada caducidade do direito de ação, a Requerente reitera, no geral, posição assumida em sede de PPA.
Das alegações das partes resulta vertida, de forma geral, a posição que já haviam assumido.
III. Questões a Apreciar
A questão de mérito a decidir respeita à compatibilidade do regime da CSR subjacente aos atos tributários impugnados com o direito da União Europeia, em concreto, com o disposto no artigo 1.º, n.º 2 da Diretiva 2008/118/CE.
No entanto, a Requerida invocou múltiplas exceções, quer dilatórias, quer perentórias, de que o Tribunal deve conhecer a título prévio, logo após a fixação da matéria de facto, a começar pelas dilatórias, pois a sua procedência, impede a apreciação do mérito da causa.
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Fundamentação de Facto
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Factos Provados
Com relevo para a decisão, importa atender aos seguintes factos:
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A Requerente é uma sociedade anónima que se dedica à exploração e venda de argilas e de produtos minerais não metálicos destinados à indústria cerâmica.
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No exercício da sua atividade, no período compreendido entre setembro de 2019 e dezembro de 2022, a Requerente adquiriu 341.159,98 litros de gasóleo e 25 (litros de gasolina às sociedades B..., UNIPESSOAL LDA., C..., S.A. – a saber:
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As faturas que titulam a aquisição do combustível não contêm qualquer menção à CSR.
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Em 12 de setembro de 2023, a Requerente apresentou pedido de revisão oficiosa junto da Alfândega de Peniche, a requerer que fossem anulados os atos de liquidação indevidamente emitidos, e a devolução do valor invalidamente cobrado.
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A AT não se pronunciou.
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Em 10 de abril de 2024, a Requerente apresentou o pedido de constituição do Tribunal Arbitral e de pronúncia arbitral que deu origem à presente ação – cf. registo de entrada do pedido de pronúncia arbitral (“ppa”) no SGP do CAAD.
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Factos não Provados
Não se provou em que medida os montantes de CSR que a Requerente reclama foram incluídos (e, portanto, repercutidos) no preço de compra do combustível adquirido, nem que a Requerente não repercutiu, no todo ou em parte, esses montantes sobre terceiros.
Com relevo para a decisão não existem outros factos que devam considerar-se não provados.
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Motivação da Decisão da Matéria de Facto
Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, em face das soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2 do CPPT, 596.º, n.º 1 e 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e) do RJAT, não tendo o Tribunal que se pronunciar sobre todas as alegações das Partes, mas apenas sobre as questões de facto necessárias para a decisão.
No que se refere aos factos provados, a convicção dos árbitros fundou-se na análise crítica da prova documental junta aos autos.
Quanto aos factos não provados, regista-se que a prova da repercussão da CSR à Requerente, pressupunha como ponto de partida a demonstração de que a CSR foi inicialmente liquidada e paga pelo sujeito passivo, quando da introdução no consumo dos combustíveis, em dado(s) período(s) e montante(s). O que não foi feito.
Por outro lado, mesmo que se soubesse o concreto valor de CSR repercutido à Requerente, do adquirido processual não se retira, de igual modo, que tenha sido a Requerente, a final, a suportar economicamente o imposto em causa e que o encargo da CSR se cristalizou na sua esfera, como entidade que, em última instância, foi onerada com o tributo em causa.
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Do Direito
Questões Prévias
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Da Competência Material do Tribunal Arbitral
Na senda da decisão 988/2023-T que, em evolução de raciocínio se adota, entende do tribunal que,
A Requerida qualifica a CSR como contribuição financeira e não como imposto, daí retirando a consequente exclusão do âmbito da jurisdição arbitral por falta de vinculação da AT (v. artigo 4.º, n.º 1 do RJAT). Isto porque a Portaria de Vinculação[1], no corpo do seu artigo 2.º, delimita o respetivo âmbito à “apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida [à AT]”, sem prever outros tributos. (sublinhado nosso)
A questão releva do ponto de vista da competência “relativa” do Tribunal Arbitral e não “absoluta”, em razão da matéria, já que a norma que rege a competência, o artigo 2.º, n.º 1 do RJAT, faz referência a “atos de liquidação de tributos”, categoria ampla que compreende a tripartição clássica refletida no artigo 165.º, n.º 1, alínea i) da Constituição e no artigo 3.º, n.º 2 da LGT – impostos, taxas e contribuições financeiras –, pelo que aí tem claro enquadramento a CSR.
Porém, mesmo na perspetiva da competência “relativa” não assiste razão à Requerida, porquanto, apesar de o artigo 2.º da citada Portaria parecer limitar o âmbito da vinculação da AT à jurisdição arbitral aos “impostos” e de o nomen juris da CSR sugerir que estamos perante uma contribuição financeira, a sua natureza é, na realidade, a de um imposto administrado pela AT, ainda que de receita consignada, não sendo a denominação determinante.
A designação de contribuição não vincula o aplicador do direito e não é o facto de o tributo ter a receita consignada que o qualifica como contribuição financeira (v. Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 539/2015; 369/99 e 232/2022, respetivamente), existindo vários impostos que têm a sua receita consignada (ainda que ao arrepio do princípio da não consignação da receita dos impostos).
O elemento decisivo para a qualificação da CSR como contribuição financeira é a existência de uma estrutura paracomutativa[2], ou dito de outra forma, de um nexo de bilateralidade/causalidade que se estabelece entre o ente beneficiário da receita [Estado] e os sujeitos passivos do tributo. A prestação deve destinar-se a compensar prestações administrativas aproveitadas (bilateralidade) ou provocadas (causalidade) pelos respetivos sujeitos passivos, “(...) acabando por se reconduzir à categoria de impostos de receita consignada as prestações pecuniárias coativas cobradas com o intuito de financiar despesa pública – mesmo que se trate de despesa pública concretamente identificada no âmbito da consignação das receitas – sempre que essa despesa se não possa reconduzir ao suporte financeiro de medidas ou atividades administrativas provocadas pelos sujeitos passivos ou de que estes sejam beneficiários” (v. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 232/2022, citado na decisão arbitral 304/2022-T).
No caso da CSR, constata-se que a mesma não tem por finalidade compensar prestações administrativas realizadas de que o sujeito passivo seja presumidamente beneficiário e também não se identificam prestações administrativas a que o sujeito passivo tenha dado causa.
Conforme explicita a decisão arbitral 304/2022-T:
“Desde logo, a CSR não tem como pressuposto uma prestação, a favor de um grupo de sujeitos passivos, por parte de uma pessoa coletiva. A contribuição é estabelecida a favor da EP — Estradas de Portugal, E. P. E. (art. 3º, nº 2 da Lei n.º 55/2007), sendo essa mesma entidade a titular da receita correspondente (art.º 6º). No entanto, os sujeitos passivos da contribuição (as empresas comercializadoras de produtos combustíveis rodoviários) não são os destinatários da atividade da EP — Estradas de Portugal, E. P. E., a qual consiste na “conceção, projeto, construção, conservação, exploração, requalificação e alargamento” da rede de estradas (art. 3º, nº 2 da Lei n.º 55/2007).
Em segundo lugar, também não se encontra base legal alguma para afirmar que a responsabilidade pelo financiamento da tarefa administrativa em causa – que no caso será a “conceção, projeto, construção, conservação, exploração, requalificação e alargamento da rede de estradas” – é imputável aos sujeitos passivos da contribuição, que são as empresas comercializadoras de combustíveis rodoviários. Pelo contrário, o art.º 2.º da Lei n.º 55/2007 diz expressamente que o “financiamento da rede rodoviária nacional a cargo da EP - Estradas de Portugal, E.P. E., (...), é assegurado pelos respetivos utilizadores e, subsidiariamente, pelo Estado, nos termos da lei e do contrato de concessão aplicável.”
Portanto, apesar de ser visível, de forma clara, o elemento de afetação da contribuição para financiar a atividade de uma entidade pública não territorial – a EP - Estradas de Portugal, E. P. E. – não é de modo algum evidente a existência, pelo contrário, afigura-se inexistir um “nexo de comutatividade coletiva” entre os sujeitos passivos e a responsabilidade pelo financiamento da respetiva atividade, ou entre os sujeitos passivos e os benefícios retirados dessa atividade.
A Contribuição de Serviço Rodoviário visa financiar a rede rodoviária nacional a cargo da EP — Estradas de Portugal, E. P. E. (art.º 1º da Lei 55/2007). O financiamento da rede rodoviária nacional a cargo da EP — Estradas de Portugal, E. P. E., é assegurado pelos respetivos utilizadores (art.º 2º). São, estes, como se conclui, os sujeitos que têm um vínculo com a atividade da entidade titular da contribuição e com a atividade pública financiada pelo tributo; são eles os beneficiários, e são eles os responsáveis pelo seu financiamento.
No entanto, a contribuição de serviço rodoviário é devida pelos sujeitos passivos do imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos, que, nos termos do art.º 4º n.º 1, al. a) do CIEC, são os “depositários autorizados” e os “destinatários registados”, não existindo qualquer nexo específico entre o benefício emanado da atividade da entidade pública titular da contribuição e o grupo dos respetivos sujeitos passivos.
Embora a Autoridade Tributária afirme que a posição dos revendedores de produtos petrolíferos é a de uma “espécie de substituição tributária”, não entendemos assim, pois tal entendimento não tem apoio na lei.
[…]
Ainda poderia acrescentar-se que o universo de entidades que beneficiam ou dão causa à atividade financiada pela CSR não é um grupo delimitado de pessoas, mas é toda a população de um modo geral. E que o efetivo sacrifício fiscal, suportado através de uma repercussão meramente económica, não é suportado apenas pelos que efetivamente utilizam a rede de estradas a cargo da Infraestruturas de Portugal S.A., mas também pelos que utilizam vias rodoviárias que não se incluem nessa rede.
Por conseguinte, conclui também este tribunal que a Contribuição de Serviço Rodoviário, apesar do seu nomen juris e de a sua receita se destinar a financiar uma atividade pública específica, não tem o caráter de comutatividade, bilateralidade ou sinalagmaticidade grupal ou coletiva que é necessária à contribuição financeira.”
No mesmo sentido, salienta a decisão arbitral 629/2021-T, de 3 de agosto de 2022, que “o nexo grupal – que faria das contribuições financeiras uma espécie de taxas coletivas – não se estabelece com os sujeitos passivos da CSR, mas sim com terceiros não participantes na relação tributária.”.
A qualificação da CSR como um imposto foi também a seguida pelo Tribunal de Contas, na Conta Geral do Estado de 2008, e resulta da análise da sua génese. Interessa a este respeito notar que a Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto, criou a CSR por desdobramento do ISP, em relação ao qual é indiscutível a sua qualificação como imposto. Esta relação umbilical merece destaque na decisão arbitral 332/2023-T: “A CSR, durante algum tempo legalmente autonomizada do ISP, a partir do qual nasceu e ao qual voltou, constituiu sempre um pseudónimo deste – e, portanto, sempre foi um imposto”.
À face do exposto, julga-se improcedente a exceção de incompetência material do Tribunal Arbitral, encontrando-se a AT ao mesmo vinculada, por estar em causa um pedido de anulação de atos de liquidação de imposto (v. artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 5.º do RJAT).
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Da Ilegitimidade Ativa
O RJAT não contém a regulação do pressuposto processual da legitimidade, como possibilidade de intervenção num processo contencioso, cuja conformação jurídica tem, assim, de proceder do direito subsidiariamente aplicável, por via da aplicação do seu artigo 29.º, n.º 1, que remete para as disposições legais de natureza processual do CPPT, do CPTA e do CPC.
Da regra geral do direito processual, constante do artigo 30.º do CPC, resulta que é parte legítima quem tem “interesse direto” em demandar, sendo considerados titulares do interesse relevante, para este efeito, na falta de indicação da lei em contrário, “os sujeitos da relação controvertida”. A mesma regra é reproduzida no processo administrativo, que confere legitimidade ativa a quem “alegue ser parte na relação material controvertida” (v. artigo 9.º, n.º 1 do CPTA).
A legitimidade no processo é, pois, recortada pelo conceito central de “relação material” que, no âmbito fiscal, há de ser uma relação regida pelo direito tributário, à qual subjaz um ato tributário, cujo sujeito passivo é delimitado no artigo 18.º, n.º 3 da LGT, como “a pessoa singular ou coletiva, o património ou a organização de facto ou de direito que, nos termos da lei, está vinculado ao cumprimento da prestação tributária, seja como contribuinte direto, substituto ou responsável.”.
Neste domínio, a legitimidade não pode deixar de ser enquadrada no âmbito das relações jurídicas tributárias que se estabelecem entre a administração tributária, agindo como tal, e as pessoas singulares ou coletivas e entidades equiparadas (v. artigo 1.º, n.º 2 da LGT).
O CPPT consagra uma norma específica à legitimidade no processo judicial tributário, atribuindo-a aos “contribuintes, incluindo substitutos e responsáveis, outros obrigados tributários, as partes dos contratos fiscais e quaisquer outras pessoas que provem interesse legalmente protegido” (v. artigo 9.º, n.ºs 1 e 4 do CPPT).
No mesmo sentido, ainda que se refira somente à legitimidade no procedimento, a LGT determina no seu artigo 65.º que “têm legitimidade no procedimento os sujeitos passivos da relação tributária e quaisquer pessoas que provem interesse legalmente protegido.”. E o artigo 78.º da LGT, no âmbito da revisão dos atos tributários, assegura a mesma posição apelando aos conceitos de sujeito passivo e de contribuinte.
Em relação aos sujeitos passivos não originários, o legislador teve a preocupação de justificar, de forma especificada, a razão pela qual lhes é concedida legitimidade processual. Assim, quanto aos responsáveis solidários, a legitimidade processual deriva “da exigência em relação a eles do cumprimento da obrigação tributária ou de quaisquer deveres tributários, ainda que em conjunto com o devedor principal” (v. artigo 9.º, n.º 2 do CPPT). E, relativamente aos responsáveis subsidiários, está associada ao facto “de ter sido contra eles ordenada a reversão da execução fiscal ou requerida qualquer providência cautelar de garantia dos créditos tributários” (v. artigo 9.º, n.º 3 do CPPT). Em ambas as situações constitui-se uma relação jurídico-tributária entre estas categorias de sujeitos passivos derivados e o credor tributário Estado, que encerra prestações – principais (de pagamento da obrigação tributária) e acessórias –, o que sucede igualmente com o substituto.
Apesar de o repercutido legal não ser sujeito passivo, a alínea a) do n.º 4 do artigo 18.º da LGT, determina que assiste o “direito de reclamação, recurso, impugnação ou de pedido de pronúncia arbitral nos termos das leis tributárias” a quem “suporte o encargo do imposto por repercussão legal”, estendendo a posição jurídica adjetiva ao repercutido (apesar de não o considerar sujeito passivo), na condição de estarmos perante um caso de “repercussão legal”. A lei implica (ou pressupõe) desta forma que o repercutido legal é titular de um interesse legalmente protegido, condição exigida para que possa intervir em juízo (v. artigo 9.º, n.ºs 1 e 4 do CPPT).
Nesse contexto, assinala Sérgio Vasques que “Se o repercutido estará à margem da relação tributária, não estará por isso à margem do direito”, referindo que a LGT lhe reconhece o direito “à reclamação, recurso, impugnação ou pronúncia arbitral”[3].
Todavia, a CSR não constitui um caso de repercussão legal. A Lei n.º 55/2007, que institui a CSR, não contém qualquer referência sobre quem deve recair o encargo do tributo. Basta atentar, para esta conclusão, no artigo 5.º, n.º 1 da citada lei: “A contribuição de serviço rodoviário é devida pelos sujeitos passivos do imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos, sendo aplicável à sua liquidação, cobrança e pagamento o disposto no Código dos Impostos Especiais de Consumo, na lei geral tributária e no Código de Procedimento e Processo Tributário, com as devidas adaptações.”. Assim, o legislador limitou-se a identificar o sujeito passivo da CSR, nada acrescentando sobre a repercussão da mesma, pelo que o artigo 5.º, n.º 1 não remete para o artigo 2.º do CIEC (que prevê a repercussão legal nos impostos especiais sobre o consumo), mas apenas para as normas desse código que regulam a liquidação, cobrança e pagamento do imposto pelo sujeito passivo.
A CSR tem um regime próprio, vertido na Lei n.º 55/2007, não sendo um dos tributos projetados no campo de incidência objetiva do Código dos IEC. A remissão do regime da CSR para o Código dos IEC que consta do artigo 5.º, n.º 1 da Lei n.º 55/2007, restringe-se à componente procedimental da “liquidação, cobrança e pagamento” da CSR, não podendo extrapolar-se uma aplicação generalizada dos princípios e regras dos IEC consagrados nesse compêndio a um tributo que no mesmo não está previsto. Acresce que no mencionado artigo 2.º do Código dos IEC não é feita qualquer referência à CSR que, aliás, foi extinta precisamente pela Lei n.º 24-E/2022 que alterou a sua redação.
Acresce que a alteração legislativa operada no Código dos IEC, cuja redação (do artigo 2.º) passou a conter a referência expressa à repercussão, é posterior à data dos factos sob apreciação, pelo que, se fosse de seguir a posição da Requerida, estar-se-ia perante um caso flagrante de aplicação retroativa de normas fiscais. Esta conclusão não resulta afastada pela atribuição de natureza interpretativa pelo legislador[4], pois a retroatividade inerente às leis interpretativas “é necessariamente material e, caso esteja em causa a interpretação legal de normas fiscais, não pode deixar de estar abrangida pela proibição da retroatividade consagrada no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição.” (v. acórdão do Tribunal Constitucional n.º 751/2020, de 16 de dezembro de 2020. No mesmo sentido se pronuncia o recente acórdão do mesmo Tribunal, n.º 503/2024, de 25 de junho de 2024).
Em síntese, a Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto, que instituiu a CSR não contempla qualquer mecanismo de repercussão legal, nem sequer, adiante-se, de repercussão meramente económica, isto, sem prejuízo de ser um dado que, em princípio, as empresas repassam nos preços praticados os gastos em que incorrem, independentemente da sua natureza (e, portanto, incluindo os gastos tributários), por forma a concretizarem o objetivo lucrativo que preside à sua criação e manutenção (v. artigos 22.º do Código das Sociedades Comerciais e 980.º do Código Civil). E a alteração legislativa do Código dos IEC, ocorrida em dezembro de 2022, que passou a consagrar a repercussão nos IEC, além de não ser subsidiariamente aplicável à CSR, por falta de norma remissiva, mesmo que o fosse, não poderia reger a situação em análise porque é posterior à data dos factos.
A Requerente não tem a qualidade de consumidor de combustíveis, no sentido de consumidor final sobre o qual recai ou deve recair o encargo do tributo, na lógica da repercussão económica que subjaz nomeadamente aos Impostos Especiais de Consumo (“IEC”).
Na verdade, o combustível adquirido é um fator de produção no circuito económico, pelo que se a CSR, se destina a ser suportada pelo consumidor, à partida aquela não faz parte das entidades potencialmente lesadas, que são os consumidores e não os operadores económicos (v. neste sentido as decisões dos processos arbitrais n.ºs 408/2023-T, de 8 de janeiro de 2024, e 375/2023-T, de 15 de janeiro de 2024).
Ora, não sendo a Requerente o sujeito passivo da CSR, substituto, responsável ou repercutido legal desta contribuição, não lhe assiste legitimidade processual, a menos que, como interessada, alegue e demonstre factos que suportem a aplicação da norma residual atributiva de legitimidade, i.e., que evidencie um interesse direto e legalmente protegido na sua esfera (v. artigo 9.º, n.º 1 in fine do CPPT), passível de justificar a faculdade de demandar a Requerida em juízo, ónus que sobre si impende.
O único facto que a Requerente alega para este efeito é o de lhe ter sido repercutida a CSR, cujo encargo económico foi por si suportado. Uma das características típicas da repercussão legal, como sucede no IVA e em algumas verbas do Imposto do Selo, é a evidenciação nos documentos de débito – faturas emitidas – do imposto repercutido, que permite o seu controlo por parte do repercutido (v. artigos 36.º, n.º 5, alíneas c) e d) do Código do IVA e 23.º, n.º 6 do Código do Imposto do Selo. Este último refere que “nos documentos e títulos sujeitos a imposto são mencionados o valor do imposto e a data da liquidação, com exceção dos contratos previstos na verba 2 da tabela geral [arrendamento e subarrendamento], cuja liquidação é efetuada nos termos do n.º 8.”).
Sem prejuízo de a CSR ter sido consagrada como “contrapartida” da utilização da rede rodoviária nacional, a lei não indica ou sequer sugere sobre quem é que deve constituir encargo, contrariamente ao que a Requerente afirma. Na realidade, a Requerente é tão-só um cliente comercial do sujeito passivo que liquidou a CSR.
Compreende-se que o legislador não tenha adotado um conceito irrestrito de legitimidade ativa, rodeando-se de algumas cautelas, atentas as dificuldades práticas que uma tal abertura suscitaria, quer na ligação entre o ato de liquidação do imposto, a determinação da sua efetiva repercussão (económica) e a determinação do seu quantum; quer ainda no potencial desdobramento/duplicação de devoluções de imposto indevidas: simultaneamente ao sujeito passivo e ao(s) múltiplos repercutido(s) económicos da cadeia de valor. A ser assim, o mesmo imposto poderia ser restituído a diversos intervenientes, de forma dificilmente controlável, com manifesto prejuízo para o Estado, em colisão com os princípios da igualdade e da praticabilidade.
Conforme antes referido, a Requerente não logrou atestar que suportou a CSR contra a qual reage, ou a medida em que a suportou. E esta seria, segundo entendemos, a única forma de lhe poder ser reconhecida a legitimidade residual para a presente ação arbitral, tendo em conta que não é sujeito passivo, nas diversas modalidades que o conceito acomoda, nem repercutido legal da CSR. Diversamente, o que se demonstrou foi que a Requerente considera os gastos incorridos com a aquisição de combustíveis (incluindo os impostos inerentes aos mesmos) como fazendo parte da sua estrutura de custos, que reflete nos preços (tarifas) praticadas com os seus clientes, transferindo, portanto, o encargo económico da CSR para terceiros.
Em síntese, não tendo ficado provado o valor da CSR repercutido pelos fornecedores de combustíveis à Requerente, nem que esta suportou o encargo económico do imposto, falece-lhe legitimidade para pedir a anulação das respetivas liquidações e o reembolso do imposto, solução que se enquadra numa interpretação conforme à Constituição (v. artigo 268.º, n.º 4), porquanto o direito à impugnação dos atos lesivos não pode deixar de reportar-se aos sujeitos cuja esfera jurídico-patrimonial sofreu a lesão (os lesados) e não a outros.
A conclusão da ilegitimidade da Requerente também se retira da exegese do Código dos IEC, aplicável à CSR na parte referente à liquidação, cobrança e pagamento do imposto (por remissão do artigo 5.º, n.º 1 da Lei n.º 55/2007). Conforme declara o acórdão do CAAD, de 1 de fevereiro de 2024, proferido no âmbito do processo 296/2023-T, “qualquer que seja, em tese geral, a possibilidade de o repercutido invocar a ilegalidade das liquidações que originam a repercussão, no âmbito dos impostos especiais de consumo há uma norma que o veda e que o legislador manteve incólume ao longo das 25 alterações que, em 24 anos, introduziu no CIEC: a do n.º 2 do artigo 15.º (epigrafado “Regras gerais do reembolso”).” (realce nosso)
A referida norma [artigo 15.º, n.º 2, do Código dos IEC] estabelece que “Podem solicitar o reembolso os sujeitos passivos referidos no n.º 1 e na alínea a) do n.º 2 do artigo 4.º que tenham procedido à introdução no consumo dos produtos em território nacional e provem o pagamento do respetivo imposto.”.
Desde a redação inicial destas normas, dada pelo Decreto-Lei n.º 73/2010, de 21 de junho, a única alteração substancial registada foi o aditamento (pela Lei n.º 24-D/2022, de 30 de dezembro) do “destinatário certificado” entre os sujeitos passivos identificados à cabeça da norma sobre “Incidência subjetiva”. Quer dizer que nenhum legislador – nem mesmo o que entendeu atribuir natureza interpretativa à alusão à tipicidade da repercussão dos impostos especiais de consumo – considerou necessário, para o que ora importa, alargar o círculo dos “sujeitos passivos” para lá do “destinatário certificado”.
Quer dizer que só os sujeitos passivos aí identificados (no artigo 4.º), e só quando preencham requisitos adicionais, podem suscitar questões sobre, tal como resulta do n.º 1 desse artigo 15.º, “o erro na liquidação”. Ora, esta solução apresenta total cabimento face à impraticabilidade que seria fazer a gestão de um sistema demasiadamente aberto a todo o género e tipo de reembolsos, com uma duvidosa forma de controlo. A esta mesma conclusão chegaram, entre outras, as decisões proferidas nos processos arbitrais n.ºs 296/2023-T, 408/2023-T, 375/2023-T e 633/2023-T.
À face do exposto julga-se verificada a exceção de ilegitimidade da Requerente, constituindo uma exceção dilatória de conhecimento oficioso que obsta a que o Tribunal conheça a questão de fundo e demais questões suscitadas, com a consequente absolvição da Requerida da instância, nos termos do disposto nos artigos 9.º do CPPT, 65.º da LGT, 55.º, n.º 1, alínea a) e 89.º, n.ºs 2 e 4, alínea e) do CPTA, ex vi artigo 29.º, n.º 1 do RJAT, ficando prejudicados todos os passos seguintes no iter cognoscitivo acima delineado.
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Questões Prejudicadas
A procedência da questão prévia da ilegitimidade ativa da Requerente, prejudica o conhecimento das demais questões suscitadas.
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Decisão
Atento o exposto, este Tribunal Arbitral Coletivo decide:
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Julgar improcedente a exceção de incompetência material do Tribunal Arbitral para apreciar os atos de liquidação de CSR;
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Julgar procedente a exceção ilegitimidade ativa da Requerente para deduzir o pedido de declaração de ilegalidade de atos de liquidação de CSR e, em consequência, absolver a Requerida da instância;
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Condenar a Requerente no pagamento das custas do processo
Tudo com as legais consequências.
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Valor do Processo
Fixa-se ao processo o valor de € 37.870,94 que corresponde à importância de CSR cuja anulação a Requerente pretende e não contestado pela Requerida, de harmonia com o disposto nos artigos 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”), 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT e 306.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, este último ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.
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Taxa de Arbitragem
Fixam-se as custas no montante de € 1.836,00, a suportar pela Requerente por decaimento, de acordo com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4 do RJAT e 4.º do RCPAT e com a Tabela I anexa ao RCPAT.
Notifique-se.
Lisboa e CAAD, 21 de fevereiro de 2025
A árbitra
(Marisa Almeida Araújo)
[1] V. Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.
[2] V. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 7/2019.
[3] V. Manual de Direito Fiscal, 2.ª ed., p. 401.
[4] V. artigo 6.º da Lei n.º 24-E/2022, de 30 de dezembro.